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Guias e Dicas
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AGAMBEN, Giorgio - Bartleby, escrita da potência, Notas de estudo de Literatura

Agambem discute ideias a partir do famoso personagem de Melville

Tipologia: Notas de estudo

2013

Compartilhado em 15/01/2013

carlos-augusto-lima-5
carlos-augusto-lima-5 🇧🇷

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Pré-visualização parcial do texto

Baixe AGAMBEN, Giorgio - Bartleby, escrita da potência e outras Notas de estudo em PDF para Literatura, somente na Docsity! % «Na sua intenção mais profunda, a filosofia é, de facto, uma firme rei à - Gi . Do TD o q RPE PANO PRE PRO A on TRES E Ene atesta tos gam Fool mento, mas a potência de pensar; não a escrita, mas a folha cândida é o que ela, a c N e ad a Err POOR E CORE E TOR Uraa [UTaea É Ê P | cas > E 4 : ; Desde a publicação em 1853, Barileby de Herman Melville permaneceu como um E e: - » PEER PT A CARTA Rr Er ATA TO E Pe ç ; , ravelmente perdida do escrivão que deixa de escrever tem desde então paralisado 3 io Ss qe tenazmente os críticos e elidido qualquer tipo de explicação. Arriscando-se entre E ? ' * AGR Op DAVA Epa MR do CRU q E B rtl b EO RO RU A tre e Pre ET L d go (o y Ê [ER RASA AVR PP ER É ERR PR PI 1» Ê d “P ê y go aa ms PO PR MO IR scrita da Froteência PERPETUAR ESC a TR SRT A primata, a libertação da mão na posição erecta, ou, pára o réptil, a transformação ERRAR EO SR TOR VR se : a PR TT ORDER NS TRE O RT DR 5, ER E Agamben transforma a análise deste paradigma numa das mais densas meditações Ke sado sr 8 ArA pe, j ç Bartleby, O Escrivão de Herman IV TIS Tas AR O OP T iNT Aa ter do a E acerca dos pressupostos inerentes ao exercício da sua condição de escritor e de filósofo, Ê Ecs afete RS JU Ce Tato Tuta Le ERA ERR Te [O EL TO OR TUTO [OR PETIT Ve TOTO TN OO Pa PE TT ETR PT EPE RSA Proa rar RT TO 1996. Dirige para a editora Neri Pozza a colecção «La Quarta Prosa». Ensina no » Instituto Universitário de Arquitectura de Veneza (IUAV). Dos seus inúmeros es- ) ritos, em tradução portuguesa foram editados A Comunidade que Vem (Presença, AGR IRRAa] RE Tre RA ] 1993), Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua (Presença, 1998), Ideia da E To A io PEA O CT RD UERR ET Re RO te PAULA E y Epa AH Paixão! 15 to o É Rede q; RE ã | Fundação Calouste Gulbenkian 5 Fundação Carmona e Costa ER à RIM | DCE CRS ASR arte e produção disciplina sem nome / 1 COLECÇÃO DIRIGIDA POR PEDRa A.H. PAIXÃO Bartleby, ou Da Contingência (1993) Nam simul cum cathedra creauit Deus tabulam quamdam ad scribendum, que tantum grossa erat quantum posset bomo ire in mil/e annis. E: erat tabula dia de perla albissima et extremitas eius undique de rubino et locus medius de smaragdo. Scriptum uerum in ea existem totum erat purissime claritatis. Respiciebat namque Deus in tabulam illam centum uicibus die quolibet et quantiscumque respiciebat vicibus, construebat et destruebnt, creabat et occidebat ... Creaui: namque Deus cum predicta tabula pennam quamdam claritatis ad scribendum, que babebat in se longitudinis quantum posset homo ire in VC annis et tantumdem ex latitudine quidem sua. Et ea creata, precepit sibi Deus ut scriberet. Penna uero dixit: «Quid scribam»? At ill« respondem: «Tu scribes sapienciam meam et creaturas omnes meas a principio mundi usque ad finem» .• Liber Scale Macbometi, capo XX Como escrivão, Bartleby pertence a uma constelação literdria, cuja estrelapolar é Akdki Akdkievitch (<<M, naquelas reproduções de cópias, estavapara ele de alguma maneira contido todo o mundo ... cer- tas letras eram as suasfavoritas e quando a elas chegava,perdia a cabe- ça»), ao centro da qual se encontram os dois astros gémeos Bouvard e Pécuchet (eboa ideia nutrida em segredopor ambos ... : copiar») e, no seu outro extremo, resplandecem as luzes brancas de Simon Tanner (eeu sou escrivão» é a única identidade que ele reivindica) e do príncipe Míchkin, que pode reproduzir sem esforço qualquer caligrafia. Mais além, como uma breve cauda de asteróide, osanónimos chanceleresdos tribunais kafkianos. Mas existe também uma constelaçãofilosófica de Bartleby, e épossível que apenas esta contenha a cifra da figura que a outra se limita a traçar. ~Tal como criou seu trono, Deus criou uma mesa para escrever tão vasta que um homem poderia caminhar nela mil anos. E era a mesa feita de pérolas branquíssirnas e as suas extremi- dades de rubis e o seu centro de esmeralda. Tudo o que nela escrevia era da mais pura claridade. Deus olhava para a mesa centos de vetes por dia e, cada vez que a olhava, construía e destruía, criava e matava ... Tal como criou a mesa, Deus criou uma pena de luz para es- crever, tão larga e longa que um homem a poderia percorrer, em largura ou comprimen- to, quinhentos anos. E, esta criada, Deus ordenou-lhe que escrevesse. Disse a pena «Que escrevo?» A ela respondeu, «Escreverás a minha sabedoria e todas as minhas criaturas, des- de o princípio do mundo até ao seu fim". O Livro da Escada de MlIfJ1J11, capo XX o Escriba, ou Da Criação 1.1 O léxico bizantino conhecido como Suda contém, na en- trada AristóteLes, esta definição singular: «Aristóteles era o escriba da natureza, que tingia a pena no pensamento». Nas suas Notas à tradução do Édipo de Sófocles, Hõlderlin cita este passo, sem ne- nhum motivo aparente, subvertendo-o através de uma mínima correcção: «Aristóteles era o escriba da natureza, que tinge a pena benévola (éunoun em vez de eis noún)», As Etimologias de Isidoro conhecem-no numa versão diferente, que remonta a Cassiodoro: «Aristotele, quando perihermeneias scriptabat, calamum in mente tin- gebat (Aristóteles, quando escrevia o tratado sobre a interpretação - uma das obras lógicas fundamentais do Organon - tingia a pena na mente)». Tanto num caso como noutro, decisivo não é tanto a imagem do escriba da natureza (que se encontra já em Ãtico), mas o facto de o noús, o pensamento ou a mente, ser comparado a um tinteiro no qual o filósofo tinge a própria pena. A tinta, a gota de trevas com que o pensamento escreve, é o próprio pensamento. De onde provém esta definição, que nos apresenta a figura fundamental da tradição filosófica ocidental nos trajes modestos de um escriba e o pensamento como um acto, mesmo se muito parti- cular, de escrita? Existe um só texto, em todo o corpus aristotélico, onde encontramos uma imagem de algum modo similar, que pode ter fornecido o impulso a Cassiodoro ou ao desconhecido merafo- rista; ela não pertence, porém, ao Organon lógico, mas ao tratado sobre a alma. Trata-se do passo, do livro terceiro, no qual Aristóteles II os escolásticos é simplesmente inefável, é definida por Ibn 'Arabí como «uma letra da qual tu és o sentido» e a passagem da potência ao acto da criação é representado graficamente como o ductus que entrelaça num só gesto as três letras aliflãm-mim: r logos sunitas, e os folãsifo. Contra estes, que mantinham o olhar fixo na tabuinha de escrever de Aristóteles e indagavam os princí- pios e as leis segundo os quais, no acto criativo, o possível, que exis- te na mente divina ou na do artífice, acontece e não acontece, os ash'aritas, que representam a corrente dominante da ortodoxia su- nita, sustêm uma opinião que não só destrói os próprios conceitos de causa, lei e princípio, mas torna vão também qualquer discurso acerca do possível e do necessário, minando assim a própria base de investigação dos folãsifo. Os ash'aritas concebem, de