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Desafios na Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa em Países em Desenvolvimento, Notas de estudo de Meteorologia

Este documento discute os desafios para a redução de emissões de gases de efeito estufa (gee) em países em desenvolvimento, enfatizando a importância de compatibilizar o desenvolvimento econômico com a proteção do sistema climático. O texto aborda a relação entre emissões locais e globais, a importância do setor agrícola nas emissões globais, e a necessidade de mitigação de emissões no transporte rodoviário. Além disso, o documento discute a importância de tecnologias limpas e a possibilidade de um mecanismo de redd eficiente.

Tipologia: Notas de estudo

2011

Compartilhado em 28/09/2011

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fellipe-romao-11 🇧🇷

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Baixe Desafios na Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa em Países em Desenvolvimento e outras Notas de estudo em PDF para Meteorologia, somente na Docsity! MUDANÇA DO CLIMA NO BRASIL a s p e c t o s e c o n ô m i c o s , s o c i a i s e r e g u l a t ó r i o s Editores Ronaldo Seroa da Motta Jorge Hargrave Gustavo Luedemann Maria Bernadete Sarmiento Gutierrez Mudança do Clima no Brasil: aspectos econômicos, sociais e regulatórios © Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – ipea 2011 As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ou da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. É permitida a reprodução deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reproduções para fins comerciais são proibidas. Mudança do clima no Brasil : aspectos econômicos, sociais e regulatórios / editores: Ronaldo Seroa da Motta ... [et al.]. Brasília : Ipea, 2011. 440 p. : gráfs., mapas, tabs. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7811-108-3 1. Clima. 2. Mudanças Climáticas. 3. Aspectos Econômicos 4. Aspectos Sociais. 5. Brasil. I. Motta, Ronaldo Seroa da. II. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. CDD 551.6981 Sumário APrESENTAÇÃo .......................................................................................... 9 iNTroDuÇÃo ............................................................................................ 11 PArTE i A muDANÇA Do CLimA No BrASiL CAPÍTuLo 1 A PoLítIcA nAcIonAL SoBRE MudAnçA do cLIMA: ASPEctoS REGuLAtóRIoS E dE GovERnAnçA ................................................... 31 Ronaldo Seroa da Motta CAPÍTuLo 2 REGuLAçÃo dAS MudAnçAS cLIMÁtIcAS no BRASIL E o PAPEL doS GovERnoS SuBnAcIonAIS ....................................................... 43 viviane Romeiro virginia Parente CAPÍTuLo 3 coMPLEMEntARIdAdE EntRE PoLítIcAS dE coMBAtE Ao AQuEcIMEnto GLoBAL E QuALIdAdE dA vIdA uRBAnA ................................... 57 carolina Burle Schmidt dubeux CAPÍTuLo 4 InvEntÁRIo BRASILEIRo dE EMISSÕES AntRóPIcAS PoR FontES E REMoçÕES PoR SuMIdouRoS dE GASES dE EFEIto EStuFA nÃo contRoLAdoS PELo PRotocoLo dE MontREAL ...................................... 77 Ana carolina Avzaradel CAPÍTuLo 5 RoMPEndo coM o TRADE-OFF EntRE coMBAtE À PoBREZA E MItIGAçÃo do EFEIto EStuFA: o cASo do conSuMo doMIcILIAR dE EnERGÉtIcoS no BRASIL .................................................................................... 91 thiago Fonseca Morello vitor Schmid Ricardo Abramovay CAPÍTuLo 6 AGRoPEcuÁRIA no contEXto dA EconoMIA dE BAIXo cARBono ............... 111 Gustavo Barbosa Mozzer CAPÍTuLo 7 tRAnSPoRtE RodovIÁRIo E MudAnçAS do cLIMA no BRASIL ....................... 127 Patrícia Helena Gambogi Boson CAPÍTuLo 8 EnERGIA E MudAnçAS cLIMÁtIcAS: otIMISMo E AMEAçAS no FRontE BRASILEIRo ................................................................. 143 Silvia Maria calou CAPÍTuLo 9 do MdL ÀS nAMAS: PERSPEctIvAS PARA o FInAncIAMEnto do dESEnvoLvIMEnto SuStEntÁvEL BRASILEIRo............................................ 161 Maria Bernadete Sarmiento Gutierrez CAPÍTuLo 10 oPoRtunIdAdES E dESAFIoS RELAtIvoS À IMPLEMEntAçÃo dE MEcAnISMoS dE REdd ................................................................................ 179 Sofia Shellard Gustavo Barbosa Mozzer CAPÍTuLo 11 dESEnvoLvIMEnto, cooPERAçÃo E tRAnSFERÊncIA dE tEcnoLoGIAS EnERGÉtIcAS dE BAIXA EMISSÃo......................................... 195 Gilberto de Martino Jannuzzi Marcelo Khaled Poppe CAPÍTuLo 12 BARREIRAS coMERcIAIS nAS PoLítIcAS dE REGuLAçÃo dE GASES dE EFEIto EStuFA ............................................................................. 211 Ronaldo Seroa da Motta APrESENTAÇÃo Este livro dá continuidade ao compromisso do Ipea de desenvolver estudos e pesquisas na área de mudança do clima e que já conta com uma longa tradição na reflexão de temas como: custos e benefícios de ações de mitigação e adaptação, planejamento ambiental do meio urbano e social, políticas internacionais, desen- volvimento dos instrumentos de fomento tecnológico e regulação de instrumen- tos de mercado, assim como de contribuir para as negociações da delegação bra- sileira na convenção do clima. Esse esforço é um trabalho conjunto da Diretoria de Estudos e Políticas Setoriais de Inovação, Regulação e Infraestrutura (Diset) e da Diretoria de Estudos e Políticas Regionais, Urbanas e Ambientais (Dirur). Acima de tudo, esta publicação evidencia a importância do tema da mu- dança climática na formulação de políticas e ações públicas. Logo, seu principal objetivo é oferecer aos seus leitores uma publicação nacional sobre políticas de combate ao aquecimento global com textos analíticos de 46 especialistas, vários deles participantes das negociações brasileiras na convenção do clima e do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), oriundos de 17 institui- ções brasileiras entre universidades, centros de pesquisa e ministérios. Não se pretendeu nestas páginas esgotar todos os temas nem mesmo apre- sentar textos acadêmicos. Mas, sim, com rigor analítico, oferecer capítulos que discutem alguns aspectos dos quadros regulatórios nacional e internacional sobre diversas perspectivas. Dessa forma, este livro reafirma o papel do Ipea no debate sobre mudanças climáticas e sobre as políticas públicas a elas relacionadas, nos âmbitos nacional e internacional. Essa é mais uma demonstração de que o Ipea se compromete ainda mais com o esforço governamental de formulação de polí- ticas públicas por meio da sua capacidade de articulação e diversidade disciplinar e institucional. Marcio Pochmann Presidente do Ipea iNTroDuÇÃo Os atuais níveis de concentração de gases de efeito estufa (GEE) já são preo- cupantes, e os cientistas preveem que a temperatura média do planeta pode se elevar entre 1,8°C e 4°C até 2100, o que causaria uma alteração drástica no meio ambiente. Este é um resultado apresentado no 4o Relatório de Avaliação do Pai- nel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, 2007), que congrega cientistas do mundo todo para avaliar as mudanças climáticas. Esse cenário de elevação de temperatura levaria a um aumento da intensida- de de eventos extremos e, também, à alteração do regime das chuvas, com maior ocorrência de secas e enchentes. Estudos demonstram que, além de colocarem em risco a vida de grandes contingentes urbanos, tais mudanças no clima do planeta poderiam desencadear epidemias e pragas, ameaçar a infraestrutura de abastecimento de água e luz, bem como comprometer os sistemas de transporte. A agricultura seria também bastante afetada, principalmente em regiões onde já se verifica escassez de água, como o Nordeste brasileiro. Muitos desses impactos já poderiam ocorrer antes de 2050, com elevados efeitos econômicos.1 Entender a natureza e a dimensão desses impactos continua sendo crucial para a determinação de políticas de combate ao aquecimento global. Ademais, é preciso analisar os efeitos dessas políticas no crescimento econômico dos dife- rentes países e na distribuição de renda, em nível doméstico e internacional, em particular, entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Isso porque a minimização dos impactos com a mudança do clima requer um esforço global e coordenado de ações de mitigação e adaptação que vão reque- rer um forte compromisso das gerações presentes e futuras de cada país. O escopo e a distribuição desse esforço estão, entretanto, longe de ser consensuados entre as partes que participam dele. Assim, torna-se crucial entender as estruturas de custos e benefícios e de ganhadores e perdedores, como também as de governança que decidem, regulam e acompanham a implementação dessas ações de combate ao aquecimento global. 1 oS ACorDoS GLoBAiS Durante a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desen- volvimento, realizada em 1992 no Rio de Janeiro (CNUMAD, ou Rio92), foi adotada a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima 1. ver, por exemplo, Stern (2007), para uma análise global, e Margulis, dubeux e Marcovitch (2010), para uma avalia- ção do caso brasileiro. Mudança do Clima no Brasil: aspectos econômicos, sociais e regulatórios12 (CQNUMC),2 da Organização das Nações Unidas (ONU), ou apenas conven- ção, como doravante se denominará neste texto.3 Esta é um acordo internacional, já assinado por 192 países, que estabelece objetivos e regras para combate ao aquecimento global. O objetivo final da convenção é “a estabilização das concen- trações de gases de efeito estufa na atmosfera num nível que impeça uma interfe- rência antrópica perigosa no sistema climático” (CQNUMC, Art. 2). Por outro lado, admite que efeitos negativos possam já ser inevitáveis e prevê que (...) as Partes países desenvolvidos e demais Partes desenvolvidas incluídas no Anexo II devem também auxiliar as Partes países em desenvolvimento, particularmente vulneráveis aos efeitos negativos da mudança do clima, a cobrirem os custos de sua adaptação a esses efeitos negativos (CQNUMC, Art. 4.4). Como a concentração atual dos GEE acima dos níveis naturais é resultado de atividades econômicas passadas, adotou-se na convenção o princípio das res- ponsabilidades comuns, porém diferenciadas. Esse princípio reconhece que a responsabilidade de cada país é diferenciada, em virtude da contribuição das suas emissões passadas na variação da tempera- tura do planeta e que os países têm capacidades distintas para contribuir com a solução do problema. Dessa forma, ficou estabelecido na convenção que os países desenvolvidos liderariam os esforços globais e, portanto, assumiriam compromis- sos para limitar suas emissões e assistir países mais vulneráveis nas suas ações de adaptação e mitigação.4 Assim, reconhecia-se também a necessidade da garantia do crescimento econômico dos países em desenvolvimento. Esses compromissos só foram colocados em prática em 1997, quando foi assinado o Protocolo de Quioto (PQ), por meio do qual 37 países desenvolvidos5 se comprometiam a reduzir, em conjunto, em 5,2% suas emissões em relação a 1990. As metas de cada país foram também diferenciadas, cabendo as superiores aos países europeus, ao Japão, aos Estados Unidos e ao Canadá. Para aumentar a flexibilidade no cumprimento das metas, ao mesmo tempo minimizando os custos deste e estimulando o desenvolvimento sustentável de pa- íses em desenvolvimento, foram criados instrumentos de mercado que permitiam que as reduções fossem realizadas em outros países, inclusive naqueles sem metas, por meio de mercados de direitos e/ou créditos de emissão.6 2. united nations Framework convention on climate change (unFccc). 3. Além da cQnuMc, foram adotadas também na conferência a convenção da diversidade Biológica e a do combate à desertificação. 4. vulnerabilidade devido ao nível de renda muito baixo e/ou à magnitude e extensão dos impactos das mudanças climáticas. Há inclusive uma aliança, the Alliance of Small Island States (Aosis), reconhecida pela convenção. 5. os países desenvolvidos listados no Anexo I da convenção que aparecem em sua quase totalidade no Anexo B do PQ e que, desde então, são denominados “países Anexo I”. 6. Mercados de carbono para os países Anexo I e o mecanismo de desenvolvimento limpo (MdL) para transações com os países fora do Anexo I com o objetivo suplementar de promover o desenvolvimento sustentável. ver Seroa da Motta (2002) para uma discussão sobre os trade off entre este duplo objetivo. 15Introdução 2 A TrAGÉDiA DoS ComuNS9 Por que tanta dificuldade em construir um acordo multilateral de combate ao aquecimento global? Se todos perdem, por que nem todos querem cooperar? Primeiro, sendo a atmosfera um recurso comum, os direitos de uso são aber- tos a todos. Disso resulta uma ação conjunta exigir custos individuais em troca de benefícios comuns. Dessa forma, criam-se oportunidades para que uns “tomem carona” nas ações dos outros, aproveitando-se dos benefícios da manutenção do clima em níveis estáveis sem arcarem com os custos. Se este “efeito carona” não pode ser detido, reduz-se a chance de cooperação. Segundo, apesar de comum, a distribuição dos seus benefícios é desigual. Logo, os que ganham menos esperam que os mais beneficiados façam mais. Se a distribuição destes benefícios é incerta e percebida diferentemente por cada um, mais uma vez, reduz-se a chance de cooperação. Terceiro, pode haver um problema de equidade, pelo fato de que a satura- ção da atmosfera resulta de ações passadas individuais causadas por contribuições diferenciadas entre os países. Se há desacordo sobre estas diferenças de responsabi- lidades, ficam difíceis a divisão equânime dos esforços e, portanto, a cooperação. Essa situação de não cooperação com efeitos sociais desastrosos é chamada de “tragédia dos comuns” quando a resultante das ações individuais, embora ra- cional do ponto de vista de cada um, é ruim para todos. A negativa da cooperação pode parecer irracional, considerando-se o resultado agregado, mas, se os indi- víduos duvidam da possibilidade desta, o custo individual pode ser maior que a expectativa de benefícios, e então a estratégia de maior retorno para o indivíduo poderá ser a de não cooperar. Incentivos para se escapar destas situações são aque- les que permitem que os indivíduos percebam uma relação custo-benefício mais favorável à cooperação. A CQNUMC lida com uma situação típica de “tragédia dos comuns”. A forma mais eficiente seria individualizar os direitos de acesso aos recursos ambientais, o que tornaria custos e benefícios mais evidentes e controláveis – por exemplo, com a defi- nição de metas nacionais de emissão para cada uma das partes. Todavia, o problema das mudanças do clima é global e de difícil individuali- zação. Mais ainda, os impactos climáticos afetarão cada parte do planeta de forma diferenciada e incerta. Controlar as fontes de emissões no planeta é muito custoso e, em alguns casos, impossível. Penalizar os “caroneiros” é ainda mais difícil, por problemas de soberania nacional. 9. o termo “tragédia dos comuns”, em tradução livre, foi cunhado por Hardin (1968), ao se referir a problemas de gestão de bens de domínio incerto ou comum a um grupo de agentes que dificilmente possa se organizar para otimizar o uso e preservar a continuidade do fornecimento dos dividendos desse ativo. Mudança do Clima no Brasil: aspectos econômicos, sociais e regulatórios16 Ademais, é difícil chegar a critérios para o estabelecimento de metas de emissão que sejam aceitos por todos. Os diferentes critérios possíveis – por país, per capita, considerando-se história desde um ano específico etc. – resultam cada um em metas muito diferentes. Ressalte-se que os GEE permanecem por mais de 100 anos na atmosfera, e assim emissões do início do século passado ainda afetam o clima. Ademais, os países que se industrializaram mais fortemente desde então são os que mais con- tribuíram para o problema, fato reconhecido na convenção. E os países menos desenvolvidos, que emitiram em menor intensidade, são os que menos recursos teriam para fazer frente aos impactos climáticos. Os países hoje industrializados, que ainda são os maiores contribuintes ao estoque de gases, tendem a diminuir suas emissões anuais e, portanto, também sua responsabilidade no futuro. Estes têm uma economia amadurecida e um nível de bem-estar razoável, enquanto os países em desenvolvimento ainda terão que ampliar consideravelmente a qualidade de vida da sua população, comumente ainda em crescimento, o que significa maior consumo de energia, estabelecimento de infraestrutura e mais emissões de carbono. Essa realidade é conhecida pela partes negociadoras da convenção; porém, os incentivos até agora identificados não se revelaram capazes de induzirem à cooperação. Há consenso sobre a necessidade de se evitar uma elevação de tempe- ratura superior a 2ºC, mas não se conseguiu ainda definir a contribuição de cada país para o esforço global. 