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A Reforma Psiquiátrica no Brasil: Uma análise sócio política, Notas de estudo de Psicologia

A Reforma Psiquiátrica no Brasil: Uma análise sócio política

Tipologia: Notas de estudo

2012

Compartilhado em 01/05/2012

natalie-e-de-carvalho-7
natalie-e-de-carvalho-7 🇧🇷

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Baixe A Reforma Psiquiátrica no Brasil: Uma análise sócio política e outras Notas de estudo em PDF para Psicologia, somente na Docsity! A REFORMA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL: UMA ANÁLISE SÓCIO POLÍTICA Gina Ferreira RESUMO Este trabalho pretende analisar a Reforma Psiquiátrica no Brasil desde 1986, ocasião de implementação do Sistema Único de Saúde (doravante SUS), até os dias atuais. Partirá do princípio de que tal Reforma percorreu um longo caminho em que se constituíram as bases para a reorientação da assistência psiquiátrica ,mas procurará refletir sobre se ela efetivamente constituiu uma reversão do modelo assistencial hegemônico, e se há condições estruturais para que ela possa se viabilizar como política pública. Palavras-Chaves: Reforma Psiquiátrica. Políticas Públicas. Sócio Política. Psicóloga; Doutoranda em Psicologia Social da Universidade de Barcelona; Ex-Coordenadora do Serviço de Saúde Mental do Município de Angra dos Reis (94-96) e Idealizadora do Projeto “De Volta pra Casa” contemplada com o Prêmio Internacional da WAPR (World Association for Psichosocial Rehabilitation – 1996; Ex-Coordenadora do Município de Paraty (2000); Coordenadora da primeira Residência Terapêutica do Ministério da Saúde fora dos muros hospitalares; Representante da BRADOPTA (Governo da Catalunha) para adoção internacional no Estado do Rio de Janeiro. A Reforma Psiquiátrica no Brasil: uma análise sócio política 132 Psicanálise & Barroco – Revista de Psicanálise. v.4, n.1: 77-85, jun. 2006 O presente artigo tem a sua origem no projeto de tese , ainda em elaboração, para o doutoramento em Psicologia Social da Universidade de Barcelona . No entanto, é importante que as reflexões e preocupações sejam compartilhadas com outros ao longo do caminho. Este trabalho pretende analisar a Reforma Psiquiátrica no Brasil desde 1986, ocasião de implementação do Sistema Único de Saúde (doravante SUS), até os dias atuais. Partirá do princípio de que tal Reforma percorreu um longo caminho em que se constituíram as bases para a reorientação da assistência psiquiátrica, mas procurará refletir sobre se esta efetivamente constituiu uma reversão do modelo assistencial hegemônico, e se há condições estruturais para que se viabilize como política pública. A escolha desse período se deve ao fato de ter havido um intenso debate político que propiciou a tramitação dos projetos de lei para implementação mais ampla da política de saúde e, em especial, para o que viria a favorecer a Reforma Psiquiátrica. Antecedentes da Reforma Psiquiátrica: Poderíamos dizer que a Reforma Psiquiátrica iniciou seu percurso na década de 70, durante a ditadura militar, época em que a medicalização era o modelo básico de intervenção. O poder centralizador do hospital psiquiátrico e o elevado índice de internações passaram a ser consideradas as causas estruturais das condições desumanas a que eram submetidos os pacientes psiquiátricos. A forte recessão, derivada da política econômica que obedecia a grupos de pressão internacionais, tinha como conseqüência a precariedade do trabalho, a acelerada baixa da renda familiar e o índice alarmante de miséria absoluta, o que exigia maior atenção da saúde. Paralelamente, percebia-se a falta de recursos especialmente no aparato dos serviços sanitários onde havia ainda, o clientelismo na esfera pública, o investimento da rede privada – favorecendo o desmonte da coisa pública – e o pouco interesse do poder legislativo em valorizar as políticas sociais. Todos esses são fatores que contribuíram para a ineficácia e a não resolução dos serviços, como comenta Merhy (1997:125): Inumeráveis são os exemplos que apresentam a desumanização dos serviços com relação à clientela, a falta de compromisso dos trabalhadores de saúde com o sofrimento dos Gina Ferreira 135 Psicanálise & Barroco – Revista de Psicanálise. v.4, n.1: 77-85, jun. 2006 cabendo ao Estado o papel de facilitador dessas condições reivindicando-se