facto, o acto de criação como uma incessante e instantânea produção de aciden- tes milagrosos, privados de todo o poder de agir uns sobre os outros e, por conseguinte, subtraídos a todas as leis e a todas as relações causais. Quando o rintureiro mergulha o cândido pano no banho de índigo ou quando o ferreiro tempera a lâmina no fogo, não é a tin- ta que penetra no tecido para a colorir nem o calor que se propaga ao metal tornando-o incandescente; ao invés, é Deus ele próprio que estabelece uma coincidência habitual, mas, em si, puramente milagrosa, de maneira que a cor alourada se produz no pano no momento em que é imerso no índigo e a incandescência no metal todas as vezes que é temperado no fogo. «Assim, quando o escriba move a pena não é ele a movê-Ia, mas este movimento é só um aci- dente que Deus cria na mão: Deus estabeleceu como hábito que o movimento da mão coincida com o da pena, e este com o produ- zir-se da escrita, sem que por isto a mão tenha qualquer influência causal no processo, pois que o acidente não pode agir sobre um ou- tro acidente ... Para o movimento da pena, Deus cria, então, quatro acidentes, que não são absolutamente causas uns dos outros, mas simplesmente coexistem juntos. O primeiro acidente é a minha vontade de mover a pena; o segundo, é a minha potência de me mover; o terceiro, o próprio movimento da mão; o quarto, enfim, o movimento da pena. Assim, quando o homem quer alguma coisa A primeira parte deste grafema, a letra, alif. j \ significa a descida do ser em potência para o atributo, a segunda, làm: a extensão do atributo para o acto e a terceira, mim: a descida do acro à manifestação. A equiparação entre a escrita e o processo da criação é aqui ab- soluta. O escriba que não escreve (do qual Bardeby é a última, ex- tremada figura) é a potência perfeita, que só um nada separa agora do acro de criação. I.4. Quem move a mão do escriba para a fazer passar ao acto de escrita? Segundo que leis se dá a transição do possível ao real? E se existe algo como uma possibilidade ou potência, que coisa, den- tro ou fora dela, a dispõe à existência? É sobre estas questões que se produziu, no Islão, a ruptura entre os mutakallimün, isto é, os teó- 16 17 e a faz, tal significa que primeiro foi criada para ele a vontade, de- pois a faculdade de agir e, por último, a própria acção.» Não se trata aqui simplesmente de uma concepção do acto cria- tivo diferente da dos filósofos; aquilo que os teólogos querem é quebrar para sempre a tabuinha de escrever de Aristóteles, apagar do mundo qualquer experiência da possibilidade. Mas o problema da potência, retirado da esfera humana, transfere-se para a divina. Por isto al-Ghazzãli, que, quando era um brilhante professor na ma- drassa de Bagdade, tinha sustido tenazmente, no livro que se intirula A Incoerência dos Filósofos, a posição dos ash'aritas, mais tarde, no curso das suas deambulações pela Cúpula do Rochedo, em Jerusalém, ou pelos minaretes de Damasco, é constrangido a confrontar-se novamente com a imagem do escriba. No Reavivamento das Ciências Religiosas compõe assim a apologia sobre a potência divina que inicia com: «Um iluminado pela luz de Deus depara-se com uma folha de carta escrita com tinta negra e pergunta-lhe: "como é que tu, que antes eras de ofuscante candor, estás agora coberta de sinais negros? Porque enegreceu o teu rosto?". "És injusto comigo, responde a folha, porque não fui eu a enegrecer o meu rosto. Interroga a tinta, que sem razão se moveu do tinteiro para se espalhar sobre mim". O ho- mem dirige-se então à tinta para receber explicações, mas esta res- ponde reenviando-o à pena, que a roubou à sua tranquila morada para a exilar na folha. Interrogada por sua vez, a pena reenvia-o à mão que, depois de a ter espalmado e cruelmente dividido na ponta, a submergiu na tinta. A mão, que diz não ser mais que carne e mise- ráveis ossos, convida-o a dirigir-se à Potência que a moveu; a Po- tência à Vontade e esta à Ciência, até que, de reenvio em reenvio, o iluminado chega ao fim ante os impenetráveis véus da Potência di- vina, dos quais uma voz terrível grita: "A Deus não se pedem con- tas daquilo que faz, enquanto a vocês serão pedidas contas".» O fatalismo islâmico (a quem deve o seu nome a figura mais obscura entre os habitantes dos Lager nazis, o «rnuçulmano») não tem, portanto, a sua raiz num comportamento de resignação, mas, pelo contrário, na límpida fé na operação incessante do milagre di- vino. Certo é, todavia, que do mundo dos mutakallimun (e dos seus correspondentes entre os teólogos cristãos) a categoria da possibili- dade foi no entanto apagada, toda a potência humana destituída de fundamento. Existe apenas o inexplicável movimento da pena divina e nada que o deixe pressagiar ou que o aguarde sobre a tabui- nha de escrever. Contra esta absoluta de-rnodalização do mundo, os folãsifa permanecem fieis ao legado de Aristóteles. Na sua inten- ção mais profunda, a filosofia é, de facto, uma firme reivindicação da potência, a construção de uma experiência do possível enquanto tal. Não o pensamento, mas a potência de pensar; não a escrita, mas a folha cândida é o que ela, a todo o custo, não quer esquecer. I.5. E, todavia, a potência é a coisa mais difícil de pensar. Pois se a potência fosse sempre e só potência, de fazer ou de ser alguma coisa, nunca a poderíamos experimentar como tal, mas, segundo a tese megárica, ela existiria somente no acto que a realiza. Uma ex- periência da potência enquanto tal só é possível se a potência for sempre também potência de não (fazer ou pensar alguma coisa), se a tabuinha de escrever poder não ser escrita. Mas é exactamente aqui que tudo se complica. Como é possível, de facto, pensar uma potên- cia de não pensar? O que significa, para uma potência de não pensar, passar ao acto? E se a natureza do pensamento é de ser em potên- cia, o que pensará? No LivroLambda da Metaflsica (1074 b 15-35), no ponto em que trata a mente divina, é com estas aporias que Aristóteles se agasta: 18 19 «A questão do pensamento implica algumas aporias. Ele parece ser o mais divino dos fenómenos, mas o seu modo de ser é pro- blemático. Se, de facto, não pensa nada (isto é, se se atérn à sua potência de não pensar), que coisa terá de digno? Será como alguém que dorme. Se, ao invés, ele pensa em acto alguma coisa, ficará subordinado ao que pensa, dado que o seu ser não é o pensamento em acto mas a potência; ele não será o ser mais no- bre, pois receberá a sua excelência do pensamento em acto (isto é, será determinado por outro e não pela sua própria essência, que é a de ser potência). E, quer a sua potência seja o pensamen- to em potência (o noUs) quer, ao invés, o pensamento em acto (nóésis), que coisa pensa? A si mesmo ou alguma outra coisa. Se pensa alguma outra coisa, pensará ou sempre a mesma ou sempre outra coisa. Mas não existe talvez diferença entre pen- sar o bem e pensar o que calha? É evidente, então, que pensará a coisa mais divina e venerável, e sem mudança (... ) Por outro lado, se ele não é pensamento em acto, mas potência de pen- sar, é sensato que a continuidade do pensar se lhe torne cansa- tiva. Além do mais, é claro que, neste caso, haveria alguma coisa mais excelente que o pensamento, isto é, o pensado; de facto, o pensar e o pensamento em acto pertencem também a quem pensa as coisas mais vis. Se isto deve ser evitado (existem coisas, de facto, que é melhor não ver), o pensamento em acto não po- derá ser o bem mais