3 A ECoNomiA PoLÍTiCA Do CLimA A Comunidade Europeia, tal como o Brasil, por razões históricas associadas ou não ao aquecimento global e outras questões ambientais, montaram modelos de crescimento com energia cara ou renovável – em comparação a outros países – e, portanto, já em trajetória de baixo carbono, exigem que os outros grandes polui- dores façam uma contribuição equivalente. As negociações ficam então aguardan- do o movimento dos Estados Unidos e da China, as duas nações locomotivas da economia mundial, que são atualmente as maiores emissoras de GEE do planeta. Os Estados Unidos têm uma economia intensiva em energia barata e em carbono, e um limite ousado nas emissões poderia significar um impacto de cur- to prazo no seu crescimento econômico; assim, o tema tem dividido o país e, consequentemente, o Congresso norte-americano. Mais ainda atualmente, pois persistem as dificuldades de retomada do crescimento. Na China – que ainda conta urbanizar centenas de milhões de indivíduos – as emissões acompanham o crescimento vertiginoso da economia. Dessa forma, 17Introdução o país encontra grandes dificuldades para limitar suas emissões no curto prazo. Cabe destacar que as emissões em termos per capita da China são, atualmente, ainda cerca de quatro vezes menores do que a dos americanos. A coleta, entre os países ricos, dos recursos de aproximadamente US$ 100 bilhões por ano que seriam o mínimo necessário para financiar as Namas e a adaptação de países pobres é outro elemento que dificulta as negociações – até mesmo porque alguns países ricos que competem com os emergentes no comér- cio internacional podem não ter interesse em financiar seus concorrentes. Dessa forma, fica muito difícil desenhar um acordo global de compromissos quantitativos e definitivos vinculantes na sua forma tradicional de governança centralizada. Todavia, até por pressão da opinião pública, alguma plataforma de cooperação terá que ser construída. Esta poderia ser policêntrica, e não centra- lizada em único acordo global vinculante, oferecendo uma diversidade de ações nacionais, regionais e locais em formatos distintos de parcerias – entre as esferas pública e privada, em âmbito local ou regional, ou, até mesmo, entre subconjun- tos de países. Estas ações passariam por reavaliações periódicas, para ajustes con- tínuos de trajetórias (OSTRON, 2009), tal como se indica que está acontecendo, como os acordos promovidos nas últimas COPs. 4 A CoNCorrÊNCiA CLimáTiCA A polarização entre os Estados Unidos e a China terá, contudo, que ser resolvida para que se viabilize a possibilidade de qualquer tipo de acordo com metas que se ajustem à trajetória de 2ºC. Entretanto, estes dois países poderão, a despeito da evolução dos acordos da convenção, escolher estratégias balizadas por neces- sidades concorrenciais, tanto com a criação de barreiras comerciais como com a competitividade tecnológica. Embora a criação de sanções comerciais não tenha avançado nas últimas COPs, alguns países desenvolvidos já estão propondo leis climáticas nacionais que penalizam a importação de produtos dos países que não tenham redução de emissões reconhecidas pela CQNUMC. A justificativa para estas medidas é a de que a penalização das emissões em um país incentiva seu deslocamento para outro, em que o custo de poluir é menor. Esta possibilidade é chamada de fuga ou vazamento (leakage).10 Outra possibilidade é a de que esse confronto seja dirigido para a conquista de mercados internacionais. Os Estados Unidos detêm o maior estoque de capital humano do planeta e são líderes incontestáveis em ciência e tecnologia. A China ainda está construindo seu estoque de capital físico e, portanto, com um padrão 10. ver, por exemplo, tamiotti et al. (2009). Mudança do Clima no Brasil: aspectos econômicos, sociais e regulatórios20 Além disso, fazem recomendações para a criação de mecanismos adicionais e para promover a articulação das políticas subnacionais com a PNMC. As ações de mitigação unilaterais, sejam nacionais, sejam locais, podem isoladamente não ser suficientes para reverter as mudanças climáticas em curso, mas sua implementação pode ser localmente benéfica. Isto porque, além de pro- moverem um desenvolvimento tecnológico nessas regiões, quase sempre geram sinergias positivas com outras ações de controle da poluição local atmosférica e de preservação ambiental e, até mesmo, com políticas sociais de melhoria da qualidade de vida, tais como saneamento e coleta e disposição de resíduos sólidos. Essas oportunidades são mais promissoras nas áreas urbanas, onde a poluição e as condições de infraestrutura afetam mais direta e significativamente as populações mais pobres. O capítulo 3, Complementaridade entre políticas de combate ao aque- cimento global e qualidade da vida urbana, de Carolina Burle Schmidt Dubeux, aborda as principais inter-relações entre poluição global, regional e local e suas respectivas fontes de emissão. A autora então apresenta as principais opções de ações de mitigação de emissões de GEE que podem ser adotadas pelas prefeituras e investiga os benefícios em termos locais que resultariam de sua implementação. Para regular esses gases é preciso conhecer a evolução das emissões nacionais. O capítulo 4, de Ana Carolina Avzaradel, apresenta todo o processo de elabo- ração do Inventário Brasileiro de Emissões Antrópicas por Fontes e Remoções por Sumidouros de Gases de Efeito Estufa não controlados pelo Protocolo de Montreal e que é parte integrante da comunicação nacional do Brasil à CQNUMC. A autora analisa o perfil das emissões brasileiras, inclusive em comparação com o de outros países. Além de discutir os principais avanços alcançados desde o primeiro inventário, publicado em 2004, a autora faz recomendações para o aprimoramento e a institucionalização desses inventários no país. O aumento da renda nacional agregada e sua melhor distribuição possibili- tarão que parte grande da população brasileira aumente o consumo de bens. Esse consumo tende a aumentar o de energia, de tal forma que pode reduzir a capacida- de do Estado de diminuir o conteúdo de carbono da matriz energética. Isto, porém, não significa necessariamente que o combate à pobreza seja antagônico ao relativo ao aquecimento global. Thiago Fonseca Morello,Vitor Schmid e Ricardo Abramovay, no capítulo 5, Rompendo com o trade-off entre combate à pobreza e mitigação do efeito estufa: o caso do consumo domiciliar de energéticos no Brasil, procuram demonstrar que o maior acesso ao consumo no Brasil pode ser carbono-neutro. Para tal, estimam, por classe de renda, as emissões de GEE do consumo familiar de energéticos e de serviços de transporte. Seus resultados revelam que o incremento das emissões destes gases com o aumento do consumo de combustíveis veiculares induzido pela superação da pobreza são mais do que compensados pela redução das emissões geradas pela substituição do consumo de lenha e carvão vegetal. 21Introdução Alguns dos capítulos apresentados anteriormente mostram que o perfil das emissões brasileiras está concentrado nas emissões advindas do uso do solo e que, portanto, nossas metas de mitigação até 2020 se concentram no controle do des- matamento. Todavia, os autores indicam também que, até mesmo para 2020, e certamente para depois de 2020, o país terá que realizar esforços de mitigação em outras fontes. Os três capítulos seguintes tratam assim das possibilidades para uma economia de baixo carbono nos setores de agricultura, transporte rodoviário e energia.13 No capítulo 6, Agropecuária no contexto da economia de baixo carbono, Gustavo Barbosa Mozzer destaca que a transição do setor para o novo modelo econômico mundial focado na produtividade e na sustentabilidade não é uma opção, e sim uma condição necessária para assegurar os investimentos, o desen- volvimento e a difusão de tecnologias que permitam incrementar a resiliência sistêmica do setor ao aumento de temperatura e pluviosidade decorrentes do aque- cimento global. O autor, além de apresentar uma análise detalhada das emissões do setor, indica as oportunidades tecnológicas associadas ao processo de transição, destacando a atual e promissora evolução do país na adoção destas tecnologias. A identificação dessas oportunidades – as quais, além de mitigarem emissões de gases de feito estufa, promovem eficiência produtiva – também é destacada no capítulo 7, Transporte rodoviário e mudanças do clima no Brasil. A autora Patrícia Helena Gambogi Boson argumenta que, para conceber uma posição brasileira que se traduza em uma efetiva contribuição na redução das emissões dos GEE, é preciso também compreender um programa robusto para a área do transporte. Para tal, reforça a importância de instrumentos econômicos e financeiros para estimular o investimento em pesquisa e inovação para a produção e a distribuição, em larga escala, de combustíveis automotores mais limpos e para o aperfeiçoa- mento de tecnologias e a produção de veículos e motores ambientalmente mais eficientes. A autora propõe também um programa que implemente a renovação da frota brasileira e o consequente sucateamento da frota antiga, realize a recu- peração da infraestrutura rodoviária, desestimule o uso do transporte individual motorizado, melhore o transporte coletivo e promova investimentos na diversi- ficação da matriz, notadamente por meio da ampliação e do fortalecimento de ferrovias e hidrovias. Os capítulos sobre agricultura e transporte destacam a importância do con- sumo direto e indireto de combustíveis fósseis nas suas emissões setoriais, seja na geração de eletricidade e calor, seja no transporte. Em suma, a questão climática está relacionada a diversos aspectos da produção e do consumo de energia. 13. A posição da indústria está apresentada no capítulo 17, na parte II. Mudança do Clima no Brasil: aspectos econômicos, sociais e regulatórios22 O capítulo 8, Energia e mudanças climáticas: otimismo e ameaças no fronte brasileiro, da autora Silvia Maria Calou, contribui para a discussão das políticas energéticas e sua repercussão nos esforços nacionais de combate ao aquecimen- to global e nas implicações para o setor de energia. O capítulo se inicia com uma descrição detalhada do bom desempenho do setor em termos de emissões, dadas suas bases hídrica e de renováveis. A autora faz então uma análise do Plano Nacional de Energia (PDE) 2019 e da sua orientação para as opções energéticas de baixo carbono. A partir desta análise, ela faz uma série de reco- mendações para orientar uma discussão mais ampla e transparente com o setor de energia para uma avaliação mais detalhada das opções energéticas a serem estimuladas, de forma a promover os investimentos necessários para que a nossa matriz energética de baixo carbono seja mantida com eficiência e, portanto, menores custos para os consumidores. Os dois capítulos seguintes discutem instrumentos econômicos já adota- dos e em desenvolvimento na CQNUMC e suas implicações para o desenvolvi- mento brasileiro, a saber: MDL, Namas e REDD. Maria Bernadete Sarmiento Gutierrez, no capítulo 9, Do MDL às Namas: perspectivas para o financiamento do desenvolvimento sustentável brasileiro, discute como o MDL do Protocolo de Quioto e as Namas deveriam ter um caráter complementar, e não substitutivo, no financiamento do desenvolvimento sustentável dos países em desenvolvimento – em particular, no caso brasileiro. Procura-se enfatizar que, apesar da urgência de se alcançar a estabilização de GEE e de impor uma maior participação dos países em desenvolvimento por meio das Namas, é importante a manutenção do MDL, assim como sua ampliação por intermédio de um marco setorial, como forma de garantir o financiamento do desenvolvimento sustentável. No Brasil, por exemplo, cabe destacar a importância deste mecanismo no apoio aos projetos de energias renováveis. A questão da conservação florestal como estratégia de mitigação não é nova, mas sua viabilidade como um mecanismo específico no âmbito da CQNUMC começou a tomar forma em 2005, a partir de uma proposta das REDDs. No capítulo 10, Oportunidades e desafios relativos à implementação de mecanismos de REDD, Sofia Shellard e Gustavo Barbosa Mozzer apresentam o histórico e a evolução das dis- cussões sobre este mecanismo, ressaltando seus benefícios climáticos e ambien- tais. Os autores apontam também desafios e questões inerentes ao mecanismo que devem ser considerados para garantir a consecução dos seus objetivos. Em que pese a atual necessidade de mitigar emissões decorrentes do uso do solo, o crescimento brasileiro vai exigir uma completa transformação tecnológica nos setores produtivos. No capítulo 11, Desenvolvimento, cooperação e transferên- cia de tecnologias energéticas de baixa emissão, Gilberto de Martino Jannuzzi e 25Introdução danças climáticas globais sobre a lucratividade agrícola no país. Eles concluem que os efeitos do aquecimento global na agricultura brasileira serão espacialmente diferenciados e, portanto, acentuarão as desigualdades regionais. Assim, será im- portante fortalecer os mecanismos de proteção social e formular estratégias de adaptação das populações mais vulneráveis a esses impactos econômicos. Esse capítulo encerra a parte I. A parte II, que aborda as negociações internacionais, inicia-se com o capítu- lo 17, Análises de custo-benefício das mudanças climáticas, que faz uma resenha dos diversos estudos que comparam os custos de mitigação dos GEE e os benefícios que esta geraria ao reduzir os ônus dos impactos climáticos. Como os autores Jorge Hargrave, Ronaldo Seroa da Motta e Gustavo Luedemann mostram, há bastante divergência entre os estudos. Embora muitos receitem uma ação enérgi- ca imediata na redução das emissões, alguns indicam que os custos dessa atitude imediata podem não compensar frente aos impactos evitados no futuro. Em que pesem as diferenças nas metodologias de valoração, de agregação de custos e bene- fícios e de base de dados utilizadas, as divergências nos resultados são fortemen- te dependentes da forma como os benefícios futuros da regulação climática são comparados com custos incorridos no presente para implementar essa regulação, isto é, dependem da magnitude da taxa de desconto do consumo futuro em re- lação ao consumo presente. Conclui-se que, apesar do avanço recente, há ainda muitos desafios metodológicos tanto na mensuração como na valoração dos im- pactos climáticos de forma que se refinem os subsídios necessários para orientar os tomadores de decisão. Seja qual for a temporalidade das ações de mitigação, estas vão exigir uma ação global, e para tal há de se definir como será a distribuição dos seus custos entre os países e os agentes econômicos. Este, conforme se tem discutido ao longo desta introdução, é o objetivo principal da convenção do clima. O capítulo 18, As metas do Acordo de Copenhague e as decisões de Cancun, de Ronaldo Seroa da Motta, Jorge Hargrave e Gustavo Luedemann, resume inicial- mente os principais resultados das COPs de Copenhague e Cancun, que serão temas de outros capítulos da parte II nos quais serão abordados em maior profun- didade. Em seguida, dedicam-se a uma análise detalhada das metas notificadas no Acordo de Copenhague e confirmadas nas decisões de Cancun, discutindo suas implicações para as negociações futuras e sua contribuição para o compromisso de se limitar o aumento de temperatura global entre 1,5°C e 2°C. No capítulo 19, As negociações sobre mudanças climáticas na perspectiva da indústria, a autora Paula Bennati discute como as decisões recentes nas COPs 15 e 16 interferem diretamente nas estratégias que a indústria nacional deve desen- volver para fazer frente ao desafio relacionado à gestão de suas emissões de GEE. Mudança do Clima no Brasil: aspectos econômicos, sociais e regulatórios26 Para tal, argumenta como construir capacidades técnicas e intelectuais em toda a rede de negócios das empresas, pois todos são indispensáveis na transição para tecnologias limpas e novos modos de fazer negócios. Um dos temas mais controversos em Cancun foi o processo de negociação de um segundo período de compromissos no âmbito do Protocolo de Quioto. José Domingos Gonzalez Miguez, no capítulo 20, O Protocolo de Quioto no âmbi- to da atual negociação do regime internacional sobre mudança do clima, descreve em detalhes essas negociações. Segundo o autor, infelizmente, o processo foi retarda- do na espera de que os compromissos do PAB fossem acordados e, com isso, não houve avanço significativo nas negociações do PQ. Para ele, isso é preocupante, levando em conta que o estabelecimento de compromissos para o segundo pe- ríodo do protocolo deverá ocorrer por emendas. Portanto, haverá a necessidade de ratificação destas por todos os países partes do protocolo, o que demandará tempo e, com a conclusão dos trabalhos adiada para a COP 17 em Durban, na África do Sul, restará apenas um ano para que o processo de ratificação ocorra sem que haja um interstício entre o fim do primeiro período de compromisso do protocolo (2008-2012) e o início do segundo. As REDDs foram finalmente aprovadas na COP 16. A autora do capítulo 21, REDD e o desafio da proteção da cobertura florestal global, Thaís Linhares Juvenal, retrata as negociações desde a COP 15 para que isto acontecesse e discute em detalhes o texto aprovado. Este estabelece que este mecanismo necessita de uma preparação técnica e institucional, uma fase de consolidação da preparação e início de demonstração com quantificação de resultados e uma fase de imple- mentação plena, quando os países teriam já capacidade de apresentar resultados totalmente mensuráveis, reportáveis e quantificáveis. Segundo a autora, fica claro, portanto, a importância das estruturas de governança para as REDDs. Tal reco- nhecimento, contudo, torna, de certa forma, as possibilidades de financiamento deste mecanismo menos flexíveis e origina o que ela vai explicar como o “parado- xo das REDDs”. Conforme já discutido, o financiamento de políticas e ações de mitigação e adaptação para mudança climática nos países em desenvolvimento é uma questão crucial nas negociações internacionais, como consta no PAB. O capí- tulo 22, A obrigação de financiamento na convenção climática, da autora Claudia da Costa Martinelli Wehbe, discute os avanços em Cancun com a criação do Fundo Verde para o Clima, um comitê permanente para assistir o mecanismo financeiro e a alocação de recursos, além do reconhecimento dos compromissos coletivos de financiamento de curto e longo prazo. Assim, foram assumidos os compromissos de Copenhague de mobilização de US$ 30 bilhões no curto pra- zo – até 2012 – e US$ 100 bilhões anuais até 2020. Ademais, propuseram-se às 27Introdução partes prazos anuais até 2013 para submissão de informações sobre a provisão do financiamento de “início rápido”, hoje não regulamentada. Conforme argu- menta a autora, os textos de Cancun mantiveram a menção genérica à variedade de fontes e, portanto, serão importantes às fases subsequentes à Cancun que definirão as atribuições e as funções do comitê. Além de recursos para financiamento, a redução rápida das emissões e a necessidade urgente de adaptação aos impactos adversos da mudança global do clima requerem também a difusão em larga escala e a transferência de, ou o acesso a, tecnologias ambientalmente saudáveis. O capítulo 23, Transferência de tecno- logia no âmbito do regime de mudança do clima, que encerra esta publicação, de Haroldo de Oliveira Machado Filho e Marcelo Khaled Poppe, discute ini- cialmente os compromissos relativos à transferência de tecnologia no âmbito da convenção e as dificuldades de implementação de um mecanismo de tecnologia articulado com um mecanismo de financiamento. Em seguida, descrevem em detalhes as negociações das duas últimas COPs e as perspectivas de sucesso do Acordo de Cancun, com a decisão de estabelecer um Comitê de Tecnologia e o Centro de Tecnologia de Mudança do Clima para facilitar o exercício efetivo do mecanismo de tecnologia. Esperamos que os capítulos deste livro ofereçam ao leitor uma visão abran- gente e, muitas vezes, detalhada dos aspectos econômicos e regulatórios sobre mudança do clima que nos últimos anos têm mobilizado a opinião pública e a agenda política do país e do mundo. 