Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

Artigo Cidade Saudavel, Manuais, Projetos, Pesquisas de Enfermagem

Artigo_Cidade_Saudavel

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2012
Em oferta
30 Pontos
Discount

Oferta por tempo limitado


Compartilhado em 01/05/2012

paty-lopes-12
paty-lopes-12 🇧🇷

4

(3)

37 documentos

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Artigo Cidade Saudavel e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Enfermagem, somente na Docsity! A R T IG O A R T IC L E 39 O Movimento Cidades/Municípios Saudáveis: um compromisso com a qualidade de vida The Healthy Cities Movement: a commitement with quality of life 1 Departamento de Prática de Saúde Pública, Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, Av. dr. Arnaldo, 715, Cerqueira César, 01246-904, São Paulo, SP, Brasil. marciafw@usp.br Márcia Faria Westphal 1 Abstract The Healthy Cities Movement has been involving an increasing number of cities and actors in several countries of the world since the 70’s, and has been divulging a practice that represents a new form of thinking and working on health which aims at constructing a social product – quality of life of the popula- tion. This new proposal presupposes the exis- tence of people living in a territory with con- crete problem. It represents a new form of city administration based on intersectorial action and demands the protagonism of the state, as well as the participation of civil society in the accomplishment of new objectives aiming at changing the city profile. In Brazil there are so far 19 municipal districts involved with Healthy Cities’ proposal but only 13 with active projects. The results of the efforts of these mu- nicipal districts are beginning to become visible and to bring new perspectives in terms of social and sustained development and the improve- ment of health conditions and quality of life. Key words Healthy Cities/Municipalities; In- tersectorial Action; Social Participation; Quali- ty of Life Resumo O Movimento Cidades/Municípios Saudáveis, desde a década de 1970, vem envol- vendo cada vez maior número de cidades e ato- res em vários países e divulgando uma prática que representa uma nova forma de pensar e fa- zer saúde. O movimento tem como objetivo um produto social, a qualidade de vida da popula- ção e pressupõe a existência de problemas con- cretos de pessoas vivendo em um território. Re- presenta uma nova forma de gestão municipal, baseada na ação intersetorial e exige, ao mes- mo tempo, um protagonismo do Estado e a par- ticipação da sociedade civil como parceira na consecução dos objetivos. No Brasil há, até o momento, 19 municípios envolvidos com a pro- posta, mas somente 13 estão com projetos ati- vos. Os resultados dos esforços estão começando a ser visualizados, trazendo novas perspectivas em termos de desenvolvimento social e susten- tado, bem como de melhoria das condições de saúde e qualidade de vida. Palavras-chave Cidades/Municípios Saudá- veis; Intersetorialidade; Participação Social; Qualidade de Vida W es tp h al ,M .F . 40 Cidades Saudáveis e seu interesse para a Saúde Coletiva No momento, quando se aproxima o final do século, o cenário mundial se apresenta como um movimento dinâmico de globalização no qual surgem, além de novas fronteiras econô- micas, sociais e geográficas, crescentes confli- tos culturais, religiosos e humanos. A situação mundial assume contornos di- ferenciados conforme o país e a região do mun- do, havendo grandes desigualdades entre paí- ses desenvolvidos e em desenvolvimento. Na década de 1990 o Brasil continua sen- do um caso clássico de desenvolvimento desi- gual. Um pequeno segmento da população tem acesso a uma parcela substancial da crescente produção de bens e serviços, enquanto uma proporção muito grande é forçada a sobrevi- ver com o restante. A minoria mais rica ado- ta hábitos de consumo dos países desenvolvi- dos e lança no ecossistema resíduos e dejetos semelhantes aos das sociedades ricas. Entre- tanto, os pobres, com baixo nível de escolari- dade, privados de água tratada e de condições dignas de habitação, têm mais probabilidade de adotar um comportamento destrutivo em relação ao meio ambiente e de degradá-lo com um fluxo nocivo de dejetos. Uma conseqüência imediata desse mode- lo de desenvolvimento adotado e da desigual- dade dele decorrente tem sido o grande im- pacto sobre as condições ambientais e as con- dições