alto. Logo, ele pensa-se a si mesmo, se é o mais excelente, e o pensamento é pensamento do pensamento.» pensar nada e pensar alguma coisa, entre potência e acto. O pensa- mento que se pensa a si mesmo não pensa um objecto nem pensa nada: pensa uma pura potência (de pensar e de não pensar); e su- mamente divino e feliz é aquilo que pensa a sua própria potência. Mas a aporia agora resolvida volta de novo a emaranhar-se. Que coisa significa, de facto, para uma potência de pensar, pensar-se a si mesma? Como se pode pensar em acto uma pura potência? Como pode uma tabuinha de escrever sobre a qual nada está escrito diri- gir-se a si mesma, impressionar-se? Reíiectindo, no seu comentário ao De Anima, acerca do enigma da tabula rasae acerca do pensamento que se pensa a si mesmo, Alber- to Magno detém-se precisamente sobre estas questões. Averróis, com o qual declara «concordar em tudo», e que tinha também atri- buído ao pensamento em potência o nível mais alto, fazendo dele um ser único e comum a todos os indivíduos, tinha tratado de forma apressada exactarnente este ponto decisivo. E, no entanto, a tese aristotélica segundo a qual o próprio intelecto é inteligível não po- dia ser entendida no mesmo sentido em que se diz de um qualquer objecto que é inteligível. O intelecto em potência não é, de facto, uma coisa; ele não é senão a intentio através da qual alguma coisa é intendida, não é mais que uma cognoscibilidade e receptividade puras (pura receptibilitasi e não um objecto conhecido. Antecipando a tese wirtgensteineana sobre a impossibilidade da meta-linguagem, Alberto vê claramente que dizer que uma inteligibilidade se inrende a si mesma não pode significar reificã-la, cindi-la numa meta-inte- ligência e numa inteligência-objecto. A escrita do pensamento não é a de uma pena que uma mão estranha move para grafar a dúctil cera: antes, no ponto em que a potência do pen amento se dirige a si mesma e a pura receptividade sente, por assim dizer, o próprio não sentir, naquele ponto - escreve Alberto - «é como se as letras se A aporia é, aqui, que o pensamento supremo não pode nem pensar nada nem pensar alguma coisa, nem ficar em potência nem passar ao acto, nem escrever nem não escrever. E é para fugir a esta aporia que Aristóreles enuncia a sua célebre tese sobre o pensan1en- to que se pensa a si mesmo, que é uma espécie de ponto médio entre 20 21 que aquelas leituras lhe induzem, as suas categorias permanecem sem efeito sobre Barrleby. Crer que a vontade tenha poder sobre a potência, que a passagem ao acto seja o resultado de uma decisão que põe fim à ambiguidade da potência (que é sempre potência de fazer e de não fazer) - esta é precisamente a perpétua ilusão da moral. Os teólogos medievais distinguiam em Deus uma potentia abso- luta, segundo a qual ele pode fazer qualquer coisa (até, segundo al- guns, o mal, fazer que o mundo nunca tenha existido ou mesmo restituir a uma rapariga a virgindade perdida) e uma potentia ordi- nata, segundo a qual ele pode fazer somente aquilo que se acorda com a sua vontade. A vontade é o princípio que consente pôr ordem no caos indiferenciado da potência. Assim, se é verdade que Deus teria podido mentir, perjurar, encarnar-se numa mulher ou num ani- mal e não no Filho, todavia ele não quis fazê-lo, nem podia querê-lo, e uma potência sem vontade é totalmente sem efeito, não pode nun- ca passar ao acto. Barrleby repõe em questão precisamente esta supremacia da von- tade sobre a potência. Se Deus (pelo menos de potentia ordinata) pode verdadeiramente só aquilo que quer, Barrleby pode somente sem querer, pode só de potentia absoluta. Mas a sua potência não é, por isto, sem efeito, não fica por activar por um defeito de vontade: pelo contrário, ela excede por todos os lados a vontade (a própria e a dos outros). Invertendo o dito espirituoso de Karl Valentin (eter vontade, isso queria eu, mas não senti que a pudesse ter»), dele se poderia dizer que conseguiu poder (e não poder) sem absolutamen- te o querer. Daqui a irredutibilidade do seu «preferirei não». Não é que ele não queira copiar ou que queira não deixar o escritório- somente preferiria não fazê-lo. A fórmula, tão agudamente repetida, destrói qualquer possibilidade de construir uma relação entre po- der e querer, entre potentia absoluta e potentia ordinata. Essa é a fór- mula da potência. Il.2. Gilles Deleuze analisou o carácter particular da fórmula, aproximando-a àquelas expressões que os linguistas definem como agramaticais, como he danced his did em Cummings ou j'en ai un de pas assez, atribuindo a esta secreta agramaticalidade o seu poder devastante: «a fórmula desune as palavras e as coisas, as palavras e as acções, mas também os actos linguísticos e as palavras: ela corta a linguagem de qualquer referência, segundo a vocação absoluta de Barrleby, ser um homem sem referência, o que aparece e desaparece, sem referência a si ou a outro». Jaworski, por seu lado, observou que a fórmula não é nem afirmativa nem negativa, que Barrleby «não aceita nem rejeita, avança e retira-se no seu próprio avançar»; ou seja, como sugere Deleuze, que ela abre uma zona de indiscernibi- lidade entre o sim e o não, o preferível e o não preferido. Mas tam- bém, na perspectiva que aqui nos interessa, entre a potência de ser (ou de fazer) e a potência de não ser (ou de não fazer). É como se o to que a conclui, que tem carácter anafórico porque não reenvia di- rectamente a um segmento de realidade mas a um termo precedente do qual somente pode obter o seu significado, ao invés se absoluti- zasse, até perder toda a referência, dirigindo-se, por assim dizer, à própria frase: anáfora absoluta, que gira sobre si, sem reenviar já a um objecto real ou a um termo anaforizado (1 wouLd prefer not to prefer not to... ). De onde provém a fórmula? Citou-se, como possível percur- sor, um passo da carta a Hawthorn, no qual Melville faz o elogio do não contra o sim (<<Forali men who say yes, fie; and ali men who say no - why, they are in the happy condition ofjudicious, unincumbered trauelers in Europe; they crossthe frontiers into Eternity with nothing but a carpetbag- tbat is to say, the Ego»). A referência não poderia ser mais despropositada; Bartleby não consente, nem sequer sim- plesmente recusa, e nada lhe é mais estranho do que o páthos herói- co da negação. Existe uma só fórmula em toda a história da cultura 27 ocidental que se mantém em equilíbrio com semelhante decisão entre o afirmar e o negar, a aceitação e a recusa, o pôr e o tirar. Mor- fologicarnente e semanticamente próxima da li tania do escrivão, a fórmula é registada, além do mais, num texto que, no século XIX, era familiar a qualquer homem culto: as Vidas dos Filósofos de Dió- genes Laércio. Trata-se do ou mâllon, o não mais (non piuttosto)*, o termo técnico com que os cépticos exprimiam o seu pdthos mais próprio: a epocbê, o estar em suspensão. «Os cépticos» escreve Diógenes na VíM de Pirro «usam esta ex- pressão nem positivamente (thetikós) nem negativamente (anairetikós), como quando, refutando um argumento, dizem: "Cila existe não mais (ou mâllon) do que a Quimera"». O termo, porém, não deve se- quer ser entendido como um verdadeiro e rigoroso comparativo: «Os cépticos, com efeito, eliminam até o próprio "não mais"; como, de facto, a providência existe não mais do que não existe, assim também o "não mais" é não mais do que não é». Sexto Empírico também reba- te agudamente este particular estatuto auto-referencial do ou