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Filosofia Jurídica - Apostilas - Política Parte1, Notas de estudo de Políticas Públicas

Apostilas de Política sobre o estudo da Filosofia Jurídica, surgimento da Filosofia, justiça na concepção de Platão, justiça na concepção de Aristóteles.

Tipologia: Notas de estudo

2013
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Tucano15
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Baixe Filosofia Jurídica - Apostilas - Política Parte1 e outras Notas de estudo em PDF para Políticas Públicas, somente na Docsity! Clara Maria Cavalcante Brum de Oliveira Wellington Trotta ESTUDOS PRELIMINARES PARA UMA FILOSOFIA DO DIREITO Rio de Janeiro 2006 2 Clara Maria Cavalcante Brum de Oliveira Bacharel em Comunicação Social pela FACHA. Bacharel em Filosofia pela UERJ. Especialista e Mestre em Filosofia (Ética e Filosofia Política) pela UERJ Bacharel em Direito pela UNESA. Advogada e Professora de Filosofia Geral e Jurídica e Ética Geral Jurídica na Universidade Estácio de Sá Wellington Trotta Bacharel em Direito pela Universidade Gama Filho Bacharel em Filosofia pela UERJ. Mestre em Ciência Política (Política e Epistemologia) pela UFRJ Advogado e Professor de Filosofia Geral e Jurídica e Ética Geral Jurídica na Universidade Estácio de Sá ESTUDOS PRELIMINARES PARA UMA FILOSOFIA DO DIREITO Rio de Janeiro 2006 5 Introdução 1 - Considerações sobre a importância da Filosofia para o curso de Direito “Filosofia do Direito esclareça-se desde logo, não é disciplina jurídica, mas é a própria Filosofia enquanto voltada para uma ordem de realidade, que é a realidade jurídica”. (Reale, Miguel. Filosofia do Direito, p. 9) Inúmeras vezes percebemos que a falta de interesse pela leitura contribui também para certo desinteresse pelo estudo de Filosofia. Muitos alunos indagam: por que estudar Filosofia? Qual a utilidade da Filosofia para o saber jurídico? Nem sempre as respostas que formulamos são convincentes para esclarecer sobre a importância desse saber. A grande maioria dos alunos não tem contato com a Filosofia durante o ensino fundamental ou médio, o que torna nossa tarefa ainda mais árdua. Poucos se interessam por essa disciplina, geralmente ministrada em apenas um semestre nos primeiros períodos da faculdade. Todavia muitos profissionais do Direito descobrem a Filosofia em meio aos seus estudos de pós-graduação e experimentam certa ansiedade em tentar suprir essa falta em sua formação intelectual. Nesse sentido, estudar Filosofia significa estudar os fundamentos da nossa própria cultura. Nos dizeres de Werner Jaeger, “A Grécia representa, em face dos grandes povos do Oriente, um progresso fundamental, um novo estádio em tudo o que se refere à vida dos homens na comunidade. Esta se fundamenta em princípios completamente novos. Por mais elevadas que julguemos as realizações artísticas, religiosas e políticas dos povos anteriores, a história daquilo a que podemos com plena consciência chamar cultura só começa com os gregos”.1 1 Jaeger, Werner W. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 4. [grifo nosso] É preciso ressaltar que a Filosofia oferece uma abordagem singular para tratar dos problemas fundamentais da esfera jurídica que focalizam em particular a eterna “insociável–sociabilidade humana”. Ademais, insisto em apontar que a história do pensamento filosófico, que se inicia com o povo grego em torno do séc. VII a.C. constitui as bases de nossa própria cultura, ou seja, configura o nosso ponto de partida, o início do pensamento racional. Assim, ao lermos um texto filosófico colocamos em ação todo o nosso sistema de valores, crenças e atitudes que refletem o grupo social em que se deu nossa socialização primária, isto é, o grupo social em que fomos criados. Podemos então investigar como esse sistema de valores interfere em nossa visão de mundo. 6 A Filosofia ensina a pensar. Ensina a formular perguntas. Ingressar nos estudos filosóficos significa fundamentalmente assumir a árdua tarefa do autoconhecimento que implica transformar o seu próprio olhar, muitas vezes desatento, em um olhar cuidadoso diante das obviedades. Significa abolir a pressa e o imediatismo. A Filosofia significa a formação de uma atitude - uma atitude diante da vida. Como disse Kant em suas lições de Lógica, filosofar é algo que só se pode aprender pelo exercício, pelo uso próprio e autônomo da razão. Um exercício sem medo. Estudar Filosofia significa estabelecer um diálogo com homens de notório saber, que viveram em outras épocas. É bom conhecê-los e compreender seus costumes, pois assim podemos avaliar mais lucidamente os nossos.2 Assim, as informações apresentadas fundamentam-se em textos clássicos e comentadores consagrados pela tradição filosófica. Acredito não ter incorrido em erro grave, buscando não esquecer que os filósofos foram/são homens e que, portanto estavam/estão sujeitos às influências de sua origem, educação e época histórica. Não podemos esquecer que todo pensador está fadado a ser de seu século a seu contentamento ou pesar. Assim, procura-se mostrar que os problemas filosófico- jurídicos são tão antigos quanto as inquietações conscientes dos homens sobre o problema da Não posso deixar de mencionar as célebres palavras de Descartes na obra Discurso do Método: “a leitura de todos os bons livros é qual uma conversação com as pessoas mais qualificadas dos séculos passados, que foram seus autores, e até uma conversação premeditada, na qual eles nos revelam tão-somente os melhores de seus pensamentos. (...) É bom saber algo dos costumes de diversos povos, a fim de que julguemos os nossos mais sãmente e não pensemos que tudo quanto é contra os nossos modos é ridículo e contrário à razão, como soem proceder aos que nada viram”. Mas gostaria de esclarecer preliminarmente que o estudo tem objetivo modesto. Intencionalmente se cuidou de apresentar um estudo propedêutico que pudesse oferecer uma exposição clara e indispensável, capaz de configurar um apoio útil para posteriores estudos de Filosofia do Direito. Estudaremos em cada época autores e doutrinas que julgamos essenciais para o estudo jurídico. Procurou-se, ao expor, dar certa objetividade que não comprometa a verdadeira complexidade da matéria. O ponto de partida está na noção geral da Filosofia como um saber teórico e universal que fundamenta toda a cultura ocidental - nossa herança grega. Assim, desvelou-se imperativo observar os diferentes problemas que a nossa cultura formulou ao longo dos tempos com suas respostas e terminologias acerca do que consideravam relevantes. Importa ressaltar que a história apresentada focaliza um dos ramos da Filosofia, em particular, aquela que estuda a idéia de justiça. O estudo foi essencialmente motivado pelo desejo de compreender melhor a relação direito-sociedade a partir do devir histórico. 2 DESCARTES, R. Discurso do Método. In: Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.39. 