de saúde da população. A desnutrição é ainda um obstáculo sério à saúde e ao desen- volvimento de recursos humanos, algumas doenças infecciosas reapareceram ou avança- ram e a violência, o uso de drogas e a Aids vêm se tornando o maior desafio à manutenção da vida e da qualidade de vida nas cidades. Para resolver os problemas da inflação que pareciam ser responsáveis pela desigualdade e exclusão social, foi criado o Plano Real. Res- taurou-se a confiança no Estado, o que acar- retou uma relativa estabilidade econômica. A inflação caiu de 40-50% ao mês, na primeira metade do ano de 1994, para 2% na segunda metade, continuando estabilizada até o fim do ano de 1998, quando a moeda brasileira foi desvalorizada em relação ao dólar (Roque & Correa, 1998). Independente da interpretação que seja aceita do agravamento da desigual- dade, como mostram os dados da ONU recen- temente publicados, o fato é que, nos últimos quatro anos, além da estabilização da moeda, nada mais foi feito para resolver o problema da desigualdade social. Isso significa que o go- verno, com seu modelo monetarista de desen- volvimento, não tem sido capaz de dar conta das demandas por qualidade de vida da popu- lação em geral e em especial da carente. Um modelo mais humanista, em vez do adotado pelo governo – ou complementar a ele –, pre- cisa ser pensado para que o desenvolvimento brasileiro se torne sustentável e o país mais saudável. Apesar de estarmos vivendo em um mun- do globalizado, as cidades que concentram grandes contingentes de população vêm ga- nhando, nos últimos anos, uma importância significativa como espaço de intervenção e de mobilização em torno de projetos comuns e de interesses coletivos. Esses projetos necessi- tam, para seu desenvolvimento, da solidarie- dade social e da integração das políticas pú- blicas urbanas. Considerando os problemas urbanos con- temporâneos e as possibilidades que a cidade oferece para a realização de projetos sociais, a Organização Mundial de Saúde (OMS) e suas agências regionais, como a Organização Pan- Americana da Saúde (OPAS), iniciaram o Mo- vimento Cidades Saudáveis, com o intuito de motivar governos e sociedade civil a desenvol- ver estratégias, em diversos setores das políti- cas sociais, com a implementação de projetos interinstitucionais e intersetoriais, visando realizar ações de melhoria das condições de vi- da e saúde da população urbana e, portanto, de sua qualidade de vida. Este artigo vai apresentar o projeto Cida- des Saudáveis, conforme concebido pela OMS, suas adaptações à realidade brasileira, as pos- sibilidades e desafios que tem trazido para téc- nicos, acadêmicos, políticos e aos cidadãos de nossas cidades, tendo em vista a melhoria da qualidade de vida. Contexto histórico Os principais pressupostos do Movimento Ci- dades Saudáveis podem ser relacionados a an- tigas preocupações do movimento sanitário europeu do século XIX, que já reconhecia os governos locais das cidades e as associações comunitárias como importantes agentes no equacionamento dos problemas de saúde. Por volta de 1840, iniciou-se o processo de urbanização na Europa. Com a sua ampliação, C iên cia & Saú d e C o letiva,5(1):39-51,2000 43 de projetos estratégicos interinstitucionais e intersetoriais e realizar ações em diferentes ambientes, como escola, indústria, espaços de lazer. Um corolário deste objetivo é o de trans- formar as relações excludentes, conciliando ao mesmo tempo os interesses econômicos e o bem-estar social, que são as condições indis- pensáveis para obter saúde e desenvolvimento para as cidades, os estados e o país (Westphal, 1997). O Movimento Cidades Saudáveis focaliza também a participação popular como forma de mobilização e de democratização e busca mudanças na forma de gestão dos diferentes níveis de governo, sobretudo o local. Mendes (1992) o conceitua como aquele em que todos os atores sociais em situação de governo, orga- nizações não-governamentais, famílias e indi- víduos orientam suas ações no sentido de trans- formar a cidade em um espaço de produção so- cial da saúde, construindo uma rede de solida- riedade no sentido da qualidade de vida da po- pulação. A OMS adota a conceituação de Hancock & Duhl (WHO/EURO/HCPO, 1988). Cidade saudável é aquela que está continuamente cri- ando e modificando seu ambiente físico e so- cial e expandindo seus recursos para que as pessoas se capacitem a apoiar umas às outras, para que todos desempenhem