mãllon: «Como a proposição "todo o discurso é falso" diz que, tanto quanto as outras proposições, também ela é falsa, assim a fórmula "não mais" diz que ela mesma é não mais do que não é ... E mesmo se esta ex- pressão se apresenta como uma afirmação ou uma negação, não é, po- rém, neste sentido que nós a empregamos, mas sim em modo indiferente (adiaphórós) e em sentido abusivo (katakhréstikós)). Não se poderia caracterizar com maior precisão o modo em que o escrivão se serve da sua obstinada fórmula. Mas a analogia pode ser prosseguida também numa outra direcção. Depois de ter comentado o significado da expressão ou mâllon, Sexto, acrescenta: «E eis a coisa mais importante: no enunciado desta expressão, o céptico diz o fenómeno e anuncia o pdthos sem opinião alguma (apangéllei to pdthos adoksdstõs)». Ainda que não seja geralmente re- ferida como tal, também esta última expressão (pdthos apangéllein) é um termo técnico do léxico céptico. Encontramo-lo, de facto, novamente com o mesmo valor num outro passo das Hipotiposes Pirrónicas: «Quando dizemos "tudo é incompreensível", não pre- tendemos afirmar que aquilo que os dogmáticos procuram é por natureza incompreensível; limitamo-nos a anunciar a paixão (to beautoú pdthos apangéllontes)>>. Angéllo, apangéllo são os verbos que exprimem a função do dnge- los, do mensageiro, que leva simplesmente uma mensagem sem acrescentar nada ou, melhor, declara performativamente um evento (pólemon apangéllein vale por: declarar a guerra). O céptico não se li- mita a opor a afasia àphâsis, o silêncio ao discurso, mas desloca a lin- guagem do registo da proposição, que predica algo de alguma coisa (légein ti katd tinos), para o do anúncio, que não predica nada de nada. Mantendo-se na epochê do «não mais», a linguagem faz-se anjo do fenómeno, puro anúncio da sua paixão. Como precisa o advérbio adoksdstõs, paixão não indica aqui nada de subjectivo; o pdthos é pu- rificado de cada dóksa, de cada proveniência subjectiva, é puro anún- cio do aparecer, intimação do ser sem nenhum predicado. Sob esta luz, a fórmula de Bartleby mostra toda a sua pregnân- cia. Ela inscreve aquele que a pronuncia na estirpe dos dngeloi, dos mensageiros. Um destes é o Barnabé kafkaniano, de quem se diz que «talvez não fosse senão um mensageiro e ignorava o conteúdo das cartas que lhe eram confiadas, mas também o seu olhar, o seu sorriso, o seu jeito de andar, pareciam uma mensagem, mesmo se o não soubesse». Como mensageiro, Barcleby «havia sido aboletado para um qualquer misterioso desenho de uma omnisciente Provi- * Pelo uso frequeme e pela importância e qualidade deste termo técnico. difícil de ver- ter para português - termo que traduz o advérbio comparativo grego mãllon, «mais [do que]», e que vale por «isto de preferência a isto» -. deixamos. sempre que necessário para es- clarecer a leitura. o equivaleme italiano entre parênteses - ipiuttosto) -. de maneira a per- mitir acompanhar o sentido que o autor pretende dar ao texto e ao referido termo. (N M T.) dência, que um mero mortal não pode sondar». Mas se, manten- do-se teimosamente em equilíbrio entre a aceitação e a recusa, en- tre a negação e a posição, a fórmula que ele repete predica nada de nada e subtrai-se, por fim, também a si mesma, qual é a mensagem que ele nos trouxe, que coisa anuncia a fórmula? razão suficiente, que o seu mestre Leibniz tinha deixado sem de- monstração, Wolff explica que à nossa razão repugna admitir que al- guma coisa possa acontecer sem uma razão. Se se tira, de facto, este princípio, «o mundo verdadeiro» ele escreve «transforma-se num mundo de fábula, no qual a vontade dos homens faz de razão para o que acontece (mundus verus abit in mundum fobulosum, in quo uo- luntas hominis stat pro ratione eorum, quae jiunt)>>.O mundus fobulo- sus, de que aqui se trata, é «aquela fábula absurda que contam as velhas e que na nossa língua vernácula se chama Schlaraffenland, país da Cocanha ... Apetece-te uma cereja, e eis que ao teu comando apa- rece uma cerejeira carregada de frutos maduros. A uma tua ordem, o fruto voa para a tua boca, e, se assim queres, divide-se no ar em me- tade, de maneira a deixar cair o caroço e as partes murchas, para que não tenhas de as cuspir. Pombas no espeto esvoaçam no céu e espon- taneamente se enfiam na boca de quem tem fome». O que verdadei- ramente repugna à mente do filosofo não é, porém, que vontade e capricho substiruam a razão na esfera das coisas, mas o facto que, deste modo, a ratto seja eliminada até mesmo do reino da vontade e da potência.« ão só não existe outro princípio da possibilidade nem outro princípio da acrualidade exterior ao homem, como nem mesmo a vontade tem outro princípio para o seu querer; mais, é in- diferente a querer seja o que for. Portanto, nem mesmo quer por de- sejar (ideo nimirum uult, quia libet): não há, de facto, razão nenhuma para que queira isto mais do que aquilo.» Não é verdade, portanto, que, tirando o princípio de razão, o arbítrio dos homens tome o lugar da ratio, transformando o mundo verdadeiro em fábula; é ver- dade precisamente o contrário, ou seja, que também a vontade, eli- minada a ratio, caía em ruína juntamente com ela. No ascético SchlaraJfenland, no qual Bardeby se sente em casa, há só um não mais (piuttosto) inteiramente liberto de toda a ratio, uma preferência e uma potência que não servem já para assegurar 1I.3. «Os cépticos entendem por potência-possibilidade (djna- mis) uma qualquer contraposição dos sensíveis e dos inteligíveis: deste modo, em virtude da equivalência que se encontra na oposição das palavras e das coisas, nós alcançamos a epochê, o estar suspen- so, que é uma condição em que não podemos nem pôr nem negar, nem aceitar nem recusar». Segundo esta singular anotação de Sexto, os cépticos viam no estar suspenso não uma simples indiferença, mas a experiência de uma possibilidade ou de uma potência. Aquilo que se mostra no limiar entre ser e não ser, entre sensível e inteligível, entre palavra e coisa, não é o abismo incolor do nada, mas o raio luminoso do possível. Poder significa: nem pôr nem negar. Mas de que modo aquilo que-é-não-mais-que-não-é conserva ainda em si alguma coisa como uma potência? Leibniz expressou certa vez.a potência originária do ser na forma de um princípio, que se costuma definir como «princípio de razão suficiente». Este diz: ratio est eur aliquid sit potius quam non sit, «há uma razão para que algo exista mais (piuttosto) que não exista». En- quanto não se deixa reconduzir nem ao pólo do ser nem ao do nada, a fórmula de Barrleby (como o seu arquétipo céptico) torna a pôr em questão este «mais forte de todos os princípios» exercendo força exac- tamente no potius, no mais (piuttosto) que lhe articula a escansão. Extraindo-o à força do seu contexto, a fórmula emancipa a potência (potius, de potis, vale por «mais porenre») tanto da sua conexão a uma ratio como da sua subordinação ao ser. Comentando o princípio de 30 sado) é posto por Aristóteles na boca do poeta trágico Agatão: «Re- lativamente ao passado não existe vontade. Por isto ninguém quer que Tróia tenha sido saqueada, porque ninguém decide sobre aquilo que aconteceu, mas apenas sobre aquilo que será e é possível; o que aconteceu não pode, de facto, não ter acontecido. Daí Agatão ter razão em dizer: "Apenas sobre esta coisa Deus não tem poder: fazer que não sejam as coisas feitas" (Ética Nicomaqueia II39 b 6-10)>>. É o princípio que os latinos exprimiam na fórmula: foctum