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Guias e Dicas
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livro a arquitetura nova, Manuais, Projetos, Pesquisas de Urbanismo

LIVRO FOCA NA ARQUITETURA PRODUZIDA POR ARTIGAS, COM SUAS PRINCIPAIS INFLUENCIAS

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2012

Compartilhado em 07/04/2012

celivan-goes-5
celivan-goes-5 🇧🇷

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Baixe livro a arquitetura nova e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Urbanismo, somente na Docsity! 1Arquitetura Nova 2 Pedro Fiori Arantes 5Arquitetura Nova ARQUITETURA NOVA Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, de Artigas aos mutirões 1. Artigas e o desenho ................................................. 9 O desenho da casa paulistana ............................................... 12 O desenho industrial ............................................................ 30 2. 1964: tijolos fora do lugar ...................................... 39 3. Sérgio, Flávio, Rodrigo e a tal da Arquitetura Nova .................................... 49 Arquitetos-pintores-cenógrafos, fazedores ............................ 52 A Pintura Nova .................................................................... 54 Flávio Império encena .......................................................... 60 A poética da economia e as abóbadas ................................... 70 4. 1968: o lápis e o fuzil ............................................. 91 Das abóbadas à luta armada: o racha no Fórum de 68 ......... 91 A resposta de Artigas: o Conjunto Zezinho Magalhães ........ 98 5. Crítica, utopia e assalariamento .............................. 107 O canteiro e o desenho ......................................................... 107 Um canteiro-escola ............................................................... 130 Sérgio pintor e Rodrigo arquiteto-assalariado ...................... 142 Flávio nos anos 70 ................................................................ 156 6. O fio da meada ....................................................... 163 Novos personagens entram em cena ..................................... 164 Arquitetos na contramão ...................................................... 173 O canteiro e o desenho no mutirão autogerido ..................... 189 Lá ......................................................................................... 219 Posfácio, Roberto Schwarz ..................................... 225 Cronologias: Flávio, Rodrigo e Sérgio .................... 233 Bibliografia ............................................................. 245 6 Pedro Fiori Arantes Agradeço a Jorge Oseki, animado interlocutor e orientador certeiro; a Ângela Rocha, pela carinhosa co-orientação; a Ana Paula Koury, pesquisadora da Arquitetura Nova, cujo trabalho de mestrado também me foi fundamen- tal; a Amélia Hamburger, pela amizade e inúmeras conversas na Socieda- de Cultural Flávio Império; e ao amigo que me fez publicar este trabalho, Sérgio Ferro. Aos atentos leitores-comentadores: Alberto Martins, Roberto Schwarz, Iná Camargo, Nabil Bonduki, Ermínia Maricato, Ivone Mautner, Guilherme Wisnik, Bia Tone, Chico Barros e Luciana Ceron. E também a: Beatriz Lefèvre, Félix Araújo, Célia e Zé Chico Quirino, Fernando Haddad, Leda Paulani, Antônio Carlos e Maria do Carmo Ribeiro, João Marcos Lopes, Joana Barros, Wagner Germano, Reginaldo Ronconi, Alessandro Ventura, Ana Paula Tanaka, Bia Kara, Luciana Royer, Roberto Moura, Patrick Araújo, Téo (Michael), Roberta Asse, Walter Moreira, Paulo Eduar- do, Sílvia e Alexandre Fix, e aos funcionários da biblioteca da FAU-USP. Especialmente: a Otília. E muito especialmente: a Mariana. 7Arquitetura Nova Nada é mais comovente que reatar um fio rom- pido, completar um projeto truncado, reaver uma identidade perdida, resistir ao terror e lhe sobreviver. Roberto Schwarz, “O fio da meada” 10 Arquitetura Nova do que em qualquer outra oportunidade, o verdadeiro sentido que pretendeu imprimir à arquitetura.3 Artigas inicia a aula na Grécia Antiga, em busca do sentido original da arquitetura. Procurando distingui-la das demais artes e entender por que lhe foi dado “quase sempre um lugar privile- giado na história”, recorre ao conceito de “arte útil” em Platão. A arquitetura, diz ele, por oposição às outras artes, não apenas toma a natureza por “modelo”, mas se adapta a ela para “dominá- la em proveito do próprio homem”. Sua “utilidade”, no entanto, não pode se restringir ao reino das necessidades materiais, preci- sa exprimir uma intenção-invenção humana que vá além da “mera construção” e do seu uso imediato. Só assim ela se torna “útil” no sentido platônico: uma “atividade superior da sociedade”, que colabora ativamente para a vida moral e social da República. A tensão entre necessidade e invenção na arquitetura desdo- bra-se na contradição conhecida entre arte e técnica. Contradi- ção que permanecerá, segundo Artigas, irresolvida até o Renasci- mento, quando surge um instrumento novo capaz de lhe dar uni- dade: o desenho (“disegno”). Leonardo da Vinci, artista disegna- tore, aparece nesse momento como o protótipo do arquiteto ca- paz de reunir, já em sentido moderno, arte e técnica. Artigas passa, então, a definir o “desenho” a partir de seu duplo caráter: a simultaneidade que articula intenção e realização, fins e meios, desígnio e mediação. O desenho como desígnio é “intenção, propósito, projeto humano no sentido de proposta do espírito”. Ao mesmo tempo, ele só se efetiva porque é mediação necessária entre projeto e obra: “é risco, traçado para expressão de um plano a realizar, linguagem de uma técnica construtiva”.4 3 O ensaio sempre citado “Os caminhos da arquitetura moderna” (1952), a meu ver, tem muito menos interesse para a compreensão da obra de Artigas, uma vez que foi quase integralmente submetido ao dogmatis- mo do PCB. 4 Na mesma publicação do GFAU, há um texto de Flávio Motta, “De- 11Artigas e o desenho Com a Revolução Industrial a contradição entre arte e téc- nica encontra uma nova instabilidade, “transformando-se em crise aguda”. Não por culpa do desenho, ressalva Artigas, mas pelo “aparecimento da máquina, de um lado, e do pensamento român- tico, do outro”. Arte e indústria aparecem então em “oposição irredutível”. No final do século XIX configuram-se duas posições antagônicas: de um lado os passadistas que reivindicam uma arte artesanal e, de outro, os homens de espírito moderno que estabe- lecem as bases do “desenho industrial”. A vitória dos últimos é inequívoca e o novo desenho torna-se capaz de restituir a unida- de entre arte e técnica — agora não mais como disegno renascen- tista mas como design. A descrição do aparecimento do desenho é simultaneamen- te a da própria constituição moderna do arquiteto “desenhador”, figura única capaz de determinar, independente dos demais traba- lhadores, o sentido da obra. Não por acaso, Artigas irá definir a arquitetura a partir do Desenho e, inequivocamente, adotar o pon- to de vista do seu realizador: o Arquiteto — “nós, desenhadores”. Contudo, e talvez por isso mesmo, Artigas não se preocupa em avaliar quais as dissociações que o desenho — primeiro como disegno e depois o design — irá produzir nos ofícios, no canteiro de obras e na indústria. O que ocorreu na divisão do trabalho com o aparecimento do arquiteto moderno? Quais as relações de pro- dução que tornam possível ao desenho virar um objeto concre- to? Estas não-questões da aula de Artigas serão enfrentadas pos- teriormente por Sérgio Ferro, em seu livro O canteiro e o dese- nho — uma resposta ao mestre. senho e emancipação”, também de 1967, que procura investigar as acepções da palavra desenho em inglês: design como projeto e drawing como repre- sentação. É inegável a inspiração de Artigas e Flávio Motta no texto de Giu- lio Carlo Argan, Projeto e destino, de 1961 (São Paulo: Ática, 2001). O mote inicial de Argan, desenho é desígnio, é semelhante ao de Artigas, mas a in- terpretação do desenho como “reificação” do projeto em destino, está mais próxima daquela de Sérgio Ferro, como veremos mais adiante. 12 Arquitetura Nova Artigas encerra a aula em forma poética: “Ninguém dese- nha pelo desenho”, mas porque tem “catedrais no pensamento”, e recita Fernando Pessoa: “Quanto faças, supremamente faze”. O DESENHO DA CASA PAULISTANA Conta-se, aliás, que foi por desenhar muito bem5 que o jo- vem Artigas acabou sendo convocado por Gregori Warchavchik em 1939 para ser seu sócio no concurso do Paço Municipal de São Paulo. Este encontro, ao que parece “casual”,6 foi importante para Artigas converter-se em arquiteto moderno. Até então, trabalhara como estagiário no escritório de Os- waldo Bratke, onde aprendera “a fazer tudo direitinho”, e desde 1937 possuía uma pequena construtora com o sócio Duílio Ma- rone. Suas casas repetiam as de Bratke, eram sólidas e bem exe- cutadas, seguindo “variações ecléticas” ao gosto da burguesia local. De acordo com Artigas, o trabalho era “puramente comer- cial” e o seu valor arquitetônico não era maior do que seu preço de mercado.7 Ao que tudo indica, Warchavchik lhe abriu um mundo no- vo. “Aquele monumento da arquitetura estrangeira no Brasil”, como brinca Artigas, tinha sido um dos pioneiros da arquitetura moderna no país, adotado pelos modernistas de 22, escolhido por Le Corbusier para representar a América do Sul no CIAM (Con- 5 Provavelmente, qualidade que não se deve apenas ao curso de en- genheiro-arquiteto, mas aos dois anos (1936-37) em que Artigas freqüen- tou aulas de modelo vivo com os artistas da, depois batizada, “Família Paulista”. O jovem arquiteto aprendeu a desenhar com antigos operários da construção civil: Volpi, Rebolo e Zanini eram pintores-decoradores de parede. 6 Dalva Thomaz, op. cit., p. 57. 7 Dalva Thomaz, op. cit., pp. 51-4. 15Artigas e o desenho ções técnicas locais” e assim constituir-se como uma manifesta- ção nacional legítima. Com a Segunda Guerra Mundial, a carestia do cimento e do aço importados, as promessas da arquitetura moderna servi- ram novamente a propósitos contrários: produto de luxo consu- mido por poucos milionários com fim de ostentação. Como lem- bra Artigas, só “meia dúzia de latifundiários que vinham da Eu- ropa e queriam fazer exibição do que tinham” podiam pensar em fazer uma laje de concreto, pois custava “cinqüenta vezes mais caro do que vigas de peroba”, que o arquiteto passou a utilizar em suas casas. A “temática corbusieana” teve, assim, que ser re- cusada por Artigas, pois naquele momento ela era “construtiva- mente imoral”.13 Tendo que fazer uso dos materiais locais (tijolo, madeira e telha cerâmica), numa substituição forçada de importações, Ar- tigas acaba encontrando em Wright algumas soluções modernas que não dependiam do uso do concreto e tornavam-se assim mais baratas: grandes telhados, caixilhos largos de madeira e tijolos aparentes. A arquitetura de Frank Lloyd Wright ensinou-lhe a “verdade dos materiais” — saber como empregá-los de forma a não constranger seus valores característicos14 —, fornecendo-lhe a base para formular o que será seu conceito-chave: o da “moral construtiva”.15 Foi a casa que fez para si próprio, em 1942, que deu a Arti- gas a certeza de estar trilhando um caminho próprio. A “Casi- nha”, como é conhecida, representou um ponto de inflexão para o arquiteto: “Foi um rompimento formal grande; tive coragem de fazer porque era para mim, me libertei inteiramente”. A “Ca- 13 Depoimento a Sylvia Fisher (1982), Fundação Vilanova Artigas, mimeo. 