a contento to- das as funções da vida e desenvolvam ao máxi- mo seu potencial. Desse modo, pode-se afirmar que o signi- ficado de cidade saudável depende das percep- ções de seus habitantes, e cada projeto é único. Apesar dessa diversidade, um projeto ou o mo- vimento, para ser considerado dentro deste marco conceitual, deve atender, segundo Tsou- ros (1995), aos seguintes objetivos: • estabelecer redes de projetos para que se- ja possível à OMS garantir apoio técnico e pos- sibilitar o apoio mútuo e troca de experiên- cias entre projetos; • dar destaque à saúde na agenda política lo- cal; • introduzir o componente saúde com sua ampla determinação, nas preocupações de pla- nejamento dos outros setores, tais como o edu- cacional, econômico, cultural, enfim, na vida da cidade; • desenvolver políticas públicas saudáveis; • incentivar o desenvolvimento de ambien- tes de apoio (físicos e sociais) para a produ- ção social da saúde; • criar ações de interesse da saúde; • estabelecer alianças e parcerias (interna- cionais, nacionais e locais) para o desenvolvi- mento urbano; • facilitar o desenvolvimento de redes de co- municação; • possibilitar a troca de conhecimento, ex- periência e conhecimento técnico. Existem, ainda, requisitos que se referem à estrutura e organização do projeto, que se- rão descritos quando especificarmos as estra- tégias básicas propostas pelos seus teóricos e incentivadores. O objeto de estudo e de ação do Movimento Cidades/Municípios Saudáveis Alguns defendem que seu objeto de estudo e de práticas é a cidade, porque é o espaço de vida de um povo, seu espaço cultural, o espa- ço do cidadão, de onde devem ser equaciona- dos problemas, planejadas e desenvolvidas ações compartilhadas para a melhoria da qua- lidade de vida. Nesse sentido, enfatizam a de- nominação cidade saudável porque é a partir dos direitos e necessidades dos cidadãos que vivem em um determinado contexto socio- cultural que a sociedade e o Estado irão de- bater a questão os mínimos sociais para uma condição de vida humana. A questão crucial é a cidade, os cidadãos que vivem nela, o cres- cimento populacional das áreas urbanas e os problemas dele decorrentes. Enfatizam o sujei- to do processo e não a forma de operação (Castells & Borja, 1996; Duhl, 1986). Na América Latina e no Brasil, em parti- cular, defende-se a denominação município saudável, pois o movimento se refere a uma forma de atuação em saúde e nas questões re- lacionadas com o desenvolvimento econômi- co e social do município como região admi- nistrativa, englobando áreas urbanas (cada vez mais inchadas) e áreas rurais (cada vez mais abandonadas). Os seus defensores chamam a atenção para o outro lado da questão, que seria a prática de atuação. Em função dos princípios de descentralização administrativa brasileira, municipalização, participação comunitária e controle social, o espaço do município é, atual- mente, um lugar privilegiado para a implemen- tação de estratégias de Promoção de Saúde. Seja considerando o espaço da cidade ou do município, a eqüidade e a qualidade de vi- W es tp h al ,M .F . 44 da são o objeto e a finalidade do projeto. O projeto europeu original considera os pré-re- quisitos da Carta de Ottawa como parâmetros de qualidade de vida. Os pré-requisitos, esta- belecidos na I Conferência Internacional de Promoção de Saúde, realizada em Ottawa (Ca- nadá) e referendada nas subseqüentes, foram: paz; posse de uma habitação que atenda à ne- cessidade básica de abrigo, adequada em ter- mos de dimensões por habitante, condições de conforto térmico e outras; acesso a um sis- tema educacional eficiente, em condições que favoreçam a democratização da informação e formação dos cidadãos; disponibilidade de ali- mentos em quantidade suficiente para o aten- dimento das necessidades biológicas; promo- ção do crescimento e desenvolvimento das crianças e adolescentes e reposição da força de trabalho; renda suficiente para o atendimen- to às necessidades básicas e pré-requisitos an- teriores; recursos renováveis garantidos por uma política agrária e industrial voltada para as necessidades da população e o mercado in- terno – não somente para exportação e impor- tação – e ecossistema preservado e manejado de forma sustentável. Estes pré-requisitos pre- cisam ser garantidos por políticas educacio- nais, agrícolas, ambientais, de transporte ur- bano voltadas para o objetivo amplo de saú- de, qualidade de vida e desenvolvimento