7 convivência humana e se desvelam nas concepções fundamentais acerca do Direito e do próprio Estado, a partir das realidades que serviam como pano de fundo. Historicamente, podemos afirmar que uma Filosofia do Direito se inicia com os tratados sobre sociedade política: seja uma pólis, uma res publica, civitas ou um Estado. Tratados que versam sobre leis, justiça, direito natural e que assinalam o caminho do pensamento filosófico. Muitas vezes este estudo assume nomenclaturas diferenciadas como, por exemplo, juris naturalis scientia ou Naturrecht als Philosophie des positiven rechts.3 3Direito natural como filosofia do Direito positivo (Naturrecht als Philosophie des positiven rechts – 1797) de Gustav Hugo, Fundamentação do Direito Natural ou elementos Filosóficos do ideal do Direito (Grunlage des Naturrechts oder philosophie Grundriss des Ideals des rechts – 1803) e Bosquejo do Sistema de Filosofia do Direito (Abriss des Systems der rechtsphilosophie – 1828) de Karl Christian Friedrich Krause; Elementos de Direito natural e de Ciência Política (Grundlinien der Philosophie des Rrechts oder Naturrecht und Staatswissenschaft im Grundrisse – 1821) de Hegel. A abordagem filosófica nos permite então vislumbrar que a transformação das sociedades não implica a superação pura e simples do passado, mas antes ressalta que esse passado existe e persiste no presente, condicionando o focar dos problemas, apresentando certas tendências, validando algumas soluções, revelando a lógica imanente de certos pontos de vista ou atitudes intelectuais. Algumas vezes apontando caminhos que não se devem mais seguir. Não podemos negar a importância da Filosofia, porque a própria tentativa de impugná-la significa a essência do filosofar. Enfim, o Direito, pertencendo à história humana, participa do seu desenrolar gradual e do seu reencontro consigo mesmo. O que importa nesse caminhar é a indispensável tarefa crítica que a Filosofia nos oferece, sem a qual cairíamos inevitavelmente num dogmatismo feroz ou num ceticismo tedioso. 2 - Metodologia adotada para a disciplina O aprimoramento contínuo oferecido pela Filosofia é importante ferramenta para o desenvolvimento das habilidades necessárias ao advogado. Nesse sentido, torna-se fundamental a leitura prévia dos pontos a serem tratados em cada aula. Recomenda-se que o aluno procure elaborar um pequeno resumo dos pontos mais relevantes, buscando não copiar o texto, mas elaborar o seu próprio texto sobre o que foi lido. Cada um deve procurar sua interpretação. Nosso objetivo é ampliar a conscientização sobre o assunto e fornecer as condições de possibilidade para uma reflexão filosófica sobre o direito. Por isso, indicamos outras leituras interessantes e vídeos para que o estudante possa ampliar seus conhecimentos. 10 divinas, deuses. Será teogonia quando a narrativa tratar da origem dos deuses. A Filosofia é vista como uma cosmologia, ou seja, uma explicação racional sobre a origem do mundo e sobre as causas das transformações das coisas. Nesse sentido, as narrativas míticas foram reformuladas ou transformadas numa explicação que não admite fabulações, contradições, mas sim um raciocínio lógico, racional e coerente. A autoridade dessa nova explicação não decorre de uma pessoa física, como no caso dos poetas-rapsodos, mas decorre do poder da razão. O seu surgimento marca uma indagação que não aceita respostas mitológicas ou mágicas, respostas fazedoras de mitos. Não podemos negar que a mitologia grega está intrinsecamente ligada à história da civilização grega, por isso o relato mítico não resulta necessariamente da invenção individual, mas da transmissão de uma cultura por várias gerações e da memória de um povo, o que ressalta a sua dignidade e importância. Essa mitologia e seus mitos sobrevivem enquanto se mantiveram vivos na vida cotidiana. Memória, oralidade e tradição são os componentes indispensáveis à sua sobrevivência. A explicação filosófica, que é apenas uma explicação de homens que buscavam saber, se desenvolveu paulatinamente e permaneceu por muito tempo concomitante às explicações mitológicas que povoavam o imaginário do mundo antigo. A Filosofia é, portanto, um fenômeno cultural grego. Surgiu no momento de estabilização da sociedade grega, com o desenvolvimento da atividade comercial, com a consolidação das cidades- estados (pólis); um progressivo enriquecimento do comércio e invenção da moeda; expansão marítima que propiciou o surgimento de uma classe mercantil politicamente forte; a invenção do calendário; a própria invenção da política e da ética. Não há consenso sobre a origem da Filosofia na Grécia antiga, porque muitos estudiosos entendem que os povos do oriente já sistematizavam doutrinas filosóficas antes dos filósofos gregos. Todavia o que se observa freqüentemente é que não se configurou nesses povos o que ocorreu na Grécia: o processo de laicização do saber. 3 - A pólis grega e a consciência jurídica Antes do advento da Pólis, a Grécia já apresentava uma vida social intensa. Um dos poetas mais importantes, Homero, autor dos famosos poemas que narram as guerras troianas (1260 a 1250 a.C.), as aventuras de Aquiles e Ulisses (nome grego, Odisseu), nos desvela em suas narrativas o entrecruzamento de história, ficção, lenda, mitos e deuses, que segundo pesquisadores exprimem traços da cultura dórica. Os dórios oriundos do norte, séculos após as guerras troianas, construíram uma sociedade marcadamente aristocrática que paulatinamente se transformou no que denominamos civilização grega. 11 Este poeta foi considerado o pai da cultura grega por ter sido a sua obra fundamental para a manutenção das tradições. Além de Homero, o pensamento de Hesíodo foi igualmente importante, porquanto marca uma nova fase da cultura grega. Em sua obra denominada Teogonia descreve a criação do mundo, dos deuses e a organização do Olimpo. Em Os trabalhos e Os Dias narra o mito das cinco idades da humanidade. Por ocasião do séc. VIII a.C., com a invenção da moeda cunhada, a região vivenciou um renascimento das relações comerciais que resultou na ruína das antigas linhagens tribais e no surgimento de pequenas cidades de agricultores e artesãos. Lentamente se formou uma nova organização social e política que segundo ensina Jean-Pierre Vernant destacou a supremacia da razão, do discurso. Assim, a palavra, o discurso e a razão ganharam grande relevo nessa nova organização social. O discurso tornou-se condição fundamental para a participação nos assuntos públicos. O que se configurou nesta etapa e a revolução política que ensejou o desenvolvimento do pensamento humano. Assim, as discussões políticas, a elaboração das leis, deixaram de ser privilégio da aristocracia grega. Pólis do plural póleis é uma palavra grega que expressa a idéia de cidades-estados autogovernadas do mundo grego. Cada pólis tinha suas próprias leis de cidadania, cunhagem de moedas, costumes, festivais, ritos e etc. Como nos ensina Jaeger, a pólis configurou um novo momento para os gregos, uma nova forma de convivência humana: “A polis é o centro principal a partir do qual se organiza historicamente o período mais importante da evolução grega. Situa-se, por isso, no centro de todas as considerações históricas”. 5 O interesse pela justiça se desenvolveu na vida comunitária da pólis grega e assumiu um grande valor que se afigurou com a mesma intensidade que a força exercida pelo ideal cavaleiresco dos primeiros estágios da cultura grega aristocrática. A idéia do homem justo assume, portanto, um novo locus no pensamento grego, porque aquele que cumpre a lei e se regula por ela, cumpre o seu dever. Observa-se que a pólis introduz uma verdadeira revolução: “O ideal antigo e livre da Arete O termo pólis propiciou o aparecimento de palavras como político e política e, conseqüentemente, a idéia de justiça. Com a palavra pólis surgiu também o direito de cada cidadão de emitir, na esfera pública, o seu pensamento para possível debate. A pólis valorizou o humano, a discussão, a persuasão, a força do melhor argumento, enfim o próprio desenvolvimento do discurso. 6 5 Jaeger, Werner W. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p.73. 6 areté, aretai (pl.) – excelência, virtude. heróica dos heróis homéricos converte-se em rigoroso dever para com o Estado, ao qual todos os 12 cidadãos sem exceção estão submetidos, tal como são obrigados a respeitar a fronteira entre o próprio e o alheio”. 