infectum fieri nequite que, no De Caelo, Aristóteles rearticula em termos de impossibilidade de realizar a potência do passado: «não existe ne- nhuma potência do ter sido, só do ser e do a ser». O segundo princípio, estreitamente entretecido no primeiro, é o da necessidade condicionada, que limita a força da contingência sobre o ser em acto. Aristóteles exprime-o deste modo: «é necessá- rio que o que é, enquanto é, seja, e o que não é, enquanto não é, não seja» (De Interpretatione 19 a 22). Wolff, que o compendia na fór- mula: quodLibet, dum est, necessario est, define este princípio como um canon tristissimus in philosophia e funda-o, não sem razão, sobre o princípio de contradição (<<É impossível que A seja e ao mesmo tempo não seja»). A convincente lógica deste segundo princípio, pelo menos em relação à potência, é, porém, tudo menos segura. O próprio Aristóteles parece mais de uma vez desrnenti-lo, escreven- do, na Metafisica (1047 a), que «toda a potência é, no mesmo mo- mento (hdma), potência do contrário» chegando a afirmar sem reservas que «aquele que caminha tem a potência de não caminhar e aquele que não caminha a de caminhar». O facto é que, como virá Escoto a esclarecer, se existe contra- dição entre duas realidades em acto opostas (ser e não ser p), nada impede que algo seja em acto e conserve, todavia, ao mesmo tempo, apotência de não ser ou de ser de outro modo. «Como contingente», ele escreve, «entendo, não alguma coisa que não é necessária nem eterna, mas alguma coisa cujo oposto poderia ter acontecido no exacto momento em que ela advérn». Assim eu posso, no mesmo instante, agir de um modo e poder agir de outro (ou não agir de todo). Melhor, Escoto chama vontade não tanto à decisão quanto à experiência da constitutiva e irredutível co-pertença de poder e poder não, de querer e querer não. Segundo a fórmula lapidar a que ele confia o único sentido da liberdade humana: experitur qui vult seposse non velle, aquele que quer faz a experiência de poder não querer. A vontade é (como o inconsciente freudiano, com a sua constiruriva ambivalência) precisamente a única esfera subtraída ao princípio de contradição: «somente a vontade é indiferente aos contrários (voluntas sola habet indifferentiam ad contrarias», porque «tem em seu poder, relativamente a um mesmo objecto, tanto o querer como o não querer, que mesmo assim são contrários». Sem recuar perante as consequências desta tese, Escoto estende o carác- ter contingente de cada querer também à vontade divina e ao acto de criação: «No próprio acto de vontade, Deus quer os contrários, não que estes existam juntos, porque isso é impossível, mas quere-os conjuntamente; igualmente é através de uma mesma intuição, ou de uma mesma ciência, que ele sabe que os contrários não existem juntos e que, todavia, são conhecidos conjuntamente no mesmo acto cognitivo, que é um único acto». E contra aqueles que põem em dúvida a contingência, ele pro- põe, com feroz ironia, o experimento que já Avicena tinha sugerido: «os que negam a contingência deveriam ser torturados até que admi- tam que também poderiam não o ter sido». Ill. 3. A contingência é ameaçada por uma outra objecção, se- gundo a qual o necessário verificar-se ou não verificar-se de um even- to futuro retroage sobre o momento da sua previsão, cancelando-lhe 37 a contingência. É o problema dos «futuros contingentes», que Leib- niz, na Teodiceia, compendia, uma vez mais sob o signo da escrita, numa seca abreviatura: «já era verdade há cem anos que hoje escre- verei, como daqui a cem anos será verdade que hoje escrevi». Supo- nhamos que alguém diga que amanhã se dará ou não se dará uma batalha naval. Se no dia seguinte a batalha se verifica, então era já verdade no dia antes dizer que ela se teria realizado, o que significa que ela não podia não realizar-se; se, vice-versa, a batalha não se ve- rifica, então era já sempre verdade dizer que não se teria realizado, o que significa que a sua realização era impossível. Em ambos os ca- sos, necessidade e impossibilidade inserem-se na contingência. Na teologia medieval, o problema dos futuros contingentes liga-se dramaticamente ao da presciência divina, tornando a pôr em questão o livre arbítrio da vontade humana, ou então destruindo a própria possibilidade da revelação da vontade divina. Por um lado, uma férrea necessidade, que, sendo o futuro necessário, tira todo o sentido à decisão; por outro, uma contingência e uma incerteza abso- lutas, que implicam o próprio Cristo e os anjos. «Suando sangue no Gethsemani», assim argumenta por absurdo a quaestio bíblica de Richard Fitzralph, professor em Oxford nos primeiros anos do sécu- lo XIV, «Cristo previa a sua morte não mais que a continuação da sua vida e os anjos no céu não prevêem as suas próprias eternas bea- tirudes não mais do que mostram as suas eternas misérias, pois sabem que, se agradasse a Deus, poderiam ser para sempre miseráveis». Como impedir o argumento depraesenti ad praeteritum, que ar- ruína a contingência do futuro, sem, no entanto, tirar toda a certeza aos enunciados sobre ele? A solução de Aristóteles é elegante: «que cada coisa seja ou não seja é necessário», escreve no De Interpretati- one (19 a 28-32) «como também que será ou não será; todavia, não certamente que, tendo-as separadas, se diga que uma ou outra é necessária. Digo, por exemplo, que amanhã se dará uma batalha naval ou não se dará, todavia, não é necessário que uma batalha na- val se verifique nem que não se verifique». Ou seja, a necessidade não diz respeito ao verificar-se ou ao não verificar-se do evento entendidos disjuntamente, mas sim à alterna- tiva «se-verificará-e-não-se-verificará» no seu conjunto. Por outras palavras, só a taurologia (em sentido wittgensreineano) «amanhã dar-se-a ou não se dará uma batalha naval» é necessariamente sem- pre verdadeira, enquanto cada um dos dois membros da alternativa é restituído à contingência, à sua possibilidade de ser e de não ser. Tanto mais inevitável é, contudo, nesta perspectiva, manter firme o princípio de necessidade condicionada. Por isto Aristóteles deve definir o potente-possível (dynatós) nestes termos: «É potente- -possível aquilo pelo qual quando se realiza o acto do que se diz ter a potência, nada será de potente não ser» (Metajisica 1047 a 24-26). As últimas três palavras da definição (<<outhenéstaiadjnaton») não significam, segundo um equivoco comum que torna a tese de Aristó- reles completamente trivial, «nada existirá de impossível» (ou seja: é possível aquilo que não é impossível); antes - como mostra a análoga definição do contingente em Analiticos Primeiros 32 a 18-20 (e também aqui a tradução corrente deve ser emendada deste modo: «digo poder advir também o contingente, do qual, posto que, não sendo necessário, exista, nada será por isto de potente não ser») - ela sanciona a condição à qual o possível, que pode ser e não ser, pode realizar-se. O contingente pode passar ao acro só no ponto em que depõe toda a sua potência de não ser (a sua adynamía), isto é, quando nele «nada existirá de potente não ser» e ele poderá, por isto, não não-poder. Mas como se deve entender esta nadificação da potência de não ser? E o que é daquilo que podia não ser, uma vez que o possf- vel se realizou? 