hu- mano orientado por valores democráticos de justiça e eqüidade (OPAS, 1996; Strozzi & Gia- comini, 1996). A discriminação destes pré-requisitos, nes- ta perspectiva ampliada da saúde, não permi- te mais que fique restrita ao setor saúde a res- ponsabilidade pelas ações relacionadas às ques- tões da qualidade de vida. Clama as diferen- tes instituições e os diferentes atores sociais a verificar como a sociedade está satisfazendo as necessidades básicas da população, a distribui- ção de bens e serviços, as carências decorrentes de iniqüidades. Exige do Estado a garantia dos direitos humanos básicos. Vários autores, especialmente aqueles li- gados às ciências sociais e à filosofia, vêm dis- cutindo formas de conceituar qualidade de vi- da (Berlinguer, 1983; Coimbra, 1979; Crocker, 1993; Herculano, 1998). A leitura destes auto- res permitiu observar uma tensão constante entre o fato de qualidade de vida ser determi- nada por fatores objetivos, tais como as con- dições materiais necessárias a uma sobrevi- vência livre da miséria, ou por fatores subje- tivos, como a necessidade de se relacionar com outras pessoas, formar identidades sociais, sen- tir-se integrado socialmente e em harmonia com a natureza. Alguns autores expressaram posições radicalizadas relacionadas à valori- zação de um dos dois fatores. Atualmente verifica-se uma tendência pre- ponderante de considerar os dois tipos de fa- tores na constituição de um conceito que com- preenda aspectos humanos e ambientais e ain- da que tenha um componente que possa ser expresso monetariamente e cotejado com o Produto Interno Bruto (PIB). Com base nessa comparação, podemos afirmar que os pré-requisitos da Carta de Ot- tawa enfatizam os dois aspectos e incluem ren- da como um componente que pode ser expres- so monetariamente. Importa ainda comparar com o conceito muito em uso ultimamente e que tem servido para chamar a atenção dos administradores para a desigualdade social: o Índice de Desen- volvimento Humano (IDH), de autoria de Nussbaum e Sen. Os autores, influenciados pe- los conceitos de ética de Aristóteles e pelos con- ceitos de Marx, elaboraram uma concepção da existência e do florescimento humano e a par- tir daí propuseram a forma atual de desenvol- vimento do IDH (Crocker, 1993). Dentro des- ta perspectiva da ética do desenvolvimento, definem qualidade de vida a partir de dois con- ceitos: capacidade, que representa as possíveis combinações de potencialidades e situações que uma pessoa está apta a ser ou fazer; e fun- cionalidade, que representa partes do estado de uma pessoa – as várias coisas que ela faz ou é. Para Nussbaum e Sen, então, qualidade de vida pode ser avaliada em termos de capacita- ção para alcançar funcionalidades elementa- res (alimentar-se, ter abrigo, saúde) e as que envolvem auto-respeito e integração social (to- mar parte na vida da comunidade). A capaci- tação dependerá de muitos fatores e condi- ções, inclusive da personalidade do indivíduo, mas principalmente de acordos sociais. Com este enfoque, os autores privilegiam a análise política e social das privações, valorizando as oportunidades reais que as pessoas têm a seu favor. Segundo Herculano (1998) qualidade de vida não deve ser entendida como um conjun- to de bens, confortos e serviços, mas através destes, das oportunidades efetivas das quais as pessoas dispõem para ser, realizações passadas e presentes. Nessa perspectiva o bem-estar, ou melhor, a qualidade de vida, tem como com- ponentes básicos: a questão política e a possi- C iên cia & Saú d e C o letiva,5(1):39-51,2000 45 bilidade de influenciar nas decisões que dizem respeito à coletividade e participar na vida co- munitária e a possibilidade de ser influencia- do com ações passadas e presentes da coleti- vidade. Teoricamente os pré-requisitos expres- sos na Carta de Ottawa e esses conceitos se aproximam bastante. O Índice de Desenvolvimento Humano, o IDH (Crocker, 1993), mensura a qualidade de vida obtida a partir de vários modelos. Apura não só o desenvolvimento da produção com base nos dados do PIB per capita, mas também verifica a expectativa de vida ao nascer que afere as possibilidades de adoecimento na po- pulação e a alfabetização que contabiliza o acesso a escolarização. Contudo, falha segun- do o ponto de vista de muitos autores e os pré- requisitos da Carta de Ottawa, por não incor- porar a dimensão ambiental, o que possibilita- ria a percepção sobre o estado