6 AGrADECimENToS Agradecemos ao serviço editorial do Ipea pelo trabalho eficiente e ágil que nos ajudou a montar esta publicação. Este livro é, contudo, o resultado da valiosa colaboração de diversos es- pecialistas que generosamente aceitaram com grande entusiasmo o convite do Ipea para emprestarem seu saber e conhecimento para a elaboração desta obra. Os editores agradecem pelo privilégio e pela satisfação de poder trabalhar com esses renomados especialistas. Sem a dedicação deles, esta obra não seria possível. Ronaldo Seroa da Motta Jorge Hargrave Gustavo Luedemann Maria Bernadete Sarmiento Gutierrez CAPÍTULO 1 a PoLítICa NaCIoNaL SoBre MUDaNÇa Do CLIMa: aSPeCtoS regULatórIoS e De goverNaNÇa Ronaldo Seroa da Motta* 1 INtroDUÇão O Brasil confirmou no Acordo de Copenhague, e na Conferência das Partes (COP 16) em Cancun, as suas metas nacionais voluntárias de redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE), com reduções entre 36,1% e 38,9% das emissões projetadas até 2020. Estas metas foram definidas na Política Nacional sobre Mu- dança do Clima (PNMC), aprovada pelo Congresso Nacional (Lei no 12.187, de 29 de dezembro de 2009). Conforme será discutido em outros capítulos deste livro, a posição brasileira, na ausência de um acordo global vinculante, é de que estas metas propostas no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (CQNUMC)1 sejam voluntárias. Entretanto a PNMC vai além de formalizar as posições brasileiras no âmbito externo. Além de amparar as posições brasileiras nas discussões multilaterais e in- ternacionais sobre combate ao aquecimento global, a PNMC é, na verdade, um marco legal para a regulação das ações de mitigação e adaptação no país. Marco esse que dita princípios, diretrizes e instrumentos para a consecução dessas metas nacionais independentemente da evolução dos acordos globais de clima. Como ditava o texto legal, decreto do Poder Executivo estabeleceria, em consonância com a Política Nacional sobre Mudança do Clima, planos setoriais de mitigação e de adaptação às mudanças climáticas visando à consolidação de uma economia de baixo consumo de carbono. Em dezembro de 2010 foi, assim, editado o Decreto no 7.390, de 9 de dezembro de 2010, que regulamenta os Arts. 6o, 11 e 12 da Lei no 12.187/2009, que institui a PNMC e dá outras providên- cias. O referido decreto permitiu esclarecer e definir vários aspectos regulatórios do texto legal quanto à mensuração das metas, à formulação dos planos setoriais * Técnico de Planejamento e Pesquisa da Diretoria de Estudos e Políticas Setoriais de Inovação, Regulação e Infraes- trutura (Diset) do Ipea. 1. United Nations Framework Convention on Climate Change (UNFCCC). Mudança do Clima no Brasil: aspectos econômicos, sociais e regulatórios32 e à estrutura de governança.2 Este capítulo discute esses avanços, apontando para outros aspectos regulatórios pendentes que ainda precisam ser desenvolvidos, em particular, na sua estrutura de governança. Após a seção 2, que discute em detalhes a formulação dos planos setoriais e a fixação das metas, as seções 3 e 4 tratam das suas formas de financiamento destacando o papel dos instrumentos financeiros e, em particular, de mercados de carbono. A articulação entre instrumentos e planos setoriais, como desejado no texto legal, dependerá crucialmente da estrutura de governança que é analisada na seção 5. As considerações finais concluem o trabalho. 2 aS MetaS BraSILeIraS As metas nacionais foram definidas ao final da lei, no Art. 12 da PNMC (BRA- SIL, 2010c), a saber: Para alcançar os objetivos da PNMC, o país adotará, como compromisso nacional voluntário, ações de mitigação das emissões de gases de efeito estufa, com vistas a reduzir entre 36,1% (trinta e seis inteiros e um décimo por cento) e 38,9% (trinta e oito inteiros e nove décimos por cento) suas emissões projetadas até 2020. O Decreto no 7.930/2010, que regulamenta a PNMC, projeta as emissões nacionais de GEE para 2020 em 3.236 milhões tCO2eq e para alcançar esse compromisso nacional voluntário irá reduzir entre 38,6% e 38,9% das emissões projetadas. Na tabela 1 podemos observar que esse compromisso representaria redução entre 6% e 10% dos níveis emitidos em 2005. TABELA 1 Compromissos voluntários de redução de gee do Brasil – 2020 Metas de mitigação para 2020 (%) total a ser mitigado em 2020 (mi tCo2eq) total de emissões em 2020 após mitigação (mi tCo2eq) Mitigado em 2020 em relação a 2005 (%) 36,1 1.168 2.068 6 38,9 1.259 1.977 10 Fontes: Brasil (2009a, 2010b). No seu Art. 11 a PNMC diz que o Decreto do Poder Executivo estabelecerá, em consonância com a Política Nacio- nal sobre Mudança do Clima, os Planos setoriais de mitigação e de adaptação às mudanças climáticas visando à consolidação de uma economia de baixo consumo de carbono, na geração e distribuição de energia elétrica, no transporte público urbano e nos sistemas modais de transporte interestadual de cargas e passageiros, na indústria de transformação e na de bens de consumo duráveis, nas indústrias 2. Para uma análise detalhada dos aspectos regulatórios da PNMC, ver Seroa da Motta (2010a e 2010b). 33A Política Nacional sobre Mudança do Clima: aspectos regulatórios e de governança químicas fina e de base, na indústria de papel e celulose, na mineração, na indústria da construção civil, nos serviços de saúde e na agropecuária, com vistas em aten- der metas gradativas de redução de emissões antrópicas quantificáveis e verificáveis, considerando as especificidades de cada setor, inclusive por meio do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo – MDL e das Ações de Mitigação Nacionalmente Apro- priadas – NAMAs. (BRASIL, 2010c). Então, na parte de metas para 2020, o Decreto no 7.390/2010 (2010b) as- socia os planos setoriais do Art. 11 da PNMC às ações de mitigação somente dos setores de uso da terra, agropecuária e energia, agregando a indústria e a geração de resíduos sólidos em outros.3 Presume-se que os demais setores poderão ser objeto de planos, conforme dita a PNMC, mas não irão contribuir agora no esforço para 2020. O decreto regulamentador desagrega as projeções das emissões para 2020 por setores da seguinte forma: i) mudança de uso da terra: 1.404 milhões de tCO2eq (sendo 68% na Amazônia, 23% no Cerrado e o restante 9% na Mata Atlântica, na Caatinga e no Pantanal); ii) energia: 868 milhões de tCO2eq; iii) agropecuária: 730 milhões de tCO2eq; e iv) processos industriais e tratamento de resíduos: 234 milhões de tCO2eq. Para a consecução dessa metas, o decreto diz que serão inicialmente consi- deradas as seguintes ações: 1. Redução de 80% dos índices anuais de desmatamento na Amazônia Legal em relação à média verificada entre 1996 e 2005. 2. Redução de 40% dos índices anuais de desmatamento no bioma Cerra- do em relação à média verificada entre 1999 e 2008. 3. Expansão da oferta hidroelétrica, de fontes alternativas renováveis, notada- mente centrais eólicas, pequenas centrais hidroelétricas e bioeletricidade, da oferta de biocombustíveis, e incremento da eficiência energética. 4. Recuperação de 15 milhões de hectares (ha) de pastagens degradadas. 5. Ampliação do sistema de integração lavoura – pecuária – floresta em 4 milhões de ha. 6. Expansão da prática de plantio direto na palha em 8 milhões de ha. 7. Expansão da fixação biológica de nitrogênio em 5,5 milhões de ha de áreas de cultivo, em substituição ao uso de fertilizantes nitrogenados. 8. Expansão do plantio de florestas em 3 milhões de ha. 3. Note-se que todo o consumo setorial de energia é agregado na conta energia. Mudança do Clima no Brasil: aspectos econômicos, sociais e regulatórios36 Esses pagamentos devem refletir os custos de oportunidade do desmatamen- to que são majoritariamente associados à pecuária extensiva ou à agricultura de baixa produtividade. Estudos indicam que em muitas regiões do mundo, como é o caso das áreas atualmente fora do arco de desmatamento na Amazônia,6 esse custo de oportunidade tende a ser muito menor que opções que reduzam emis- sões de outras fontes, tais como as energéticas. Logo, uma empresa ou um governo que tenha que reduzir suas emissões teria interesse em pagar pela conservação dessas áreas em troca de créditos equiva- lentes às emissões de carbono que o desmatamento geraria e usaria estes créditos para cumprir suas metas. Como essa diferença de custos entre REDD e outras formas de mitigação pode ser muito grande, os pagamentos de REDD podem inclusive, se geridos de forma apropriada, possibilitar ganhos de renda maiores que os das atividades desmatadoras. Um mecanismo como a REDD seria então capaz de gerar três dividendos socialmente desejáveis: controle do clima, proteção da biodiversidade e distribuição de renda. Embora não haja ainda uma decisão governamental, o financiamento das Namas de desmatamento poderia acontecer por intermédio de recursos interna- cionais, seja de um fundo de mitigação da convenção do clima, seja por outras formas multilaterais e bilaterais. O Brasil, por exemplo, já conta com o Fundo Amazônia, financiado por doações de governos, instituições multilaterais, organizações não governamen- tais (ONGs) e empresas. Seu objetivo é promover projetos para a prevenção e o controle do desmatamento e para a conservação e o uso sustentável das florestas no bioma amazônico. A gestão do fundo cabe ao Banco Nacional de Desenvolvi- mento Econômico e Social (BNDES) e os recursos são aplicados sob a forma de financiamentos não reembolsáveis. Estas doações são ajustadas de acordo com a evolução da taxa média de desmatamento.7 Além do plano anual de aplicação de recursos do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima, os Arts. 5o, 6o e 7o da PNMC avançam mais e dispõem sobre instrumentos financeiros, tais como os incentivos fiscais e creditícios, as dota- ções do Tesouro Nacional e as doações nacionais ou internacionais, para fomento às ações de mitigação, inclusive para desenvolvimento tecnológico. O Art. 8o, por sua vez, coloca as instituições financeiras oficiais em disponibilidade para linhas de crédito e financiamento específicas para o desenvolvimento das ações de mitigação. 6. Ver, por exemplo, Ipam (2007) e Strassburg et al. (2009). 7. Ver Fundo Amazônia (2010). 37A Política Nacional sobre Mudança do Clima: aspectos regulatórios e de governança 4 o MerCaDo De CarBoNo Outra forma de financiamento poderá ser por intermédio de um mercado de car- bono.8 No Brasil já existem mecanismos de mercado de carbono para o fomento aos projetos de redução de emissão de gases de efeito estufa, no âmbito do MDL, com a implantação de um sistema para a negociação de créditos de carbono na Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F), denominado mercado brasileiro de redução de emissões (MBRE). Embora o MBRE tenha sido até agora restrito a créditos de projetos de MDL destinados ao cumprimento das metas dos países signatários do Protocolo de Quioto, está previsto no Art. 11 da PNMC que o MBRE será operacionali- zado em bolsas de mercadorias e futuros, bolsas de valores e entidades de balcão organizado, autorizadas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), em que se dará a negociação de títulos mobiliários representativos de emissões de GEE evitadas e certificadas. Ou seja, o MBRE não só adquire um escopo mais amplo que o de transa- cionar créditos de MDL, mas também reconhece que os volumes transacionados são títulos mobiliários. Este reconhecimento contábil é fator importante para o estabelecimento de valor para as transações de mercado que, até a PNMC, não tinha encontrado amparo legal para que fosse assim determinado. Todavia, a PNMC não era muito clara sobre como esse mercado evoluiria para abrigar os esforços das metas nacionais. Entretanto, o § 3o do Art. 4 do De- creto no 7.930/2010 diz que as metas dos planos setoriais poderão ser utilizadas como parâmetros para o estabelecimento do MBRE, de que trata o Art. 9o da Lei no 12.187/2009. O § 4o do Art. 6o do mesmo decreto permite inclusive que as ações de mitigação dos planos setoriais poderão ser implementadas também por meio do mecanismo de desenvolvimento limpo ou de outros mecanismos no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Essa possi- bilidade sinaliza que o mercado de carbono nacional poderá se comunicar com mercados de outros países ou regiões que sejam regulados pela convenção. Fora do âmbito da PNMC, mas em consonância com esses objetivos, há um grupo de trabalho da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) que está desenvolvendo normas para a criação de um mercado de carbono vo- luntário e que já atraiu o interesse das instituições financeiras e das bolsas de valores e mercadorias.9 8. Ver, por exemplo, uma análise em Smale et al. (2006). 9. Comissão de Estudo Especial de Mercado Voluntário de Carbono (CEE)/ABNT-146. Projeto foi a consulta pública em fevereiro de 2011. Mudança do Clima no Brasil: aspectos econômicos, sociais e regulatórios38 Embora o decreto amplie e garanta um papel importante e promissor para o mercado de carbono, agora há que se discutir algumas questões regulatórias relevantes a serem resolvidas para a sua implantação, tais como os critérios e os instrumentos de alocação de licenças avaliando as magnitudes dos custos setoriais de compra de licença no caso de leilões e das transferências de renda no caso de uma alocação gratuita de licenças. Ademais, é necessário avaliar como estas mag- nitudes variariam se as trocas fossem também realizadas com outros mercados fora do país. 5 goverNaNÇa O sucesso do PNMC dependerá da articulação entre iniciativas públicas e priva- das e da participação dos entes da Federação e de suas agências e autarquias. Para tal, entretanto, a PNMC terá que contar com uma estrutura de gover- nança autônoma e transparente para evitar desvios resultantes tanto da influência e dos interesses dos regulados como de mudanças de governo ou de oportunis- mo político. Dessa forma, a governança do PNMC deveria diferenciar o poder regula- mentador do poder regulador. O primeiro formularia a política do setor com alto grau de representatividade e o outro faria a aplicação da política com alto grau de autonomia e transparência.10 Na(s) entidade(s) que forma(m) o poder regulamentador participam repre- sentantes de todos os setores sociais envolvidos, com o objetivo de orientar o de- senvolvimento da política. Para tal, caberia a este poder deliberar sobre questões de implementação exigidas na lei desde que seguindo os princípios, as diretrizes e as ações nela promulgados. Entretanto, a PNMC não foi precisa no seu Art. 7o quanto à governança de seus instrumentos econômicos e financeiros. As instâncias institucionais listadas incluem as existentes comissões interministeriais e as entidades da sociedade civil, a saber: o Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima (CIM); a Comissão Interministerial de Mudança Global do Clima; o Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas (FNMC); a Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais (Rede Clima); e a Comissão de Coordenação das Atividades de Meteoro- logia, Climatologia e Hidrologia. Mas o Decreto no 7.390/2010 realiza alguns avanços nesse sentido. Por exemplo, o seu Art. 7o define o CIM instituído pelo Decreto no 6.263, de 21 de novembro de 2007, como o coordenador-geral das ações de mitigação a serem 10. Ver Cruz (2009) e Seroa da Motta (2009). 41A Política Nacional sobre Mudança do Clima: aspectos regulatórios e de governança Conforme se discutiu, estes mecanismos, entretanto, ainda requerem a análise e a definição de alguns aspectos regulatórios relativos aos critérios e aos impactos na alocação dos incentivos e dos direitos de emissão. Igualmente importante será a definição da governança regulatória destes instrumentos. O decreto regulamentador da PNMC avançou nas regras e na normatiza- ção, na mensuração das metas e na formulação dos planos setoriais. Os avanços na estrutura de governança, embora significativos, ao alocar a coordenação dos planos ao CIM, ainda requerem uma melhoria institucional mais ousada e com- plexa no poder regulador. O desenvolvimento dos planos setoriais, se articulado com instrumentos econômicos adequados, oferecerá então as oportunidades para que o país aumen- te a eficiência da sua transição na direção de uma economia de baixo carbono. Para tal, a regulação da PNMC pode adotar estrutura de governança semelhante à de outros setores regulados, em que uma agência autônoma é responsável pela implementação dos objetivos do marco regulatório disposto em lei. Tal iniciativa será o início da articulação entre os governos federal e estaduais, o setor privado e as ONGs, e esforços nesse sentido deveriam estar na pauta das discussões atuais dos planos setoriais. reFerêNCIaS BRASIL. Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Inventário Brasileiro das Emissões e Remoções Antrópicas de Gases de Efeito Estufa. Brasília, 2009a. ______. Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Cenários para oferta bra- sileira de mitigação de emissões. Brasília, 2009b. ______. Presidência da República (PR). Lei no 12.187, de 29 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC) e dá outras providências. Brasília, 29 dez. 2009c. ______. Ministério das Relações Exteriores (MRE). Nota no 31: notificação ao UNFCCC sobre as ações brasileiras de redução de emissões. Brasília, 29 jan. 2010a. ______. Presidência da República (PR). Decreto no 7.390, de 9 de dezembro de 2010. Regulamenta os Arts. 6o, 11 e 12 da Lei no 12.187, de 29 de dezembro de 2009, que institui a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), e dá outras providências. Brasília, 9 dez. 2010b. ______. Congresso Nacional. Lei no 12.187, de 29 de dezembro de 2009. Ins- titui a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), e dá outras provi- dências. Brasília, 9 dez. 2010c. Mudança do Clima no Brasil: aspectos econômicos, sociais e regulatórios42 CRUZ, V. Estado e regulação: fundamentos teóricos. In: RAMALHO, P. I. S. (Org.). Regulação e agências reguladoras: governança e análise de impacto re- gulatório. Brasília: Anvisa, 2009. FUNDO AMAZÔNIA. Fundo Amazônia. Disponível em: <http://www. fundoamazonia.gov.br/FundoAmazonia/fam/site_pt/index.html>. Acesso em: jan. 2010. INSTITUTO DE PESQUISA AMBIENTAL DA AMAZÔNIA (IPAM). Custos e benefícios da redução das emissões de carbono. Belém, 2007. SEROA DA MOTTA, R. Custos e benefícios do desmatamento na Amazônia. Ciência & Meio Ambiente, v. 32, 2005. ______. Princípios de regulação econômica. In: RAMALHO, P. I. S. (Org.). Regulação e agências reguladoras: governança e análise de impacto regulatório. Brasília: Anvisa, 2009. ______. A regulação das emissões de gases de efeito estufa no Brasil. Brasília: Ipea, maio 2010a (Texto para Discussão, n. 1492). ______. Aspectos regulatórios das mudanças climáticas no Brasil. Boletim Regional, Urbano, e Ambiental, Brasília, Ipea, n. 4, p. 33-38, jul. 2010b. SMALE, J. et al. The impact of CO2 emissions trading on firm profits and market prices. Climate Policy, v. 6, n. 1, p. 31-48, 2006. STRASSBURG, B. et al. Reducing emissions from deforestation: the ‘‘combined incentives’’ mechanism and empirical simulations. Global Environmental Change, v. 19, May 2009. TOURINHO, O. A. F.; SEROA DA MOTTA, R.; ALVES, Y. Uma aplicação ambiental de um modelo de equilíbrio geral. Rio de Janeiro: Ipea, 2003 (Texto para Discussão, n. 976). CAPÍTULO 2 REGULAÇÃO DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS NO BRASIL E O PAPEL DOS GOVERNOS SUBNACIONAIS Viviane Romeiro* Virginia Parente** 1 INTRODUÇÃO O regime geopolítico internacional do clima volta-se para o desafio de estabele- cer acordos que conciliem os interesses de desenvolvimento nacional e as dife- renças de estratégias de sustentabilidade de distintas nações, mesmo entre aque- las que estejam imbuídas do objetivo comum de evitar as mudanças climáticas. Os avanços em políticas públicas e governança regulatória nessa direção têm se tornado cada vez mais complexos em decorrência da pluralidade de posiciona- mentos políticos e regimes legais vigentes nos diversos países (OBSERVATÓRIO DO CLIMA, 2008). Nesse contexto, o amadurecimento de políticas públicas nacionais sobre mudanças climáticas pode desempenhar um papel essencial para o avanço da agenda internacional do clima, contribuindo para que tal agenda seja mais har- mônica, uníssona e, portanto, mais efetiva. Sobre a importância da ação nacional frente à conquista de um objetivo mundial, Giddens (2008) alerta que os líderes políticos devem estar continuamente atentos às análises das transformações po- líticas necessárias para mitigar as mudanças do clima, especialmente em nível nacional, em que tais ações devem ser, de fato, ensejadas. Levando-se em conta o cenário global, o objetivo principal deste trabalho é analisar a evolução da governança regulatória das mudanças climáticas no Brasil a partir da criação das políticas subnacionais – estaduais e municipais – e verificar seus impactos no contexto da Política Nacional de Mudanças do Clima (PNMC), instituída em dezembro de 2009. A seção 2 deste capítulo apresenta a literatura recente que detalha algumas das principais diretrizes das políticas públicas nacionais para redução de emissão * Doutoranda em Energia pelo Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (IEE/USP). ** Professora do IEE/USP. Mudança do Clima no Brasil: aspectos econômicos, sociais e regulatórios46 discussão sobre o tema, são relevantes e demandam esforços para engajar os dife- rentes setores da economia e mesmo a sociedade. A efetividade e o cumprimento dos objetivos de tais políticas dependerão da maneira como estes governos condu- zirão a implementação das atividades previstas nas suas respectivas leis. Especial- mente, da maneira como irão mensurar e verificar o cumprimento das metas de redução das emissões, aplicando as devidas sanções, quando cabíveis. Diante do exposto, considerou-se pertinente analisar as leis sobre a pers- pectiva do papel dos governos subnacionais e seu devido reconhecimento para a questão das mudanças climáticas. Por meio de uma análise comparada das prin- cipais características das leis, foram discutidos, especialmente, os incentivos im- plementados e a criação de mecanismos adicionais para contribuir ao alcance dos objetivos estabelecidos. 2.1 Papel dos governos subnacionais No Brasil, os fóruns nacional e estaduais de mudanças climáticas têm a finalidade de mobilizar a sociedade e promover o diálogo e a integração entre instituições dos vários setores, com o objetivo de adotar políticas e programas de acordo com a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (CQNUMC).1 Nesse contexto, o Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas foi criado em junho de 2000, sendo composto por 12 ministros de Estado. Até fevereiro de 2011, 16 estados brasileiros instituiram seus fóruns locais, os quais são apresentados na tabela 1, de acordo com sua respectiva data de criação. TABELA 1 Cronologia da implementação dos fóruns estaduais de mudanças climáticas Estado Fórum de Mudanças Climáticas São Paulo Fev./2005 Minas Gerais Jun./2005 Bahia Ago./2005 Maranhão Nov./2006 Espírito Santo Abr./2007 Tocantins Abr./2007 Rio de Janeiro Maio/2007 Piauí Jun./2007 Rio Grande do Sul Jun./2007 Ceará Abr./2008 Paraná Dez./2008 Pernambuco Fev./2009 1. United Nations Framework Convention on Climate Change (UFCCC). (Continua) 47Regulação das Mudanças Climáticas no Brasil e o Papel dos Governos Subnacionais Estado Fórum de Mudanças Climáticas Amazonas Fev./2009 Santa Catarina Mar./2009 Mato Grosso Abr./2009 Pará Set./2009 Fontes: Leis estaduais de criação dos fóruns estaduais de mudanças climáticas. Elaboração das autoras. Em relação às políticas públicas em mudanças climáticas, das 27 unidades da Federação (UFs) brasileiras, dez já criaram suas políticas e cinco possuem pro- jetos de lei (PLs). Conforme destacado, somente o estado de São Paulo possui metas mandatórias (PROCLIMA, 2011). O mapa 1 destaca os estados que pos- suem políticas, projetos de lei e fóruns de mudanças climáticas. MAPA 1 Estados com políticas já aprovadas, projetos de lei e fóruns já estabelecidos Estados com política Estados com projeto de lei Estados com Fórum Fontes: Leis estaduais de mudanças do clima. Adaptado pelas autoras. A tabela 2 resume o conteúdo das políticas públicas no Brasil no tocante às questões climáticas. Nele, estão destacados alguns itens considerados mais rele- vantes no contexto de uma política sobre mudança do clima, tais como: metas, criação de fundos, inventário, mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL) e incentivos para eficiência energética. (Continuação) Mudança do Clima no Brasil: aspectos econômicos, sociais e regulatórios48 TABELA 2 Conteúdo das políticas públicas estaduais em mudanças climáticas Estado Lei Decreto Metas Inventário MDL Eficiência energética Amazonas Jun./2007 Sim Não Sim Sim Não Amapá Jun./2007 Não Não Sim Sim Sim Tocantins Abr./2008 Não Não Sim Sim Sim Goiás Fev./2009 Não Não Sim Sim Sim Santa Catarina Ago./2009 Não Não Sim Não Sim Pará Set./2009 Não Progressiva Sim Sim Sim São Paulo Nov./2009 Jun./10 Sim Sim Sim Sim Rio de Janeiro Abr./2010 Não A definir Sim Não Sim Pernambuco Jun./2010 Não Progressiva Sim Sim Sim Espírito Santo Set./2010 Não A definir Sim Sim Sim Amapá Projeto de lei Não Progressiva Sim Sim Não Bahia Projeto de lei Não Não Sim Não Não Mato Grosso Projeto de lei Não Progressiva Sim Sim Não Minas Gerais Projeto de lei Não Não Sim Sim Não Paraná Projeto de lei Não Não Não Não Não Rio Grande do Sul Projeto de lei Não Não Sim Sim Sim Fontes: Proclima – leis e dados estaduais promulgados até abril de 2011. Elaboração das autoras. Em relação às políticas públicas municipais de mudanças climáticas, duas ci- dades brasileiras criaram estas com metas mandatórias: São Paulo e Rio de Janei- ro. A tabela 3 sintetiza a situação de alguns itens considerados de maior relevância no contexto dessas duas políticas municipais, tais como: metas, inventário, MDL e incentivos para eficiência energética. TABELA 3 Conteúdo das políticas públicas municipais em mudanças climáticas Município Lei Decreto Metas Inventário MDL Eficiência energética São Paulo Jun./2009 Não Sim Sim Sim Sim Rio de Janeiro Nov./2009 Não Sim Sim Sim Sim Fontes: Normativas municipais, atualizadas até fevereiro de 2011. Elaboração das autoras. O principal ponto em convergência de todas as leis estaduais e municipais analisadas está no desafio de compatibilizar o desenvolvimento econômico com a proteção do sistema climático, visando-se, especificamente, à redução das emis- sões de gases de efeito estufa (GEE). Quanto a esse aspecto, ao proceder-se a aná- lise das políticas climáticas no Brasil, verifica-se que elas apresentam as seguintes características básicas: 51Regulação das Mudanças Climáticas no Brasil e o Papel dos Governos Subnacionais Com base nos princípios e nas metas previstas nas leis supracitadas, enten- de-se oportuno verificar os incentivos e/ou sanções (políticas de comando e con- trole) para que os setores econômicos e o poder público implementem ações mais efetivas para a questão da mudança do clima. Dessa forma, é importante analisar como se pretende implementar tais ações de mitigação e de adaptação. 3 ENTREVISTAS No intuito de incorporar outras visões e perspectivas às análises realizadas neste trabalho, foram entrevistados alguns pesquisadores, estudiosos e jornalistas espe- cializados em mudanças do clima. As seguintes questões foram abordadas: • Quais os problemas estruturais e de implementação das leis em estudo? • Como compatibilizar as obrigações e as metas das políticas estaduais e municipais com a política nacional? • Como o setor produtivo deve se posicionar em relação às leis para mini- mizar riscos e aumentar sua competitividade? Os especialistas em mudanças do clima entrevistados são ligados a várias instituições. Entre estas, encontram-se: o Centro de Gestão de Estudos Estratégi- cos (CGEE); o Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEE/USP); o Ipea; o Centro de Economia e Finanças em Energia (CEFEN/USP); o Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (COPPE/UFRJ); a Escola Politécnica da USP (Poli/USP); o jornal Estado de S.Paulo e a Faculdade de Eco- nomia, Administração e Contabilidade (FEA/USP). De acordo com os especialistas entrevistados, o conjunto de leis especifica como deve ser realizada a aplicação dos recursos descritos neste. No entanto, no contexto da política nacional, pode-se considerar que o resultado ainda é pouco efetivo; além da deficiência de estruturas de gestão e regulação, também foram identificadas poucas evidências de avanços para implementar as ações propostas no conjunto dessas leis. Embora dados científicos que suscitam problemas decorrentes das mudan- ças do clima já sejam relatados há algum tempo, a compreensão e conscientização em relação a tais cenários requerem uma abordagem não apenas científica, mas também sob o ponto de vista político-econômico, ainda é muito recente. No âm- bito governamental, em todos os seus níveis (federal, estadual e municipal) os vá- rios aspectos da questão climática ainda não foram internalizados como requisito para definições de política e regulação. Assim, é razoável constatar que a estrutura regulatória e legal ainda não esteja adequadamente implementada, especialmente nos países em desenvolvimento, os quais não possuem metas de redução da emis- são de GEE no âmbito da CQNUMC. Mudança do Clima no Brasil: aspectos econômicos, sociais e regulatórios52 Ainda de acordo com as entrevistas realizadas à época da elaboração do Plano Nacional de Mudanças Climáticas, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) já havia se antecipado sobre a questão de se criar uma instituição de regulação para gerir os instrumentos criados pela PNMC; porém, não houve um acordo oficial. Ao considerar as atividades finalísticas de cada ministério, estes apresentam objetivos nem sempre convergentes quando se trata de mudanças do clima, destacando-se então a relevância de uma gestão que esteja independente das áreas fins do governo. Mas que tipo de entidade seria a mais viável para regular a implementação da PNMC? De acordo com alguns dos entrevistados, considerando-se que a atuação da Casa Civil é de gerência administrativa (e não de política estratégia, como tem sido observado na legislação), mostra-se necessário configurar uma entidade espe- cífica a ser responsável pela execução e pela regulação da PNMC. Os entrevistados também assinalam que houve avanços nas negociações climáticas, no âmbito do Brasil, e que estes se concretizaram na discussão e na criação de uma política do clima para o país. Reconhecem adicionalmente que, apesar de ainda haver falhas e entraves em relação a gestão e governança dessa política, ao menos as questões de metas, mesmo que voluntárias, começaram a ser discutidas. Por fim, vale atenção para o fato de que as leis de mudanças climáticas de- pendem de um profundo processo de discussão para que sejam implementadas. A criação da Política de Mudanças Climáticas do Estado de São Paulo, por exem- plo, indica que há muitos elementos a serem aprofundados nas demais políticas estaduais, destacando-se a questão da inserção de metas voluntárias ou manda- tórias de redução de emissão de GEE. Isto reforça a importância dos incentivos, ao menos nesta fase inicial da implementação do arcabouço climático. Consi- derando-se que o aspecto de incentivos deve preponderar nessa fase inicial de regulamentação, é válido citar algumas recomendações advindas das entrevistas realizadas, com vista a fomentar práticas menos emissoras de poluentes: • Investimento em pesquisa e desenvolvimento (P&D) e em projetos de extensão, de forma a viabilizar meios para efetivar a adoção de práticas de baixo carbono. • Fomento de maior interlocução do setor privado na implementação da PNMC e de políticas subnacionais, bem como nas negociações inter- nacionais de mudanças climáticas em conjunto com os ministérios en- volvidos no tema. • Engajamento dos diversos setores econômicos nas discussões sobre a implementação das leis de mudanças climáticas. 53Regulação das Mudanças Climáticas no Brasil e o Papel dos Governos Subnacionais As políticas públicas, de modo geral, possibilitam a criação de mecanismos econômico-financeiros, além de viabilizar investimentos em tecnologia, de forma a buscar soluções para a mitigação dos – e adaptação aos – efeitos das mudanças do clima. Portanto, devem ser amplamente assistidas. Quanto às sanções, obser- va-se que elas são restritas a casos específicos previstos nas leis e de acordo com suas realidades regionais e locais. Assim, a iniciativa voltada ao desenvolvimento de políticas climáticas deve ser um esforço contínuo para proporcionar condições ao país de inserir-se no esforço internacional, contribuindo com a necessária arti- culação global sobre as questões do clima. Outro fator relevante a ser considerado quanto à criação das metas é a veri- ficação do impacto das ações previstas por tais políticas na competitividade dos estados e do próprio país. Essa é uma das razões pela qual viabilizar incentivos econômicos se torna indispensável. No âmbito empresarial, consequentemente, predomina a dificuldade de li- dar com o tema, em face do desconhecimento, ou mesmo da multiplicidade de informações que nem sempre são convergentes, e da própria complexidade dos temas. O setor privado precisa ter clareza sobre as obrigações que terá que cum- prir, para que as ações ligadas ao clima não se tornem meramente novos custos, mas, sim, diferenciais competitivos. No caso de uma empresa que decida investir em atividade potencialmente poluidora, observa-se, por exemplo, que a falta de regras claras poderá inviabilizar um empreendimento no médio e no longo prazos. Isso porque em um período de cinco ou dez anos tal atividade poderá ser inviabilizada frente à criação de uma restrição mais severa em relação ao tipo de empreendimento, e o investidor, sem sinalização prévia, poderá enfrentar sérios prejuízos na tentativa de se adequar. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste trabalho, discutiram-se a evolução do Brasil na criação de políticas para combater o problema das mudanças climáticas, bem como vários aspectos de sua governança. Constatou-se que, na esfera federal, a aprovação de metas na- cionais por meio da Política Nacional sobre Mudança do Clima (Lei Federal no 12.187/2009) pode trazer, se adequadamente implementada, reduções signi- ficativas das emissões, as quais poderão ser coadunadas concomitantemente às ações regionais e locais. Verificou-se que o uso de instrumentos de incentivos fiscais e econômicos pode desempenhar papel fundamental no desenvolvimento e na implementação das políticas climáticas. Isso porque tais instrumentos podem acelerar o processo de uso eficiente da energia, ao mesmo tempo em que possibilitam a geração e a disseminação de tecnologias mais avançadas para a redução das emissões de GEE. Mudança do Clima no Brasil: aspectos econômicos, sociais e regulatórios56 PERNAMBUCO. Lei Estadual no 14.090, de 17 de junho de 2010. Institui a Política Estadual de Enfrentamento às Mudanças Climáticas de Pernambuco e dá outras providências. Recife: Assembleia Legislativa, 2010. PROGRAMA ESTADUAL DE MUDANÇAS CLIMÁTICAS (PROCLIMA). Disponível em: <http://homologa.ambiente.sp.gov.br/proclima/legislacao/estadual. asp>. Acesso em: fev. 2011. RIO DE JANEIRO. Lei Estadual no 5.690, de 14 de abril de 2010. Institui a Política Estadual sobre Mudança Global do Clima e Desenvolvimento Sustentá- vel e dá outras providências. Rio de Janeiro: Assembleia Legislativa, 2010. SANTA CATARINA. Lei Estadual no 14.829, de 11 de agosto de 2009. Ins- titui a Política Estadual sobre Mudanças Climáticas e Desenvolvimento Susten- tável de Santa Catarina e adota outras providências. Florianópolis: Assembleia Legislativa, 2009. SÃO PAULO. Lei Estadual no 13.798, de novembro de 2009. Institui a Polí- tica Estadual de Mudanças Climáticas (PEMC). São Paulo: Assembleia Legisla- tiva, 2009a. ______. Lei Municipal no 14.933, de junho de 2009. Institui a Política de Mudança do Clima (PMMC) no município de São Paulo. São Paulo: Câmara Municipal, 2009b. ______. Decreto no 55.947, de 24 de junho de 2010. Política Estadual de Mu- danças do Clima. São Paulo: Assembleia Legislativa, 2010a. ______. Decreto no 7.390, de 9 de dezembro de 2010. Política Estadual de Mudanças do Clima. São Paulo: Assembleia Legislativa, 2010b. SEROA DA MOTTA, R. Aspectos regulatórios das mudanças climáticas no Brasil. Boletim Regional, Urbano, e Ambiental, Ipea, Brasília, n. 4, p. 33-38, jul. 2010. STERN, N. H. The Economics of Climate Change: The Stern Review. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. TOCANTINS. Lei no 1.917, de 17 de abril de 2008. Institui a Política Es- tadual sobre Mudanças Climáticas, Conservação Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do Tocantins e adota outras providências. Palmas: Assembleia Legis- lativa, 2008. CAPÍTULO 3 COMPLEMENTARIDADE ENTRE POLÍTICAS DE COMBATE AO AQUECIMENTO GLOBAL E QUALIDADE DA VIDA URBANA* Carolina Burle Schmidt Dubeux** 1 INTRODUÇÃO Dois terços da energia mundial, aproximadamente, são consumidos em centros urbanos, contribuindo com cerca de 80% para as emissões globais de gases de efeito estufa (GEE) (BANCO MUNDIAL, 2009). Em um prazo de 20 anos, a Agência Internacional de Energia (AIE)1 prevê que as cidades passarão a ser res- ponsáveis por 73% do consumo mundial de energia (AIE, 2008).2 A maior parte desse consumo continuará a ser para atender à demanda proveniente de transpor- tes, de atividades industriais e comerciais e de aclimatação de ambientes. Logo, o combate ao aquecimento global não pode prescindir da participação das cidades. A urbanização também concentra grande parte dos resíduos sólidos e dos efluentes domésticos, comerciais e industriais produzidos. Essa concentração, principalmente em países com altas temperaturas médias, favorece a produção de metano, um gás de alto poder de aquecimento global. Todos esses fatores que contribuem para o aumento do efeito estufa também causam poluição local e regional. Dessa forma, identificam-se sinergias entre as políticas públicas que tratam do aquecimento global e aquelas que controlam a poluição local e a preservação ambiental, como também as direcionadas aos servi- ços de infraestrutura. Por exemplo, a redução no consumo de combustíveis fósseis apresenta resultados benéficos tanto no que se refere ao efeito estufa quanto para a qualidade do ar que se respira ou para o problema da chuva ácida. Estas relações ocorrem porque o mesmo processo de combustão que gera emissões dos princi- pais GEE também gera poluentes convencionais com efeitos adversos na saúde humana, nos ecossistemas, na produtividade agrícola e nos materiais. * Com base em Dubeux (2007). ** Pesquisadora do Centro de Estudos Integrados sobre Meio Ambiente e Mudanças Climáticas do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Centro Clima/ COPPE/UFRJ). 1. International Energy Agency (IEA). 2. Estimativas para o cenário de referência. Mudança do Clima no Brasil: aspectos econômicos, sociais e regulatórios58 Essa sinergia pode ser negativa, por exemplo, no que se refere aos resíduos com altos teores de carga orgânica. No caso dos resíduos sólidos, a produção de metano (CH4), que é um dos GEE, aumenta quanto melhor for seu acondiciona- mento em aterros sanitários. O mesmo ocorre com sistemas de tratamento anae- róbico de esgotos domésticos e efluentes industriais. Para evitar que a disposição final adequada de resíduos – um benefício ao meio ambiente local – torne-se um agravante do efeito estufa, os projetos precisam incluir investimentos destinados ou à simples queima do gás ou ao seu aproveitamento, neste caso tornando o tratamento do resíduo uma fonte de energia renovável. Merecem atenção também a questão do adequado planejamento do uso do solo e o aumento da arborização, que trazem inúmeros benefícios às cidades e que paralelamente contribuem para a redução de emissões de GEE. Enfim, os efeitos colaterais de ações em favor do clima podem contribuir para o incremento da qualidade de vida nas cidades, como já está acontecendo nos países da Europa. Da mesma forma, investimentos que aumentam a qualida- de de vida podem resultar em mitigação de emissões de GEE. Este capítulo analisa as principais sinergias entre as políticas públicas sobre mudança do clima e as que tratam de poluentes convencionais e serviços urbanos de infraestrutura, as quais podem ser mais facilmente exploradas pelas cidades brasileiras. Na seção 2, são abordadas as principais inter-relações entre poluição global, regional e local e suas respectivas fontes de emissão. Na seção 3, são apre- sentadas as principais opções de políticas locais e investigados seus principais be- nefícios direcionados ao clima e às cidades. A seção 4 resume e conclui o trabalho. 2 RELAÇÃO ENTRE POLUIÇÃO ATMOSFÉRICA GLOBAL, REGIONAL E LOCAL Brink apud AAE (2004a) sintetiza os diferentes aspectos do problema e subdivide as inter-relações entre poluição do ar – local e regional – e mudança climática em quatro categorias, quais sejam: 1. Emissões de poluentes que podem agravar a poluição e contribuir para reduzir o problema da mudança do clima: este é o caso, por exemplo, do dióxido de enxofre (SO2), que contribui para a acidificação, mas que compensa parcialmente o efeito estufa pelo aumento dos aerossóis de sulfato na atmosfera. 2. Consequências da mudança climática na poluição do ar e vice-versa e no volume de emissões: neste caso, a relação entre a poluição do ar e a mudança climática se dá quando esta altera os padrões de transpor- te atmosférico de poluentes do ar e a sensibilidade dos ecossistemas à deposição ácida. Há ainda o efeito da acidificação e da deposição de 61Complementaridade entre Políticas de Combate ao Aquecimento Global... é classificado como secundário, como é o caso da formação de ozônio troposféri- co8 (HARRISON, 1996). Ressalte-se que as inter-relações físico-químicas que ocorrem na atmosfera entre os gases de poluição local e regional e os GEE dependem, entre outros fato- res, da presença de outras substâncias também presentes na atmosfera. No que se refere ao problemas causados pelos gases e pelas substâncias an- teriormente mencionados, observa-se que os GEE têm impacto primordial no clima, ou seja, impacto indireto nos seres vivos, enquanto os poluentes conven- cionais têm impacto direto. O quadro 1 permite que se identique os principais poluentes de fontes comuns e seus efeitos adversos. QUADRO 1 Principais fontes de poluentes atmosféricos e seus impactos Poluente Fontes principais Efeitos gerais sobre a saúde Efeitos gerais ao meio ambiente CO2 Queima de combustíveis fósseis e biomassa não renovável por indústrias, veículos etc. Aumento do efeito estufa CH4 Produção e distribuição de gás natural e petróleo, ou como subproduto da mineração do carvão, da queima incompleta dos combustíveis e da decomposição anaeróbica de matéria orgânica Aumento do efeito estufa N2O Produção de ácido adípico, fertiliza- ção de solos agrícolas e combustão Aumento do efeito estufa Partículas totais em suspensão (PTS) Processos industriais, veículos motorizados (exaustão), poeira de rua ressuspensa e queima de biomassa Quanto menor o tamanho da partícula, maior o efeito dano- so à saúde, principalmente em pessoas com doença pulmonar, asma e bronquite Danos à vegetação (natural e cultivos), deterioração da visibili- dade e contaminação do solo MP10 e fumaça Processos de combustão (indústria e veículos automotores) e aerossol secundário (formado na atmosfera) Aumento de atendimen- tos hospitalares e mortes prematuras SOx Queima de óleo combustível, refi- naria de petróleo, veículos a diesel e produção de polpa e papel Desconforto na respiração, doenças respiratórias, agrava- mento de doenças respiratórias e cardiovasculares existentes. Pessoas com asma, doenças crônicas de coração e pulmão são mais sensíveis ao SO2 Pode levar à formação de chuva ácida, causar corrosão aos materiais e danos à vegetação. Por outro lado, contribui para a redução do efeito estufa NOx Processos de combustão envolven- do veículos automotores – inclusive etanol e biodiesel –, processos industriais, usinas térmicas que utilizam óleo ou gás e incinerações Aumento da sensibilidade à asma e à bronquite e redução da resistência às infecções respiratórias Pode levar a formação de chuva ácida e causar danos à vegetação 8. Produto da reação de gases precursores na presença da luz. Os precursores de ozônio são uma classe de compostos orgânicos que combinados com óxidos de nitrogênio e raios ultravioleta formam ozônio. Os sistemans de informações aerométricas da Agência de Proteção Ambiental (EPA) contabilizam as emissões de 56 destes compostos. (Continua) Mudança do Clima no Brasil: aspectos econômicos, sociais e regulatórios62 Poluente Fontes principais Efeitos gerais sobre a saúde Efeitos gerais ao meio ambiente CO Combustão incompleta em veículos automotores – inclusive etanol e biodiesel Altos níveis de CO estão associados à redução da visão e dos reflexos bem como da capacidade de estimar interva- los de tempo, de aprendizado e de realizar trabalhos. O3 Não é emitido diretamente à atmosfera. É produzido fotoquimi- camente pela radiação solar sobre óxidos de nitrogênio e compostos orgânicos voláteis Irritação nos olhos e vias respiratórias, diminuição da capacidade pulmonar. Expo- sição a altas concentrações pode resultar em sensações de aperto no peito, tosse e chiado na respiração Danos à vegetação COV Grande número de compostos de carbono que são voláteis, como solventes, combustíveis etc.; e reagem para formar ozônio Alguns COV são cancerígenos, causam problemas respirató- rios, entre outros Fontes: CETESB (2005) para poluentes locais e IPCC (2001b) para poluentes globais. Assim, torna-se fundamental focar em medidas que possam trazer uma si- nergia positiva entre políticas que contribuam para a redução das emissões de GEE ao mesmo tempo em que contribuam para melhorar as condições locais de poluição,9 conforme seção 3 a seguir. 3 PRINCIPAIS OPÇÕES PARA MITIGAÇÃO DE EMISSÕES DE GEE NAS CIDADES E MELHORIA DA QUALIDADE AMBIENTAL LOCAL Para capturar as sinergias positivas analisadas na seção 2, as cidades precisam considerar em suas políticas e projetos os impactos que trarão tanto ao meio ambiente local quanto ao global, de modo a garantir que as opções tragam bene- fícios para ambos. Neste sentido, as cidades dispõem de inúmeras oportunidades para reduzir as emissões de GEE quando implementam uma série de ações em benefício local destinadas ao gerenciamento de resíduos, ao uso do solo, ao uso de transporte, entre outras atribuições de sua responsabilidade. Da mesma forma, ao executar ações para reduzir emissões de GEE, podem obter grande melhoria na qualidade de vida da população.10 Uma análise das principais opções é apresentada a seguir.11 9. Políticas climáticas para estabilização da concentração de GEE na atmosfera podem resultar em custos de abati- mento de emissões de gases que causam poluição local e regional, como SO2 e NOx. De acordo com Van Vuuren et al. (2006), os custos de mitigação destes dois poluentes locais podem ser reduzidos entre € 2,5 bilhões e € 7 bilhões somente com o alcance das metas do Protocolo de Quioto. 10. Em função das consequências das interações entre poluentes, sejam locais ou globais, as cidades com altos índices de poluição devem analisar as opções de investimento aqui sugeridas que apresentam maior ou menor grau de emis- sões de determinados poluentes, em função das especificidades de suas bacias aéreas, vis-à-vis a carga já exitente de poluição e os níves de poluição que se pretende alcançar. 11. Estas não esgotam o universo das opções existentes. (Continuação) 63Complementaridade entre Políticas de Combate ao Aquecimento Global... 3.1 Energia 3.1.1 Uso de gás de lixo e de estações de tratamento de esgoto (ETE) A necessidade de se dar um destino adequado aos resíduos no Brasil é urgente. Os resíduos dispostos a céu aberto ou em lixões, rios, lagoas e toda sorte de lu- gares inapropriados é uma questão de saúde pública. Os níveis de poluição do ar e dos recursos hídricos e, ainda, a quantidade de vetores que se multiplicam em função dos resíduos mal dispostos faz que os investimentos neste setor tragam incalculáveis benefícios à população e ao meio ambiente. Segundo Dubeux et al. (2005, p. 148), “o aterro sanitário é atualmente o mé- todo de destinação do lixo mais adequado para a grande maioria dos municípios brasileiros”. Isto porque tem baixo custo de investimento e operação, principalmente em áreas onde o custo de oportunidade dos terrenos é baixo. Há, ainda, a opção de se utilizarem biodigestores anaeróbicos, tanto para sólidos quanto para esgotos, quando altos custos de terreno exigem o uso de áreas menores. E, neste caso, o reator anaeróbico de fluxo ascendente é uma das opções que requer menor área por volume tratado (CETESB, 1988) e, portanto, adequada aos grandes centros urbanos. Como o biogás de lixo gerado pelas opções citadas contém cerca de 50% de CH4 e no caso de esgotos, 76%, sendo este gás um poderoso GEE, investimentos em saneamento podem resultar em aumento de emissões que impactam o clima. Para que isto não ocorra, podem ser instalados queimadores de gás (flares) de grande eficiência. Entretanto, se, em vez de queimado, o gás capturado for usado como fonte de energia, por ser de origem renovável, irá substituir fontes de ener- gia fóssil, contribuindo para a mitigação de emissões de GEE. O gás gerado pode ser utilizado na geração de eletricidade, conforme item 3.1.6, ou diretamente como combustível para abastecer motores ciclo Otto, caldeiras ou mesmo para injeção em gasodutos. Neste caso, há duas opções: • Uso direto do gás de médio Btu (mais simples e normalmente de maior custo-efetividade) em caldeiras e em processos industriais, por exemplo, operações de secagem, operações em fornos, produção de cimento e asfalto. Nestes projetos, o gás é transportado por gasoduto diretamente para um consumidor próximo. • Depuração do biogás para um produto de alto Btu para injeção em um gasoduto. Devido ao alto custo de capital, esta opção somente terá custo-efetividade para aterros sanitários com substancial recuperação de gás. Há ainda a opção de utilização de gás de alto Btu em veículos ciclo Otto, principalmente em frotas cativas, o que, dependendo da proximidade do local de geração do gás dos centros de abastecimento, dispensa gasoduto. Mudança do Clima no Brasil: aspectos econômicos, sociais e regulatórios66 No Brasil, onde há grande incidência de energia luminosa, sua utilização é viável em praticamente todo o território e pode contribuir para reduzir a deman- da energética de lugares remotos, principalmente. Entretanto, as formas de armazenamento da energia solar são pouco eficien- tes quando comparadas, por exemplo, às de combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás), energia hidrelétrica (água) e biomassa (bagaço da cana), o que remete à necessidade de substituição periódica de baterias com metais pesados e de descar- te problemático. 3.1.5 Uso de energia elétrica em substituição a combustíveis O uso de eletricidade nas regiões abastecidas pelo sistema interligado tem impac- tos climáticos bem inferiores aos demais países por ser de base hídrica. Assim, a substituição de modais de transporte a combustíveis fósseis por modais elétricos apresenta alto potencial de redução de GEE e de poluentes locais nos municípios abastecidos por energia do grid. Nestes municípios, projetos de substituição de frotas de ônibus a combustíveis fósseis por ônibus tipo trólebus ou metrô se apre- sentam como opções bastante promissoras. No que se refere ao metrô, este modal se constitui em poderoso aliado no combate à poluição urbana. Tome-se o exemplo de São Paulo. De acordo com La Rovere et al. (2006a, p. 32) (...) a melhoria ou a expansão das linhas do metrô provocará uma reorganização do número de passageiros por modal de transporte. No caso dos veículos leves, as esti- mativas indicam uma economia de gasool por passageiros que trocariam o seu carro particular, pouco eficiente, pelo metrô. Dados do Metrô de São Paulo indicam que em 2011, quando a rede Consolidada estiver totalmente pronta, serão consumidos 84.600 m3 a menos de gasool pelos veículos leves (...) Em 2025, quando a rede Essencial estiver pronta, a economia será de 208.500 m3. No que tange a trólebus, apesar de ser uma opção em desuso, merece uma reflexão a análise de Branco (2007, p. 7): (...) a melhor opção para o transporte coletivo por ônibus é o troleibus, pois sua eficiência energética é superior a 80%, o dobro do que se consegue com qualquer motor de combustão, e a sua emissão é nula no ambiente urbano. Especialmente nos corredores onde a demanda é grande, este veículo é mais adequado e economi- camente viável ao mesmo tempo. Por uma série de razões burocráticas, de sobre- tarifação da energia elétrica nos horários de pico e atribuição de responsabilidades pela manutenção da rede elétrica, o trólebus vêm sendo eliminados e as cidades prejudicadas pela sua substituição por alternativas poluidoras. 