39 1Il.4. Na Teodiceia,Leibniz justificou o direito daquilo que acon- teceu contra aquilo que podia ser e não aconteceu com um apólo- go tão grandioso quanto terrível. Prolongando a história narrada por Lorenzo Valia, no seu diálogo De Libero Arbítrio, ele imagina Sexto Tarquínio - insatisfeito com a resposta do oráculo de Apoio em Delfos, que lhe anunciou infortúnio se quisesse ser Rei de Roma - a dirigir-se ao templo de [úpiter em Dodona e acusar o deus de o ter condenado a ser malvado, pedindo-lhe para mudar a sua sor- te ou, pelo menos, confessar o próprio erro. À recusa de J úpiter, que o convida ainda uma vez a renunciar a Roma, Tarquínio sai do templo e abandona-se ao seu destino. Porém, o sacerdote de Dodo- na, Teodoro, que assistiu à cena, quer saber mais. Tendo-se dirigido, por conselho de Júpiter, ao templo de Palas em Atenas, cai aí num sono profundo e, em sonho, vê-se transportado a um país desconhe- cido. Aqui a deusa mostra-lhe o Palácio dos Destinos, uma imensa pirâmide de cume resplandecente cuja base se precipita até ao infi- nito. Cada uma das inumeráveis salas que compõem o palácio re- presenta um destino possível de Sexto, ao qual corresponde um mundo possível, mas que não se realizou. Numa das salas, Teodoro vê Sexto sair do templo de Dodona persuadido pelo deus: dirige-se a Corinto, compra um pequeno jardim, descobre, cultivando-o, um tesouro, e vive feliz até à velhice, amado e considerado por todos. Numa outra, Sexto está na Trácia, onde casa a filha do rei e herda-lhe o trono, soberano feliz de um povo que o venera. Numa outra, vive uma existência medíocre mas sem dor e assim, de sala em sala, de destino possível em destino possível. <<Asalas formavam uma pirâ- mide e tornavam-se mais belas à medida que, ascendendo até ao topo, representavam mundos melhores. Atingiram por fim a mais alta, que culminava a pirâmide e era de todas a mais esplêndida; por- que a pirâmide tinha um início, mas não se lhe via o fim; tinha um vértice, mas nenhuma base, porque se alargava ao infinito. Isto acon- tece, explicou a deusa, porque entre uma infinidade de mundos pos- síveis, existe um que é o melhor de todos, de outro modo Deus não teria decidido criá-lo: mas não existe nenhum que não tenha sob si um menos perfeito; por isso a pirâmide desce sem fim. Teodoro pe- netrou na sala suprema e ficou extasiado ... Estamos no verdadeiro mundo actual, disse-lhe a deusa, e vós estais na própria origem da alegria. Eis o que Júpiter vos prepara, se continuardes a servi-lo fiel- mente. E eis Sexto, tal qual é e será. Sai do templo cheio de cólera, desprezando o conselho dos deuses. Vede que corre para Roma, semeando desordem por todo o lado e violando a mulher do seu amigo. Ei-lo esmagado junto ao pai, derrotado, infeliz. Se J úpiter tivesse escolhido aqui um Sexto feliz em Corinto ou rei na Trácia, já não teria sido este mundo. E, todavia, ele não podia senão esco- lher este mundo, que supera em perfeição todos os outros, e ocupa o pico da pirâmide». A pirâmide dos mundos possíveis representa o intelecto divi- no, em cujas ideias, escreve algures Leibniz, «os possíveis estão con- tidos desde sempre». A mente de Deus são os cárceres de Piranesi ou, antes, o mausoléu egípcio que guarda, nos séculos dos séculos, a imagem daquilo que não aconteceu mas poderia ter acontecido. E é a este imenso mausoléu, diz Leibniz, que o deus, que escolheu o melhor dos mundos possíveis (isto é, aquele que é maximamente possível, porque contém o maior número de eventos entre si com- possíveis), regressa por vezes em visita, «para dar-se ao prazer de reca- pitular as coisas e confirmar a sua escolha, de que não pode deixar de se alegrar». É difícil imaginar alguma coisa mais farisaica que este demiurgo que contempla todos os incriados mundos possíveis para comprazer-se da sua única escolha. Dado que, para o fazer, ele deve fechar as próprias orelhas à incessante lamentação que, das in- finitas salas deste inferno barroco da potência, se eleva de tudo o que podia ser e não se realizou, de tudo aquilo que poderia ter sido 4° come nem tem fome; perdão para os que morreram desesperados, esperança para os que morreram sem a ter, a boa nova para quantos morreram opressos por fatais calamidades. Mensageiros de vida, estas cartas correm para a morte». Não se poderia sugerir mais clara- mente que as cartas nunca entregues são a cifra dos eventos afortu- nados que poderiam ter acontecido, mas não se realizaram. Aquele que se realizou é, antes, a possibilidade contrária. A carta, o acto de escrita, grafa, sobre a tabuinha do escriba celeste, a passagem da potência ao acto, o verificar-se de um contingente. Mas, mesmo por isto, cada carta grafa também o não verificar-se de alguma coisa, é sempre também, neste sentido, «carta morta». É esta intolerável verdade que Barcleby aprendeu no Serviço de Washington, este é o significado da fórmula singular: «mensageiros de vida, estas cartas correm para a morte (on errands oflifo, those letters speed to death)», Não se notou até agora que esta fórmula é, na realidade, uma citação mal camuRada da carta aos Romanos 7,10: heuréthê moi hê entolê bê eiszõên, autê eis thânaton, na tradução inglesa que Melville tinha diante dos olhos: «And the commandment, which was ordai- ned to life, I found to be unto death (entolê indica o mandamento, aquilo que foi enviado para um fim - daí epistolê, carta - e é me- lhor traduzido por errand que por comandmenà». o texto de Pau- lo, o mandamento - a entolê - é o da Lei, do qual o cristão foi libertado. O mandamento refere-se à «antiguidade da letra», à qual o apóstolo contrapõe pouco antes a «novidade do espírito» (Rom. 7,6: «But now toe are delivered from the Laui that being dead where toe were beld; that we should serve in newness ofspirit, not in tbe old- ness 01 tbe letter»; cf também 2 Cor. 3,6: «tbe letter killeth, but the spirit giveth tifo»). Não só a relação entre Barcleby e o homem de leis mas também aquela entre Bartleby e a escrita adquire, nesta perspectiva, um novo sentido. Bardeby é um Law-copist, um escri- ba no sentido evangélico, e a sua renúncia à cópia é também uma renúncia à Lei, um liberar-se da «antiguidade da letra». Como em JosefK., também em Barcleby os críticos viram uma figura de Cristo (Deleuze diz: «um novo Crisro»), que vem para abolir a velha Lei e para inaugurar um novo mandamento (ironicamente, é o próprio homem de leis a recordá-lo: <<14 new commandment give I unto you, that ye love one anotber»]. Mas se Bardeby é um novo Messias, ele não vem, como Jesus, para redirnir o que aconteceu, mas para sal- var o que não aconteceu. O Tártaro, a que ele, novo salvador, des- ce, é o mais profundo subterrâneo do Palácio dos Destinos, aquele que Leibniz não tolera ver, o mundo onde nada é compossível com outro, onde «nada é mais que alguma coisa». E ele não vem para trazer uma nova tábua da Lei, mas, como nas especulações cabalís- ticas sobre o reino messiânico, para findar a Torah destruindo-a de cima a baixo. A Escritura é a lei da primeira criação (que os cabalis- tas chamam «Torah de Beriab»), na qual Deus criou o mundo a partir da sua potência de ser, mantendo-a separada da sua potência de não ser. Cada letra desta Torah é, por isso, dirigida tanto para a vida como para a morte, significa tanto o anel como o dedo a que era dirigido e que apodrece no túmulo, tanto o que foi como o que não pôde ser. A interrupção da escrita marca a passagem à criação segunda, na qual Deus reclama para si a sua potência de não ser e cria a par- tir do ponto de indiferença de potência e impotência. A criação que agora se realiza não é uma recriação nem uma repetição eterna, mas, antes, uma decriação, na