14 “Os caminhos da arquitetura moderna” (1952), em Caminhos da arquitetura, op. cit. 15 Depoimento a Sylvia Fisher, op. cit. 16 Arquitetura Nova sinha” inaugura o processo de invenção da casa paulistana: uti- liza materiais brutos e sem revestimento (tijolo, madeira, telha ce- râmica); nega a idéia de fachada, fazendo a frente da casa uma conseqüência do jogo de volumes de toda a edificação; a planta é fluida e circular, integrando as áreas de uso comum (sala, co- zinha e varanda); estabelece um núcleo hidráulico central que organiza simultaneamente o espaço; e, por fim, destaca da área comum o dormitório e o ateliê que, organicamente integrados, dão o exemplo do novo homem que ali mora e que, mesmo quan- do descansa, é sobre o próprio trabalho. Essa conjunção de materiais brutos com espaço racionaliza- do, onde tudo é útil e nada é desnecessário, acabava dando a cada casa de Artigas o aspecto de uma moral severa. Esta, a expressão utilizada por Lina Bo Bardi em seu breve e certeiro artigo de 1950: “Uma casa construída por Artigas lhe impõe uma lei vital, uma moral que é sempre severa, quase puritana. Não é ‘vistosa’, nem se impõe por uma aparência de modernidade. […] Cada casa de Artigas quebra todos os espelhos do salão burguês”.16 Artigas propõe uma reeducação moral da burguesia nacio- nal. Ao invés do palacete decorado onde o burguês tenta preser- var sua “marca pessoal” através de “veludos e pelúcias, que guar- dam emblematicamente a marca de qualquer contato físico”, acumulando objetos como um “novo tipo de colecionador”,17 Artigas projeta espaços de uma ascese protestante, onde até a mobília é feita de concreto. Como já dizia em princípios do sé- 16 Lina Bo Bardi, “Casas de Vilanova Artigas”, revista Habitat, nº 1, 1950, p. 2. Não é casual que Lina tenha escolhido escrever sobre Artigas logo no primeiro número de sua revista: da mesma forma que o arquiteto, ela também procura princípios para uma “moral construtiva” brasileira que estilhace o salão burguês. 17 Otília Arantes fazendo referência a Walter Benjamin, “A ideologia do lugar público” em O lugar da arquitetura depois dos modernos. São Pau- lo: Edusp/Studio Nobel, 1993, pp. 107-8. 17Artigas e o desenho culo XX o arquiteto austríaco Adolf Loos, a epidemia decorati- va é uma regressão para o homem moderno: no mundo desen- cantado da nova racionalidade, o ornamento deve ser entendido como patologia de “aristocratas degenerados”, pois se trata de “um delito contra a economia”, um devaneio imoral que destrói “trabalho humano, dinheiro e materiais”.18 As casas de Artigas pretendem estabelecer uma nova ética. Para o arquiteto, o consumismo imitativo das elites deve ser frea- do por uma ética guerreira que evite o uso irracional da riqueza e poupe as atenções e os capitais para a industrialização do país. O desenho da casa funde-se, assim, com os desígnios da moder- nização brasileira, conduzida por uma burguesia progressista. Na interpretação do Partido Comunista Brasileiro, do qual Artigas era membro importante, o sujeito da transformação social do país, neste momento, era a “burguesia nacional” e não o proletaria- do, ainda informe enquanto classe social. A revolução democrá- tico-burguesa deveria, assim, ser concretizada como etapa neces- sária à formação de uma nação moderna.19 Por isso, para Artigas, pensar a casa burguesa, e não a do trabalhador assalariado, era a ação progressista.20 18 Adolf Loos, “Ornamento e delitto” (1908), em Parole nel vuoto. Milão: Adelphi, 1972, p. 221. 19 Um resumo das teses do PCB está em Guido Mantega, “O modelo democrático-burguês”, cap. IV do livro A economia política brasileira (São Paulo/Petrópolis: Polis/Vozes, 1984). Uma explicação histórica da defesa da revolução burguesa e do desenvolvimento capitalista pelo Partido Comunis- ta está em Gildo Marçal Brandão, A esquerda positiva (São Paulo: Hucitec, 1997), ver especialmente o capítulo 7. 20 O livro de F. Engels, A questão da habitação (1872), foi importante para que os arquitetos comunistas brasileiros considerassem reacionárias as iniciativas de resolução do problema habitacional, uma vez que esta, ao metamorfosear o operário em pequeno proprietário e defensor da ordem, refrearia a constituição do proletariado enquanto classe capaz de realizar a passagem ao comunismo, segunda etapa da revolução brasileira. De 1930 20 Arquitetura Nova cional: “Aqui em São Paulo os homens eram italianos. A técnica era distribuída por um grupo de artesãos capaz de realizar a prá- tica da construção da residência: o escadeiro, o telhadeiro, que era o homem que fazia o telhado, via onde pôr as tesouras e tal, o pedreiro, e essa coisa fantástica que é o encanador. E havia ainda um misteriosíssimo, o fachadista, que era capaz de bordar com cal e areia em uma fachada, todos os desenhos que se pudesse imaginar, volutas”.23 Cada artesão realizava seu ofício e tinha certa autonomia para fazer o que sabia. Artigas conta que nas suas primeiras obras não era ele quem desenhava a escada de uma casa, deixava ape- nas um espaço de 4 por 5 metros para o escadeiro realizá-la de acordo com os seus conhecimentos. Muitos artesãos se formavam na Escola de Artes e Ofícios, fundada em 1882 e dirigida por mestres italianos trazidos por Ramos de Azevedo. Na virada do século, três quartos dos pedreiros e a totalidade dos mestres de obra vinham da Itália,24 constituindo uma verdadeira corporação. Esses artesãos conservavam seu saber e garantiam assim al- gum poder para negociar o preço do seu trabalho — dessa forma “seus salários eram relativamente mais altos que dos operários fabris”. A união de classe permitia que certas conquistas traba- lhistas alcançadas em seu país de origem fossem aqui reproduzi- das. Além disso, os italianos da construção, muitos deles anarquis- tas, foram, “até a Primeira Guerra, os principais organizadores do movimento operário” em São Paulo.25 23 Vilanova Artigas, op. cit., p. 20. 24 Segundo Maurício Vinhas de Queiroz, “Arquitetura e desenvolvi- mento”, em Alberto Xavier, Depoimento de uma geração, op. cit. 25 Maria Lúcia Gitahy, “Desmemória das metrópoles: apagando os rastros do trabalho de construir”, revista Ponto. São Paulo: FAU-USP, 1998. Como explica Sérgio Ferro (em entrevista ao autor, revista Caramelo, nº 11), as estreitas relações entre arquitetura eclética e sindicalismo operário da 21Artigas e o desenho A construção civil baseada no saber artesanal e num certo poder dos operários será profundamente alterada pelos arquite- tos modernos. Artigas conta como foi a “revolução” empreendi- da por sua geração: “Sou dessa geração de arquitetos modernos que, pela primeira vez, foram até o conhecimento do fazer ope- rário, ou do subempreiteiro, para dizer-lhes, em desenho, em pro- jeto, o que era preciso fazer […] Nós rompemos com os resquí- cios medievais que ainda prevaleciam […] Porque você poderia projetar no papel, desenhar no papel, não a escada que o escadeiro ia fazer, mas aquela que você queria que fosse realizada, dentro do espaço que lhe servia. Aí há uma passagem, um ponto históri- co diferente, totalmente diferente”.26 A chegada do desenho moderno ao canteiro de obras é ins- tauradora de uma nova relação de produção. O desenho do arqui- teto é interposto como mediação necessária entre a obra e o ope- rário e o controle do processo passa a ser centralizado nas mãos de um único artista. “É como se estivéssemos com Brunelleschi”, construção civil remontam à Europa do século XIX. Em seu laboratório de pesquisa, o Dessin-Chantier, Sérgio Ferro procurou recontar a história da arquitetura francesa pelo ângulo das relações de trabalho, demostrando co- mo a passagem do ecletismo para o modernismo produziu uma devastação nos sindicatos de pedreiros e carpinteiros. A mudança no desenho, na esté- tica e nos materiais teria deslocado definitivamente o poder do operário para o arquiteto. 26 Vilanova Artigas, A função social do arquiteto, op. cit., p. 35. Ver também a entrevista para a revista Arquitetura e Urbanismo, nº 1, 1985, p. 26. Na verdade, o início dessa transformação nas relações de produção é anterior aos modernos, e data, no Brasil, da chegada da Missão Francesa e formação da Academia Imperial de Belas-Artes no Rio de Janeiro: em prin- cípios do século XIX. Como explica Lúcio Costa em “Documentação ne- cessária”, desde então os nossos mestres e pedreiros “incultos” e suas cons- truções “de ar despretensioso e puro” vão sendo substituídos por arquitetos embebidos no ecletismo estrangeirizante. Os mestres italianos que começam a aportar no fim do século XIX colaboram na vulgarização do ecletismo e introduzem técnicas novas para realizá-lo. 22 Arquitetura Nova continua Artigas, “Brunelleschi aparece como uma espécie de Gali- leu para nós arquitetos, porque é o homem que faz pela primeira vez o projeto estrutural de uma capela abandonando as contri- buições individuais que vinham da Idade Média, das corporações”. Como se sabe, a novidade no desenho de Brunelleschi é a perspectiva, que é uma forma de abstração, de separação entre representação e realidade. Ela insere o mundo dentro de um úni- co plano e o organiza. Nos termos utilizados por Artigas, pode- ríamos dizer que a perspectiva, como desígnio, projeta uma or- dem nova, como mediação, uma codificação nova. O desenho é domínio sobre a natureza, mas também domínio sobre os que não sabem decifrá-lo. Brunelleschi tinha a consciência desse po- der. Conta-se, por exemplo, que ele, fingindo estar doente, fez seu substituto perder a direção da obra por desconhecer as no- tações do seu desenho. Retornando ao comando e enfrentando uma greve, decide importar trabalhadores de outra cidade, pro- vando que os artesãos florentinos poderiam ser substituídos por outros quaisquer, uma vez que o trabalho era agora definido pelo desenho. Para aumentar a produtividade, o arquiteto também interfere na organização do canteiro, instalando uma cantina no alto da cúpula e evitando assim que os operários desçam para comer, beber e conversar.27 Como se vê, o desenho penetra as relações de produção, abstrai (separa, aparta, alheia) o trabalhador de seu saber e de sua autodeterminação relativa — o trabalho passa a ser ele pró- prio abstrato. Comandado por um desenho-destino que lhe é heterônomo, o produtor não se reconhece mais em sua obra — ela agora é simples produto. Esta desqualificação dos saberes in- dividuais de cada artesão ocorre, entretanto, associada a um pro- gresso artístico e técnico da arquitetura e não a uma regressão, 27 Sérgio Ferro, a partir do relato de Giorgio Vasari (primeiro biógra- fo de Filippo Brunelleschi), em O canteiro e o desenho. São Paulo: Projeto, 1979, pp. 103-4. 