7 Com a mudança das formas de vida, surgiu um novo espírito centrado na vida pública. A literatura que testemunha a idéia de justiça como fundamento da sociedade humana estende-se desde os tempos primitivos da epopéia, ou seja, do séc. VIII até o séc. VI a.C. Jaeger narra que nos tempos homéricos “toda manifestação do direito ficou sem discussão na mão dos nobres que administravam a justiça segundo a tradição, sem leis escritas. Contudo, o aumento da oposição entre os nobres e os cidadãos livres, a qual deve ter surgido em conseqüência do enriquecimento dos cidadãos alheios à nobreza, gerou facilmente o abuso político da magistratura e levou o povo a exigir leis escritas”. 8 4 - Os Filósofos pré-socráticos A reclamação universal pela justiça já figura claramente em Hesíodo e, é através dele, que a palavra direito, dike, se converte no lema da luta entre as classes. Não temos fonte sobre a história da codificação do direito grego, mas sabe-se ao menos que ao ser escrito assumia o caráter de universalidade. Em Homero temos o direito como Themis que etimologicamente significa lei. Segundo a narrativa homérica, Zeus ofertava aos reis o cetro e themis. Esta última seria o símbolo da grandeza cavaleiresca dos primitivos reis e nobres homéricos. Na prática, significava que os nobres dos tempos patriarcais julgavam de acordo com a lei procedente de Zeus. As normas que constituíam as leis de Zeus fundamentavam-se no direito consuetudinário e no próprio saber do homem daquela época. 9 Tales de Mileto foi considerado o primeiro filósofo e sabe-se que era estudioso de astronomia e, segundo conta a tradição, chegou a prever um eclipse total do sol ocorrida em 28 de maio de 585 a.C. Este pensador apresentou grande desempenho em geometria e demonstrou que todos os ângulos Já compreendemos que o que consideramos por Grécia Antiga não constituiu um Estado no sentido moderno do termo, mas o conjunto de várias cidades autônomas entre si denominadas pólis. Sabe-se que o berço da Filosofia teria sido a pólis de Mileto, situada na Jônia, litoral ocidental da Ásia menor. Nesta cidade temos três pensadores pré-socráticos de grande importância: Tales, Anaximadro e Anaxímenes. Esses primeiros filósofos, denominados filósofos da Physis, tinham como objetivo construir uma explicação racional e sistemática do universo. Tais pensadores buscavam a matéria- prima, a arché, existente em todos os seres. Seria, portanto a busca pelo princípio originário, ou substancial de todas as coisas. 7 Jaeger, Werner W. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p.94. 8 Jaeger, Werner W. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 91. 9 Meu intento nesta parte foi o de mencionar os pré-socráticos mais conhecidos. Para um maior aprofundamento sugiro a obra de BORNHEIM, G. (org) Os Filósofos Pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 1997. 15 O homem desta época vivia em uma comunidade autárquica e sagrada que configurava o microcosmo, a pólis. Cada cidade apresentava independência jurídico-política. Protegida por seus deuses baseava-se em normas tradicionais de fundamento religioso, themistes, regulamentações que paulatinamente constituíram o nomos. Podemos entender por nomos a idéia de ordem da pólis, ou seja, as regras morais e os preceitos jurídicos indistintamente misturados. O cuidado com os valores culturais de cada pólis garantia uma convivência pacífica. Não fica difícil perceber que a idéia de justiça significava garantir essa convivência harmônica a partir de uma repressão a tudo que pudesse comprometer a ordem estabelecida. Esse sentido seria alargado diante das novas necessidades que a vida comunitária exigiria. Truyol y Serra aponta que Anaximandro teria transposto ou deslocado a idéia de justiça da pólis para o universo. 11 Sabe-se que Pitágoras e Heráclito apresentaram considerações mais explícitas sobre a vida social. Com Pitágoras ganha relevo a preocupação ética e religiosa. Cresce o interesse pela vida humana e individual e a Filosofia se configura na possibilidade de uma purificação interior. Este seria uma grande pólis, ou seja, uma grande comunidade sujeita a uma lei ordenadora. Ele afirma a existência de uma justiça cósmica de caráter imanente que preside a geração e a dissolução dos seres particulares. Para este autor, idéias semelhantes seriam usadas mais tarde por Parmênides de Eléia e Empédocles de Agrigento nos poemas que cada qual escreveu, ambos intitulados Acerca da Natureza. Parmênides teria personificado a Justiça nas deusas Themis e Dike entre o dia e a noite e entre a verdade e a opinião. A justiça aparece no seu poema como um princípio estático que assegura a imutabilidade do ser que ele afirma com vigor: o ser é e o não ser - não é. Empédocles usa a idéia de justiça para tentar uma explicação do universo; o amor e o ódio enquanto forças originais fazem e desfazem as coisas; a lei estende-se sem alteração. 12 11 Esta idéia estaria presente no único fragmento existente da obra Sobre a Natureza, p. 87. 12 Trata-se de uma das fontes do idealismo ético de Platão. Pitágoras antecipa também a relação entre Filosofia e política. Os pitagóricos foram os primeiros a organizar uma teoria da justiça no interior de sua doutrina dos números. Deste modo, conceberam os números como essência das coisas e expressão de harmonia e regularidade no sentido específico de totalidade ordenada. Essa harmonia, transposta para a esfera humana, assume o sentido de uma correlação de condutas. Os pitagóricos formularam uma definição de justiça como “aquilo que alguém sofre por algo” – a justiça como uma relação aritmética de igualdade entre dois termos. Esta igualdade aparece como elemento essencial da justiça. Simbolizavam a justiça nos números 4 e 9, porque a multiplicação de um número par (2) por ele mesmo daria 4; a multiplicação de um número ímpar (3) por ele mesmo alcançaria o número 9. A justiça nessa concepção funda-se na ordem natural presidida pelo número. 16 Heráclito de Éfeso associa justiça e ordem universal. Como concebeu a realidade em perpétuo devir; afirmou ainda que o devir nasce dos contrastes e que este surge da luta, a justiça é luta. Todavia esse perpétuo fluir é presidido por uma lei eterna e universal, o logos. Este logos seria o responsável pela harmonia invisível entre os opostos. Esta unidade realizada pelo logos manifesta-se no fogo. Heráclito evoca as Erínias, personagens da mitologia que eram servidoras de Dike, que segundo a narrativa mítica, forçavam o Sol a voltar à órbita se acaso se afastassem. Por analogia o logos estaria oferecendo ao homem a norma para a ação correta. Todos os homens participam dessa ordem, embora nem todos a revelem em sua conduta. Essa lei única e divina alimenta a lei humana, conferindo o seu sentido de sagrado e justificando qualquer sacrifício em seu nome. Importa perceber que a moralidade, tanto para os pitagóricos quanto para Heráclito, fundamenta-se numa lei natural. Na fase pré-socrática houve, portanto, um jusnaturalismo cosmológico de cunho panteísta. 