do ecossistema, muito importante, especialmente nos dias de hoje, com a urbanização e a industrialização degradando a qualidade de saúde e vida nas ci- dades. No contrafluxo desta e de outras propos- tas apresentadas, muitos indicadores propos- tos e mensurações feitas sobre melhoria de qualidade de vida diante de um modelo de de- senvolvimento configuraram a mesma como padrão de consumo (Herculano, 1998). Esta concepção de qualidade de vida é enganosa e colabora para manter alienada a população, que muitas vezes sente os problemas, mas não tem consciência deles. O conceito de qualida- de de vida deve dar conta da complexidade que ele representa e refletir a organização social e sua dinâmica. Precisa integrar tantas dimen- sões quantas forem necessárias para que pos- sa vir a ser empregado como substrato de uma crítica em profundidade a um estilo de desen- volvimento vigente, identificando distorções existentes e propondo uma via alternativa de desenvolvimento. Deve ser objetivo suficien- te para que seja capaz, ao ser transformado em indicador, de subsidiar sugestões para imple- mentar políticas que garantam uma ordem so- cial mais eqüitativa de distribuição de riqueza. Enfim, conceituar qualidade vida, tentando resgatar o princípio ético da vida, como o fi- zeram os participantes da Conferência de Ot- tawa, é fundamental, como também será im- portante participar do jogo de construção de indicadores e mensuração a partir do concei- to. Caso não seja feito este esforço, propostas como o Movimento Cidades/Municípios Sau- dáveis serão colocadas à margem dos proces- sos decisórios. Por que o Brasil e outros países da América Latina têm se interessado pelo Movimento Cidades Saudáveis? Nos últimos anos, em vários países da Améri- ca Latina tem-se discutido a proposta de cida- des saudáveis. As causas deste interesse são vá- rias. As mudanças no perfil demográfico em função dos avanços da ciência médica têm ti- do efeitos profundos na situação de saúde dos países em desenvolvimento. Crianças que po- deriam ter morrido sobreviveram, adultos têm a expectativa média de vida prolongada. Exis- tem cada vez mais idosos nos países da Améri- ca Latina, registram-se mais doenças crônico- degenerativas como causa de morbidade e mortalidade e também mais pessoas fora do mercado de trabalho – os mais jovens, os mais velhos, os incapacitados. Há necessidade de novas propostas para o equacionamento des- sas questões articulando os outros setores ao setor saúde, para que se possa agir integral- mente na solução dos problemas. O índice de urbanização cresceu de manei- ra vertiginosa nestes últimos cinqüenta anos, isto é, depois da II Guerra Mundial. Cerca de 80% da população brasileira vive e trabalha no contexto urbano, ainda que a concentra- ção populacional nas cidades não esteja ocor- rendo tão rapidamente como antecipada pelos teóricos (Santos, 1996; UNCHS, 1996; WHO, 1996). O índice de urbanização no Brasil era de 26,35% na década de 1950 e de 77,13% em 1991. Até mesmo a população agrícola vem se deslocando gradativamente para a área urba- na. As regiões metropolitanas, que eram três ou quatro, estão aumentando em número, contribuindo para o aumento da população urbana (Santos, 1996). Embora a cidade atraia pelas possibilidades culturais, educativas e de emprego, também cria muitos problemas, es- pecialmente quando a aglomeração de popu- lação cresce a tal ponto que os recursos tor- nam-se insuficientes para o atendimento das necessidades. As contradições urbanas se evi- denciam, passando a agredir o contingente po- pulacional com problemas como violência, po- luição do ar, solo e água (Nunes, 1989). O estilo de vida da população, diante dos avanços tecnológicos, também vem ameaçan- W es tp h al ,M .F . 48 des/Municípios Saudáveis e a experiência so- litária dos municípios latino-americanos que estão desenvolvendo suas propostas têm de- monstrado a necessidade de desenvolver me- todologias e instrumentos que permitam evi- denciar os resultados obtidos e a troca de re- sultados e experiências. Vários grupos têm se reunido no Brasil e nos demais países da América Latina para dis- cutir referenciais teóricos para avaliação e en- caminhamentos da questão. A idéia é construir uma concepção ampla, clara e compartilhada de Promoção de Saúde e de Cidades/Municí- pios Saudáveis, assim como um processo par- ticipativo de avaliação. O primeiro passo é assumir um marco con- ceitual do que seja