25Artigas e o desenho Vilanova Artigas e Carlos Cascaldi, Casa Ivo Viterito, 1962 (vista externa dos fundos e vista interna). 26 Arquitetura Nova rada uma forma nova para expressar essa tensão entre necessi- dade e invenção. A cobertura independente alivia a alvenaria da sua carga estrutural, e permite ao arquiteto dispensar portas e paredes que considera desnecessárias, criando um espaço integrado e fluido. Cada casa tira sempre partido dos desníveis típicos dos terrenos íngremes paulistanos, criando patamares diferenciados e salas de pé-direito duplo. A circulação, em escada ou rampa, que interli- ga os espaços de uso coletivo com os demais cômodos é explora- da plasticamente como percurso de uma promenade architectu- rale. A fachada, como na “Casinha”, é negada definitivamente, em nome de uma composição volumétrica de cheios e vazios de- corrente da grande cobertura, dando, por sua vez, abrigo ao novo bem de consumo da sociedade moderna: o automóvel. A arquitetura da casa paulistana pretende também orientar os princípios de uma educação moderna da família, como des- creve Artigas na Casa Baeta: “Um trecho azul, um pedaço bran- co, um amarelo e um risco preto. A sala de jantar é azul. Pode- se sentar no sofá dentro do branco e a entrada é um quadrado vermelho que encaixa no conjunto. Tudo está ligado a esse ideá- rio em relação ao espaço e à apropriação de cada usuário segun- do seu julgamento sobre a visualidade, e não às limitações de paredes”. O estúdio dos pais também é desenhado com intenções didáticas: o arquiteto não quis fazer um escritório fechado, “com porta”, pois “o espaço deveria ser aberto e múltiplo de maneira que estabelecesse uma relação de visualidade com o total do es- paço com uma intenção de educação da família”. Mais uma vez a cor indica um acordo comum entre pais e filhos sobre os usos na casa: “Não havia uma parede que dizia: ‘Aqui não pode en- trar’. Não entra porque fica estabelecido que não se pisa no vermelho”.30 30 Vilanova Artigas, op. cit., p. 72. 27Artigas e o desenho Apesar de afirmar que suas casas foram feitas para serem vistas por dentro e não por fora, pois é seu interior que revela a “proposta do espírito”, Artigas também trabalhou a cobertura como invenção. Ela foi explorada plasticamente com diversas variações, tanto no formato das empenas quanto dos apoios. As empenas laterais são desenhadas como vigas poligonais de con- creto, encontrando o solo em posições sempre inusitadas. A co- bertura propriamente dita é geralmente em laje ou telha de fibro- cimento, podendo abrir-se no centro para um pátio interno. Nas obras maiores, Artigas trabalha com pórticos ou empe- nas de concreto, e apoios cada vez mais ousados, compostos por triângulos e pirâmides que se encostam ou se encaixam. A cober- tura aos poucos também deixa de ser mero teto e abre-se para a luz do dia, que penetra, inicialmente, por algumas frestas tímidas de iluminação zenital e depois pelo teto inteiro, inundando ale- gremente a FAU, ou a Rodoviária de Jaú, pelo topo de seus pila- res em flor. Além disso, essas duas obras são exemplos de como Artigas sustenta formas pesadas em apoios delicados. Ele assim resume seus propósitos plásticos: “O que me encanta é usar formas pe- sadas, chegar perto da terra e, dialeticamente, negá-las”, expres- sando a contradição “entre o fazer e a dificuldade de realizar”. Apenas em sua palestra no concurso de professor-titular da FAU, em 1984, Artigas reconhece como cumprida sua tarefa na transformação da casa paulistana. Não apenas pelas casas que fez, mas por ter influenciado as gerações seguintes, Artigas pôde afir- mar: “Construí São Paulo com minhas casas”.31 31 Vilanova Artigas, A função social do arquiteto, op. cit., p. 49. 30 Arquitetura Nova O DESENHO INDUSTRIAL O projeto do desenho moderno, entretanto, ainda não esta- va completo. Não era apenas o habitat que precisava ser reinven- tado, mas todos os objetos deveriam ser redesenhados, seguindo as leis da produção industrial. Diante do esforço para o desen- volvimento das forças produtivas em nosso país, o desenho indus- trial tornava-se, assim, uma necessidade premente. Na mesma aula de 1967, Artigas fará a defesa do desenho industrial contra a crítica de certos passadistas, como os ingleses Ruskin e Morris que, no final do século XIX, consideravam que arte e máquina seriam irreconciliáveis, uma vez que era o próprio sistema industrial que estava produzindo a desintegração da cul- tura artística.32 Adotando a visão otimista dos modernos, Artigas acreditava que tal posição regressiva teria sido desmentida pela história vitoriosa do desenho industrial, já que o homem havia conseguido dominar a máquina ao desenhar produtos que fossem ao mesmo tempo belos e funcionais. Se a indústria produz em grande quantidade, não nos cabe reduzi-la ao ritmo artesanal, dizia ele, mas desenvolver a qualidade dos seus artefatos — é desta forma que se democratizará o consumo e se civilizará o gosto. A tarefa do desenho industrial seria, assim, parte do proje- to progressista da burguesia que, cumprida sua fase heróica, de- legaria a um corpo técnico o trabalho de revolucionar os meios de produção e inovar os produtos: dentre eles os arquitetos e, mais especificamente, os designers. Se, no momento da aula de 1967, os mais céticos começavam a questionar os rumos do desenho industrial, cada vez mais dominado pelo mercado e degenerando no styling, Artigas mantinha-se fiel à lição dos pioneiros. 32 Ao criticar uma tal atitude, Artigas chega a falar em “luddismo esté- tico”, em referência à destruição das máquinas pelos operários que temiam ser por elas desempregados, segundo consta, comandados pelo general Ludd, na Inglaterra do início do século XIX. 31Artigas e o desenho Para o arquiteto alemão Walter Gropius, um dos fundado- res da Bauhaus, embora a natureza do design fosse eminentemente capitalista, resultando da “fusão entre arte, ciência e negócio”,33 isso não deveria ser visto como algo degradante, mas positivo, uma vez que os designers estão preocupados com o valor de uso dos objetos e não apenas com o valor de troca que anima os propósi- tos capitalistas. Segundo Gropius, o protótipo de designer ideal teria sido Peter Behrens por ocupar-se de todas as dimensões do desenho: ao ser convocado, em 1907, pela indústria alemã AEG, desenhou o edifício, os produtos e a comunicação visual da em- presa.34 É esta coerência que, num certo sentido, está na origem do “bom desenho”. Desde o fim do século XIX, quando seus objetos industrializados foram considerados “baratos e feios”, os alemães procuraram transformar a “competitividade dos preços” em “energia intelectual para refinar os produtos”.35 Assim, o princípio do “trabalho de qualidade” norteou tanto a Deutsche Werkbund quanto posteriormente a Bauhaus.36 Não apenas o princípio do “bom desenho” inspirava Artigas, mas a própria modernização alemã comandada pelo Estado era tomada como exemplo para países que pretendiam tornar-se, ain- 33 Walter Gropius, Bauhaus: novarquitetura (1935). São Paulo: Pers- pectiva, 1972, p. 37. 34 Reyner Banham, Teoria do projeto na primeira era da máquina (1964). São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 97. 35 Kenneth Frampton, “A Deutsche Werkbund, 1898-1927”, em His- tória crítica da arquitetura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1997. O debate começa na Inglaterra em torno da Exposição Universal de 1851. 36 A Deutsche Werkbund era uma associação de industriais e artistas para a renovação das artes aplicadas na Alemanha e foi precursora da Bau- haus. Cf. sobre estes temas: Nikolas Pevsner, Origens da arquitetura moder- na e do design (1968) (São Paulo: Martins Fontes, 1981); Giulio Carlo Argan, Walter Gropius e a Bauhaus (1951) (Lisboa: Presença, 1984); Rainer Wick, Pedagogia da Bauhaus (1982) (São Paulo: Martins Fontes, 1989). 32 Arquitetura Nova da que tardiamente, nações modernas, como o Brasil. Com o sur- to de desenvolvimento no pós-guerra, fez-se urgente combater a “penúria técnica” dos objetos produzidos pelas indústrias nacio- nais. Estava na hora “dos arquitetos intervirem na produção de mercadorias”.37 Dando-se conta disso, em 1951 o empreendedor Pietro Ma- ria Bardi, surpreso com o fato de que “em São Paulo, uma cida- de de caráter industrial, não se falasse em design”,38 criou o pri- meiro curso de Desenho Industrial no Brasil, no Instituto de Arte Contemporânea do MASP (Museu de Arte de São Paulo). Como coordenadora do curso, a arquiteta Lina Bo Bardi, que desde 1948 produzia mobiliário moderno em seu Studio Palma com Giancarlo Palanti, procurou estabelecer as bases para a criação de um design nacional. Lina estimulava as discussões e experiên- cias que combinavam o saber artesanal e materiais brasileiros com técnicas e procedimentos da indústria moderna, preocupa- ção que permeará seus trabalhos até o fim da vida. Da mesma forma que Artigas, no qual, como vimos, reconhece a mesma preocupação, Lina procura constituir uma “moral construtiva” para o design brasileiro.39 Entre os professores que passaram pelo curso do IAC esta- va o ex-aluno da Bauhaus e diretor da Escola de Ulm, Max Bill, a quem se deve em parte a expansão do ensino de Desenho In- dustrial no Brasil. Pode-se dizer que, graças ao estardalhaço que produziu em sua visita de 1953, ao fazer a crítica a Niemeyer e à 37 Departamento de Projeto, Histórico brasileiro e a Faculdade de Ar- quitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. No original, “bens de consumo” em vez de “mercadoria”. 38 Citado por Lucy Niemeyer, Design no Brasil: origens e instalação. Rio de Janeiro: 2AB, 1998, p. 64. 39 O principal texto de Lina sobre design é apenas de 1977, quando o golpe militar já não permitia as ilusões anteriores. Tempos de grossura: o design no impasse. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1994. 