a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) com a separação do Ministério da Saúde da Previdência Social. Esse sistema estabelece as diretrizes que permitirão construir as bases necessárias de uma reforma sanitária e psiquiátrica gerando, de maneira objetiva, a reformulação do setor de saúde com propostas efetivas de redefinição das políticas sociais. O lema defendido é “a saúde como um direito de todos” e são adotados os seguintes princípios básicos: a) A universalidade, que permite à população o acesso, sem restrições, aos serviços e ações de saúde; b) A descentralização do sistema e a hierarquização das unidades de atenção à saúde, o que propicia a fragmentação de responsabilidade entre níveis de governo, além de romper com a concepção de territórios burocráticos das instâncias federativas; c) A participação e o controle da população na reorganização do serviço. São criadas instâncias de controle colegiadas com a função de se sobrepor à ordem burocrática, criando uma cultura de participação dos setores populares, para a qual é necessário o conhecimento do direito social (Fernandes, 1996). Esse princípio aponta claramente a qualidade de uma democracia participativa: as decisões se democratizam quando os usuários de saúde têm acesso às informações e direito a expressar suas opiniões em defesa do interesse coletivo, tornando-se sujeitos ativos na construção de políticas sociais, sobretudo as de saúde. A 8ª Conferência continuou seu trabalho mediante comissões compostas paritariamente por entidades do governo e segmentos da sociedade civil, como partidos políticos de esquerda, entidades representativas do movimento popular em saúde, movimentos sindicais, representantes do movimento sanitário e da Academia, além de entidades de cada Estado e Municípios favoráveis à Reforma. Com a aprovação de um conjunto de leis referentes à saúde na Assembléia Constituinte de 1988, foi possível caracterizar a saúde como direito universal. A Lei Federal nº 8080 criou os Sistemas Únicos de Saúde, estabelecendo uma política para o setor privado que obedecesse as normas do Poder Público. A Reforma Psiquiátrica no Brasil: uma análise sócio política 136 Psicanálise & Barroco – Revista de Psicanálise. v.4, n.1: 77-85, jun. 2006 O Sistema Único de Saúde e a Política de Saúde Mental: Sem dúvida, a criação do SUS propiciou mecanismos de financiamento que ofereceram incentivos para a adesão dos municípios ao SUS; o que se deu proporcionalmente: em 1993, 26% haviam se habilitado; em 1996, chegava-se a 72% e em 2000 tínhamos a quase totalidade, 98,96%. (Cota, Silvia e Ribeiro, 1999, citado por Perissinoto e Fucks, 2002). A 8ª Conferência de Saúde é uma resposta à ausência de políticas sociais no país voltada à Saúde com efeitos na política de Saúde Mental. O impacto dessa conferência tem sua raiz na participação de integrantes de vários setores e segmentos sociais, ampliando os espaços de participação e incluindo, na Agenda do Estado, propostas que remodelaram o campo social. Isto significa que o fundamento técnico e ideológico na construção de novas formas de políticas públicas ressaltava a importância da conjunção Estado/Sociedade. A 8ª Conferência estabelece também as bases para a 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em 1987. Apresentam-se denúncias sobre a violência e os maus tratos a que estão expostos os internos dos hospitais psiquiátricos. Exige-se a Reforma Psiquiátrica. A partir dessas duas conferências e da criação do SUS vêm à luz fatos importantes para a historia da Reforma Psiquiátrica:  Santos3 é um dos primeiros municípios a aderir ao SUS e em 1989 propõe a intervenção na Casa de Saúde Anchieta em função de denúncias de maus tratos. Uma comissão de reorientação da assistência foi criada, construindo uma rede alternativa de atenção até que se pôde fechar o hospital.  