qualidade de vida, confor- me já discutimos anteriormente, e que seja passível de mensuração. Para que se possa conceber avaliação co- mo um processo formativo dos municípios e de seus atores é necessário assumir a exigên- cia e a complexidade do trabalho participati- vo, de construção coletiva e definição conjun- ta de variáveis e indicadores a utilizar (OPAS, 1999). É preciso também considerar os aspec- tos tradicionais de uma avaliação de projetos, a modificação e obtenção de estruturas nos di- ferentes setores para o funcionamento do pro- jeto, o processo que foi ou tem sido desenvol- vido para a obtenção de resultados relaciona- dos às políticas públicas saudáveis, participa- ção social, intersetorialidade, criação de am- bientes saudáveis e sustentabilidade. Em termos metodológicos, é necessário que se integrem enfoques qualitativos e quantita- tivos para dar conta da subjetividade do con- ceito de qualidade de vida já mencionado e de seus aspectos objetivos, expressos muito deles em termos monetários. Embora reconhecen- do a complexidade da avaliação, não se deve medir esforços para simplificá-la, para torná- la acessível a todos os tipos de municípios e a todas as camadas da população que desejam se envolver no processo, para que se apropriem dele e de seus resultados. Várias reuniões têm sido realizadas para discutir esse aspecto fundamental para os avanços do movimento em toda a América La- tina. O Brasil tem participado decisivamente, divulgando o resultado dos estudos realizados sobre suas experiências (OPAS, 1999). A experiência brasileira: possibilidades e desafios No Brasil, o Movimento Cidades Saudáveis co- meça a ter visibilidade a partir do final da dé- cada de 1980, e principalmente na universi- dade, ou melhor, nas escolas de Saúde Pública do Brasil, a partir de meados da década de 1990. Os municípios têm sido o lugar privilegia- do para a implementação de estratégias de saú- de e isso foi oficialmente reconhecido na lei 8.080 que regulamentou o Sistema Único de Saúde (SUS) e pelo movimento dos secretá- rios municipais de saúde. A expressão pública do interesse da socie- dade representativa dos secretários munici- pais de Saúde (Conasems) pela proposta de Cidades/Municípios Saudáveis foi o encontro de Fortaleza, em 1995, quando, ao final, ela- borou-se uma carta de intenções – a Carta de Fortaleza. Os governos locais, municipais, fo- ram designados como responsáveis pela gera- ção de qualidade de vida para os povos das Américas, baseados em um novo enfoque na produção social da saúde e na construção da cidadania. Mencionaram, no documento, as experiências canadenses de cidades saudáveis, lembrando que é possível deslocar progressi- vamente a ênfase na doença para integrar a importância da qualidade de vida, onde o principal ator é o cidadão inserido em seu ecossistema e que a municipalização da saúde pode caminhar a partir de sua experiência in- tegradora, participativa e criativa para a cons- trução da Cidade/Município Saudável (Carta de Fortaleza, 1995). Desde então, várias propostas dentro do referencial de cidades saudáveis começaram a ser incentivadas pela OPAS e colocadas em prática em vários estados, com apoio dos se- cretários municipais envolvidos na elabora- ção da Carta: Paraná, São Paulo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Alagoas. A partir de 1997, vêm se articulando a OPAS, a Universidade de São Paulo, a Secre- taria de Políticas do Ministério da Saúde e o Conselho Estadual de Secretários Municipais de Saúde e foram promovidos, em conjunto, fóruns de sensibilização para prefeitos. O ob- jetivo dos fóruns tem sido o de sensibilizar os dirigentes municipais para reorientar o mo- delo de desenvolvimento e de gestão, com ba- se no conceito de Cidades/Municípios Saudá- veis, Agenda 21 e outros semelhantes, para for- C iên cia & Saú d e C o letiva,5(1):39-51,2000 49 jar um pacto social que ofereça suporte às al- ternativas de solução à crise de sustentabili- dade (Guimarães, 1999). A focalização multi- fatorial dos problemas de saúde, conforme a essência da proposta, bem como o comprome- timento do governo local são centrais para es- te tipo de projeto. Outras reuniões nacionais ocorreram, em Sobral (CE) em 1998, e em São Paulo, em 1999, com o objetivo de discutir com os prefeitos envolvidos em projetos desta natureza a opor- tunidade da formação da Rede Brasileira de Municípios Saudáveis, estimulando a troca de experiências