35Artigas e o desenho design com grande qualidade, mas de consumo limitado, pois foram poucas as experiências de desenho de mobiliários de bai- xo custo. Apenas algumas iniciativas chegaram perto disso, co- mo as de Michel Arnoult, na Mobília Contemporânea, e do con- cretista Geraldo de Barros, inicialmente na Unilabor e depois na Hobjeto — ou seja, ambas fora da FAU.47 Nos países centrais, como na Alemanha, a difusão de pro- dutos bem desenhados para amplos setores da população era parte essencial do projeto de modernização. Lá, o desenho contribuiu, ao menos em algum grau, para a incorporação das classes popu- lares: dos espaços fabris de produção aos de reprodução da força de trabalho — bairros, casas, mobiliário, cozinhas, utensílios do- mésticos etc. — tudo tinha passado pela prancheta do designer. Daí ser possível uma dúvida como a de Argan: “O design serve às massas?”,48 que aqui nem mesmo se coloca, pois o design a bem dizer não chegou a elas. Nosso capitalismo, baseado em forte desigualdade social, baixos salários e na combinação produtiva entre atraso e modernização, não possuía a mesma lógica de in- corporação. Mesmo que as classes populares estivessem progres- sivamente sendo integradas à produção industrial nas grandes cidades, o receio das burguesias nacionais de realizar reformas que ampliassem o mercado interno e socializassem minimamente a riqueza, excluía grande parte dos trabalhadores dos benefícios da modernização e dos novos padrões de consumo. Com isso, as clas- ses subalternas permaneciam limitadas a bens de primeira neces- sidade, precisando ainda recorrer a formas de auto-subsistência, como a construção da própria moradia. O espaço proletário for- 47 Arnoult e Barros produziram móveis completamente industrializa- dos, com peças moduladas que poderiam ser combinadas criando dezenas de produtos diferentes. Os móveis “Peg Lev” de Arnoult chegaram a ser ven- didos em supermercados. Cf. Maria Cecília Loschiavo dos Santos, op. cit. 48 “Introdução” em Maldonado, El diseño industrial reconsiderado. Barcelona: Gustavo Gili, 1977. 36 Arquitetura Nova Casa pré-fabricada, Alemanha, 1931. Hannes Meyer, lâmpadas da Bauhaus, 1927. Walter Gropius (acima, à esquerda), arquiteto e teórico da Bauhaus, em um canteiro de obras industrializado para a construção de habitações populares, década de 1920. 37Artigas e o desenho mou-se no Brasil na ilegalidade, em geral autoconstruído, com precariedade de meios e técnicas, sem ter passado pelo traço do arquiteto. As massas, excluídas dos direitos da cidadania, também o foram do desenho. Portanto, ao contrário da vocação democrática que alega- va possuir, aqui o design funcionou como uma espécie de marca registrada de privilégio. O móvel bem desenhado feito semi-arte- sanalmente e consumido pela elite era, na prática, a negação do que o desenho industrial prometia. Isso não significa que tenha deixado de cumprir entre nós, no fim das contas, certa função pedagógica. Como vimos em Artigas, o desenho-desígnio da ar- quitetura moderna, ao menos na vertente que ele representou, buscava colaborar para que nossas elites desempenhassem o pa- pel revolucionário que em princípio lhes estava historicamente re- servado. No projeto da casa burguesa havia uma intenção de edu- cação moral, econômica e estética, e o design, mesmo sem ter se industrializado, chegou a ela e substituiu os móveis antiquados. Pode-se dizer que, ao contrário dos países centrais, o dese- nho moderno não era uma das conseqüências da revolução bur- guesa, mas sim anterior a ela, pretendendo antecipá-la. Ou seja, se o desenho ainda não atingira todas as classes, dirigia-se ao menos à parcela da elite que, naquele momento, era entendida como capaz de realizar as reformas democráticas e a ruptura anti- imperialista. Por isso, como explica Artigas: “As formas nacio- nais da arquitetura moderna brasileira não eram estranhas à luta do proletariado, eram uma componente da ideologia dominante, porém da parcela da classe dominante nacionalista, que comba- tia o imperialismo”.49 O desenho moderno, enquanto instrumento reformador da mentalidade escravista e predatória das nossas burguesias, capaz de prepará-las para levar às últimas conseqüências as utopias de 49 Citado em Miguel Buzzar, op. cit., p. 230. 40 Arquitetura Nova Nos troncos que sustentam a laje pressente-se a dúvida do arquiteto sobre as possibilidades do desenvolvimento nacional e a sensação de que todo seu passado pode ter sido uma miragem: “Fiz uma estrutura de concreto armado apoiada sobre troncos de madeira, para dizer que, nessa ocasião, essa técnica toda, de con- creto armado, que fez essa magnífica arquitetura não passa de uma tolice irremediável em face das condições políticas que vivia nes- se momento”. Tal como numa alegoria tropicalista, o projeto moderno parece ter virado, por um instante, simples fantasia. O desenho-desígnio de Artigas parece ter ficado sem ponto de apoio. Como lembra Elza, naqueles anos de liberdade amea- çada, o abrigo tornou-se refúgio.53 Após o golpe, o tema central para a esquerda passou a ser a avaliação dos seus erros e o significado daquela vira-volta histó- rica. Para os que acreditavam no poder revolucionário e progres- sista da burguesia nacional, o golpe produzira um desmoronamen- to político semelhante ao da contra-revolução burguesa na Eu- ropa que se seguiu às insurreições de 1848.54 Diante dos acontecimentos de 1964 no Brasil, a crença num desenvolvimento social progressista conduzido pela burguesia nacional cai por terra. Como intui Artigas, o projeto da casa bur- guesa depois de 64 não pode ter mais nenhum sentido positivo: rêa, Artigas: da idéia ao projeto. Dissertação de Mestrado, FAU-USP, 1998, p. 203. 53 Depoimento de Elza Berquó citado em Maria Luiza Corrêa, op. cit., p. 204. 54 Como explicou Eric Hobsbawm, o golpe de Luís Napoleão Bona- parte em 1851, depois de a Guarda Nacional burguesa ter massacrado a classe operária parisiense, inaugurou um novo período histórico ao longo do qual a burguesia deixava de ser uma força social transformadora e pas- sava a classe abertamente reacionária. Eric Hobsbawm, “A primavera dos povos”, em A Era do Capital. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. 411964: tijolos fora do lugar Vilanova Artigas, Casa Elza Berquó, 1967 (vista externa dos fundos e vista interna). 42 Arquitetura Nova ela era agora a morada de quem traiu a revolução brasileira. Tudo parecia estar de ponta-cabeça. O próprio PCB, perplexo e inca- paz de fazer oposição ao novo regime, começa a se esfacelar, dando origem a diversos grupos mais radicais. Os arquitetos, que julgavam estar participando da constru- ção do país, perguntavam-se agora quais seriam as conseqüências do golpe para o projeto da arquitetura moderna. Estariam os mi- litares dispostos a exumar o neoclassicismo como estilo oficial? As escolas de arquitetura seriam fechadas e os arquitetos moder- nos, perseguidos, como fizeram o nazismo e o stalinismo? Em 1967, Sérgio Ferro apresenta um texto onde procura fazer uma avaliação de tais conseqüências.55 Sérgio afirma que desde os anos 40, a possibilidade de um “desenvolvimento social” no Brasil “estimulou uma otimista atividade antecipadora” e que a arquitetura moderna era a linguagem manifesta da “posição progressista” que o país adotara. Mesmo que não tivesse ultra- passado o caráter de produção semi-artesanal destinada à elite, havia uma perspectiva de generalização da experiência para ou- tras classes sociais. Segundo Sérgio, Brasília marcou “o apogeu destas esperan- ças”. Mas logo em seguida “freamos nossos tímidos e ilusórios avanços sociais e atendemos ao toque militar de recolher”. Os novos arquitetos formados nessa “tradição cuja preocupação fun- damental eram as grandes necessidades coletivas”, sentiram o “afastamento crescente de sua formação e expectativas”; daí a sensação de crise, frustração imediata e impraticabilidade. Um mal-estar que se generalizava diante da “decomposição estrutu- ral do país” e do “truncamento irracional do nosso lento proces- so social”. O projeto moderno da arquitetura brasileira fora abor- tado e os arquitetos “já não são mais ouvidos”. 55 O texto foi apresentado publicamente em 1966 e publicado em 1967, na revista Teoria e Prática, nº 1, com o título “Arquitetura Nova”. 451964: tijolos fora do lugar do arquiteto”, pelo seu direito arbitrário à “licença poética”. A estética empenhada da arquitetura moderna anterior inverte o sinal: passa a ser má técnica fetichizada dissimulando a falta de responsabilidade política. Um exemplo é a mímese da construção industrializada. Em muitas casas simulavam-se componentes industriais que acaba- vam sendo realizados artesanalmente. Eram imaginadas soluções socializantes em situações ultraparticulares. Fechaduras, montan- tes, peitoris, juntas tinham a lógica de uma rigorosa abstração, como se fossem testes para a generalização da experiência. Essa arquitetura “assinala vagamente o que seria se pudesse se desen- volver”, mas o truncamento do desenvolvimento só permite uma promessa monstruosa. O debate entre Artigas e os três jovens arquitetos sobre as conseqüências do golpe continuará nos Fóruns de Ensino da FAU, em 1968 e 69. Nessa ocasião, as posições em conflito estarão mais radicalizadas: de um lado, a defesa do desenho e da prática pro- fissional e, de outro, a disposição para uma ação política mais veemente. Mas, antes de chegarmos a 1968, já é possível notar algumas divergências fundamentais na avaliação do golpe. Artigas, tanto em seu texto “A falsa crise” quanto em “O desenho”, apesar das inquietações reveladas na Casa Berquó, mi- nimiza propositadamente as conseqüências do golpe. Os motivos para isso são diversos, tais como: considerar o golpe passageiro, adotar a postura do Partido e não fazer oposição aberta, acredi- tar nas possibilidades da ação pelo desenho e talvez não reconhecer que a aposta no projeto progressista da burguesia nacional tenha dado no seu contrário. Contudo, diferentemente dos que acredita- vam ter o golpe interrompido o crescimento do país produzindo estagnação, como o maior economista brasileiro, Celso Furtado,57 57 Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina. Rio de Ja- neiro: Civilização Brasileira, 1966. 46 Arquitetura Nova Artigas intui que ocorrera exatamente o oposto: o novo governo estaria garantindo a modernização. Embora reconhecendo o caráter antidemocrático do regime, ele assim mesmo parecia acreditar que o fortalecimento do poder do Estado era uma forma de acelerar o crescimento. Este, o fim último, na leitura no mínimo ortodoxa feita por Artigas das “te- ses funcionalistas” — segundo as quais o desenvolvimento das for- ças produtivas deve ser sempre defendido, pois, “quaisquer que sejam as suas decorrências”, o controle por parte dos trabalha- dores é o desfecho inevitável. Sérgio e Rodrigo, também militantes do PCB até a ruptura de Marighella em 1967, encontraram o Partido no momento pos- terior ao XXº Congresso e ao relatório Krushev, no auge de sua fase nacional-desenvolvimentista.58 Sem ter passado pelo perío- do stalinista do Partido, os dois acreditavam mais nas promessas de uma revolução democrático-burguesa do que o próprio Artigas. Por isso, enquanto o mestre percebe no pós-1964 linhas de con- tinuidade no desenvolvimento, para os dois há apenas ruptura — o que leva ambos a considerar a arquitetura moderna brasileira como um “projeto interrompido”. O crítico literário Roberto Schwarz, em seu conhecido en- saio sobre o período, “Cultura e política 1964-1969”,59 faz um breve comentário sobre arquitetura, inspirado em Sérgio Ferro, evidenciando esta posição. Segundo Roberto, preparados para construir cidades como Brasília, onde se manifestavam “as espe- ranças do socialismo” e o “sentido coletivista da produção arqui- tetônica”, e agora restritos ao anticlímax da casa burguesa, os arquitetos acabaram por “torturar o espaço, sobrecarregar de intenções e experimentos as casinhas que os amigos recém-casa- dos, com algum dinheiro, às vezes lhes encomendavam”. O ra- 58 Sobre as oscilações do PCB, ver o livro de Gildo Marçal Brandão, op. cit. 59 Em O pai de família. