Baixe Resenha Imago Dei e outras Notas de estudo em PDF para Direito, somente na Docsity! UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA - UFSC Antropologia Jurídica Profª Cristiane Derani Resenha ALUNO Juan Esquire Nogueira Junior REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA: Alain Supiot – Homo juridicus- cap. 1 Significado do ser humano- imago Dei O significado do ser humano: imago Dei Como todo animal vivo, de início o homem está no mundo por seus sentidos, mas, diferentemente de todos os outros, tem acesso, mediante a linguagem, a um universo que transcende o aqui e o agora dessa experiência sensível. Nossa existência se desenrola desde então ao mesmo tempo no universo físico de nosso ser biológico e de seu meio ambiente natural e no universo simbólico das palavras e dos objetos que o espírito humano carregou de sentido. Pelo gesto que modela as coisas e pela fala que os designa, o Homem tem acesso a uma liberdade vertiginosa: a de reconstruir o mundo à sua imagem, de arrancar-se ao peso das coisas conferindo-lhes um sentido. Para entrar no universo do sentido, todo homem deve abdicar de sua pretensão a ditar o sentido do universo e reconhecer que esse sentido vai além de seu único entendimento. A ciência moderna é a forma mais radical dessa renúncia à pretensão de atribuir ao mundo um sentido. O verdadeiro procedimento científico é o que deixa de lado o porquê das coisas para tentar compreender o como. A partir do instante em que pretende explicar em nome da Ciência o sentido da vida humana, o cientista se situa nos antípodas do procedimento científico e afunda no cientificismo. A razão humana é sempre uma conquista, a conquista frágil de um sentido compartilhado, no qual cada um possa acreditar, pois ele explica sua experiência sensível. Essas certezas podem variar de uma sociedade para outra ou de uma época para outra, mas a necessidade de tais certezas, por sua vez, não varia. A língua, o costume, a religião, a lei, o rito, são todos eles normas fundadoras do ser humano que, assim seguro de uma ordem existente, poderá inserir nela sua ação, ainda que contestadora. Instituir a razão é, assim permitir a todo ser humano combinar a finitude de existência física com a infinitude de seu universo mental. Cada um de nós deve aprender a inserir no universo do sentido esse limite tríplice que circunscreve sua existência biológica: o nascimento, o sexo e a morte. Em toda sociedade, processo de humanização supõem dar sentido e forma a esses três limites e faz, assim, seus membros atingirem a razão. Esse é o objeto daquilo a que podemos chamar no sentido amplo o sentimento religioso, que é uma marca distintiva da humanidade e consiste em inserir a vida de cada homem num significado que o ultrapassa. A perspectiva de poder desdobrar-se (clonagem humana, por exemplo) contém a promessa de apagar de uma vez os três limites da condição humana, libertando-nos da cadeia de geração emancipando-nos da dependência do outro sexo e permitindo-nos sobreviver eternamente a nós mesmos. Produzindo o homem à sua imagem, o homem realizaria enfim seu mais louco sonho: ocupar o lugar de Deus, e escapar assim a todos os limites que definem a condição humana. Fundamentos jurídicos da pessoa Nossa sociedade concebe o homem do ponto de vista jurídico como um sujeito dotado de razão e titular de direitos inalienáveis e sagrados. Contudo, de um ponto de vista científico é considerado como um objeto de conhecimento decifrável pelas Ciências biológicas, econômicas, sociais e etc. Os debates atuais sobre a bioética ganhariam muito em abrir-se a essa história de nossa concepção do ser humano, que é uma parte da história do Ocidente cristão. Essa concepção, da qual somos os herdeiros, é a da imago Dei, do Homem concebido à imagem de Deus e como tal chamado a se tornar o senhor da natureza. Mas, concebido a imagem de Deus o homem não é Deus. Sua dignidade particular procede não de si mesmo, mas de seu Criador, e ele partilha com todos os outros homens. Daí a ambivalência desses três atributos da humanidade, que são a individualidade, a subjetividade e a personalidade. Indivíduo, cada homem é único, mas também semelhante a todos os outros; sujeito, ele é soberano, mas também sujeitado à Lei comum; pessoa, ele é espírito, mas também matéria. Para apreender o que nosso individualismo tem de singular, nada melhor do que um olhar alheio. Segundo a nossa cultura jurídica, a pessoa é una e indivisível, de seu nascimento a sua morte; é uma individualidade indivisível, e não um lugar onde co- habitaria uma pluralidade de personagens. Para um melanésio, por exemplo, o ser humano poderia ser definido como um lugar vazio, circunscrito pelo conjunto dos laços que o ligam aos outros. Para nós, o ser