13 Sófocles acrescenta um problema novo: o do antagonismo entre as leis humanas e as leis divinas. Este conflito constitui o núcleo dramático da tragédia Antígona. Ao apresentar esse conflito, Essa filosofia natural pré-socrática conferiu validade à concepção helênica de justo percebida em Hesíodo e Homero. Sabe-se que a idéia de igualdade na reciprocidade, apresentada na narrativa hesiódica, superou o sentido de autoridade expresso nos poemas homéricos enquanto sentido da justiça. Esse predomínio da concepção de Hesíodo aconteceu por ocasião de profundas transformações políticas e sociais nos séc. VII e VI a.C. que conduziu às codificações e destacou a figura de Sólon. Sólon, legislador e poeta, anunciou em suas Elegias o conceito de eunomia, ou seja, a ordem equilibrada, fundada na justiça. Sólon observou a necessidade de homogeneidade social que excluiria as desigualdades excessivas. A cidade deve ser comum a todos e todos devem se interessar por sua conservação, o que configuraria o que ele entendeu por eunomia. Sólon fustigou a hybris como a máxima negação da ordem. No âmbito literário, os poetas trágicos como Ésquilo e Sófocles foram os herdeiros dessa concepção de justiça pré-socrática. A lei representa o equilíbrio e a hybris a desmedida. A negação da lei deve ser resolvida com uma sanção conforme o princípio que conhecemos pelo nome de talião: “quem praticou a violência sofrerá violência” (Ésquilo, Agamémnon). Resgatar o equilíbrio entre o crime e o castigo é função da pólis. A idéia de retribuição está fundada na mais antiga tradição e configura uma legalidade cósmica que para os homens assumia o caráter de férreo destino. 13 SERRA, A. T. História da Filosofia do Direito e do Estado. Portugal: Instituto de Novas Profissões, 1985, p.89. 17 Sófocles conduz-nos, de certo modo, à filosofia jurídica da sofística, todavia reconheça e enfatize o caráter sagrado das leis não escritas. 14 6 - Democracia ateniense Heródoto de Halicarnasso transpôs para o âmbito da história a concepção de justiça oferecida pela tradição. Trata-se de uma concepção religiosa de justiça em que os deuses ansiosos por justiça procuram manter os homens longe da demasia e dos excessos do orgulho, longe da desmedida. Esse pensador considerado o “pai da história” apresenta um novo problema: a diversidade das convicções e instituições humanas, ou seja, a relatividade dos costumes, a não universalidade das leis entre as pólis. Este pensador nos conduz à problemática da sofística. Segundo Aristóteles, Demócrito de Abdera (460-370 a.C.) foi o último dos pré-socráticos, ou filósofos da physis. A importância de mencioná-lo separado dos demais é que ele inaugura o que denominamos de período sistemático da filosofia helênica que, por sua vez, culminará no pensamento de Platão e Aristóteles. Um estudo através dos fragmentos deste pensador nos permite perceber que sua ética apresenta um desenvolvimento independente de sua filosofia natural. Sabemos que Demócrito professou um materialismo mecanicista que considerava os átomos, móveis no vazio, os elementos últimos da realidade. A tradição atribui a Leucipo a inspiração deste pensamento que a rigor despoja o universo de qualquer concepção divina. Sua ética apresenta o que podemos denominar de hedonismo esclarecido, ou seja, concebia a felicidade na moderação, na preeminência da alma sobre os sentidos, sua meta era a eutimia que significava um estado de alma sereno e alegre, de tranqüilidade e equilíbrio. O seu individualismo se refletia na esfera da família e, nesse sentido, combatia o casamento e a paternidade, porque acreditava que tais coisas perturbavam o espírito. Essa concepção não se estendia ao âmbito político, pois compreendia que a prosperidade do indivíduo está vinculada à vida na pólis. Daí preocupar-se com questões sobre o bom governo e sobre normas. Como Sócrates, Demócrito inclina-se para uma aristocracia vinculada ao conceito de sabedoria: em seu modo de ver os melhores deveriam governar. A democracia ateniense não foi obra de um único homem, entenda-se aqui Clístenes, sabe-se que esteve presente pelo menos por dois séculos de existência (508 a 322) no mundo grego ateniense. Tradicionalmente, comentamos que Clístenes desenvolveu um sistema de democracia, em 508-7, entendido como isonomia, ou seja, igualdade perante a lei, mas observa-se que a palavra democracia foi inventada tardiamente. Demokratía é considerada uma palavra ambígua no universo ateniense, ou melhor, grego; literalmente krátos significa poder soberano do demos. Demos tinha acepções diversas 14 Chamo a atenção para um ponto interessante: a figura do coro na tragédia Antígona desvela certo vestígio da antropologia sofística que exalta o homem e suas obras, embora apresente a advertência que a obra humana também poderá gerar um grande mal. 20 O surgimento de um tribunal popular como recurso contra as decisões das autoridades se deu com Sólon em 594, denominado de Eliaia. Após 462-61, todos os tribunais do júri passaram a figurar como Eliaia, não só como fase recursal, mas como primeira instância. Tais tribunais eram constituídos por jurados em um número que poderia variar entre 201 a 2.501 membros e, nesse sentido, também foram chamados de dikastéria. Sabe-se que o júri era escolhido de acordo com a necessidade a partir de uma lista anual de 6 mil jurados e, mais tarde no séc. IV, eram escolhidos dentre os que se ofereciam para tal. Observa Peter V. Jones, na obra supramencionada que o termo “jurado” é um termo inapropriado para designar os dikastai, pois não havia juízes no sentido moderno, mas “jurados” que eram ao mesmo tempo juízes. Os dikastai eram pagos por cada dia de sessão; pagamento que fora introduzido por Péricles.17 Muitas vezes a ekklesia funcionava como tribunal. Observa-se ainda a inexistência de um órgão que funcionasse como a promotoria pública ou uma força policial específica. O procedimento específico desses órgãos ficava a cargo da iniciativa particular, embora houvesse a distinção entre casos públicos e casos particulares. Neste último somente a parte ofendida poderia mover a ação que por sua vez era denominada de díke. Nos casos públicos a iniciativa ficava a cargo de quem quisesse emitir uma intimação, graphé, intimação por escrito. O homicídio, por exemplo, era considerado como díke por prejudicar o papel da família. Se um orador na ekklesia apresentasse uma proposta inconstitucional, configuraria um caso público para quem quisesse salvaguardar a democracia. Rumores de subversão e problemas de desafeto político também possibilitariam uma graphé. Uma vez emitida a intimação, graphé paranómom Pode-se presumir que o cidadão que comparecia para ser “jurado” era o mesmo que tinha o hábito de comparecer às ekklesias. 18 Na obra Apologia de Sócrates que narra a versão platônica sobre o julgamento de Sócrates condenado à morte em 399, percebemos as peculiaridades do tribunal ateniense. Não havia advogados; os querelantes falavam em causa própria, sem regras para apresentação de provas e sem juiz. As testemunhas embora fundamentais não eram ouvidas pelas duas partes e os jurados reagiam conforme suas emoções e preconceitos morais. Os jurados votavam imediatamente após a fala dos querelantes, sem fazer uso de recintos reservados ou de conselhos de juiz. O testemunho de escravos somente poderia ser aceito se obtido sob tortura, porque eram considerados objetos sem alma, coisas. , ao orador com proposta de lei inconstitucional, esta ficaria suspensa até o julgamento e, sendo considerado culpado, pagaria uma multa e seu projeto seria imediatamente cancelado. Em Atenas, o povo como jurado julgava o próprio povo na ekklesia o que desvela, em certo sentido, o princípio da responsabilidade democrática alcançando a todos. 17 Cf. As vespas (422) de Aristófanes que constitui uma sátira sobre os tribunais. 18 O primeiro uso da graphé paranómom foi verificado em 415, momento em que houve rumores de subversão. Também foi utilizada na competição pelo sucesso político. A graphé paranómom substituiu o ostracismo que foi abandonado por volta de 416. Cf. JONES, Peter (org) O mundo de Atenas. Uma introdução à cultura clássica ateniense. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 224. 