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 69. 471964: tijolos fora do lugar cionalismo arquitetônico estaria fora de contexto, pois “as solu- ções formais, frustrado o contato com os explorados, para o qual se orientavam, foram usadas em situação e para um público a que não se destinavam, mudando de sentido”. Nesse ponto, o crítico reitera a interpretação que faz para o teatro da época: o golpe cortara o contato entre intelectuais e as massas, entre a experiên- cia cultural da esquerda e o público a que pretendia dirigir-se, de modo que a produção cultural extraordinária daquele período acabou virando “matéria para consumo próprio”, mudando de sentido e invertendo, assim, seu propósito original. Se a interpretação para o teatro pode ser correta, no caso da arquitetura não há por que falar em “mudança de sentido”, como se anteriormente ao golpe existisse um projeto direcionado aos “explorados”. Como vimos, ao contrário da experiência dos paí- ses centrais, onde o desenho alcançou todas as classes sociais, essa realização “democrática” aqui não ocorreu. Nossa arquitetura moderna, quando não era oficial e monumental, sempre foi de casas burguesas.60 E a aparência severa dessas casas, que Roberto Schwarz afirma ser “símbolo moralista e inconfortável da revo- 60 Existem autores que defendem a tese contrária, como Nabil Bon- duki no citado Origens da habitação social no Brasil. Entretanto, como se pode ver no próprio livro, a iniciativa dos IAPs (Institutos de Aposentado- rias e Pensões) é pequena (se comparada ao futuro BNH — Banco Nacio- nal de Habitação) e progressivamente se destinou à classe média. Dos nos- sos grandes arquitetos modernos, um dos raros envolvidos com o proble- ma da habitação social foi Reidy (ao qual Nabil dedica um livro, Affonso Eduardo Reidy. São Paulo: Blau/Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 2000). O depoimento de Reidy no “Inquérito Nacional de Arquitetura” (1961) do Jor- nal do Brasil é revelador: “O Brasil é um dos países que mais tem descurado o problema da habitação. Tem, pode-se mesmo dizer, ignorado a sua exis- tência”. E no mesmo “Inquérito”, José Cláudio Gomes afirma: “Este é um tema que nem sequer foi proposto aos arquitetos, ou pelos arquitetos” (pu- blicado pela Escola de Arquitetura da UFMG em 1963). Apenas em 1963, embalado pelo clima das “Reformas de Base”, o IAB (Instituto de Arquite- tos do Brasil) inicia os debates sobre Reforma Urbana e Habitação. 50 Arquitetura Nova Para Sérgio Ferro, Artigas teria dado origem a “dois movi- mentos bem diferentes”: “Uma corrente seguiu o Artigas no lado formal, na organização de plantas, no espaço, no uso do concre- to, e foi refinando. E o nosso grupo seguiu o Artigas na crítica política e ética que ele fazia da arquitetura anterior. Dessa forma empregamos os mesmos elementos formais, mas os desenvolve- mos em outra direção”.63 Na verdade, há uma diferença de ge- rações entre os dois grupos: o primeiro — de Paulo Mendes da Rocha, Joaquim Guedes, Carlos Millan, entre outros — começa a projetar na década de 50, num período de euforia desenvolvi- mentista, e o segundo, na década de 60, num momento de radica- lização política. Quando Sérgio fala em “outra direção”, já indica o ponto de separação com Artigas: “A nossa divergência com o Artigas é que ele nunca queria cair num miserabilismo. A nossa tendência era mais radical e orientada para a casa popular […] Estávamos pen- sando num outro cliente, aquele que não existia — no povão”.64 A “procura do povo” ocorre, entretanto, poucos anos an- tes da virada conservadora de 1964 e mal chega a se consolidar. São iniciativas como a do Cinema Novo, dos CPC (Centros Po- pulares de Cultura) e do Teatro de Arena — do qual participou Flávio Império — que acabam inspirando os três arquitetos a imaginar um outro programa para a arquitetura moderna brasi- leira, um programa novista, para não dizer popular. Quando Sér- gio batiza a posteriori a experiência do grupo como “Arquitetura Nova”, e também “Pintura Nova”, ele explica que foi “em clara referência ao Cinema Novo: meios simples e idéias na cabeça”.65 63 “Reflexões sobre o brutalismo caboclo”, entrevista a Marlene Acaya- ba, revista Projeto, nº 86, 1986, p. 70. 64 Idem. 65 “Depoimento”, em Maria Cecília Loschiavo dos Santos (org.), Ma- ria Antonia: uma rua na contramão. São Paulo: Nobel, 1988, p. 272. Ape- sar do artigo homônimo de Sérgio em 1967, a produção do grupo só foi 51Sérgio, Flávio, Rodrigo e a tal da Arquitetura Nova Mas, ao contrário do cinema e do teatro, a iniciativa “novista” na arquitetura tinha dificuldades próprias para se realizar. Para- fraseando Glauber, no caso da arquitetura não bastam uma co- lher de pedreiro na mão e uma idéia na cabeça. Como brinca Sér- gio noutra ocasião, “construção é coisa séria, envolve doutor e capital”. Um programa de arquitetura dirigido a famílias de bai- xa renda precisa de terra e financiamento: bancos, governo, cons- trutoras etc., e por isso a questão da habitação naquele momento não chegava a entusiasmar os arquitetos e muito menos artistas e intelectuais de esquerda, que buscavam iniciativas com maior grau de independência e poder de crítica. Os três arquitetos tiveram que realizar as experiências pilo- to do que poderia ser a casa popular em projetos “para os ami- gos”, fazendo casas burguesas que fossem antiburguesas. Aí uma diferença com o projeto de Artigas, de reeducação da classe do- minante. Por isso é mais radical e tende a um certo “miserabilis- mo”, como se a estética do Cinema Novo pudesse ter uma mate- rialidade arquitetônica. Assim, irão procurar extrair os elementos da Arquitetura Nova dos componentes mais banais e presentes em qualquer construção popular de periferia — o tijolo, a vigota e o caibro — que, ao serem recombinados, darão origem a um am- biente popular, finalmente desenhado, não pela reprodução de modelos importados, mas pela perspectiva própria do Terceiro Mundo, no que tem de precariedade de meios, invenção e possi- bilidade de emancipação. Essa experimentação “novista” é que nos permite dizer que, dentro das circunstâncias históricas, os três arquitetos procuram designada como “Arquitetura Nova” neste texto de 1988, nunca tendo sido referida desta forma pelos três arquitetos enquanto atuavam conjuntamen- te. Isso não impede, entretanto, que utilizemos retrospectivamente o batis- mo tardio dado por Sérgio, pois a designação expressa afinidades realmente existentes com os demais programas “novistas”. Ana Paula Koury também adota essa posição em sua pesquisa de mestrado, op. cit. 52 Arquitetura Nova mudar o sentido da arquitetura moderna brasileira, ao menos no que diz respeito à habitação. Na verdade, alcançaram uma for- ma híbrida entre casa burguesa e popular, presa à primeira mas querendo ser a outra. Como veremos, isso significou não apenas o questionamento dos custos da casa burguesa, mas da técnica, da estética e das relações de trabalho no canteiro. Entretanto, a forma arquitetônica que eles conseguiram “antecipar” às con- dições objetivas de sua realização encontraria sua verdadeira existência social vinte anos depois, noutra ocasião e com outros arquitetos. ARQUITETOS-PINTORES-CENÓGRAFOS, FAZEDORES Desde o início, 1961, o escritório de Sérgio, Flávio e Rodri- go, na rua Haddock Lobo e depois na rua Marquês de Parana- guá, era um ponto de encontro de artistas e gente de esquerda. Na verdade não se tratava de um escritório, mas de um ateliê que era também núcleo político, no qual produção artística e crítica aconteciam simultaneamente. Quem chegava lá para um café e bate-papo encontrava todo mundo sujo, coberto de tinta e pro- duzindo à viva força — as marcas do fazer. Sérgio Ferro lembra que “o escritório era freqüentado por pessoas de filosofia, teatro, música, literatura. Era um cadinho no qual tudo se cruzava, em uma espécie de projeto de criação de uma consciência nacional, de uma cultura nossa, que não fosse importada. Era um período de fertilidade extraordinária”.66 Quem passava no Teatro de Arena encontrava Flávio bor- dando, cortando, martelando, colando. “Ele punha todo mundo 66 Entrevista a Carlos Castelo Branco, revista Caros Amigos, nº 49, 2001, pp. 44-5. 55Sérgio, Flávio, Rodrigo e a tal da Arquitetura Nova cobrar da pintura uma radicalidade e uma posição de enfrentamento que acabarão por exigir dela funções que dificilmente teria como realizar. O que a levará, na prática, a romper com os seus limites convencionais, numa “desconstrução-reconstrução da própria lin- guagem artística”: colagens, “objetos”, instalações, arte de rua.73 As reuniões preparatórias para uma agenda ampla dos pin- tores paulistas, liderados por Waldemar Cordeiro, ocorriam no escritório dos três arquitetos na rua Haddock Lobo. O resulta- do foi Propostas 65, que redundou na exposição de mesmo no- me. Propostas 65 faz a crítica ao abstracionismo-concretismo do- minante nos anos 50 em nome de um “novo realismo”,74 capaz de dar vazão à temática política. Sérgio explica no texto “Vale tudo” que a Pintura Nova passou do plano “das essências, dos padrões ‘ideais’, quase ontológico” do abstracionismo, para o plano “fenomenológico”, comprometido com os dados e contra- dições da realidade. Nesse que é um dos mais importantes textos de apresenta- ção de Propostas 65, Sérgio enumera as tarefas da Pintura Nova: “Os problemas que a Pintura Nova examina são os do subdesen- volvimento, imperialismo, o choque esquerda-direita, o (bom) comportamento burguês, seus padrões, a alienação, a ‘má-fé’, a hipocrisia social, a angústia generalizada etc.”. Ela pretende “captar a incrível irracionalidade do nosso tempo”. Por isso, “inexiste a preocupação com a unidade, a correção, a elegância da linguagem”, ao contrário, “vale tudo” — conforme o título do texto-manifesto: “A nova pintura arma-se de todos os instru- mentos disponíveis, [...] importa, empresta, rouba e cria o seu vo- cabulário com a liberdade indispensável para o reexame profun- do que efetua”. 73 Otília Arantes, “Depois das vanguardas”, Arte em Revista, nº 7, 1983, p. 5. 74 Na expressão de Mário Schenberg. 