e o apoio mútuo entre os respon- sáveis, com o intuito de colocar saúde na agen- da dos governos locais e no processo de toma- da de decisões, para que sejam atingidos os de- terminantes sociais, ambientais e econômicos dos problemas de saúde (Westphal, Motta & Bogus, 1998; Carta de Sobral, 1998). Dezenove municípios já estiveram discu- tindo e tentando desenvolver a experiência; atualmente estão em funcionamento treze projetos em treze municípios de diferentes re- giões do país. Hoje, no Brasil, apesar da situa- ção difícil em função do processo de descen- tralização e democratização do processo de gestão, está-se formando uma nova cultura política, e é inegável a contribuição das expe- riências de gestão municipal (Motta & Wes- tphal, 1998). Há uma diversidade de ações que estão sendo realizadas em algumas cidades, com ca- racterísticas bastante inovadoras. Muitas das experiências procuram desenvolver progra- mas em parceria com a sociedade civil, em que o foco não está exclusivamente na área de saú- de, mas na promoção de saúde como um con- junto de ações intersetoriais. Ainda que as experiências sejam limitadas a um pequeno número de municípios, elas chamam a atenção pelas inovações e estão construindo um novo paradigma sobre a arte de governar. Têm, mesmo que de forma limi- tada, construído esferas públicas não-estatais, espaços de negociação em que se tornam pú- blicas as propostas, os atores e os interesses que disputam os recursos municipais e o aten- dimento de suas necessidades e objetivos. É possível reconhecer que, através desses proje- tos, está ocorrendo um tipo de reforma de Es- tado nos municípios, que opõe à centraliza- ção do poder, em mãos do prefeito, ao segredo burocrático, o discurso da competência técni- ca como condição para a participação da so- ciedade civil, onde a participação dos cidadãos e de suas representações coletivas são conce- bidas como fundamentais (Souto,1995). Entretanto, cabe ressaltar a fragilidade des- sas experiências, como outras que tentam ino- var a relação Estado/sociedade civil, como as de implementação da Agenda 21, orçamento participativo e outras. Elas têm tido dificul- dade de assimilar um novo modelo de desen- volvimento, mais participativo e intersetorial. Há uma contradição básica entre a integrali- dade pretendida e a fragmentação imposta pe- la lógica das administrações municipalizadas, centralizadas e setorizadas, apesar da certa do- se de reforma do Estado, já mencionada, que tem levado a efeito, a partir do processo ini- ciado. Sofrem permanente descontinuidade por falta de vontade política dos governos lo- cais e da pequena mobilização popular em re- lação a esse projeto coletivo, que implica uma nova lógica de trabalho no aparato de um go- verno municipal, estadual e federal. (Motta & Westphal, 1998) O mais difícil é que se exige ainda um rom- pimento com a tradição, com a cultura polí- tica clientelista, com uma já determinada es- trutura de poder, em favor da mudança das condições de vida da cidade e do cidadão que nela habita. Esses processos de mudança na cultura política, que envolvem a criação de múltiplos mecanismos de participação, reque- rem tempo e novas condições para se desen- volver. Temos vivido o autoritarismo e o clien- telismo há quinhentos anos e não será em um, dois ou quatro que conseguiremos mudar es- ta realidade. São necessários outros mecanis- mos, além de criar espaços de negociação, pa- ra garantir uma relação viva e dinâmica do po- der público com a sociedade civil, tais como a informação e a capacitação da sociedade civil para elaborar diagnósticos críticos, para for- mular propostas e para aumentar gradativa- mente seu poder de negociação. A questão de recursos também é impor- tante, e uma das formas de promover a redis- tribuição da renda é envolver toda a sociedade civil na resolução dos problemas, incluindo a participação das empresas, das organizações não-governamentais para a construção do pro- jeto. Existe ainda na população e no próprio Estado, representado pelos poderes munici- pais, a idéia arraigada de que todos os recur- sos devem vir do Estado. Não há ainda um sen- timento de responsabilidade coletiva pelos problemas e de estabelecimento de parcerias W es tp h al ,M .F . 