67Complementaridade entre Políticas de Combate ao Aquecimento Global... 3.1.6 Uso de energia elétrica de fonte renovável A energia elétrica do grid contém certo conteúdo de carbono devido às térmicas que a ele se conectam. Estas térmicas, geralmente a gás natural ou carvão, emi- tem GEE e poluentes locais. Mesmo em comunidades isoladas, a geração elétrica produz poluentes locais e globais pelo uso de pequenos geradores, normalmente a diesel. Assim, projetos que substituam energia elétrica gerada de forma con- vencional resultam em redução de emissões com benefícios locais e global. Este é o caso de geradores eólicos, painéis solares e pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), além de energia gerada por meio da biomassa de lixo ou de sua queima controlada, evitando contaminação ambiental por resíduos. As seguintes energias alternativas merecem destaque: • Energia eólica: esta tecnologia está cada vez mais disponível no Brasil. O potencial está mais bem concentrado na costa da região Nordeste e em menor escala na costa das regiões Sul e Sudeste. Existem alguns lo- cais afastados da costa principalmente na Bahia, em Minas Gerais e no Paraná que possuem boa velocidade de ventos. • Energia fotovoltaica: o Brasil apresenta uma das melhores condições para o uso da energia solar, com uma das maiores médias de radiação mun- dial (em torno de 230 Wh/m2), sendo a maior incidência no Nordeste (260 Wh/m2) de acordo com Costa e La Rovere (2005). • Pequenas centrais hidrelétricas: a construção de pequenas e microcentrais (PCH e MCH, respectivamente) se apresenta como uma opção à gera- ção convencional basicamente em localidades isoladas, evitando o uso de geradores que poluem local e globalmente. Além de não consumir combustíveis na sua geração, não apresenta formação de metano como nos grandes lagos tradicionais de geração hidráulica. • Geração de energia com metano de biogás: o uso mais tradicional do biogás é como combustível para a geração de energia, com a venda da eletricidade para um consumidor próximo. A cogeração de eletricidade e energia tér- mica (vapor) pode ser uma alternativa ainda melhor, com o vapor sendo usado localmente para aquecimento, refrigeração e para outras necessi- dades de processo, ou ainda transportado por tubo para uma indústria ou comércio próximo, obtendo um segundo rendimento para o projeto. Existem várias tecnologias para a geração de energia: motores de com- bustão interna, turbinas de combustão e turbinas com utilização do vapor (ciclo combinado). Em um futuro bem próximo, outras tecno- logias como células combustíveis tornar-se-ão comercialmente viáveis e poderão utilizar o biogás. Mudança do Clima no Brasil: aspectos econômicos, sociais e regulatórios68 • Tecnologia da incineração controlada do lixo: no Brasil, atualmente, a incineração é utilizada somente para resolver o problema da disposição final de resíduos perigosos e parte dos resíduos hospitalares, diferente- mente do que ocorre nos países desenvolvidos.14 Portanto, os benefícios locais da incineração estão garantidos. Entretanto, esta tecnologia é mais bem aproveitada quando há recuperação de gases de escape de processo que normalmente atingem mais de 1.000oC e são encaminhados para uma caldeira de recuperação de calor, onde se produz vapor para movimentar uma turbina e gerar eletricidade. No entanto, essa tecnologia utilizada atualmente no país não faz uso do aproveitamento energético. Seriam necessários alguns aprimoramentos tecnológicos para permitir esse aproveitamento de forma economicamente viável e ambientalmente correta (OLIVEIRA, 2004). Algumas iniciativas nesse sentido estão sendo implementadas em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, em Vitória, no Espírito Santo, e no Rio de Janeiro – como é o caso da Usina Verde na Ilha do Fundão. No que se refere aos impactos locais, (...) no processo de incineração os gases e substâncias formados durante a combus- tão são purificados antes de serem lançados na atmosfera. Os óxidos nitrogenados (NOx) e o monóxido de carbono (CO) são produzidos em qualquer combustão. Através de um controle da queima e de um sistema de tratamento dos gases que saem das câmaras de combustão é possível reduzir essas emissões a valores tecnica- mente toleráveis (ROSA et al., 2003 apud OLIVEIRA, 2004, p. 78). A probabilidade de formação de moléculas com grande número de átomos como dioxinas e furanos,15 compostos altamente nocivos aos seres humanos, é praticamente zero, apesar dos gases resultantes necessitarem de algum tratamento. 3.1.7 Aumento da eficiência no uso da energia Quanto menor o consumo de energia para um mesmo nível de serviço ou quan- tidade de produto, menores as emissões de toda sorte. Assim, as estratégias para redução das emissões relacionadas ao uso de energia não estão restritas apenas à mudança de combustíveis, mas principalmente ao uso cada vez mais eficiente da energia, qualquer que seja sua fonte. Para este fim, há uma série de opções como as principais apresentadas a seguir: 14. Dados recentes falam na incineração de cerca de 100% do lixo municipal do Japão, por exemplo. 15. As dioxinas e os furanos são uma classe de hidrocarbonetos clorados produzidos involuntariamente em uma série de processos químicos, térmicos e biológicos. Essas substâncias estão entre as mais cancerígenas conhecidas, repre- sentando um risco muito grande à saúde e ao meio ambiente. Por isso, esses elementos estão listados na Convenção de Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos Persistentes e precisam ser medidos, monitorados e reduzidos drasticamente para eliminar os riscos à população. 71Complementaridade entre Políticas de Combate ao Aquecimento Global... • Taxa de congestionamento: é uma forma de gestão da demanda que visa reduzir as viagens de veículos de passageiros ou de carga em áreas urba- nas congestionadas, a fim de aumentar a eficiência e reduzir as emissões em marcha lenta. A taxa nas cidades pode ser utilizada como instru- mento de redução de congestionamento, mas também é uma medida eficiente para reduzir outras externalidades, notadamente a poluição do ar, mas também a poluição sonora, os acidentes e as emissões de GEE. Funciona melhor quando aplicada em paralelo com outras medidas, tais como melhorias nos transportes públicos e provisões para ciclistas e pedestres. Tecnicamente, a aplicação conjunta de aumento de preços de transporte individual e de investimentos em transporte público e em ciclovias produz sinergias por meio da elasticidade da demanda redu- zida, diminuindo os custos de oportunidade para motoristas e aumen- tando os ganhos de bem-estar público. Comunicação e envolvimento dos principais intervenientes são vitais para o sucesso desta medida, que deve ser submetida a consultas públicas de forma eficaz para elevar o nível de sensibilização e apoio (RIBEIRO et al., no prelo). • Uso de materiais de construção menos carbono intensivos: a constru- ção de casas tem impactos atmosféricos devido ao uso de diferentes tipos de materiais, os quais são produzidos em vários setores indus- triais poluidores. Para estimar o consumo de energia e de emissões de GEE, é necessário quantificar o total de bens e serviços que são usados direta e indiretamente na construção civil. No Japão, a cons- trução de residências, por exemplo, consumiu em 1985 416.000 te- rajoule (TJ) de energia, correspondendo a aproximadamente 4% do consumo energético total. Em termos de CO2, tal consumo energé- tico resulta em emissões de 850 kg/m2 para construções que contêm aço e concreto reforçado (prédios), 250 kg/m2 para casas de madeira e 400 kg/m2 para casas em alvenaria unifamiliares (SUZUKI; OKA; OKADA, 1995). Portanto, diferentes opções de moradia irão emitir quantidades distintas de CO2 e de poluentes locais. No que se refere às emissões decorrentes do uso de moradia, Hens, Verbeeck e Everdonck (2001) estimam que na Bélgica novas residências que incorporem energias alternativas poderiam alcançar reduções de 75% no consumo energético até 2012, relativamente às emissões residenciais de 1990. Assim, opções de materiais menos impactantes podem ser fomentadas pelo poder público ou adotadas diretamente em seus próprios. • Uso de equipamentos menos energo intensivos: estas opções de mitigação são inúmeras. Em termos gerais, as mais promissoras são o uso de lâmpadas e Mudança do Clima no Brasil: aspectos econômicos, sociais e regulatórios72 luminárias de grande eficiência luminosa e o uso de sistemas de refrigera- ção natural em substituição aos equipamentos elétricos. • Planejamento do uso do solo: outro aspecto da gestão municipal a ser observado se refere aos padrões de uso do solo. O planejamento do uso do solo e do desenvolvimento urbano pode contribuir para a re- dução das emissões de GEE por várias razões. Quanto mais espraiada a cidade, maiores os percursos a serem realizados cotidianamente pelos trabalhadores entre suas residências e seus postos de trabalho. O mes- mo pode ser observado com relação à localização dos serviços urbanos, como educação, hospitais, áreas de lazer, áreas comerciais etc. Ou seja, quanto menor a necessidade de deslocamento pela população, menor o consumo energético e menores as emissões de poluentes. • Reciclagem: o aproveitamento de materiais recicláveis como insumo pelas indústrias ou ainda nos setores comercial, residencial e público representa, também, redução no consumo de energia, denominada con- servação de energia, em virtude de evitar a transformação dos recursos naturais em bens intermediários (polpa de celulose, lingotes de metais, resina plástica e insumos do vidro) a serem utilizados na obtenção de produtos. O fomento a estas práticas pode resultar em consideráveis ganhos com economia de energia e consequente redução das emissões de GEE (OLIVEIRA; ROSA, 2003) e outros gases poluentes. 3.1.8 Sequestro de carbono por vegetação As cidades, por intermédio de programas de reflorestamento, podem recompor áreas degradadas, com o propósito de ajudar a reconstituir os ecossistemas origi- nais, revertendo o processo de desmatamento e melhorando as condições socioe- conômicas dos assentamentos humanos de baixa renda em áreas de periferia das cidades ou em áreas verdes e, com isso, sequestrando carbono da atmosfera. Esse tipo de iniciativa traz muitas melhorias ao ambiente geral da cidade. A arborização – entendida como reflorestamento ou florestamento – exerce papel de vital importância para a qualidade de vida nos centros urbanos. Por suas múl- tiplas funções, os parques atuam diretamente sobre o clima, a qualidade do ar, o nível de ruídos e a paisagem, além de constituir refúgio indispensável à fauna remanescente nas cidades. Segundo alguns estudos, por meio da redução da incidência direta da ener- gia solar e do aumento da umidade relativa do ar, a arborização pode contribuir para a redução de até 4ºC de temperatura, contribuindo decisivamente para ate- nuação das chamadas ilhas de calor, áreas de ocorrência das temperaturas mais elevadas durante o dia, especialmente nas zonas de maior poluição do ar. 73Complementaridade entre Políticas de Combate ao Aquecimento Global... Ainda com respeito à poluição, pode-se dizer que a retenção de poluentes, o consumo do gás carbônico e a produção de oxigênio contribuem para a melhoria da qualidade do ar. Além disso, as cortinas vegetais são capazes de diminuir em cerca de 10% o teor de poeira e obstruir a propagação do som, resultando na redução do nível de ruído. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Pela correlação existente entre poluentes de diversas escalas de alcance, mesmo ainda sem se ter plenamente conhecimento científico a respeito do tema, as polí- ticas públicas devem buscar explorar as já conhecidas sinergias positivas existentes entre eles para maximizar os benefícios que podem resultar de uma ação concer- tada, bem como evitar trade-offs negativos que podem surgir da não observância destas interações. Nessa perspectiva, existem inúmeras oportunidades a ser exploradas pelas ci- dades que podem simultaneamente contribuir para reduzir o problema do clima global e para o aumento do bem-estar dos seus cidadãos. Isto porque as emissões de diferentes gases e partículas que são importantes local, regional e globalmente estão geralmente correlacionadas no próprio processo de sua geração, sendo que o princi- pal deles é a queima de combustíveis fósseis e de biomassa. Além disso, investimen- tos em saneamento básico, florestamento e aqueles que requerem planejamento do uso do solo também podem contribuir simultaneamente para o clima e as cidades. Por outro ângulo, as negociações em curso no âmbito da Convenção-Qua- dro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima17 (CQNUMC) podem levar à necessidade de comprometimento futuro das cidades, de modo a que sejam instaladas a reduzir suas emissões de GEE. Pelo exposto, permite-se concluir que ações de mitigação de emissões podem não ser tidas como custos a ser impostos aos cidadãos, pois com um planejamento abrangente tornam-se uma oportuni- dade de melhoria da qualidade de vida. Além disso, se considerarmos a existência de um mercado de carbono, eventuais financiamentos em redução de emissões de GEE podem beneficiar as cidades em última instância. Da mesma forma, podemos fazer que os investimentos em benefícios locais se tornem uma oportunidade de colaboração com o clima global. Por essas razões, muitas políticas governamentais nas regiões mais desenvol- vidas do globo vêm sendo concebidas e implementadas para reduzir o problema. No Brasil, ainda há de se unir política de clima com as demais, de modo a se explorar as sinergias possíveis e maximizar o bem-estar social. Algumas possibili- dades no que se refere às cidades foram exploradas neste texto. 17. United Nations Framework Convention on Climate Change (UNFCCC). CAPÍTULO 4 INVENTÁRIO BRASILEIRO DE EMISSÕES ANTRÓPICAS POR FONTES E REMOÇÕES POR SUMIDOUROS DE GASES DE EFEITO ESTUFA NÃO CONTROLADOS PELO PROTOCOLO DE MONTREAL Ana Carolina Avzaradel* 1 INTRODUÇÃO O Brasil é signatário da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (CQNUMC) e tem como um de seus principais compromissos, assu- midos no âmbito da convenção, o desenvolvimento e a atualização periódica de inventários nacionais de emissões antrópicas por fontes e remoções por sumidou- ros de gases de efeito estufa (GEE) não controlados pelo Protocolo de Montreal. No caso de países em desenvolvimento, a submissão do inventário deve ser acom- panhada de outro conjunto de informações referentes às circunstâncias nacionais e uma descrição geral das providências tomadas pelo país para implementar a convenção-quadro, compondo, assim, um documento denominado de comuni- cação nacional (BRASIL, 2010). O Inventário Brasileiro de Emissões Antrópicas por Fontes e Remoções por Sumidouros de Gases de Efeito Estufa não Controlados pelo Protocolo de Montreal é parte integrante da Segunda Comunicação Nacional do Brasil à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. A elaboração da comunicação nacional é de responsabilidade do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), de acordo com a divisão de tarefas no governo, acordada em 1992. Contudo, a execução dos trabalhos é realizada de forma descentralizada, envolvendo grande número de instituições de excelência no país. O inventário apresenta estimativa das emissões de gases de efeito estufa, co- brindo todo o território nacional e todos os setores da economia, para o período de 1990 a 2005. A organização do trabalho, bem como as metodologias adotadas1 * Consultora sênior da ICF International. 1. Foram utilizados os seguintes documentos: Revised 1996 IPCC Guidelines for National Greenhouse Gas Inventories (IPCC; OCDE; AIE, 1997) e Good Practice Guidance and Uncertainty Management in National Greenhouse Gas Invento- ries (IPCC; OCDE; AIE, 2000), cuja adoção é encorajada, porém não obrigatória, assim como no caso do Good Practice Guidance for Land Use, Land Use Change and Forestry (IPCC; OCDE; AIE, 2003). Em alguns casos, julgou-se necessário recorrer ao Guidelines for National Greenhouse Gas Inventories (IPCC; OCDE; AIE, 2006), cuja utilização deve ser justi- ficada, tendo em vista que ainda não foi formalmente adotada nem mesmo para os países desenvolvidos – chamados de Anexo I no jargão da Convenção-Quadro. Mudança do Clima no Brasil: aspectos econômicos, sociais e regulatórios78 para os cálculos, segue as diretrizes do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (Intergovernmental Panel on Climate Change – IPCC), sendo classifi- cada de acordo com os seguintes setores: energia, processos industriais, uso de sol- ventes e outros produtos, agropecuária, mudança do uso da terra e florestas − da sigla em inglês, Land Use Change and Forest (LUCF) − e tratamento de resíduos. A seção 2 apresenta o processo de elaboração do inventário e os principais avan- ços alcançados em comparação com o trabalho realizado no Primeiro Inventário de Emissões e Remoções Antrópicas de Gases de Efeito Estufa não Controlados pelo Protocolo de Montreal, publicado em 2004. A seção 3 apresenta os principais resultados do inventário e analisa as emissões antrópicas brasileiras. Na seção 4, o perfil brasileiro de emissões antrópicas se contrapõe àquele que é apresentado por países desenvolvidos. A seção 5 conclui o capítulo, com uma discussão sobre as perspectivas para o próxi- mo inventário nacional. 