56 Arquitetura Nova No balanço que faz da mostra, Mário Schenberg chama aten- ção para o caráter “publicitário” das obras, com mensagens de compreensão imediata. O parentesco com a pop art norte-ameri- cana é evidente, mas vem embaralhado por uma tendência sub- versiva dadá, acrescida de outras influências, como a nova-figu- ração, o realismo fantástico, o realismo existencialista etc.75 As obras ali expostas não possuíam a “alegria” edulcorada da socie- dade de consumo e o otimismo do “sonho americano”. Como explica Otília Arantes: “O sorriso provocado (pelo pop) não tem nada a ver com a ironia subversiva ou o humor corrosivo dos nossos artistas, é um sorriso cool, que não se distingue, como observa Baudrillard, da cumplicidade comercial […] Pode-se di- zer que a arte que se fazia aqui era, diante do pop americano, extremamente hot”.76 Para Flávio Império, que também participou da exposição Propostas 65, “a Pintura Nova brasileira é filha do pop, mas sem dúvida ovelha-negra — usa sua linguagem e responde aos murros e pés-de-ouvido, mostrando o reverso da moeda. Como aprendiz de feiticeiro aprende a linguagem da publicidade e mos- tra que o rei está nu”.77 Um dos quadros de Flávio, intitulado “Pena que ela seja uma puta”, revela o espírito geral da Pintura Nova: Flávio utiliza técnicas de pintura, colagem e gesso para construir-desconstruir o mito norte-americano da liberdade, ex- presso na famosa Estátua. A estátua é alegorizada como uma velha prostituta “made in France”, despida sobre uma bandeira norte-americana disposta como lençol de bordel e, em sua cabe- ça, porta uma coroa reluzente, de cujos raios nascem fuzis. No 75 Mário Schenberg, “Ponto alto”, Arte em Revista, nº 2, 1979, p. 25. 76 “Depois das vanguardas”, p. 10. 77 “A Pintura Nova tem a cara do cotidiano”, Sociedade Cultural Flá- vio Império, São Paulo, s.d., mimeo. 57Sérgio, Flávio, Rodrigo e a tal da Arquitetura Nova Flávio Império e a pintura “Pena que ela seja uma puta”, de 1966. 60 Arquitetura Nova FLÁVIO IMPÉRIO ENCENA Assistindo a Morte e Vida Severina, em 1960, Sérgio conta que ficou convencido de que Flávio estava dando uma “espécie de confirmação” do que deveria ser feito em arquitetura: “mate- riais simples (saco de estopa engomado e amassado nas roupas, papel e cola nas caveiras de boi) transfigurados pela invenção lúcida convinham mais ao nosso tempo [e lugar] do que a con- trafação de modelos metropolitanos”. Flávio já vinha trabalhando com teatro desde 1956. Ini- cialmente com o grupo popular da Comunidade Cristo Operário (atual Centro Pastoral Vergueiro), onde dirigia peças infantis e literalmente transformava sucata e lixo em cenários e figurinos. Em 1959, ele começa a trabalhar no Arena, grupo ao qual se “filiara” (mas sempre mantendo independência, dizia). O Arena, dirigido por Augusto Boal, Zé Renato e Gianfranceso Guarnieri, já era naquele momento o principal grupo de teatro experimen- tal e de esquerda em São Paulo.81 Em poucos anos Flávio se tornará o nome mais importante da cenografia paulista, como afirma Iná Camargo Costa: “Sem muito exagero, é possível dizer que a cenografia teatral em São Paulo nos anos 60 tem nome próprio: Flávio Império”.82 A trans- formação empreendida por Flávio foi a desnaturalização do ce- nário realista do drama burguês e a produção do novo espaço cênico para o teatro épico e brechtiano no Brasil. 81 Cf. Augusto Boal, Hamlet e o filho do padeiro (Rio de Janeiro: Re- cord, 2000), e Iná Camargo Costa, A hora do teatro épico no Brasil (São Paulo: Graal, 1996). 82 “Um enredo para Flávio Império”, em Flávio Império em cena. Além do Arena, Flávio também fez cenografia para o teatro Oficina e para peças encenadas nos teatros Cacilda Becker, Ruth Escobar e Maria Della Costa, entre outros. Em 1968, além de cenários e figurinos, ele dirige a peça Os Fuzis da Senhora Carrar, de Bertolt Brecht. 61Sérgio, Flávio, Rodrigo e a tal da Arquitetura Nova O ponto de partida dessa transformação foi a dificuldade de encenação de uma greve em Eles Não Usam Black-Tie, apresen- tada no Arena em 1958. A questão era: como colocar em cena o novo ator, o povo brasileiro, os que não usam black-tie?83 Na ocasião, Flávio fez a crítica ao naturalismo da encenação, que conduziu a peça em registro dramático, incapaz de dar conta da transição para o desfecho da greve operária. Flávio chegou a afir- mar que havia “um flagrante desencontro entre forma e conteú- do”: a exigência de um espaço cênico novo que desse conta da história e das lutas populares era incompatível com “o realismo meio fotográfico” do teatrão brasileiro, ainda presente na ence- nação de Guarnieri.84 Menos de dez anos depois, em Arena Conta Zumbi (1965), vê-se a resposta cenográfica de Flávio Império e do próprio Tea- tro de Arena ao desafio colocado pela peça de 1958. Em Arena Conta Zumbi, a história do líder negro e da luta contra a escra- vidão encontra o espaço exigido pelo teatro antidramático, o tea- tro épico.85 Não há atores travestidos de negros fugidos, mas jo- vens de calça jeans e camisas coloridas segundo suas “funções” em cena; o cenário não faz referência a um quilombo ou mata, e se resume a um tapete vermelho no chão e alguns praticáveis. A cena desnaturalizada ao mesmo tempo que exibia seu caráter construí- do e antiilusionista, atualizava o sentido do conflito histórico ali retratado. Uma transformação que colocava a estrutura cênica do drama de ponta-cabeça — como se nota pela reação de Cacilda Becker, que saiu indignada e aos berros: “Isso não é teatro!”.86 83 Iná Camargo Costa, A hora do teatro épico no Brasil, pp. 23-39. 84 “Depoimentos”, em Renina Katz e Amélia Hamburger (orgs.), Flá- vio Império. São Paulo: Edusp, 1999, p. 40. 85 Sobre o teatro épico ver Anatol Rosenfeld, O teatro épico. São Pau- lo: Perspectiva, 1985. 86 “Depoimentos”, em Flávio Império, op. cit., p. 44. 62 Arquitetura Nova No Arena, Flávio irá tirar partido da conformação arquite- tônica do próprio teatro. Como explica Mariângela Alves de Li- ma, ele percebeu que a lógica espacial de um teatro em arena era completamente diferente do tradicional palco italiano: ao invés de uma caixa cênica que exige um ponto de vista central privile- giado, a arena democratiza e pluraliza os pontos de vista. O tea- tro em arena também produz um “distanciamento” novo, “dei- xando exposto o caráter ficcional da representação”. Isso porque, ao contrário da caixa italiana com seus ocultamentos e ilusio- nismos, a arena deixa à mostra toda a “produtividade da cena”, o que afetará a própria natureza dos cenários, que passarão a “praticáveis”, objetos tridimensionais simples e móveis que os atores movimentam ao longo da representação. Essas descober- tas, comenta o diretor Augusto Boal, ocorreram com a entrada de Flávio no grupo, quando se “compreenderam as implicações significativas da opção arquitetônica” de um teatro em arena.87 Os cenários de Flávio nunca simulam a realidade. Ao con- trário, com um “experimentalismo acintoso” pretendem sempre evidenciar o artifício artístico (“um teatro teatral”, como dizia Flávio). Atitude que é contrária às regras do teatro tradicional: como se um mágico contasse como faz os truques. Quem está acostumado ao drama burguês modernizado — do TBC88 às no- velas da Globo —, vê, em cenários feitos à perfeição, atores es- forçando-se ao máximo para interpretar cada personagem da ma- neira mais realista possível. O artifício artístico é mascarado e, a 87 Mariângela Alves de Lima, “Flávio Império e a cenografia do tea- tro brasileiro”, em Renina Katz e Amélia Hamburger (orgs.), Flávio Impé- rio, op. cit., pp. 21-2. 88 O TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) foi a primeira empresa mo- derna de teatro no Brasil, iniciativa do italiano Franco Zampari nos anos 1950. Dispunha de espaço próprio, mantinha um corpo estável de artistas e técnicos sob contrato e, do ponto de vista estético, era uma companhia que procurava adaptar para o Brasil grandes espetáculos de sucesso de No- va York, Paris e Londres. 65Sérgio, Flávio, Rodrigo e a tal da Arquitetura Nova Morte e Vida Severina, 1960. Réveillon, 1975. Arena Conta Zumbi, 1965. 66 Arquitetura Nova Da mesma forma que na Pintura Nova, a precariedade deixa de ser mero atraso. O resíduo de brasilidade não nasce apenas da falta de meios, mas da combinação entre uma elaboração cênica mo- derna e crítica, e a escassez inerente ao subdesenvolvimento. O “mal-acabado” no teatro, como a “grossura” na pintura, ao mes- mo tempo que é registro do país inacabado, faz a crítica aos mo- delos “acabados” dos países centrais, superando assim a simples aspiração de modernização e acabamento primeiro-mundistas. Tal como nas reflexões e práticas do grupo no campo da ar- quitetura, onde havia uma relação estreita entre projeto estético e novas relações de trabalho no canteiro, a cenografia de Flávio foi feita quase sempre com grupos que se assemelhavam a coope- rativas de atores — a começar pelo teatro amador da Comunida- de Cristo Operário, fundada em 1952 por freis dominicanos ins- pirados nas idéias do padre Lebret. Da Comunidade fazia parte uma cooperativa propriamente dita, a já citada Unilabor, que produzia mobília industrialmente. Nos anos 60, os dois princi- pais grupos nos quais trabalhou, o Arena e o Oficina, eram “tea- tros de equipe” que “juntavam seus esforços em torno de seus diretores-animadores, Augusto Boal e Zé Celso Martinez Corrêa, num factotum que ia desde ‘descolar o tutú’ até o artesanato dos cenários, roupas e cartazes”.94 Conta Flávio que tudo era feito na base do improviso e a “pouca especialização e a ausência de contratos formais eram substituídas por uma coesão de idéias, de entusiasmo e de abertura para trocas de experiências […] Não ha- via lucro no sentido de acumulação de riqueza, mas redistribuição da renda ou reinvestimento em novos trabalhos grupais, espetá- culos, filmes, muito tempo em laboratórios de pesquisa, reformas da parte técnica dos teatros etc.”. 94 Flávio Império, “Anotações quanto ao modo de produção do tea- tro contemporâneo em São Paulo”. Sociedade Cultural Flávio Império, São Paulo, mimeo. 67Sérgio, Flávio, Rodrigo e a tal da Arquitetura Nova Isso tudo era muito diferente dos grupos estruturados como empresas, existentes desde o pioneiro TBC. O teatro-empresa, explica Flávio a respeito das produções dos anos 70, é “um em- preendimento capitalista corriqueiro, os elementos de ‘funciona- lidade’ e ‘racionalidade’ devem ser levados à sua maior conse- qüência empresarial […] criam-se condições para que o trabalho renda o mais possível tendo em vista o objetivo almejado: suces- so de bilheteria, o saldo do capital investido, o pagamento das des- pesas diárias e o lucro do investidor”. Comparando o Arena e o Oficina com os grupos empresariais com que chegou a trabalhar, sempre um pouco fora de lugar, Flávio comenta que a diferença não era apenas um “detalhe”, pois “para quem examina o modo de produção e as novas relações em vigor, mudava tudo”. Na arquitetura Flávio também foi o precursor. A casa por ele projetada em 1961 para Simon Fausto em Ubatuba deu as pri- meiras coordenadas arquitetônicas para o grupo. Pensada com uma “densidade espacial” próxima à de uma habitação popular, a casa aproveitava-se da experiência de Flávio nos estreitos pal- cos do Vergueiro, do Cacilda Becker, do Arena, sem, entretanto, ser exígua.95 Enquanto os espaços de uso privado, dormitórios e banheiros, foram reduzidos ao mínimo funcional, como cabi- nes de navio, as áreas por onde flui a vida comum são amplas e iluminadas: a sala, central à casa, produz um alargamento na construção, como se pedisse mais espaço, e integra-se à cozinha a partir de uma cenográfica mesa redonda em concreto que se estende pela bancada da pia; longitudinalmente, uma agradável varanda interna com bancos para sentar faz as vezes de circula- ção e permite a ventilação permanente por treliças de madeira, interligando a casa de lado a lado. A técnica construtiva utilizada na cobertura é a abóbada catalã de tijolo comum, assentado sem cimento e formando vãos 95 Sérgio Ferro, “Flávio arquiteto”, op. cit., p. 98. 