50 e alianças entre os diferentes setores e segmen- tos da sociedade. O medo da cooptação, o con- flito capital-trabalho, tão incorporado pelos dois segmentos, burguesia e proletariado, tem dificultado a busca da solidariedade para a produção social da saúde. Outro aspecto que as avaliações têm de- monstrado é que os projetos Cidade/Municí- pios Saudáveis são estratégias efetivas, mas a longo prazo. A racionalização dos recursos e a escolha adequada das medidas, assim como o trabalho intersetorial, têm efeito sinérgico na resolução de problemas. As experiências ca- nadense, européia, de alguns países da Amé- rica Latina, e agora também em algumas cida- des do Paraná e São Paulo, têm demonstrado que a proposta de Cidades Saudáveis é possí- vel, eficiente, mas que só é viável politicamen- te, com dirigentes estatais comprometidos com a causa social, com a qualidade de vida da po- pulação (Strozzi & Giacomini, 1996). Muitos problemas relacionados à poluição do ar, recuperação do meio ambiente e trans- porte urbano têm sido objeto de ações na pers- pectiva de Cidades Saudáveis e têm tido resul- tados relevantes. Para metrópoles como São Paulo, progra- mas com ações de ‘larga escala’ e de desenvol- vimento local são necessários. Tóquio, no Ja- pão, que está longe de ser saudável, já está se preparando para enfrentar os problemas do terceiro milênio com armas mais eficientes. A estratégia de Cidades Saudáveis já está em cur- so na região metropolitana da capital daquele país. A questão da poluição ainda não está re- solvida, nem mesmo a do transporte coletivo, mas o processo já está iniciado e os problemas aos poucos se resolvendo, com a participação da sociedade civil (Sanderson, 1996). É importante lembrar, ainda mais uma vez, que o fundamento político da sustentabilida- de encontra-se estreitamente vinculado ao processo de fortalecimento da democracia e da construção da cidadania. Isso significa a in- corporação plena dos indivíduos no processo de desenvolvimento, que se resume, no nível micro, à democratização da sociedade civil, e no nível macro, à democratização do Estado. Referências bibliográficas Ashton J (ed.) 1992. Ciudades Sanas. Masson S.A, Bar- celona. 236pp. Berlinguer G 1983. O capital como fator patogênico, pp. 49-82. In G Berlinguer (org.) Medicina e Política. Ed. Cetesb-Hucitec, São Paulo. Brasil 1988. Constituição Federal. Senado Federal, Bra- sília. Carta de Fortaleza 1995. Texto apresentado no I Con- gresso de Secretários Municipais de Saúde das Amé- ricas, Fortaleza. Carta de Sobral 1998. Texto apresentado no I Encontro Brasileiro de Municípios Saudáveis, Sobral, Ceará. Castells M & Borja J 1996. As cidades como atores políti- cos. Novos Estudos 45:152-166. Coimbra JAA 1979. O relacionamento homem-natureza. Revista de Cultura Vozes 73(1):43-75. Crocker D 1993. Qualidade de vida e desenvolvimento: o enfoque normativo de Sen e Nussbaum. Lua No- va 31:99-33. Duhl L 1963. The Urban Conditions: People and Policy in the Metropolis. Simon & Schuster, Nova York. Duhl L 1986. The healthy city: its function and its fu- ture. Health Promotion 1:55-60. Folha de S. Paulo 1999. Qualidade de vida: índice de de- senvolvimento humano da Organização das Nações Unidas, 11 julho, pp.1-14. Goumans M 1997. Innovations in a fuzzy domain: healthy cities and (healthy) policy development in the Nether- lands and the United Kingdom. Tese de doutorado. Faculty of Health Sciences, Universidade de Maas- tricht, Holanda. 151pp. Guimarães RP 1998-1999. Agenda 21 e desenvolvimen- to sustentável: o desafio político da sustentabilida- de. Debates Sócio-Ambientais 4(11):10-13. Habermas J 1984. Mudanças Estruturais na Esfera Públi- ca. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro. Hancock T 1990. From public health in the 1980’s to healthy Toronto 2000: the evolution of healthy pub- lic policy in Toronto, pp. 24-58. In A Evers, W Far- rant & A Trojan (eds.), Healthy Public Policy at the Local Level. Campus Verlag, Frankfurt am Main. Herculano SC 1998. A qualidade de vida e seus indica- dores. Ambiente e Sociedade 1(2):77-99. Inojosa RM 1998. A intersetorialidade e a configuração de um novo paradigma organizacional. Revista de Administração Pública 32(2):35-48. Junqueira LAP 1998. Descentralização e intersetorialida- de. Revista de Administração Pública 32(2):11-22. Lalonde M 1996. El concepto de “campo de la salud”: uma perspectiva canadiense. In Promoción de la Sa- lud: uma antología. OPAS. Publicação científica, no 557, Washington.
Docsity logo



Copyright © 2024 Ladybird Srl - Via Leonardo da Vinci 16, 10126, Torino, Italy - VAT 10816460017 - All rights reserved