qual o que foi e o que não aconteceu são restituídos à sua unidade originária na mente de Deus e o que podia não ser e aconteceu esfuma-se no que podia ser e não aconteceu. Um neoplarónico persa exprimiu certa vez a parte sombria que a contingência marca sobre cada criatura através da imagem da asa tenebrosa do arcanjo Gabriel: 47 «Sabe que Gabriel tem duas asas. A primeira, a direita, é luz pura. Esta asa é a única e pura relação do ser de Gabriel com Deus. Há nele depois a asa esquerda. Esta está manchada por uma marca tenebrosa que se assemelha à cor avermelhada da lua na alba ou à das patas do pavão. Esta marca de treva é o seu poder ser, que tem um lado virado para o não ser (dado que ele, como tal, tem também um poder não ser). Se consi- deras Gabriel quanto ao seu acto de ser através do ser de Deus, então o seu ser é dito necessário, dado que sob este aspecto, ele não pode não ser. Mas se o consideras quanto ao direito da sua essência em si, este direito é imediatamente, e na mesma medida, um direito a não ser, dado que tal direito compete ao ser que não tem em si o seu poder ser (e é, por isto, um poder não ser).» mandamento de vida, corre para a morte. E aqui está finalmente em casa a criatura, salva porque não redimível. Por isto, o pátio mu- rado «não é assim um lugar tão triste». Ai há o céu e há a erva. E a criatura sabe perfeitamente «onde se encontra». A decriação é o voo imóvel que se sustém só sobre a asa negra. A cada bater desta asa, tanto o mundo actual como os possíveis são reconduzidos, um, ao direito de não ser, e os segundos, ao seu di- reito de ser - Sexto tirano desgraçado em Roma e Sexto campo- nês feliz em Corinto indererrninam-se até coincidir. Este voo é a balança eterna, sobre o único prato da qual o melhor dos mundos possíveis é mantido em zeloso equillbrio pelo contrapeso do mun- do impossível. A decriação acontece no ponto onde Bartleby jaz, no «coração das pirâmides eternas» do Palácio dos Destinos, dito também, segundo a irónica intenção desta teodiceia invertida, ce- las da judiciária (the Halls ofJustice). A sua palavra não é o Juizo, que confere ao que aconteceu a sua recompensa ou o seu perpétuo castigo, mas Palingénese, Apokatástasis pântõn, em que a nova cria- tura alcança o centro inverificável do seu «se-verificar-ou-não-se- -verificar». Aqui termina para sempre a viagem da carta que, em 49 CARTE POSTALH “eus los pago dirangere afscenpieot pas In correspondanto mu recto qe à ta poste) Cormupontance Mon S nto 07. Choe hum, mento be forl A" rirrer A mir eco A Alfred Altar Jem”, pm pre tao bacias fer Arma, o bicatol de am 2 - minha tranquilidade. Sou um daqueles homens de leis pouco ambiciosos que nunca se dirige a um júri, que nunca chama a si os aplausos do público; mas que na serena tranquilidade de um confortável retiro negoceiam confor- tavelmente com obrigações, hipotecas e títulos pertença dos ricos. Todos os que me conhecem, consideram-me um homem eminentemente seguro. O fa- lecido John Jacob Astor, um personagem pouco dado a entusiasmos poéti- cos, não teve qualquer hesitação em afirmar que o meu grande trunfo era a prudência, logo seguido pelo método. Não digo isto por vaidade, registo simplesmente o facto, que nunca o defunto [ohn Jacob Astor me deixou sem trabalho na minha profissão; nome que, admito-o, eu gosto de repetir, por- que tem nele um som redondo e orbicular, que retine como oiro em barra. Acrescento de livre vontade que eu não era indiferente à boa opinião que o falecido John Jacob Astor tinha de mim. Algum tempo antes do período em que tem início esta história, as mi- nhas ocupações tinham-se consideravelmente alargado. O bom e velho cargo, hoje extinto no Estado de Nova Iorque, de Master in Chancery, havia-me sido conferido. O trabalho não era muito penoso, e era muito agradavelmente re- munerado. Raramente perco a calma, e ainda mais raras são as vezes em que me permito uma imprudente indignação perante injustiças ou afrontas. Mas permitam-me neste particular ser algo brutal e declarar que considero a abo- lição súbita e violenta do cargo de Master in Chancery, expressa na nova Cons- tituição, como um ... acto prematuro; porquanto eu contara com proventos vitalícios, e afinal somente vim a auferir os de uns quantos anos. Mas isto é um aparte. Os meus escritórios encontravam-se instalados num andar superior do n. o ... de Wall Streer. De um lado davam para a parede branca do interior de um espaçoso saguão com clarabóia, que ia de alto a baixo do edifício. Um tal panorama não podia deixar de ser considerado incaracterfsrico, falho daquilo a que os paisagistas chamam «vida». Mas, assim sendo, o pano- rama da outra ponta oferecia, pelo menos, um contraste, se mais não fosse. Nessa direcção, as janelas ofereciam a visão ampla de uma alta parede de ti- jolo, negra devido à idade e à sombra permanente, parede que naturalmente não exigia qualquer luneta que dela extraísse belezas ocultas, mas que, para benefício de quantos fossem míopes, se encontrava somente a cerca de qua- tro metros dos vidros da minha janela. Devido à grande altura dos edifícios circundanres e ao facto de os meus escritórios serem no segundo piso, o inter- valo entre essa parede e a minha assemelhava-se bastante a uma grande cis- terna quadrada. No período imediatamente anterior ao advento de Bartleby, tinha ao meu serviço dois copistas, e um rapaz prometedor como moço de recados. Primeiro, Turkey, segundo, Nippers, terceiro, Ginger Nut'. Podem parecer nomes que em geral se não encontram num anuário. Na realidade eram al- cunhas que os meus três empregados se tinham mutuamente posto, e que era suposto reflectirem os temperamentos respectivos. Turkey era um Inglês baixo e gordinho, mais ou menos da minha idade - ou seja, ai não muito longe dos sessenta. Digamos que de manhã o seu rosto apresentava um agra- dável matiz rosado, mas que após o meridiano - doze horas -, hora do seu almoço, brilhava como a grelha de um fogão de carvões de Natal; e continua- va a brilhar - mas, mesmo assim, com uma diminuição gradual- até cerca das seis horas da tarde; após o que eu deixava de ver o proprietário do rosto, que alcançando o seu meridiano com o sol, parecia igualmente pôr-se com aquele, levantar-se, atingir o zénite, e declinar no dia seguinte, com a mesma regularidade e idêntica glória. No decorrer da minha existência tive oportu- nidade de observar muitas coincidências singulares, e a menor delas não foi certamente esta, é que exactamente quando Turkey exibia em toda a sua glória o seu vermelho e radioso semblante, era precisamente nessa altura que, mo- mento crítico, tinha inicio o período diário durante o qual eu considerava as suas capacidades de trabalho seriamente perturbadas para o resto do dia. Não que ele ficasse por completo ocioso, ou adverso a trabalhar, longe disso. A dificuldade residia precisamente no facto de ele se tornar demasiado acti- vo. Possuido de desastrosa agitação, ficava esquisito, inflamado, caprichoso e excitado. Tornava-se desastrado, quando molhava o aparo no tinteiro. Todos os borrões que apareciam nos documentos, eram lá depositados depois das doze - o meridiano. Na verdade ele ficava não só imprudente, tristemente dado a fazer borrões depois do almoço, como, alguns dias, ia mais longe, tor- nando-se bastante barulhento. Nessas alturas, então, o seu rosto resplandecia 77 mais, como se tivéssemos misturado hulha e antracite. Fazia um ruido desa- gradável com a cadeira, entornava o