Em 1990, a Organização Panamericana de Saúde promove a Conferência Regional para a reestruturação da assistência psiquiátrica na América Latina, da qual resultou a Declaração de Caracas, em que se destaca: 1- “A revisão crítica do papel hegemônico e centralizador do hospital psiquiátrico na prestação de serviços; 3 Cidade de 400.000 habitantes no litoral do Estado de São Paulo. Gina Ferreira 137 Psicanálise & Barroco – Revista de Psicanálise. v.4, n.1: 77-85, jun. 2006 2 - A preservação da dignidade pessoal e os direitos humanos e civis nos recursos oferecidos; 3 - A oferta de serviços que garantissem a manutenção do paciente no meio comunitário; e 4 - A internação quando fosse necessário em um hospital geral “. (OPAS, 1992). Em decorrência disso, pelo menos no caso brasileiro, novas diretrizes são estabelecidas e o Ministério da Saúde cria ações como: “1. Mudar o financiamento da área de Saúde Mental na Tabela de Procedimentos do Sistema Único de Saúde; 2. Constituir um conselho permanente composto por Coordenadores / Assessores Estaduais de Saúde Mental para gerir articuladamente o processo de mudança; 3. Pactuar com a sociedade o processo de mudança convocando a Conferência Nacional de Saúde Mental; 4. Assessorar o Parlamento com vistas a alterar a legislação psiquiátrica; 5. Incrementar as relações de Intercâmbio Internacional assessorados pela OPAS e OMS (Alves, 1996:3). A Reforma Psiquiátrica: Uma Proposta Sócio-Política? Apesar de já delineada como um movimento que reivindica mudanças na política de saúde, só em 1992 a Reforma Psiquiátrica ganha características mais definidas no campo sócio-político. Isto se faz evidente durante a 2ªConferência, quando há uma grande representação dos usuários de serviços em saúde mental questionando o saber psiquiátrico e o dispositivo tecnicista frente a uma realidade que só eles conhecem e pedindo o fim do manicômio através da criação de equipamentos e A Reforma Psiquiátrica no Brasil: uma análise sócio política 140 Psicanálise & Barroco – Revista de Psicanálise. v.4, n.1: 77-85, jun. 2006 de ser simplesmente atividade para preencher o tempo, como nos antigos hospitais psiquiátricos, passando a ser visto como uma instância social na promoção da qualidade de vida. Houve uma expansão dos novos serviços entre os anos de 1997 e 2003. Em 1997 havia 176 CAPS8 no país e em 2003 já se alcançava o numero de 516 CAPS (Alves e Valentin, 2003). Com a finalidade de atender às demandas sociais, os novos serviços passam a incorporar ações mais complexas. Em 1996, o Programa de Saúde Mental de Angra dos Reis9 cria o projeto “De Volta Para Casa”, que tem por objetivo fazer voltar às suas comunidades de origem aquelas pessoas com transtornos psíquicos ainda internadas em hospitais psiquiátricos. Para isso, a Prefeitura criou políticas sociais que dessem conta da alimentação, reconstrução das moradias precárias e da assistência à saúde. Dessa forma houve o retorno para o núcleo familiar dos pacientes que estavam fora do município. Em decorrência deste trabalho pioneiro em Angra dos Reis, o Governo Federal criou, em 2003, a lei 10.708, intitulada “De Volta Para Casa”, para beneficiar pacientes egressos dos hospitais psiquiátricos. Com relação ao terceiro ponto, a fragmentação dos hospitais federais e a criação dos CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) mostraram que a questão da moradia é um dos motivos principais da ocupação dos hospitais psiquiátricos. Faz-se necessário demonstrar à sociedade civil e ao Estado que muitos pacientes internados em hospitais psiquiátricos poderiam viver em pequenas moradias, conviver em harmonia com a vizinhança, a um custo menor para o governo. Nascem dessa forma as residências terapêuticas em vários Estados. Em fevereiro de 2000, o Governo Federal cria a Portaria 106 instituindo as residências terapêuticas com o objetivo de reformular o modelo de assistência em saúde mental, dando relevo à inserção social do paciente. A organização dos serviços não manicomiais, sobretudo a das residências terapêuticas, supõe uma vivência desafiante na reconstrução da assistência psiquiátrica e seu planejamento. É a construção da noção de território, que deve ser entendida como recurso terapêutico, como referência na construção de relações sociais. Como diz o geógrafo Santos: 8 Datasus/Tabnet/Rede Ambulatorial do SUS 9 Cidade de 100.000 habitantes situada no litoral Sul do Estado do Rio de Janeiro. Gina Ferreira 141 Psicanálise & Barroco – Revista de Psicanálise. v.4, n.1: 77-85, jun. 2006 um espaço em permanente construção, produto de uma dinâmica social: um conjunto indissociável em que participam, de um lado, certos adereços de objetos geográficos, objetos naturais e objetos sociais e, de outro lado, a vida que os leva e os anima, ou seja, a sociedade em movimento. (Santos, 1991, p.18). O conceito de Santos valoriza o