70 Arquitetura Nova A POÉTICA DA ECONOMIA E AS ABÓBADAS Em 1963, Sérgio e Rodrigo escrevem “Proposta inicial para um debate: possibilidades de atuação” — um texto curto, em tom de manifesto, publicado pelo Grêmio dos Estudantes da FAU (o GFAU). Os dois jovens arquitetos, novos professores da escola, perguntam-se o que ensinar aos alunos: “Nada mais angustiante e penoso do que a definição e a escolha de caminhos, não só prá- ticos, mas principalmente teóricos, na arquitetura, quando se en- cara o problema com a responsabilidade devida”. Esse pequeno e fundante texto lança as bases da Arquitetura Nova e da “poética da economia”.99 Anterior ao golpe, e escrito num momento em que “havia confiança no andamento do processo num sentido progressista”, o texto indica que já se tratava de pro- duzir arquitetura em situação-no-conflito, na “divisão entre traba- lho e capital”. O que os leva, um ano antes do golpe, a denunciar antecipadamente o “maneirismo” da nossa arquitetura — cuja ir- racionalidade não teria outra função senão encobrir as questões de classe — e a exigir, dos arquitetos, uma “posição participante”. No texto, Sérgio e Rodrigo deslocam o foco do debate so- bre arquitetura para o campo das relações de produção. Com isso, adotam uma posição nova, afirmando com todas as letras que a contradição entre as exigências da produção e as necessidades do povo não será superada pela promessa de “industrialização da construção”, pois esta, na verdade, repõe a oposição entre os donos do capital e os que são obrigados a vender sua força de trabalho. É, assim, a própria modernização capitalista — e não o golpe, como afirmariam posteriormente, numa ilusão retrospec- 99 Quem retoma este manifesto esquecido e lhe dá a devida importân- cia na compreensão do trabalho de Sérgio, Flávio e Rodrigo é Ângela Rocha, em seu artigo “No horizonte do possível”, revista Arquitetura e Urbanismo, nº 18, 1988, pp. 82-7. Este artigo e o de Antônio Carlos Sant’anna, “Dese- nho... ou sobre Rodrigo Lefèvre”, publicado na mesma revista, são os pri- meiros balanços críticos realizados a respeito do trabalho dos três arquitetos. 71Sérgio, Flávio, Rodrigo e a tal da Arquitetura Nova tiva — responsável por estarem as propostas progressistas “trun- cadas no presente”. Tal constatação motivou-os a lançar a plataforma de uma poética arquitetônica própria à situação-no-conflito: “Do míni- mo útil, do mínimo construtivo e do mínimo didático necessários, tiramos, quase, as bases de uma nova estética que poderíamos chamar a ‘poética da economia’, do absolutamente indispensável, da eliminação de todo o supérfluo, da ‘economia’ de meios para formulação da nova linguagem, para nós, inteiramente estabele- cida nas bases de nossa realidade histórica”.100 A poética da eco- nomia, entretanto, deve ser entendida não apenas como uma ar- quitetura realizada a partir de poucos recursos, mas estabelecida dentro das contradições entre capital e trabalho no capitalismo. Se havia nessa poética uma proximidade com a idéia de “mo- ral construtiva” de Artigas, no sentido de honestidade técnica rela- cionada à realidade do país, vinte anos depois, e com a constru- ção de Brasília no meio, o sentido só poderia ser outro. A consta- tação de que ainda estamos às voltas com a precariedade técnica é, na verdade, a constatação de que depois das imensas façanhas da nossa arquitetura moderna, esta não fora capaz de atingir to- das as classes sociais. Além da inspiração na cenografia de Flávio, a poética da Arquitetura Nova também possui uma relação estreita com os problemas estéticos e políticos colocados pelo cinema naquele momento. Às vésperas de 1964, o Cinema Novo fazia o papel de uma consciência crítica brasileira pouco afeita ao desenvolvimen- tismo, com filmes como Vida Secas de Nelson Pereira dos San- tos, Os Fuzis de Ruy Guerra, e Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha, os últimos dois estreando após o golpe. A “es- tética da fome” de Glauber, como explica Ismail Xavier, redefinia “a relação do cineasta brasileiro com a carência de recursos, in- 100 “Proposta inicial para um debate: possibilidades de atuação”. São Paulo: GFAU, 1963. 72 Arquitetura Nova vertendo posições diante das exigências materiais e as convenções de linguagem próprias ao modelo industrial dominante: a carên- cia deixa de ser obstáculo e passa a ser assumida como fator cons- tituinte da obra, elemento que informa a sua estrutura e do qual se extrai a força da expressão”.101 A “poética da economia” pretende adotar na arquitetura uma perspectiva semelhante à da “estética da fome”. Por trás da precariedade assumida, que os levou sem medo a aceitar a pecha de “miserabilistas”, há posição: reconhecer as condições em que a grande maioria da população é obrigada a enfrentar o problema da habitação, extraindo daí uma solução material para a casa po- pular e uma resposta expressiva e crítica ao subdesenvolvimento. São duas experiências emblemáticas, de casas projetadas em 1961-62, que acabam por definir o sentido da Arquitetura Nova. A primeira, a Casa Boris Fausto, em São Paulo, foi uma aposta nas possibilidades da industrialização da construção, e a segun- da, a Casa Bernardo Issler, em Cotia, na construção a partir da racionalização das técnicas populares. É importante destacar que ambas são fiéis aos princípios da casa paulistana estabelecidos por Artigas: uma grande cobertura abrigando o programa de usos organizado com certa autonomia e liberdade de invenção. Entretanto, o grupo não pretende repro- duzir a casa paulistana enquanto experiência burguesa, mas irá procurar democratizá-la por duas vias: inicialmente apostando na convergência entre arquitetura moderna e industrialização da construção e, depois, invertendo completamente o sentido, bus- cando a partir da reinterpretação das técnicas populares chegar a um resultado arquitetônico igualmente satisfatório. A primeira experiência, a Casa Boris Fausto, é constituída por uma grande cobertura de concreto armado, apoiada em qua- 101 Ismail Xavier, Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 9. 75Sérgio, Flávio, Rodrigo e a tal da Arquitetura Nova 76 Arquitetura Nova rigor — as peças chegavam meio tortas, fora de esquadro, conta Sérgio. Pelo tamanho dos balanços da estrutura de concreto, foi necessário aplicar juntas de dilatação e não havia materiais in- dustrializados adequados para isso. Na primeira chuva as juntas foram todas embora, a casa literalmente fez água.103 Apesar de ser uma experiência isolada, a Casa Boris Fausto era representa- tiva dos impasses da industrialização da construção naquele mo- mento. Ainda não existiam no Brasil pressupostos econômicos capazes de estimular a padronização e a pré-fabricação de ele- mentos construtivos. Na casa seguinte, Sérgio decide retornar à construção tradicional com o objetivo de racionalizar os proce- dimentos e técnicas populares e obter assim os ganhos de econo- mia prometidos, mas não realizados, pela industrialização. A segunda experiência, a Casa Bernardo Issler, era localiza- da fora de São Paulo, em Cotia, e teve o mesmo ponto de partida da casa de Flávio Império em Ubatuba: trabalhar com as olarias locais e com as técnicas correntes de construção — tijolo, vigotas de concreto e madeira. O resultado, entretanto, não foi nada pa- recido com as casas construídas com esses materiais: uma enor- me abóbada circular cobrindo todo o espaço doméstico. A flui- dez da casa anterior permanece, reelaborada através de mobílias de alvenaria e um desnível que contribui na distinção dos espa- ços. Dois banheiros, um em cada extremidade da abóbada, em vo- lumes curvos, dialogam com a circularidade da cobertura, que- brando sua aparência de simples hangar. A abóbada é uma inovação na grande cobertura de Artigas: ela reúne estrutura, cobertura e vedação simultaneamente, criando um espaço interno totalmente livre. Ao mesmo tempo, pretende ser muito mais barata, pois além de feita com materiais simples, não realiza o esforço estrutural exagerado das coberturas de con- 103 Entrevista ao autor, reproduzida na revista Caramelo, nº 11, FAU- USP, 2002. 77Sérgio, Flávio, Rodrigo e a tal da Arquitetura Nova creto, cortadas por grandes vigas e repletas de aço. Sérgio conta que “houve uma dificuldade enorme para encontrar um calculis- ta, ninguém queria fazer, até o Ugo Tedeschi topar. O projeto da estrutura era uma fórmula matemática numa folhinha demons- trando não ser preciso colocar ferro. A fôrma de madeira já era a estrutura da casa”. Por trabalhar apenas em compressão, a abóbada é especial- mente econômica, pois o caro numa estrutura é o controle da tra- ção, que depende de materiais usinados, como o aço. A compres- são, ao contrário, pode ser realizada por materiais comuns e ba- ratos. A abóbada também não contrai nem dilata exageradamente como a laje plana quando submetida às oscilações térmicas diá- rias de São Paulo, tendo, por isso, menos chances de criar fissuras e infiltrações. A abóbada foi feita com as mesmas vigotas retas que se usa numa laje comum de construção popular, só que dispostas longi- tudinalmente formando a curvatura com o apoio de um molde. Esse sistema, ainda precário, será aprimorado por Rodrigo Lefèvre nas casas dos anos 70, através do uso de vigotas pré-moldadas curvas dispostas verticalmente formando uma catenária. Em am- bos os casos o sistema é simples e pode ser feito por poucos ope- rários com rapidez. A organização do espaço interno sob a cobertura curva da casa também será explorada nos projetos seguintes. Na casa pa- ra Ernest e Amélia Império Hamburger, de 1965,104 Flávio e Ro- drigo definem o protótipo da nova ocupação do espaço resultan- te da abóbada: o térreo é liberado para o uso coletivo e torna-se fluido, integrando sala, cozinha e áreas externas; os dormitórios são elevados para um mezanino linear que vai de um lado a ou- tro da casa e é acessível por uma escada em balanço; nas extre- 104 O projeto é datado de 1967, mas Amélia lembra que discutiu o programa com Flávio antes da família embarcar para os Estados Unidos, em 1965. 80 Arquitetura Nova 81Sérgio, Flávio, Rodrigo e a tal da Arquitetura Nova Sérgio Ferro, Casa Bernardo Issler, Cotia, 1962 (vista da construção, vistas internas da situação atual, planta e corte). 