21 Na verdade, o escravo era tido como um bem familiar valioso para o senhor que preferia não submetê- lo a qualquer tortura, o que contribuiu como argumento válido para a limitação de testemunhos considerados pouco confiáveis. Sabe-se que no séc. IV havia o recurso da arbitragem. Ambas as partes concordavam com a participação de árbitros particulares e se comprometiam a aceitar as decisões. Segundo os historiadores, as partes poderiam invocar a arbitragem a qualquer tempo em um processo civil. Se tal método não fosse eficaz, procedia-se a uma intimação. A parte ofendida se dirigia à agorá e verificava se as leis que lá estavam expostas apoiavam seus interesses e qual o procedimento adequado à sua causa. Inicialmente, a intimação era feita verbalmente, o réu comunicado perante testemunhas deveria apresentar-se ao árkhon, conselho judiciário em dia estabelecido. Na data prevista tal conselho decidia sobre a possibilidade ou não do processo. Se viável, a queixa era registrada por escrito e ambas as partes depositavam um sinal referente as custas que o perdedor pagava por inteiro após o julgamento. O conselho judiciário fixava um dia para a audiência e determinava que uma cópia da queixa fosse exposta publicamente na agorá. No caso de uma dike a aplicação da sentença era função do ofendido. A recusa repetida a fazer um acerto ou acordo poderia ensejar mais processos e até mesmo a perda dos direitos civis (atímia). Se o condenado se recusasse a pagar a quantia estipulada, o querelante vencedor poderia apossar-se de suas propriedades no valor referente à quantia imposta. Os julgamentos em uma graphé e as sentenças de morte proferidas eram atribuições de funcionários da cidade. Atenas tinha um grande número de funcionários com mandatos anuais, embora a cidade não possuísse uma burocracia, no sentido moderno do termo. Segundo Aristóteles, na segunda metade do séc. V, Atenas contava com setecentos funcionários, o que ressalta o sentido democrático na oportunidade de ocupar cargos públicos por turnos. A situação de atimía equivalia a estar fora da lei e, nesse sentido, o homem na condição de átimos poderia ser morto ou roubado sem ter direito à reparação legal. A atimía não acarretava a perda das propriedades ou o exílio, antes, porém equiparava-se à morte no sentido político, a privação absoluta dos direitos civis: falar na ekklesia, participar nos tribunais, integrar a boulé, entrar nos templos e na agorá. Em geral, a perda dos direitos civis era de caráter perpétuo, sobretudo nos casos considerados particularmente graves e era até mesmo dirigida aos descendentes. Peter V. Jones nos relata um caso curioso, o de Andócides, em 415 a.C., que sofreu a perda parcial dos direitos civis por se envolver na profanação dos Mistérios de Elêusis. Segundo seus relatos, tal sentença foi revogada por ocasião de uma anistia geral extraordinária concedida em 403. 19 19 Cf. JONES, Peter (org) O mundo de Atenas. Uma introdução à cultura clássica ateniense. São Paulo: Martins Fontes, 1997, pp.231-2. 22 Enfim, Atenas foi a pólis grega que mais contribuiu intelectualmente para o desenvolvimento das ciências e artes. A sua importância envolve a matemática, a retórica, a história, a ética, a política, a lingüística, a lógica e as artes (poesia, escultura e arquitetura). Seus pensadores desenvolveram teorias que permaneceram válidas durante milhares de anos e algumas perduram até hoje. 7 - A Sofística e Sócrates O século V vivenciou um esplêndido apogeu cultural na cidade de Atenas, considerada a capital intelectual do mundo helênico. Esta cidade-estado experimentou um verdadeiro entrecruzamento de pensamentos filosóficos que contribuiu para a passagem do período cosmológico para a fase antropológica. Foi nesse contexto que surgiram os sofistas. A sofística se tornara uma exigência da própria democracia ateniense: formar cidadãos capazes de brilhar nas assembléias. Estes senhores cultivaram a retórica, conferindo maior importância à argumentação - a arte de convencer por meio do discurso em detrimento da busca pela Verdade. Muitos estudiosos denominaram esta fase como o Iluminismo grego, pois a tendência à retórica baseava-se em certo racionalismo e um espírito crítico que calcava aos pés a tradição helênica. Ressaltaram a contraposição entre o natural e o convencional, ou seja, é o costume, o arbítrio dos homens que estabelece o que é justo ou injusto, certo ou errado. Tais homens causaram receio e escândalo que se refletiram nas comédias de Aristófanes e nos diálogos de Platão. Todas as informações que temos dos sofistas foram obtidas através dos diálogos de Platão, seu inimigo declarado. O único estudo da sofística repousa na existência de alguns fragmentos ou fontes indiretas, além de não constituir uma unidade sistemática. Nos diálogos de Platão os sofistas figuram como os interlocutores de Sócrates. Nesse sentido, resta-nos a máxima prudência possível ao tentar compreendê-los. Mas o que fizeram tais homens? Os sofistas freqüentemente criticavam o fundamento que conferia validade às leis e costumes da tradição. Atacavam o aspecto sagrado da tradição helênica. Eles observavam a diversidade cultural de sua época e percebiam a mudança na esfera das instituições. A lei e os costumes assumiam um caráter essencialmente humano, convencional, vinculado à vontade dos homens. Assim como nos pensadores jônicos, o ponto de partida dos sofistas foi o movimento e a procura de uma realidade única capaz de permanecer idêntica a si mesma. Nesse sentido, surgiu com os sofistas a dicotomia natureza (physis) e lei (nomos) ou convenção. A moralidade passa a estar desligada da ordem natural e o interesse pela conveniência assume o status de pilares da vida social. 25 todos o mesmo sem discriminação”. Mais tarde na obra Panegírio de Atenas (380 a.C.) ressaltou a problemática da política externa e apresentou a idéia de uma confederação pan-helênica que pusesse fim a atomização política da Grécia. Pode-se acreditar que Isócrates tenha pressentido a possibilidade da caducidade da pólis grega em face da era dos grandes impérios do período helenístico e romano. 8 - Sócrates (469-399 a.C.) Este pensador, contemporâneo e opositor mais importante dos sofistas, tornou-se o ponto de partida de várias correntes doutrinárias. Sua existência nos foi transmitida por Platão ao colocá-lo como personagem principal em vários de seus diálogos. Sócrates se tornou a figura mais significativa da Filosofia Antiga e, isso se deu de tal forma que muitas vezes uma linha tênue separa o homem lendário do histórico. Na verdade, Sócrates nada escreveu, mas enquanto personagem platônico expressou o pensamento de seu discípulo e supostamente o seu próprio de forma que não fica claro a diferença entre o pensamento de um e o do outro. Os diálogos platônicos considerados pela tradição como “diálogos socráticos”, são: Apologia de Sócrates, Eutífron, Críton, Protágoras, Górgias e o livro I da República. Foram considerados como socráticos porque os diálogos posteriores apresentam mais acentuadamente a personalidade de Platão. O que se deve advertir é que se torna recomendável comparar a figura de Sócrates traçada por Platão e a apresentada por Xenofonte22 22 Xenofonte(ca.430-354 a.C.) – suas obras foram conservadas na íntegra: Hierão, República dos Lecedemônios, República de Atenas, Ciropédia e Econômico. , além das referências feitas por Aristóteles. Sócrates, assim como os sofistas, orienta sua investigação para os problemas humanos, observa a necessidade de substituir a obediência cega ao nomos por uma explicação racional convincente. Difere dos sofistas quanto ao método, ou seja, não se preocupa com grandes discursos, antes, porém prioriza a clareza nos conceitos, a