humano se define, como um ego pleno, que tece livremente seus laços sociais e não é tecido por eles. Nossa cultura jurídica nos conduz, ao contrário, a ver o homem como a partícula elementar de toda sociedade humana, como um indivíduo nos dois sentidos, qualitativo e quantitativo. No sentido qualitativo, o indivíduo é, à imagem de Deus dos monoteístas, um ser único, incomparável a qualquer outro, sendo par si mesmo o seu próprio fim. No plano quantitativo, é um ser indivisível e estável. Somos todos semelhantes e, portanto, todos idênticos; e somos também todos diferentes, pois todos únicos. Por isso todo homem tem vocação para ocupar todos os lugares da sociedade e para não se identificar absolutamente com nenhum. Essa singularidade do indivíduo não resulta de fatores objetivos, que se imporia a ela já no nascimento, mas ela se expressa no exercício de sua liberdade. Nascendo livre e igual a todos os outros homens, é na competição com todos os outros que ele se revela a si mesmo e aos outros. A invenção da personalidade moral permitiu que essa concepção individualista digerisse toda forma de comunidade ou de sociedade humana. O homo juridicus consegue assim tratar o plural como um singular, o “nós” com um “eu” suscetível de negociar em pé de igualdade com todos os outros indivíduos. O sujeito é aquele que conversa: ele fala com os outros e sua palavra se converte em lei. Essa apropriação, pelo sujeito falante, da força normativa da palavra não se encontra nas grandes civilizações onde o cristianismo tem raízes. Esse domínio ocidental das leis se expressa tanto na maneira de conceber as relações entre os homens como em sua relação com as coisas. Com o Direito, o Homem se torna o artesão de suas próprias leis, trate-se da lei comum fundamentada, em regime democrático, sobre o é então reportada a pedaços de corpo – o gene, a célula – que, por sua vez, supostamente agem em conformidade com a lei da luta de todos contra todos. E vemos igualmente a sociedade como um amontoado de indivíduos em competição uns com os outros. A conjugação do cientificismo ordinário e da crença ocidental no progresso conduz, assim, a uma ideologia do não-limite que exerce efeitos em todos os campos da vida humana. No plano jurídico, ela conduz a considerar a lei não mais como uma garantia do estado das pessoas, mas como uma coerção da qual se deve emancipar. O cientificismo, no contexto secularizado, preconiza a emancipação do ser humano de qualquer conhecimento religioso ou mítico. Daí a rejeição de todo limite imposto do exterior. O resultado, no final, é o mesmo tipo de efeitos: a volta da lei do mais forte; o aprofundamento da diferença entre um pequeno número de ganhadores e um grande número de perdedores. Conclusão Os primeiros anos do século XX foram marcados pela difusão de diversas teorias cientificistas que deixaram marcas profundas no estudo da natureza (com o evolucionismo de Darwin) e da sociedade (com o positivismo de Comte e o darwinismo social de Spencer), no direito e na psiquiatria (com a antropologia criminal de Cesare Lombroso e Enrico Ferri) e mesmo na religião (com o kardecismo). Tais correntes procuravam romper com as explicações abstratas e metafísicas, buscando desvendar racionalmente a lógica do mundo natural, social, humano e sobrenatural, preferencialmente através da observação empírica. Todas tinham como ponto em comum a convicção de que a ciência e a técnica poderiam resolver os problemas básicos da humanidade. No contexto atual vivemos sob a égide da ciência, passamos a acreditar nesta tal qual acreditávamos na Igreja na Idade Média, pois pensávamos que esta detinha o conhecimento para o destino da humanidade. O cientificismo ocupou o lugar de Deus, fechamos os olhos para suas limitações e confundimos comumente o significado de uma teoria com a obtenção de um dogma. Ficamos impressionados com os verdadeiros milagres realizados pelos cientistas (clonagem humana, viagens espaciais), mas qual é o limite destes cientistas? Em nome da ciência até onde podemos ir? Consideramos os adventos oriundos desta “religião” tão mirabolantes que deixamos de questionar as implicações éticas e morais envolvidas, deixamos toda a responsabilidade nas mãos da ciência. A personalidade jurídica do homem, não é um dom divino, nem um facto da natureza como o pensaram os teorizadores do direito natural, mas é um artefato, uma construção histórica e social. Esta representação jurídica postula, pelo menos nas sociedades ocidentais, proibir, interditar que o homem seja reduzido a apenas um ser biológico/objeto ou mesmo uma simples abstração. O sujeito de direito das sociedades democráticas assenta nesta interdição que recusa apreender o ser humano como uma simples unidade de contagem do capital.