82 Arquitetura Nova Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, Casa Ernest e Amélia Império Hamburger, 1965 (corte). Rodrigo Lefèvre, Casa Dino Zamataro, 1971 (corte com perspectiva). 85Sérgio, Flávio, Rodrigo e a tal da Arquitetura Nova Flávio com maquinistas e costureiras, mas muito mais significa- tivo: o povo estava ali, construindo, como pedreiro, carpinteiro, encanador, e era com ele que o diálogo deveria ser estabelecido. O desejo de um canteiro participativo, que se faz como criação coletiva, é uma metáfora do país possível, que superaria as distân- cias de classe na construção de uma nação livre e democrática. Mas este ateliê-canteiro acabou sendo muito mais intuído, imaginado, do que concretizado: foram “sonhos — que vimos de perto”, diz Sérgio. Fato é que a empreiteira das casas do grupo era a mesma de Artigas: a Cempla. A rotina de construção nas obras dos três e de Artigas não era muito diferente. O dono da empre- sa, Osmar Penteado de Souza e Silva, não reconhece, com exce- ção da cobertura em abóbada, diferenças importantes entre os dois canteiros, de Artigas e da Arquitetura Nova. No entanto, Osmar conta que Rodrigo, com quem fez diversas obras nos anos 70, estava sempre disposto a “bolar junto” as soluções, enquanto “o Artigas é inflexível, é aquilo e ponto” — “com o Rodrigo dava para conversar, com o Artigas não”. Mas explica: “Não é que eu goste menos do Artigas, é que ele tem muito peso, ele tem muita força, […] ele prefere largar o projeto do que alterar certos itens. Isso já é um tipo de temperamento”.111 Osmar conta que as obras da Arquitetura Nova eram fáceis de executar. Levantava-se rapidamente toda a alvenaria sem pen- sar em elétrica e hidráulica. Como as instalações eram todas so- brepostas às paredes, apenas depois é que entram na obra enca- nador e eletricista. Se isso não chegava a ser uma atitude inédita dos três, pois muitos arquitetos no mesmo período trabalhavam com instalações e materiais aparentes, talvez tenham sido os mais radicais no emprego dessa alternativa. Diz Sérgio que a vontade de valorizar cada ofício, ao expli- citar os procedimentos técnicos do operário, obrigou-os a pensar novos detalhes construtivos que partissem das necessidades do 111 Ana Paula Koury, op. cit., p. 233. 86 Arquitetura Nova trabalho no canteiro e não de determinações do desenho. Assim, para que os canos ficassem presos externamente na parede, foi preciso inventar meios de suportá-los, aperfeiçoar as juntas, e desfazer-se de toda “maçaroca” que fica dentro da parede. Tirar os canos de dentro da parede não apenas tinha como objetivo racionalizar a construção e evitar que as paredes tivessem que ser refeitas após o trabalho do encanador, mas também trazer à tona e exibir a geometria complexa que está escondida nesse ofício. Um outro exemplo. Para resolver o problema de iluminação e ventilação da abóbada, foram testados todos os tipos de aber- turas: janelinhas entre os vãos das vigotas, na base e no alto da abóbada, ou dutos e domos, que inicialmente eram cobertos com bacias, por falta de material adequado. Nas extremidades das abóbadas, um sistema simples de caixilharia foi desenvolvido, utilizando caibros de 6 x 5 cm dispostos verticalmente junto com folhas estreitas e fixas de vidro, e outras de madeira abrindo para ventilação. Em vez de aplicar uma janela padrão, o carpinteiro, num trabalho igualmente fácil mas criativo, poderia bolar qual disposição daria para os caibros e aberturas. O resultado era, nas pontas da abóbada, um grande mural-caixilho que dava, de dia, transparência e continuidade entre interior e exterior e, à noite, emoldurava o espaço iluminado da casa. Esses são exemplos do que Sérgio chamou de “detalhes mo- dificadores”, em referência a uma técnica também “modifica- dora”, cujos pressupostos já não eram os mesmos de Artigas. A técnica, para os três, permanecia enormemente valorizada, mas noutro sentido, cujo pressuposto era o estabelecimento de uma nova organização do trabalho. Nesse sentido, a técnica deixava de ser vista como neutra e passava a ser entendida como instaura- dora de relações de produção e dominação que lhe são intrínsecas. Procurando explorar essa contradição na tentativa de cons- tituir uma técnica democratizada, o trabalho com engenho passa a ser revalorizado em detrimento do desenho calculado, pré-con- cebido pelo arquiteto em sua prancheta. Isso não quer dizer que o cálculo seja dispensado em nome do empirismo, mas reduzido 87Sérgio, Flávio, Rodrigo e a tal da Arquitetura Nova Rodrigo Lefèvre, Casa Dino Zamataro, 1971 (vistas externa e interna, plantas dos andares superior e térreo). 90 Arquitetura Nova de iniciativa dos movimentos sociais urbanos. Nelas se engajarão arquitetos sem vínculos com o Estado ou empreiteiras, e que te- rão liberdade para inventar junto com o povo uma nova solução para a habitação popular. Ali estará o fio da meada de nossos três arquitetos. Em 1968, às vésperas do endurecimento do golpe, os três já estavam desiludidos quanto às possibilidades de realização da arquitetura “novista” como habitação popular. Enquanto casa burguesa, será mais um estilo a ser incorporado aos maneirismos, não ficando assim imune ao juízo que eles próprios fizeram das obras dos demais colegas. 911968: o lápis e o fuzil 4. 1968: O LÁPIS E O FUZIL DAS ABÓBADAS À LUTA ARMADA: O RACHA NO FÓRUM DE 68 No início de 1965, é escolhido para diretor da FAU o enge- nheiro elétrico Pedro Moacir do Amaral Cruz, candidato menos votado na lista tríplice. Diretor biônico, Cruz pretendeu reins- taurar a importância das disciplinas técnicas em detrimento do ateliê, cujas atividades eram por ele consideradas “mero artesa- nato”. Na tentativa de retomar o modelo “seguro” de ensino da Arquitetura como nos tempos da Poli, Cruz abandona as diretri- zes da Reforma de 1962, que permaneciam sendo defendidas por professores e alunos. Depois de diversas ações impositivas e que descontentaram a todos, a escola, ainda na rua Maranhão, é tem- porariamente fechada, o diretor afastado, e assume o arquiteto Ariosto Mila. O novo diretor inicia a construção do prédio pro- jetado por Artigas em 1962 e estabelece o 2º Fórum de Ensino.113 O Fórum de 1968 pretendeu restabelecer as diretrizes de 1962, mas o momento histórico era completamente diferente. A perspectiva otimista que orientara a Reforma de 62 não tinha mais lugar no clima de tensão política que o país vivia em 1968. Se em 1962 os arquitetos tinham certeza de que participavam do projeto de construção nacional, após o golpe passou-se a duvi- 113 Esta história é contada em “FAU-Histórico”, revista O Desenho, nº 1, 1970. 92 Arquitetura Nova dar do poder do Desenho. O que fora quase unanimidade agora era “racha”. No Fórum de 68 haverá basicamente o confronto de duas posições:114 de um lado, Artigas, que vimos defendendo o Dese- nho em sua aula inaugural de 1967, e que agora procurava “dar uma segurada nas coisas”, segundo alegava, para evitar um der- ramamento inútil de sangue com o engajamento dos jovens na luta armada; do outro lado, liderados por Sérgio, Flávio e Rodrigo — “a geração da ruptura”115 —, estavam os que questionavam a possibilidade de se fazer oposição ao regime militar dentro do campo estrito da arquitetura e da prática profissional. Sérgio e Rodrigo, militantes do PCB com Artigas, tinham saído do Partido em 1967, junto com Marighella, ingressando no novo movimento por ele fundado, a ALN (Ação Libertadora Na- cional). Em sua carta à comissão executiva do Partido, Marighella afirmara que, mesmo após o golpe, os dirigentes continuavam “subordinando a tática do proletariado à burguesia” e isso era inadmissível. Para Marighella, que se tornara o principal teórico da resistência armada no Brasil, o Partido pretendia derrotar a ditadura através das regras que ela mesma tinha imposto, como o bipartidarismo: “Não é isto querer desfazer-se da ditadura sua- vemente, sem ofender os golpistas, unindo gregos e troianos?”. E completa, indicando seu novo rumo: “A saída no Brasil só pode ser a luta armada, o caminho revolucionário, a preparação da insurreição armada do povo, com todas as conseqüências e im- plicações que daí resultam”.116 114 Sigo a reconstituição de Dalva Thomaz, op. cit., cap. 7. O confron- to, muitas vezes, ocorria de forma cifrada e subentendida, haja vista o “con- trole” realizado por agentes do Estado. 115 Expressão utilizada por José Wolf na entrevista que realiza com Sérgio Ferro em 1985, revista Arquitetura e Urbanismo, nº 3, 1985, p. 56. 116 Trechos da carta de dezembro de 1966, reproduzidos no livro Fotobiografia de Carlos Marighella. 951968: o lápis e o fuzil mente, as abóbadas parecem ter encontrado, ali, seu verdadeiro lugar. Amadurecida e sem o mesmo caráter experimental, a ar- quitetura do grupo alcançava sua intensidade estética máxima, portanto, definitivamente como casa burguesa. A casa que nasceu para ser uma “agressão” e uma “denún- cia”, segundo Rodrigo, foi considerada “bonita” e assimilada co- mo mais um “modismo”. A Arquitetura Nova, agora, fazia jus a qualquer coletânea das melhores casas paulistas, como atesta o livro de Marlene Acayaba, Residências paulistas 1947-1975, onde figura como única representante do grupo. Dentro do rol de “ma- neirismos”, a abóbada acaba transformada em apenas “mais uma opção formal”. Era tudo o que eles não queriam. Isso leva Rodrigo a defender a necessidade do abandono momentâneo da prática profissional: “A ‘agressão’ deve ser mais contundente, exigindo uma substituição do lápis”.121 Na virada de 1968 para 69 a resposta do regime foi violen- ta: a Maria Antonia foi ocupada, o AI-5 decretado, o ensino supe- rior sofreu a intervenção norte-americana e a FAU acabou trans- ferida para o novo campus da Cidade Universitária, quase fora da área urbana, produzindo um grande esvaziamento político. O novo edifício da Faculdade, projetado por Artigas em 1962, ad- quiria nessa ocasião um sentido contrário ao imaginado original- mente pelo arquiteto: ao invés de espaço onde seria projetada a nova sociedade, tornava-se um exílio (entre idílico e lúgubre) para os que ficaram. Da ofensiva do regime o mestre também não es- caparia: no mesmo ano de 69, é cassado junto com outros cole- gas e proibido de exercer suas funções na Universidade de São Paulo. Os professores que restaram, apavorados, ficaram sem reação — o efeito desmobilizador foi profundo. Em 1969 e 70, Sérgio e Rodrigo participam da luta armada pela ALN e VPR (Vanguarda Popular Revolucionária). Em de- 121 Revista Ou..., nº 4, 1970. 96 Arquitetura Nova Rodrigo Lefèvre e Flávio Império, Casa Juarez Brandão Lopes, 1968 (vistas da construção, fachada, vista interna, plantas dos andares térreo e superior e corte). 1. entrada; 2. garagem; 3. estar; 4. jantar; 5. lavabo; 6. cozinha; 7. lavanderia; 8. copa; 9. banheiro; 10. dormitório de empregada; 11. mezanino; 12. escritórios; 13. dormitórios; 14. banheiros; 15. piscina; 16. jardim. 971968: o lápis e o fuzil
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