simplicidade na exposição e, introduz os temas mediante o uso de perguntas e respostas que vão pouco a pouco rodeando o objeto, descobrindo seus diferentes aspectos até desnudar a superficialidade e imprecisão de certas opiniões ou juízos proferidos pelo senso comum acerca de tal objeto – método maiêutico. Seu método enfatiza a necessidade de definições rigorosamente formuladas, porque a verdade nasce no interior desse diálogo. Sócrates personifica, portanto a figura do homem insubornável, cujo espírito prefere demonstrar uma ignorância confessa a apresentar um falso saber. Podemos dizer que o seu método o conduziu a um intelectualismo ético. Quero dizer com isso que para Sócrates a moral se reduziu ao conhecimento do bem, pois acreditava que todos poderiam conhecer a verdade se interrogassem a si mesmos e comparassem seus juízos com os dos demais. O conhecimento se torna uma virtude e, nesse sentido, o homem pratica o mal por ignorância do bem. 26 No âmbito da filosofia político-jurídica, Sócrates se opõe à tese sofística da moral do mais forte e do relativismo, ensinando em seu lugar o princípio segundo qual é mais digno sofrer a injustiça do que cometê-la e, se por uma fatalidade a cometeu, é preferível aceitar a sanção correspondente. Nesse sentido, no interior de uma ética comprometida com o aperfeiçoamento da alma humana, a pena figuraria como um remédio para o homem. No seu modo de ver, a temperança e a justiça são condições indispensáveis para a maior felicidade humana. A Filosofia assume, portanto, o papel de tornar possível essa perfeição. Sócrates ensinava que as leis eram necessárias e correspondiam a uma exigência da natureza humana. Isto implica dizer que a obediência às leis é um dever sem excusas. É a pólis que torna possível a vida do cidadão, logo há um acordo tácito pelo qual o cidadão deve a sua obediência.23 Faz-se mister ressaltar que essa postura de Sócrates não torna lícitas considerações de que ele teria sido um positivista que tenha separado o Direito da Justiça. A esse respeito cito Truyol y Serra: “Sócrates vê na cidade uma realidade ética, fundamentada na ordem divina das coisas. Esta legitimidade essencial não é destruída por erros acidentais. O próprio Sócrates alega que, em certa ocasião, ofereceu resistência passiva a uma ordem injusta, sob o governo dos Trinta Tiranos. Também se opusera a um acordo ilegal feito em assembléia popular. Mas essa desobediência não pode ir ao extremo de pôr em perigo os alicerces da ordem social, sem os quais é inconcebível uma vida humana digna de tal nome”.24 Nos diálogos Apologia de Sócrates e Fédon conhecemos um pouco dessa morte trágica e podemos perceber Sócrates como um verdadeiro homem virtuoso que não fugiu à morte; que acreditava na imortalidade da alma e na justiça divina. O seu imperativo ético impelia-o à prática do bem, a jamais retribuir uma injustiça com outra injustiça. Como já pude mencionar, seu pensamento tornou-se o ponto de partida de várias escolas, das que podemos chamar de “socráticas” por Ademais, Sócrates concebia a existência de leis não escritas advindas da vontade reta da Divindade. Estas leis estariam nas consciências humanas fundamentando sobretudo as leis positivas. Todavia não ignorava os conflitos que na realidade aconteciam entre ambas. Outro fator importante é a sua oposição ao regime democrático de Atenas, pois não compreendia como uma multidão poderia conduzir corretamente os negócios públicos com a devida competência. Foi exatamente sua crítica ao regime democrático em conjunto a um método que denunciava a superficialidade intelectual de alguns homens o que concitou inimigos poderosos. Sócrates foi acusado de introduzir novos deuses e de corromper a juventude; foi condenado à morte. 23 Cf. o diálogo Críton. 24 JONES, Peter (org) O mundo de Atenas. Uma introdução à cultura clássica ateniense. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 111. 27 aproximarem-se de Sócrates no focar dos problemas por este tratado, destaco os Cínicos e os chamados socráticos menores ou Cirenaicos25 O conceito central dos cínicos era a auto-suficiência do sábio e a partir desta concepção formularam críticas às instituições e valores sociais. Desaconselhavam o casamento em face do amor livre, o desapego do significado da pólis em face de uma concepção cosmopolita. Um pacifismo radical no interior de um cosmopolitismo igualitário. Pregaram uma desvalorização da cultura e, portanto eram avessos à propriedade, à família, à cidade, ao nomos etc. O seu ideal seria um estado de natureza sem convencionalismos. Compreendiam natureza como o locus de uma espontaneidade sem esforço, glorificando o bom-selvagem . Resumidamente podemos dizer que a escola cínica é tradicionalmente atribuída a Antístenes (ca. 445-365 a.C.) outros revelam o nome de Diógenes de Sínope (flc.323 a.C.) como primeiro cínico. A escola cínica operou uma aproximação do pensamento de Sócrates e dos sofistas, sobretudo de Górgias, visto que Antístenes foi discípulo de Górgias antes de seguir Sócrates. O nome cínico se deve ao fato de que Antístenes ensina junto ao Cinosarges, ou seja, Pórtico do Cão, daí a palavra cínicos para os seguidores desta escola. O cinismo exagerou o aspecto ascético da personalidade de Sócrates. A virtude é convertida na moderação entendida esta como verdadeira negação de necessidades. Postula-se a indiferença em relação aos bens externos. A diferença entre os sábios e os ignorantes repousa sobre a capacidade de autodomínio e desapego aos bens materiais. 26 Negou-se a vida quando esta não poderia oferecer o mínimo de prazer, apresentando como saída possível o suicídio, hegesias. O sábio cirenaico afasta-se de tudo o que não oferece prazer, afasta-se, sobretudo de uma participação política e social. Conforma-se com o mundo, sem intenções de reformas nas instituições, configurando um verdadeiro conformismo. Compreenderam que a forma . Construíram um jusnaturalismo fundado na moral da renúncia. Os socráticos menores ou Cirenaicos partem de um ponto de vista aparentemente oposto ao dos cínicos. Percebe-se um vínculo com Sócrates também distante. Sabe-se que o seu fundador, Aristipo (435-355 a.C.), antes de se vincular a Sócrates fora discípulo de Protágoras. Os cirenaicos identificaram o bem com o prazer, hedone, compreendendo este como satisfação de um desejo. Em seu modo de ver a virtude é uma faculdade de gozar e a sabedoria significa saber procurar o prazer. Na ética cirenaica abre-se o caminho para o postulado de uma auto-suficiência. Comentam os estudiosos que esta doutrina veio a cair num pessimismo motivado pela experiência deprimente da fugacidade do prazer, ou seja, o prazer é fugaz, logo surge a necessidade psicológica da sua repetição que causa com o tempo um amortecimento progressivo. 25 Os cirenaicos foram assim chamados por ser o seu fundador oriundo da cidade de Cirene. 26 As idéias do cinismo nos fazem lembrar as proferidas por Rousseau sobre o bom-selvagem. 