2 INVENTÁRIO BRASILEIRO O inventário nacional é resultado de um esforço liderado pelo MCT, cuja execu- ção conta com a participação de instituições especializadas nas mais diversas áreas. Para cada um dos setores do inventário, foi estabelecido um contrato ou uma parceria com instituições,2 desenvolvendo os trabalhos de forma descentralizada, o que trouxe grandes benefícios para o trabalho de coleta e obtenção de dados. O primeiro inventário nacional foi entregue em dezembro de 2004 e cobriu o período de 1990 a 1994. O segundo inventário nacional, ao se estender de 1990 a 2005, recalcula as emissões estimadas para o período de 1990 a 1994, de modo a manter consistência na série temporal apresentada, e vai além do ano de referência 2000, estipulado para o segundo inventário de países em desenvolvi- mento. A experiência do primeiro inventário serviu como ponto de partida para o segundo e desde então muito se avançou. O conjunto de informações e o número de instituições, bem como o de autores, colaboradores e revisores superou muito o utilizado no primeiro inventário. A base de dados se ampliou e a qualidade destes foi aprimorada. 2. No caso do setor de energia, que se subdivide em emissões devido à combustão e emissões fugitivas de petróleo, gás natural e mineração, foi contratada a organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP) e&e, para o pri- meiro caso, com apoio do Ministério de Minas e Energia (MME), e estabelecida uma parceria com a Petróleo Brasileiro S/A (Petrobras) e contrato com a Associação Brasileira do Carvão Mineral (ABCM), para o segundo. Para o setor de tra- tamento de resíduos, foi estabelecido contrato com a Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (CETESB), responsável pelas estimativas referentes a resíduos sólidos, efluentes e incineração. O setor de agropecuária teve o apoio da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e o de Processos Industriais contou com diversas instituições, entre estas: Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim), Associação Brasileira do Alumínio (Abal), Sindicato Nacional da Indústria do Cimento (SNIC), Instituto Aço Brasil (IABr) e Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). A Fundação da Ciência, Aplicações e Tecnologias Espaciais (Funcate) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) desenvolveram trabalhos para o setor de mudança do uso da terra e florestas. 79Inventário Brasileiro de Emissões Antrópicas por Fontes e Remoções por Sumidouros... Foi estabelecida uma Rede Nacional de Inventário de GEE do Setor de Resí- duos Sólidos Urbanos, Efluentes Industriais e Esgotos Domésticos, em conjunto com a CETESB, com o objetivo de disseminar o conhecimento sobre inventários do setor de tratamento de resíduos, envolver maior número de especialistas na elaboração do trabalho e melhorar a qualidade da informação e dos dados utili- zados no inventário. Esta foi uma iniciativa piloto que pode ser estendida para outros setores do inventário, como o de processos industriais e o de agropecuária. A rede foi bem-sucedida ao estabelecer instrumento de troca de informações entre seus membros e promover o lançamento de inventários estaduais para o setor de tratamento de resíduos em diversos estados do país. Também foi possível contar com os projetos de mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL) como fonte de dados na elaboração do inventário. No caso do setor de tratamento de resíduos, foram utilizadas informações contidas nos relatórios de monitoramento de atividades de projeto de MDL em aterros sanitários, para os quais foram emitidas reduções certificadas de emissão (RCEs), de modo a abater a recupe- ração do metano dos cálculos de 2003 em diante. Em 2005, ano em que os projetos de MDL eram ainda incipientes, contabilizou-se para este setor um abatimento de 62,5 GgCH4 (BRASIL, 2011a). Seguramente, o impacto a ser observado no próximo inventário do abatimento das emissões devido aos projetos de MDL, neste e em outros setores tratados, será muito maior. O setor de mudança do uso da terra e florestas é o principal emissor líquido de dióxido de carbono (CO2) no país e, por este motivo, concentrou grande parte dos esforços empreendidos no inventário, o que motivou a adoção da metodologia do Good Practice Guidance 2003, embora seu uso não seja de caráter obrigatório, e abordagem de maior complexidade e detalhamento. Como decorrência, as emis- sões e remoções de CO2 que no primeiro inventário foram calculadas apenas para as mudanças do uso da terra referentes à Conversão de Florestas para Outros Usos e Abandono de Terras Cultivadas tiveram seu escopo ampliado. As estimativas de emissões antrópicas e remoções por sumidouros para este setor foram efetuadas para 1994 e 2002, tendo sido extrapoladas para compor a série completa do inventário de 1990 a 2005. Foram utilizadas 429 imagens de satélite, cobrindo todo o territó- rio nacional − sendo 198 para a Amazônia e 118 para o Cerrado −, o que também representa importante avanço em relação ao primeiro inventário. No total, foram identificados 7.581.333 polígonos, sendo mais de 50% referentes ao bioma Ama- zônia. Cada polígono reúne informações referentes a bioma, limites municipais, fisionomia vegetal, tipo de solo e uso da terra para 1994 e 2002. Neste inventário, foi feito um esforço para melhorar as informações para os parâmetros utilizados, a exemplo dos valores de estoque de carbono nas fisionomias vegetais, e incluído nas estimativas o estoque de carbono nas raízes, com impacto direto nos resultados, tornando-os mais elevados do que os do primeiro inventário (BRASIL, 2011b). Mudança do Clima no Brasil: aspectos econômicos, sociais e regulatórios82 do país. Em segundo lugar está o setor de energia, que apresenta aumento das emis- sões de CO2 de 74,3% no período inventariado, impulsionado pelos subsetores da indústria e do transporte. Em particular, as emissões de CO2 do modal rodoviário cresceram 72,1% entre 1990 e 2005, representando quase 40% das emissões do setor em 2005. A contribuição das emissões fugitivas para a totalidade das emissões de CO2 é de apenas 0,8% em 2005, observando-se redução de cerca de 30% das emissões provenientes da mineração. No que se refere ao setor de processos indus- triais, a maior parcela das emissões de CO2 está atrelada ao subsetor de ferro-gusa e aço, cujas emissões aumentaram 54,6% entre 1990 e 2005. Vale lembrar que, con- forme mencionado na seção 2, parte desse aumento observado se deve à realocação das emissões de ferro-gusa e aço que anteriormente eram informadas no setor de energia. As emissões do setor de tratamento de resíduos pouco contribuem para o total das emissões líquidas de CO2 (BRASIL, 2010). Em relação ao metano (CH4), o setor que mais emite é o de agropecuária, responsável por 70,5% das emissões em 2005. Estima-se que 53,9% das emissões do país resultaram da fermentação entérica do gado de corte brasileiro. O manejo de dejetos de animais, em que prevalece o gado suíno e o gado de corte bovino, contribui em menor proporção para as emissões de CH4. Em seguida, tem-se o setor de mudança do uso da terra e florestas, que responde por 16,8% das emissões em 2005, e o setor de tratamento de resíduos, com 9,6% das emissões, com desta- que para a disposição de resíduos sólidos e para o tratamento de efluentes líquidos domésticos. O setor de energia é responsável por apenas 3% das emissões de CH4. Predominam as emissões do subsetor energético, em particular, as das carvoarias − para a produção de carvão vegetal −, cuja participação no total de emissões quase se equivale à das emissões fugitivas da extração e produção de petróleo. As emissões de metano do setor de processos industriais derivam da indústria química e são pouco relevantes frente ao total de emissões no país (BRASIL, 2010). A agropecuária também responde pela maior parcela das emissões de óxido nitroso (N2O). As emissões diretas, especialmente as que resultam dos dejetos de animais em pastagem, e as indiretas dos solos agrícolas representam, somadas, apro- ximadamente 85% das emissões totais do país. O segundo setor que mais emite N2O no Brasil representa somente 4,2% do total de emissões. É o caso da produção de ácido nítrico e ácido adípico que, com outras produções da indústria química, respondem pelas emissões do setor de processos industriais. Em sequência, têm-se os setores de mudança do uso da terra e florestas, com 3,8% das emissões totais de N2O, tratamento de resíduos (2,6%), devido aos efluentes domésticos, e energia (2,2%), em função dos subsetores da indústria e de transportes (BRASIL, 2010). A emissão de gases de efeito estufa designados como hidrocarbonetos par- cialmente fluorinados, ou hidrofluorcarbonos (HFCs), assim como os hidrocar- bonetos perfluorinados, ou perfluorcarbonos (PFCs), está associada ao setor de 83Inventário Brasileiro de Emissões Antrópicas por Fontes e Remoções por Sumidouros... processos industriais. O único desses gases produzido no Brasil foi o HFC-23, subproduto da produção do HCFC-22, encerrada no país em 1999, quando a emissão registrou 0,09716 Gg. Não obstante, os HFCs e PFCs foram adota- dos nos segmentos de refrigeração e ar-condicionado, aerossóis e extintores de incêndio e proteção contra explosões, em substituição às substâncias com po- tencial de destruição da camada de ozônio (BRASIL, 2011f ). No caso do hexa- fluoreto de enxofre (SF6), as emissões derivam da produção de magnésio, além do próprio uso dos HFCs, PFCs e SF6. Perfluormetano (CF4) e perfluoretano (C2F6) são gases originados na produção de alumínio, eventualmente, quando ocorre o efeito anódico. Para os demais gases, são consideradas as emissões po- tenciais pelo uso. Finalmente, têm-se os chamados gases de efeito estufa indireto: monóxido de carbono (CO), óxidos de nitrogênio (NOx) e compostos orgânicos voláteis não metânicos − da sigla em inglês, Non Methane Volatile Compounds (NMVOC). As emissões totais de CO cresceram 17,1% entre 1990 e 2005. Nesse ano, 64,4% das emissões resultaram do setor de mudança do uso da terra e florestas e 27,3% do setor de energia, com destaque para os subsetores residencial e de transportes. A agropecuária contribuiu com 6,8% das emissões, devido à queima de resíduos agrícolas, em particular, o da cana-de-açúcar. No setor de processos industriais, a produção de alumínio e outras produções participaram com 1,5% das emissões totais de CO (BRASIL, 2010). Em relação ao NOx, 70,2% das emissões estão concentradas no setor de energia, sendo quase 40% originadas no subsetor de transportes, sobretudo no modal rodoviário. Do restante das emissões, 22,3% se devem ao setor de mudan- ça do uso da terra e florestas, 7% ao setor de agropecuária, no que tange à queima de resíduos da cana-de-açúcar, e 0,5% ao setor de processos industriais. As emissões de NMVOC cresceram 27,1% no período inventariado. Os setores que mais se destacam em termos de aumento de emissões são o de processos industriais, que apresentou crescimento de mais de 85% entre 1990 e 2005, alcançando, nesse último ano, participação de 27,8% no total de emissões e o de uso de solventes e outros produtos, cujas emissões cresceram 70,2% no período analisado. O setor de energia participou em 2005 com 44,5% das emis- sões, apesar da retração de 6,2% de suas emissões desde 1990 (BRASIL, 2010). O somatório6 das emissões de diferentes gases só é possível mediante a conversão para uma unidade comum, denominada de CO2 equivalente. Entretanto, não há ainda consenso sobre a métrica mais apropriada para essa 6. As emissões que resultam da queima de combustíveis em atividades de transporte aéreo e marítimo internacional, denominadas bunker fuels, devem ser informadas no inventário; porém, não são contabilizadas no total de emissões do país e, por este motivo, não serão tratadas de forma detalhada neste trabalho. Mudança do Clima no Brasil: aspectos econômicos, sociais e regulatórios84 conversão. A discussão sobre a adequação das métricas adotadas na agregação de emissões é tratada no inventário e se insere no contexto das negociações multilaterais sobre mudança do clima. O governo brasileiro é contrário à ado- ção do potencial de aquecimento global − da sigla em inglês, Global Warming Potential (GWP) − em um horizonte temporal de 100 anos como métrica de conversão, por este não representar corretamente a contribuição dos diferen- tes gases para a mudança do clima, superestimando gases de período de vida curta na atmosfera − como o metano − e subestimando a contribuição dos ga- ses de período de vida prolongado − como os PFCs. Optou-se, portanto, por relatar no inventário as emissões por gás, em unidade de massa, e de forma transparente. O potencial de temperatura global (Global Temperature Poten- tial – GTP) se coloca como alternativa ao uso do GWP para medir o impacto que a emissão de diferentes gases tem sobre o clima. No caso do metano, que apresenta um GWP de 21,7 o GTP é de apenas 5 (SHINE et al., 2005 apud BRASIL, 2010). Dessa forma, a utilização do GWP leva projetos de MDL que reduzem emissões de metano a receberem créditos de carbono por uni- dade de metano reduzida em um volume muito superior ao que lhes é devido em termos de mitigação do aumento médio da temperatura na superfície terrestre, ou seja, atribui a esses projetos redução maior do que de fato ocorre. A contrapartida é que os países desenvolvidos que compram esses créditos com o objetivo de atingir sua meta de redução ou limitação de GEE estão na verdade adquirindo permissão para emitir que supera a redução ocorrida nos países em desenvolvimento. Com efeito, o resultado global é o aumento das emissões. A diferença da utilização das duas métricas fica evidente no gráfico 1. A evolução das emissões brasileiras no período de 1990 a 2005 é apresen- tada no gráfico 2. 7. De acordo com o Segundo Relatório de Avaliação do IPCC (Second Assessment Report) e recomendado na Decisão 17/CP.8. 87Inventário Brasileiro de Emissões Antrópicas por Fontes e Remoções por Sumidouros... análise dos setores e das categorias-chave.11 Além de orientar as áreas de conheci- mento que devem ser desenvolvidas, essa análise é útil para indicar os segmentos do inventário que devem ser tratados com prioridade, em termos de recursos, tempo e nível de complexidade metodológica. Os setores e as categorias que forem classifi- cados como chave devem ter suas emissões estimadas com maior nível de detalha- mento e, se possível, com fatores de emissão próprios para o país. Evidentemente, isso não significa que setores e subsetores do inventário que tenham menores contribuições para as emissões líquidas totais do país não deve- rão ser mais bem investigados. É o caso da navegação, por exemplo, cujas estima- tivas requerem minucioso tratamento dos dados que permita a desagregação do consumo de combustível em atividades nacionais e internacionais, a exemplo do que ocorre no transporte aéreo. Os resultados obtidos neste inventário no que se refere ao detalhamento da metodologia de cálculo das emissões do transporte aé- reo foram bastante satisfatórios e podem servir de base para se pensar como fazer trabalho semelhante para o transporte de navegação. Outra área que deve ser aprimorada e pode ser foco de novos estudos diz respeito ao desenvolvimento de fatores de emissão mais adequados às circunstân- cias nacionais. Algumas tentativas já foram feitas neste inventário, como no caso das estimativas das emissões de óxido nitroso de solos agrícolas e do subsetor de mineração e beneficiamento de carvão mineral, entre outros. Neste último caso, as pesquisas desenvolvidas indicaram fatores muito inferiores ao valor mínimo re- comendado nas diretrizes do IPCC, OCDE e AIE (1997), mas não foram robus- tas o suficiente para justificar a adoção de tais fatores. O resultado desses estudos, portanto, só pôde ser utilizado no inventário de forma qualitativa, justificando a opção pelo menor fator, entre aqueles sugeridos nas diretrizes. É preciso dar continuidade a estudos como este, trabalhando em conjunto com a academia para que se possa aprofundar o conhecimento em temas cujo desenvolvimento é de interesse nacional. Fica evidente que o esforço de obtenção de dados para a elaboração do inven- tário é enorme. Diversas estratégias foram implementadas para tentar contornar o problema, como o estabelecimento da Rede de Inventário para o Setor de Resídu- os Sólidos e Efluentes e a própria descentralização dos trabalhos que, ao envolver grande número de atores e instituições, amplia os esforços direcionados à melhoria da qualidade da informação disponível. Ainda assim, a execução do inventário de- pende em grande parte da capacidade de outras instituições de gerar fluxo contínuo de dados com boa qualidade. É imprescindível, portanto, que se estabeleça uma legislação capaz de regularizar o fornecimento de dados de modo que trabalhos de grande relevância para o país, como o do inventário, não sejam comprometidos. 11. Do inglês, key category analysis. Mudança do Clima no Brasil: aspectos econômicos, sociais e regulatórios88 REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Coordenação-Geral de Mudanças Globais de Clima. Segunda Comunicação Nacional do Brasil à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Brasília, 2010. 2 v. ________. Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Coordenação-Geral de Mudanças Globais de Clima. Relatório de Referência Emissões de Gases de Efeito Estufa no Tratamento e Disposição de Resíduos. Brasília, 2011a. 100 p. No prelo. ________. Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Coordenação-Geral de Mudanças Globais de Clima. Relatório de Referência Emissões de Gases de Efeito Estufa no Setor Uso da Terra, Mudança do Uso da Terra e Florestas: Emissões de CO2 pelo Uso da Terra, Mudança do Uso da Terra e Florestas. Bra- sília, 2011b. 102 p. No prelo. ________. Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Coordenação-Geral de Mudanças Globais de Clima. Relatório de Referência Emissões de Gases de Efeito Estufa nos Processos Industriais: Produtos Minerais (Parte II) – Produ- ção de Cal, Outros Usos do Calcário e Dolomita e Produção e Uso de Barrilha. Brasília, 2011c. 39 p. No prelo. ________. Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Coordenação-Geral de Mudanças Globais de Clima. Relatório de Referência Emissões de Óxido Nitroso de Solos Agrícolas e de Manejo de Dejetos. Brasília, 2011d. 106 p. No prelo. ________. Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Coordenação-Geral de Mudanças Globais de Clima. Relatório de Referência Emissões de Gases de Efeito Estufa no Setor Energia: Emissões de Gases de Efeito Estufa no Trans- porte Aéreo. Brasília, 2011e. 43 p. No prelo. ________. Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Coordenação-Geral de Mudanças Globais de Clima. Relatório de Referência Emissões de Gases de Efeito Estufa nos Processos Industriais: Emissões na Produção e no Consumo de HFCs e PFCs. Brasília, 2011f. 52 p. No prelo. CONVENÇÃO-QUADRO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE MUDANÇA DO CLIMA (CQNUMC). Subsidiary Body for Implementation. National greenhouse gas inventory data for the period 1990-2008. 2010. 29 p. Docu- mento FCCC/SBI/2010/18. PAINEL INTERGOVERMENTAL SOBRE MUDANÇAS CLIMÁTICAS (IPCC); ORGANIZAÇÃO PARA COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO 89Inventário Brasileiro de Emissões Antrópicas por Fontes e Remoções por Sumidouros... ECONÔMICO (OCDE); AGÊNCIA INTERNACIONAL DE ENERGIA (AIE). Revised 1996 IPCC Guidelines for National Greenhouse Gas Invento- ries. Bracknell, 1997. ________. Good Practice Guidance and Uncertainty Management in Na- tional Greenhouse Gas Inventories, 2000. ________. Good Practice Guidance for Land Use, Land Use Change and Forestry. Kanagawa, Japão: Institute for Global Environmental Strategies (IGES), 2003. ________. Guidelines for National Greenhouse Gas Inventories. EGG- LESTON, H. S.; BUENDIA, L.; MIWA, K.; NGARA, T.; TANABE, K. (Ed.). Kanagawa, Japão: Institute for Global Environmental Strategies (IGES), 2006. Preparado pelo National Greenhouse Gas Inventories Programme. 93Rompendo com o Trade-Off entre Combate à Pobreza e Mitigação do Efeito Estufa... Também, é claro que, além da diferença entre países, a contribuição indivi- dual, focando-se em dada nação, varia consideravelmente. Chakravarty et al. (2009) partem de dados sobre a distribuição de renda de um país e suas emissões de CO2 derivadas do consumo de combustíveis fósseis, a partir dos quais se estimam as contribuições individuais de seus habitantes para as emissões nacionais. Por fim, aplicam esta metodologia aos demais países para obter um panorama global das contribuições individuais no total emitido. Uma vez estabelecido um teto para as emissões futuras, é possível, então, identificar quem são e onde vivem os principais responsáveis pelo aquecimento global. Pode- -se também impor um piso para as emissões individuais de CO2 que atenda à satisfação das necessidades energéticas básicas da parcela mais pobre da popula- ção mundial. Fica demonstrado que apenas uma pequena parcela da população mundial, quase homogeneamente distribuída nas quatro regiões analisadas (Estados Uni- dos, países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE menos os Estados Unidos, China e países não membros da OCDE menos a China), é a principal responsável pelas emissões futuras. Quando se considera a erradicação da pobreza, tem-se que o aumento nas emissões de um terço da po- pulação mundial, os mais pobres, poderia ser contrabalançado pela redução nas emissões dos 16% mais ricos. Ananthapadmanabhan, Srinivas e Gopal (2007) levam o debate internacional sobre “justiça climática” para a Índia e mostram a urgente necessidade de aplicar o princípio das “responsabilidades comuns, mas diferenciadas” intranacionalmente. A partir da análise de dados primários de consumo de eletricidade e trans- porte de diferentes classes socioeconômicas da Índia, e de sua conversão em CO2 emitido, os autores demonstram que embora o nível médio de emissões per capita do país esteja muito aquém da média mundial – razão pela qual o governo indiano reivindica seu direito ao desenvolvimento econômico carbono-intensivo –, isto só ocorre em razão do enorme nível de emissões da significativamente pequena parcela mais rica de sua população (menos de 1%) ser “camuflado”1 por uma legião de pobres (mais de 70% da população) que pouco emitem. Groot (2010) elabora curvas de Lorenz para emissões mundiais de GEE. Resulta que a distribuição populacional destes gases não é equânime. É nesse contexto que Pan e Chen (2010) apresentam a proposta de orçamento de carbono. Apoiam-se, para isso, no conceito de necessidades básicas – inspirado pelas obras de Amartya Sen – que prioriza a alocação das emissões derivadas 1. Isto é, a discrepância entre ricos e pobres torna-se imperceptível quando as emissões são divididas pela população como um todo. Mudança do Clima no Brasil: aspectos econômicos, sociais e regulatórios94 do consumo para a satisfação das necessidades humanas – por exemplo, vestu- ário, alimentação, habitação e mobilidade. Dado que as necessidades básicas são finitas sob uma perspectiva biológica, mas sofrem restrições ambientais e físicas – em virtude da finitude do planeta –, e que o impulso a consumir não conhece limites, é preciso estimar a contribuição dos países em termos de emissões futuras de CO2, distinguido a porção que diz respeito à satisfação das necessidades básicas do restante. Dessa “contabilidade funcional” de carbono tem-se uma medida para a de- sigualdade internacional da distribuição de emissões: os autores comprovam que existem tanto nações deficitárias como superavitárias, relativamente ao que é ne- cessário emitir para prover condições materiais mínimas à população. Esse critério (emissões oriundas de necessidades básicas) pode ser aplicado para o âmbito intranacional, visando-se obter a distribuição individual de GEE. Seroa da Motta (2002, 2004) mensurou a contribuição dos domicílios bra- sileiros para a disseminação de poluentes na atmosfera, no meio aquático e no solo, e também para a degradação dos cursos d’água. Ele concluiu, para todos os fatores geradores de impacto ambiental considerados, que, por mais que os pobres tendam, para um dado acréscimo infinitesimal de renda, a ampliar seu nível de impacto ambiental em uma magnitude superior à dos ricos, a concentração de renda no primeiro grupo age, de maneira compensatória, para mantê-lo em um patamar superior de impacto total. A curva de Kusnetz ambiental, segundo a qual o potencial de degrada- ção da natureza aumenta com a renda, passando, a partir de certo nível desta, a cair com o enriquecimento, mostra-se equivocada, dada a notável tendência crescente nos resultados de Seroa da Motta (2002, 2004). Os ricos degradam mais, inequivocamente. É com o intuito de avançar no sentido de uma apreensão precisa, no nível dos itens constitutivos dos padrões de consumo vigentes, da relação entre renda e contribuição pessoal para a carga nacional de GEE que este capítulo restringe seu escopo à cesta de energéticos e serviços de transporte terrestre consumida por domicílios. Essa redução do prisma analítico permite enxergar, para o caso brasileiro, como se verá na seção 3, que a progressão por níveis superiores de renda engendra dois fenômenos diametralmente opostos: i) o abandono da lenha e do carvão ve- getal, uma mudança redutora das emissões domiciliares de GEE; e ii) o aumento do consumo de combustíveis veiculares, o que atua para intensificar o conteúdo de carbono dos domicílios. 95Rompendo com o Trade-Off entre Combate à Pobreza e Mitigação do Efeito Estufa... 3 O CONTEÚDO CO2 DO CONSUMO ENERGÉTICO DOMÉSTICO 3.1 Da Pesquisa de Orçamento Familiares (POF) ao Balanço Energético Nacional (BEN) O trabalho de Bôa Nova (1985) foi pioneiro no uso de pesquisas de orçamento familiar para compreender a desigualdade no acesso à energia no Brasil. Com base no Estudo Nacional da Despesa Familiar (ENDEF) 1974-1975, Bôa Nova mostra que os domicílios usavam 24% da energia consumida no país. Deste total, 61% eram gastos nas residências e 39%, nos transportes. Em matéria destes últi- mos, os 10% mais ricos consumiam nada menos que 400 vezes mais energia que os 10% mais pobres. Mas, na energia domiciliar, a maior parte do consumo ener- gético era gerada pelos mais pobres, em virtude do intenso uso do fogão à lenha, cujo rendimento energético era de três a sete vezes menor que o equipamento a gás. Resultado: embora os 10% dos brasileiros de maior renda consumissem um terço de toda a energia elétrica e quase metade do petróleo, nada menos que 43% da biomassa (lenha e carvão) eram usados pelos 20% mais pobres. A POF, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2004), com dados de 2002-2003, corrobora os resultados de Bôa Nova, embora com informações coletadas 25 anos depois daquelas em que ele se baseou. A POF contém informações que permitem identificar os padrões de consumo dos dife- rentes grupos em que a população brasileira se subdivide, conforme a magnitude da renda familiar. Diferentemente deste autor, a preocupação não é com o uso geral de energia, e sim com as emissões de GEE que decorrem disto. É possível, por meio dos dados da POF, detectar padrões de emissão específicos às classes de renda e a alguns itens de consumo. 3.2 O caso da lenha A metodologia adotada – a qual é formalmente apresentada em Morello (2010) – tem como ideia central partir da informação da POF acerca das despesas realizadas pelas classes de renda em energéticos, para distribuir as emissões de CO2 associadas a estes itens entre tais grupos – cabe, portanto, assinalar a semelhança com o trabalho supracitado de Seroa da Motta (2002, 2004). Para os dois aspectos a que se restringe a análise (combustíveis domiciliares e transporte terrestre), o teor de CO2 é obtido da aplicação do procedimen- to, recomendado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), ao consumo de fontes de energia reportadas no BEN – conforme é norma nos relatórios de referência do Inventário Nacional de Emissões Antrópi- cas de Gases de Efeito Estufa – especificamente no caso de Brasil (2006, 2010). É da conexão entre essas duas bases de dados (POF e BEN) que surgem os resultados da tabela 1, a seguir, os quais se referem a 2003. Mudança do Clima no Brasil: aspectos econômicos, sociais e regulatórios98 TABELA 2 Emissões por família oriundas do transporte terrestre – classes de rendimento da POF 2002-2003 – Brasil, 2003 (tCO2) (Em R$) Item/classe de renda ≤400 400 - 600 600 - 1.000 1.000 - 1.200 1.200 - 1.600 1.600 - 2.000 2.000 - 3.000 3.000 - 4.000 4.000 - 6.000 > 6.000 Gasolina1 0,05 0,08 0,20 0,27 0,48 0,69 0,99 1,54 1,98 3,32 Diesel queimado por ônibus (frota 1997)2 0,06 0,11 0,19 0,26 0,29 0,33 0,35 0,29 0,31 0,25 Total por família 0,11 0,19 0,39 0,53 0,77 1,03 1,34 1,84 2,29 3,57 Fontes: BEN 2003, Brasil (2006, 2010), São Paulo (2007), POF 2002-2003 e Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP, 2004). Elaboração dos autores. Notas: 1 Empregada em automóveis particulares – exclusive automóveis detidos por empresas. 2 Transporte coletivo urbano + rodoviário interestadual + rodoviário intermunicipal. Tomam-se por base as emissões refe- rentes à frota de 1997, de acordo com Brasil (2006) (reportada na seção 4 de Morello (2010) como patamar inferior). A tabela 2 apresenta as emissões de CO2 que resultam da queima de gaso- lina por automóveis detidos e utilizados por famílias e da queima de óleo diesel pelos ônibus a que elas têm acesso. Neste último caso é necessário adotar dois patamares, dado que não se pôde obter um dado atualizado para a participação da categoria “ônibus” na frota brasileira de veículos a diesel – ver seção 4 de Morello (2010). Porém, para simplificar a apresentação, consta na tabela apenas o patamar superior, referente a 1997 (BRASIL, 2006). Atribui-se o consumo de diesel em proporção equivalente à participação da família na quilometragem total viajada com ônibus, por todos os indivíduos do país. Para isso, é levada em conta tanto a participação da família no número de viagens contratadas, quanto a distância em média percorrida. As modalidades de transporte consideradas são o transporte coletivo urbano, transporte interestadual e intermunicipal – a seção 4 de Morello (2010) detalha o procedimento. A gasolina consumida por automóveis controlados pela família é uma fonte de emissões cuja contemplação é mais simples, uma vez que a POF coleta dire- tamente a informação acerca da despesa neste combustível. As emissões geradas por esse fator apresentam crescimento monotônico (sem quedas) da menor para a maior classe de rendimento, o mesmo não sendo observado para o caso do diesel. Entre a primeira classe de renda (rendimento ≤ R$ 400,00/família/mês) e a sétima (rendimento entre R$ 2 mil/família/mês e R$ 3 mil/família/mês), o fator ônibus revela um peso ascendente, o qual atinge seu pico nesta última classe passando, pois, a cair. Uma vez que a trajetória das emissões por família ao longo dos grupos sociais é equivalente à trajetória das despesas por família, isso significa que, até um dado patamar de poder aquisitivo (renda familiar de R$ 3 mil/família/mês) a despesa 99Rompendo com o Trade-Off entre Combate à Pobreza e Mitigação do Efeito Estufa... em ônibus aumenta com a renda – é um bem normal, na definição microeconô- mica –, o que se reverte deste ponto em diante – passando, pois, a bem inferior. Provavelmente, este meio de transporte tende a perder participação nas distâncias percorridas por uma família para o automóvel particular, dado que as emissões geradas pela queima de gasolina aumentam monotonicamente com a renda. Quanto a isso é preciso fazer a ressalva de que, enquanto a massa de CO2 distribuída entre as famílias compreende todas as modalidades de transporte com ônibus, o procedimento de distribuição toma por base apenas a modalidade de transporte coletivo, uma limitação imposta pelos dados que se pôde reunir – como explicado em Morello (2010), seção 4. Isto porque a conjectura de substi- tuição da fonte de emissão implicada (o ônibus) pelo outro meio de transporte terrestre considerado (o automóvel à gasolina) é levada adiante neste estudo. TABELA 3 Distribuição das emissões de CO2 referentes a consumo doméstico de combustíveis e transporte terrestre – classes de rendimento da POF 2002-2003 – Brasil, 2003 (tCO2) (Em R$) Energético/ classe de rendi- mento familiar mensal Até 400 Mais de 400 a 600 Mais de 600 a 1.000 Mais de 1.000 a 1.200 Mais de 1.200 a 1.600 Mais de 1.600 a 2.000 Mais de 2.000 a 3.000 Mais de 3.000 a 4.000 Mais de 4.000 a 6.000 Mais de 6.000 Total Brasil (Gg CO2) Gás encanado (ou gás natural) _ _ _ _ _ 0,01 0,01 0,01 0,04 0,08 450,87 Gás de botijão (ou GLP) 0,23 0,28 0,32 0,33 0,34 0,34 0,34 0,32 0,31 0,33 14.925,81 Lenha 1,23 0,95 0,83 0,64 0,57 0,36 0,38 0,36 0,21 0,12 34.274,09 Querosene iluminante 2,14E-03 1,46E-03 7,82E-04 5,81E-04 4,07E-04 4,58E-04 1,40E-04 1,21E-04 5,76E-05 7,61E-05 41,63 Carvão vegetal 0,10 0,07 0,04 0,03 0,02 0,02 0,02 0,02 0,01 0,01 2.157,33 Gasolina 0,05 0,08 0,20 0,27 0,48 0,69 0,99 1,54 1,98 3,32 29.604,75 Diesel queima- do por ônibus (frota 1997) 0,06 0,11 0,19 0,26 0,29 0,33 0,35 0,29 0,31 0,25 10.214,97 Total por família 1,66 1,49 1,59 1,53 1,71 1,75 2,08 2,55 2,86 4,11 91.669,44 Famílias (#) 7.928.656 6.744.349 10.188.564 3.543.521 5.091.324 3.340.910 4.568.525 2.424.975 2.236.551 2.467.262 48.534.637 Total por classe de rendimento (GgCO2) 13.185,35 10.082,28 16.210,91 5.424,72 8.695,39 5.850,83 9.497,54 6.184,85 6.386,97 10.150,60 91.669,44 Fontes: Dados do BEN 2003, Brasil (2006, 2010), São Paulo (2007), POF 2002-2003 e ANP (2004). Elaboração dos autores. 4 OLHANDO ATRAVÉS DA PIRÂMIDE DE RENDA Os energéticos contemplados na seção 3 constituem uma amostra dos fatores ge- radores de CO2 cuja alocação não decorre de uma decisão tecnológica, tomada por Mudança do Clima no Brasil: aspectos econômicos, sociais e regulatórios100 firmas produtivas. Pelo contrário, se tem neste caso constituintes da cesta de bens e serviços cuja composição qualitativa (quais bens e serviços) e quantitativa (quanto de cada bem ou serviço) é um arbítrio das famílias. Um exemplo esclarece porque tal formulação é profícua. Às famílias cabe decidir entre o emprego de lenha ou de GLP para a cocção. Mas a elas não cabe decidir se a carne cozinhada deve ser produzida mediante a supressão da floresta amazônica ou em áreas há muito des- florestadas e inapropriadas para a agricultura – ao menos enquanto não houver uma certificação que permita ao consumidor distinguir entre as duas origens.4 Invocando a abordagem das capacitações de Amartya Sen (COMIN; QIZIL- BASH; ALKIRE, 2008), a “cesta de energéticos domiciliares” é uma primeira aproximação para o problema de compreender como o vetor de capacitações por- tado por uma família (conjunto de ações que a família tem poder para realizar) se traduz, colateralmente, quando exercido em contribuição para o efeito estufa. Conforme discutido, a POF mostra que a composição quantitativa da cesta de energéticos apresenta diferenças não desprezíveis entre classes de renda em que a população brasileira pode ser subdividida. Mas, para uma análise do impacto climático das famílias, o relevante não é a composição da cesta – em qualidade e/ ou quantidade –, mas, sim, seu conteúdo mensurado em CO2. Este é o indicador a ser avaliado, o qual consta na última linha da tabela 3, agregado para todas as famílias de uma classe. Como o gráfico 2 torna perceptível, as famílias classificadas nas primeiras três classes de rendimento familiar mensal são mais responsáveis por uma maior contribuição para o efeito estufa do que as das demais classes. Isto é claro se agre- gando as emissões nas classes de renda. Esta aparente correlação negativa entre rendimento familiar mensal e teor de CO2 do padrão de consumo pode ser apura- da com mais precisão se as emissões por classe de rendimento forem decompostas em: i) emissões por família; e ii) número de famílias por classe de rendimento. O gráfico 3, a seguir, apresenta esta divisão. 4. Esta representação microeconômica do problema não deve ser levada ao limite, pois, como se lê em Uhlig (2008), o emprego de lenha e carvão para a cocção está longe de ser uma decisão racional: trata-se de uma implicação direta da inexistência de alternativas.
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