território como espaço de articulação entre atores e processos sociais. Assim nasce um novo conceito em saúde mental, enfatizando o território como instrumento de reabilitação. Entende-se que as ações técnico-políticas exercidas durante o processo de reabilitação psicossocial devem envolver a participação da comunidade, serem utilizadas como canais de interlocução, implicando na participação popular na organização de novos serviços, participação de profissionais e usuários- pacientes em conselhos de saúde, associação de moradores etc. A Reforma Psiquiátrica exige que as residências terapêuticas se desenvolvam através de atividades que permitam maior trânsito dos moradores pela cidade. Dessa forma, a comunidade e a cidade se tornam protagonistas do processo de reabilitação e de construção da rede social como característica importante na mudança da vida cotidiana dos pacientes. Neste sentido, Pinheiro (2001) aponta que: Por cotidianidade se entende o locus onde se expressam não somente as experiências de vida, a perspectiva individual que o termo pode conter, mas contextos de relações distintas que envolvem tanto as pessoas, como a coletividade e as instituições em espaços e tempos determinados. (Pinheiro, 2001, p.65) Deste modo se estabelecem mudanças; se tece uma rede de relações e se cria uma osmose entre o dentro e o fora da casa. Esta relação de aproximação constante entre pessoas (usuários, vizinhos, profissionais) e espaços vividos como algo de ordem natural da existência permite que as crises típicas de transtornos psíquicos sejam melhor toleradas, identificando outra maneira de cuidar sem interromper o fluxo com a vida. De acordo com o Informativo da Saúde Mental10 no Brasil ainda existiam, em 2001, 270 hospitais psiquiátricos e 52.286 leitos. Por outro lado, até 2005 foram 10 Ano IV, nº 18 (01/01/2005 – 17/05/2005) A Reforma Psiquiátrica no Brasil: uma análise sócio política 142 Psicanálise & Barroco – Revista de Psicanálise. v.4, n.1: 77-85, jun. 2006 criados, 625 CAPS e 286 serviços residenciais. O impacto desses serviços promoveu debate nacional a respeito da extinção progressiva dos manicômios, dando lugar à aprovação da lei federal nº 10.216, de 06 de abril de 2001, instituindo a reorientação do modelo assistencial e o controle da internação psiquiátrica compulsória. Em dezembro de 2001, 8 meses depois da aprovação da lei, foi realizada a 3ª Conferência Nacional de Saúde Mental com o tema “Cuidar sim. Excluir não!” com 1500 participantes. Esta conferência potencializou politicamente os agentes da Reforma. Não se aprovou nenhuma recomendação que não fosse coerente com a nova lei antimanicomial e se constatou que tampouco ocorreu a abertura de novos hospitais psiquiátricos (Alves e Valentin, 2003). Aparece claramente o vínculo entre Saúde Mental com os processos sociais e a gestão global da saúde pública. Como já mencionado anteriormente, apesar da Reforma Psiquiátrica ter tido uma trajetória em que se construíram as bases para a reorientação do modelo assistencial em saúde mental, é necessário que se reflita sobre uma efetiva reversão do modelo assistencial hegemônico. Surgem daí as seguintes interrogações: Os serviços que mantêm contato direto com a população multiplicaram atores para intensificar ações comunitárias e mudar os valores sociais? Também os novos profissionais valorizam as técnicas centradas na reabilitação psicossocial? Quanto aos modelos de financiamento , eles são são compatíveis com a proposta de reestruturação da assistência psiquiátrica? Além disso, estão sendo criados mecanismos governamentais adequados à implantação de políticas sociais inovadoras, capazes de diminuir as desigualdades sociais e contribuir para o desenvolvimento humano? O controle social , sem dúvida, é a expressão da sociedade no espaço político, fortalecendo a democratização do Setor Saúde mas : O controle social está devidamente capacitado para o necessário acompanhamento da implantação das políticas públicas? Apesar das incertezas quanto a sustentabilidade plena da Reforma Psiquiátrica viabilizada como transformação cultural e política, todas as dúvidas se entrecruzam e convergem para uma verdade : O caminho percorrido pela Reforma é irreversível e aponta uma nova ordem para reconstrução de identidades políticas e sociais.
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