30 socrático da superação do cepticismo gnosiológico (impossibilidade do conhecimento) dos sofistas, isso a partir da aplicação do método socrático (maiêutica), fonte de sua dialética. No processo de buscar a essência pelo método da discussão, Platão apela para o mito como recurso. E, sendo assim, qual a função do mito no pensamento platônico? “O eros filosófico de Platão voa jubilosamente nas asas do mito, comprazendo-se no símbolo e na fábula” (Truyol y Serra, 120). O mito exerce função importante em seus diálogos, uma vez que a tradição mitológica mantém-se como referência cultural importante. Trata-se de um discurso indireto, enriquecido com símbolos para ajudar na compreensão dos objetos, coisas e idéias complexas. E partindo desse princípio Platão concebeu o mundo em uma realidade dualista: de um lado, o mundo material visível com objetos particulares, concretos, imperfeitos, mutáveis, perecíveis. Mundo este que denominou de mundo das sombras, em que o conhecimento é superficial, imediato e incompleto. De outro lado, concebeu o que chamou de mundo inteligível ou mundo das idéias com realidades abstratas, perfeitas, eternas, imutáveis, inteligíveis. Nesse mundo inteligível encontramos as idéias (formas puras) das coisas, ou seja, a natureza essencial das coisas. A partir desse princípio, para Platão, a essência é a-histórica, ou seja, trata-se de uma forma permanente na qual persiste às mudanças. A essência possui existência prévia aos objetos. Quando pretendemos conhecer algo, descobrimos a essência imutável deste algo que está sendo investigado (Manfredo, 1993: 30). Em contrapartida as coisas singulares que existem no mundo são sombras das idéias que configuram formas primordiais ou arquétipos eternos. É por isso que os sentidos não oferecem a possibilidade do conhecimento verdadeiro e sim aparências enganosas, apenas doxa. O ponto de partida é o senso comum, a mera opinião para um reexame crítico. A esse respeito o próprio Platão comenta que: “A Filosofia corresponderia a um método para se atingir o ideal em todas as áreas pela superação do senso comum, estabelecendo o que deve ser aceito por todos, independente de origem, classe ou função. É isso que significa a universalidade da razão. A prática filosófica envolve assim, em certo sentido, o abandono do mundo sensível e a busca do mundo das idéias” (A República, Cap. VI e VII). Portanto, as idéias (formas puras) constituem a verdadeira realidade e na sua hierarquia, coroa-se a idéia do Bem. O fim supremo do homem é realizar, o quanto possível, o Bem, vencendo os sentidos por intermédio de uma vida virtuosa fundada no autêntico saber. Importa subordinar os sentidos à razão, porque essa hierarquia ontológica existe também na esfera axiológica conseqüentemente. Essa relação hierárquica influenciará seu pensamento político e diretamente suas construções éticas. 31 A República (Politeia), o Político (Politikós) e As Leis (Nomoi) são diálogos que nos oferecem a medida da importância da filosofia político-jurídica no pensamento de Platão. O tema da justiça, da melhor forma de vida em comunidade, constitui o eixo em torno do qual gira a sua especulação filosófica, o que nos revela a sua Carta VII. Esta famosa epístola descreve o processo da vocação político–filosófica de Platão e sua desilusão com a vida pública, visto que os homens públicos são dominados pelos interesses particulares. A realidade política de Atenas marcada pelas particularidades, por injustiças e corrupções, o fez desistir de ingressar na vida pública. Platão compreendeu a corrupção como um dos fenômenos de sua época e acreditou que a Filosofia poderia resgatar a ordem e a justiça nas relações sociais. O seu programa visava instaurar uma política fundamentada no saber. Seu projeto configurava uma concepção pedagógica da comunidade. A obra a República contempla a idéia de uma comunidade alternativa àquelas existentes. A relevância da educação no pensamento de Platão é outra marca de seu pensamento. Para ele uma sociedade deveria ser edificada a partir de laços integrativos. Para tanto destaca a importância da educação, pois de fato suas implicações logicamente que obrigam a criação de uma identidade cultural, portanto política no sentido de unidade comunitária. Nessa perspectiva Platão é o primeiro pensador a defender o caráter público da educação, entregando ao poder público comunitário a responsabilidade de sua execução. Como o sentido da educação é comunitário e a política visa por meio daquela estabelecer laços integrativos no interior da polis, a razão é a medida de tudo que possa ser perceptível pela inteligência e, nesse contexto, a justiça afigura-se como a virtude suprema do cidadão, o fundamento da polis. Para Platão sua carência propicia a degeneração dos regimes políticos. A obediência às leis configura, na concepção grega um quanto de harmonia, isto é, como ordem do cosmos. Partindo dessa premissa temos que compreender o paralelo que estabeleceu entre a tripartição da alma e a sua teoria da polis. 3 - Relação entre alma e cidade: o governo da razão Na República, livro IV, Platão concebe a alma como tripartite, ou seja, a mesma se divide em uma parte racional, e outra irracional que, ao seu turno se subdivide em irascível (impulsos e afetos) e concupiscente (necessidades elementares). A parte racional é regida pela sabedoria ou prudência, capaz de estabelecer o que convém a cada um. A parte irascível corresponde à fortaleza e coragem que permitem seguir os imperativos da razão. Já a parte da concupiscência está relacionada ao sentido das necessidades elementares. As duas dimensões da parte irracional da alma devem se submeter à parte racional através da virtude da temperança ou moderação. Com tais virtudes surge a virtude da 32 justiça que estabelece o equilíbrio de cada uma das faculdades em seu âmbito próprio e função específica. Estabelecendo uma analogia da alma com a cidade, Platão apresenta o que podemos chamar de concepção organicista de sociedade. A Cidade constaria de três classes diferenciadas por suas funções próprias. A primeira seria a dos magistrados ou governantes, guiados pela sabedoria; a segunda dos guerreiros que defenderiam a polis interna e externamente, cultivando a fortaleza; a terceira e última dos artesãos (artífices), comerciantes, agricultores e aqueles que constituiriam a base econômica da cidade. As classes dos guerreiros e dos artífices aceitam o domínio dos governantes pela ação da temperança ou moderação. Assim como na alma, a justiça apresenta-se primordialmente para garantia do funcionamento do todo e da manutenção da hierarquia baseada nas tarefas específicas de cada classe. O seu pensamento político inspirou-se no postulado segundo o qual a parte se subordina ao todo, o que significa dizer que as classes se subordinariam ao bem comum da cidade. Platão opera uma inversão na concepção individualista da sofística quanto à relatividade das coisas, buscando o sentido de universalidade pela superação da individualidade absoluta. Nesse modo de ver, o indivíduo se situa no plano coletivo e não em uma autonomia absoluta perante a polis. Esta existe para tornar possível a vida humana. Há uma divisão de trabalho que permite coordenar as diversas aptidões visando o bem comum. Destarte o horizonte do indivíduo seria o horizonte do cidadão. Faz-se mister ressaltar que as classes da República não se baseiam em uma ordem hereditária. O ponto fundamental repousa sobre as aptidões pessoais dos membros da polis, desenvolvidas pela cidade através do processo educacional orgânico-administrado. A aristocracia de Platão é uma aristocracia do espírito – o saber legitima o poder. Ademais, Platão equiparava a mulher ao varão observando uma educação idêntica para ambos os sexos. Platão em seu projeto político-pedagógico suprime a instituição família e a propriedade privada para as duas classes superiores dos magistrados e dos guerreiros a fim de afastar interesses particulares que pudessem conduzir à corrupção. Somente as duas classes superiores teriam participação na vida pública, enquanto que o complexo dos artífices estaria limitado à vida na esfera privada. Na cidade platônica, governada pelo sentido da filosofia, não seria necessário o direito positivo, pois os magistrados deveriam decidir, em cada caso particular, o que a justiça exigiria segundo as circunstâncias. Esse pensamento não perdura nos diálogos considerados tardios, O Político e As leis, em que Platão, mais velho, desiludido com as experiências na Sicília, admite a necessidade de fixar princípios de governo em leis positivas. Reconhece a importância da família e da propriedade privada, evitando-se o excesso de riqueza e pobreza, pois no seu entender seria a causa de toda a discórdia civil. A cidade descrita na obra As Leis se afigura como uma teocracia em que os magistrados 35 elabora duas vertentes do conceito de justiça: a justiça como idéia norteadora do direito e da lei, e a justiça como virtude norteada e determinada pela lei. Ou dizendo de outro modo, a idéia de justiça e a concepção da justiça como hábito de cumprir o direito. Por fim Platão desenvolve um conceito de justiça retributiva e transcendente. Vejamos. Na República, livro X encontra-se o mito de Er que consagra o sentido de justiça retributiva e transcendente. O mito narra a história de um guerreiro chamado Er que vivencia a experiência da justiça como recompensa no além-túmulo. Er, natural da Panfília, na Ásia Menor, bravo soldado que morreu em combate, jaz na pira funerária dez dias após sua morte. Subitamente, volta à vida e narra o que viu no mundo além-túmulo. Disse que, depois de morto, viajou até uma terra estranha onde o solo era rasgado por dois grandes abismos. Por cima, havia dois buracos correspondentes no Céu. Entre os abismos estavam sentados os juízes que julgavam todas as almas e as marcavam com um sinal: os justos entravam pelo abismo da direito, para o Céu; os injustos entravam pelo abismo da esquerda, que conduzia ao mundo subterrâneo. Er não foi autorizado a entrar em qualquer dos buracos, mas foi escolhido para levar uma mensagem aos mortais. Observou que as almas dos injustos passavam por uma longa experiência vivenciando dez vezes mais todo o mal que causaram. Este é o sentido retributivo da justiça em Platão. As almas dos justos falavam em felicidade e alegria, recompensas de uma vida virtuosa. As almas vindas dos subterrâneos, após expiarem todo o mal que praticaram e vivenciar as dores do arrependimento, eram encaminhadas ao trono das Parcas: Láquesis, Átropo e Cloto para receberem novas vidas como mortais. Cada alma poderia escolher a vida que desejava, algumas eram sensatas outras tolas. Todas, após suas escolhas, bebiam a água do rio do esquecimento, de modo que perdessem todas as recordações da vida passada, para renascer em novas vidas. Muitas praticavam os mesmos erros. A justiça para Platão não é deste mundo, mas se configura como a recompensa para aquele que escolhe a vida moral e conforme ao direito. 5 - O projeto platônico: uma utopia? Sabemos que Aristóteles, no livro II, da Política, apresenta uma reflexão crítica que considera a República e As Leis como projetos de cidade perfeita e as relaciona com as supostas utopias de Hipodamo de Mileto e de Fáleas da Calcedônia. Entretanto, temos que ressaltar que a intenção de Platão não era edificar um mundo social irreal, utópico, mas construir uma crítica aos fundamentos de sua cultura Como essa mesma cultura se estruturava, e dentro dos limites da imaginação, a pretensão de Platão era descrever uma comunidade possível na perspectiva de novos valores comandados pela retificação dialética da educação. Considerar a República uma utopia dependerá do conceito mais ou menos amplo que se tenha das idéias contidas ao longo de suas linhas. 36 O idealismo político de Platão exerceu grande influência na posteridade. Plotino tentou fundar uma cidade segundo o modelo da República com a ajuda do Imperador Galeno, projeto este que ficou inacabado por ocasião do falecimento do monarca. Através dos discípulos de Plotino, o platonismo alcançou os Padres da Igreja Grega. Santo Agostinho incorporou o platonismo (teoria das idéias) na concepção cristã do mundo. A sua doutrina determinou a orientação do pensamento medieval até a recepção do aristotelismo por Alberto Magno e Tomás de Aquino, no séc. XIII, permanecendo ainda através da corrente franciscana da Escolástica. A influência platônica no Renascimento propiciou a abertura de várias Academias a começar por Florença (1459), através de Cosme de Médices e dirigida por Marsílio Ficino (1433-99). Houve clara influência sobre a obra Utopia de Tomas More (1478-1535) e sobre o conjunto do pensamento de Campanella (1568-1639). Nos séculos XVII e XVIII houve grande influência na Inglaterra, notadamente na Escola de Cambridge, com Henry More (1614-1687), mais tarde parcialmente ofuscada pelo predomínio do utilitarismo e do evolucionismo no séc. XIX. Embora Platão esteja distante de nossa realidade, longe deste mundo nada simples, complexo por mecanismos até em certa medida desnecessários, pode-se ler Platão dentro da dimensão crítica dos costumes, dos valores e dos hábitos constituídos por uma visão utilitarista dos interesses imediatos. Mesmo não nos parecendo próximo, Platão, através de seu olhar idealista, ajuda-nos a vislumbrar uma possibilidade meio que perdida: a reconstrução de uma nova estrutura social a partir de uma reestruturação do homem para essa nova sociedade, tendo por fundamento o ideal de justiça para além das aparências e do sentido mesquinho que por ora corrói o tecido da vida coletiva. Trasímaco -- “Certamente que cada governo estabelece as leis de acordo com a sua conveniência: a democracia, leis democráticas; a monarquia, monárquicas; e os outros, da mesma maneira. Uma vez promulgadas essas leis, fazem saber que é justo para os governos aquilo que lhe convém, e castigam os transgressores, a título de que violaram a lei e cometeram uma injustiça. Aqui tens, meu excelente amigo, aquilo que eu quero dizer, ao afirmar que há um só modelo de justiça em todos os Estados - o que convém aos poderes constituídos. Ora estes é que detêm a força. De onde resulta, para quem pensar corretamente, que a justiça é a mesma em toda parte: a conveniência do mais forte.” (p. 24). Sócrates – “Por este motivo, por conseguinte, os homens de bem não querem governar nem por causa das riquezas, nem das honrarias, porquanto não querem ser apodados de mercenários, exigindo abertamente o salário do seu cargo, nem de ladrões, tirando vantagens da sua posição. Tão-pouco querem governar por causa das honrarias, uma vez que não as estimam. Força é, pois, que sejam constrangidos e castigados, se se pretende que eles consistam em governar; de onde vem que se arrisca a ser considerado uma vergonha ir voluntariamente para o poder, sem aguardar a necessidade de tal passo. Ora o maior dos castigos é ser governado por quem é pior do que nós, se não quisermos governar nós mesmos. É com receio disso, me 37 parece, que os bons ocupam as magistraturas, quando governam; e então vão para o poder, não como quem vai tomar conta de qualquer benefício, nem para com ele gozar, mas como quem vai para uma necessidade, sem ter pessoas melhores do que eles, nem mesmos iguais, para quem possam relegá-lo. Efectivamente, arriscar- nos-íamos, se houvesse um Estado de homens de bem, a que houvesse competições para não governar, como agora as há para alcançar o poder, e tornar-se-ia então evidente que o verdadeiro chefe não nasceu para velar pela sua conveniência, mas pela dos seus súbditos. De tal maneira que todo aquele que fosse sensato preferiria receber benefícios de outrem a ter o trabalho de ajudar ele os outros. Portanto, de modo algum concordo com Trasímaco, em que a justiça seja a conveniência do mais forte. Mas esse ponto havemos de o examinar de novo”. (pp.38-39) 32 32 Platão. A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian: 1993.
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