areeiro; ao consertar os aparos, de impa- ciência desfazia-os em bocados, e com a fúria atirava com eles para o chão. Levantava-se, inclinava-se sobre a secretária, dava murros nos papéis de uma maneira pouco digna e bem triste de observar num homem daquela idade. No entanto, como ele era a vários títulos alguém que me era imprescindível, e até ser meio-dia, o tal rneridiano, era a mais rápida das criaturas, realizando uma grande quantidade de trabalho de um modo que era difícil de igualar - por isto estava disposto a não fazer caso das suas excentricidades, embora na verdade o repreendesse uma vez.por outra. Usava no entanto de brandura, pois que sendo o homem mais cordato, educado e reverente durante a ma- nhã, contudo, da parte da tarde, e se provocado, era capaz de ser atrevido - se não mesmo insolente. Assim, apreciando os serviços prestados de manhã, e disposto a não os perder - e apesar de me sentir incomodado pelo seu in- flamado proceder após as doze - e sendo um homem de paz, não desejoso de, pelas minhas admoestações, desencadear inconveniências por parte dele, resolvi falar-lhe, um sábado pelo meio-dia (estava sempre pior aos sábados). Sugeri-lhe, brandamente, que talvez agora que ele estava a ficar mais velho, fosse melhor encurtar o horário de trabalho; ou seja, que não precisava de vol- tar ao escritório após o meio-dia; que, terminado o almoço, era melhor ir para os seus aposentos, para casa, e descansar até à hora do chá. Mas não, ele insis- tiu em cumprir as suas obrigações da parte da tarde. O seu aspecto tornou-se extraordinariamente inflamado, quando me assegurou teatralmente - ges- ticulando com uma régua comprida no lado oposto da sala - que se os seus serviços eram úteis de manhã, como não seriam indispensáveis, à tarde? - Com o devido respeito, senhor - disse na altura Turkey -, consi- dero-me o seu braço direito. Pela manhã, formo e disponho as minhas tro- pas, e de tarde ponho-me à frente delas, e galantemente carrego sobre o inimigo, assim - e fez um movimento violento, em frente, com a régua. - Mas os borrões, Turkey - insinuei. - É verdade, mas senhor, com o devido respeito, veja esta cabeleira! Estou a envelhecer. Certamente que um borrão ou dois, senhor, e numa tarde de irritação, não são motivo para lançar recriminações contra uns cabelos grisalhos. A velhice - mesmo quando esborrata a página - é honrosa. E, senhor, com o respeito que lhe é devido, ambos estamos a ficar velhos. Este apelo a sentimentos que eu partilharia, não se lhe podia resistir. De qualquer maneira, eu via que ele ir-se embora não iria. Decidi pois deixá-Ia ficar, resolvendo, no entanto, dispor as coisas de modo a que, durante a tar- de, ele ficasse com os documentos menos importantes. Nippers, o segundo da minha lista, era um rapaz de suíças, arnarelento, e com uma aparência geral que o assemelhava a um pirata, rondando os vinte e cinco anos. Sempre me pareceu vítima de dois poderes malignos: a ambi- ção e a indigestão. A ambição evidenciava-se numa certa impaciência para com os seus deveres de mero copista, uma indesculpável usurpação de assuntos estritamente profissionais, tal como redigir ele próprio documentos legais. A indigestão parecia manifestar-se por vezes numa certa petulância nervosa, nuns esgares de irritação, que provocavam um ranger de dentes perfeitamente audível - tudo devido a erros cometidos ao copiar; maldições desnecessá- rias, sibiladas em vez de proferidas, no afã do trabalho; e muito especialmente por um descontentamento, continuado, com a altura da escrivaninha onde trabalhava. Embora muito engenhoso para tudo quanto era mecânico, Nippers jamais conseguiu ter a escrivaninha a seu contento. Punha-lhe calços, frag- mentos de material vário, pedaços de cartão, e por fim foi ao pontO de fazer um singular ajuste com bocados de mata-borrão dobrados. Mas nenhuma das invenções resultava. Se, com o intuito de aliviar as costas, levava o tampo da mesa a fazer um ângulo agudo com o queixo, e ali escrevia tal como o ho- mem que usasse o telhado bastante inclinado de uma casa holandesa como escrivaninha, era então que se punha a dizer que isso lhe parava a circulação, nos braços. Se no entanto ele baixava o tampo até à cintura, e se inclinava so- bre ele ao escrever, logo lhe aparecia uma dor irritante nas costas. Em resumo, a verdade é que Nippers não sabia o que queria. Ou, se queria realmente algu- ma coisa, era ver-se completamente livre da mesa de copista. Entre as mani- festações da sua doentia ambição, uma era a de gostar de receber indivíduos de aspecto equívoco, com casacos surrados, a quem chamava seus clientes. Na realidade, eu sabia que ele não somente era, por vezes, um político de bairro com talento, mas que em certas alturas fazia igualmente serviços nos 79 tribunais, e que não era desconhecido nas Tombs'. Tenho boas razões para acreditar, no entanto, que um certo indivíduo que o procurava no meu escri- tório, e o qual, dando-se grandes ares, ele insistia em considerar seu cliente, não passava de um credor, e o suposto título que trazia consigo, uma factura. Mas com todos os seus defeitos, e com todos os aborrecimentos que me cau- sava, ippers, tal como o seu camarada Turkey, era-me extremamente útil; escrevia depressa, com boa caligrafia, e, quando queria, não era falho de uma certa conduta de cavalheiro. Acrescente-se que se vestia com uma certa ele- gância, e, assim, acrescentava algum lustro mais aos meus escritórios. Já com respeito a Turkey eu tinha muita dificuldade em que ele não se tornasse um motivo de censura para a minha pessoa. A sua roupa parecia sempre sebenta e tresandava a casa de pasto. Usava calças muito largas e demasiado folgadas, no Verão.As jaquetas eram medonhas, e no chapéu nem se lhe podia tocar. Mas enquanto o chapéu pouco me importava, porquanto, devido às suas maneiras e deferência, naturais nele como em qualquer Inglês sem meios próprios, sem- pre o tirava no momento em que entrava na sala - já com a jaqueta era dife- rente. No que diz respeito às suas jaquetas, várias V($!S discuti com ele, mas não serviu de nada. A verdade era provavelmente que, julgo eu, um homem com tão poucos rendimentos não se podia dar ao luxo de exibir ao mesmo tempo uma face brilhante e uma jaqueta igual. Como certa vez disse Nippers, o di- nheiro de Turkey ia principalmente para tinta encarnada. Um dia de Inverno, presenteei Turkey com uma casaca minha muito decente - cinzenta, acol- choada, quente e confortável, que se abotoava dos joelhos ao pescoço. Julguei que Turkey apreciasse esta atenção, e moderasse a sua rudeza, os seus descon- trolados arrebatamentos, de tarde. Mas pelo contrário. Acredito piamente que o facto de se abotoar a si próprio com uma casaca tão macia como um cober- tor teve sobre ele uma influência perniciosa - isto segundo o princípio de que demasiada aveia é mau para os cavalos. De facto, e tal como se diz de um cavalo fogoso e irrequieto que sente a aveia dada, assim Turkey sentia a casa- ca. Fê-Ia insolente. Era alguém a quem a prosperidade prejudicava. Embora em relação aos hábitos autocornplacentes de Turkey, eu tivesse as minhas próprias conjecturas, no entanto, no que diz respeito a Nippers, estava convencido de que, quaisquer que fossem as suas faltas noutros aspec- tos, ele era pelo menos um rapaz sóbrio. Que na verdade a própria Natureza parecia ter sido o seu taberneiro, visto que logo à nascença o carregara com uma natureza irritável, como a da aguardente, que todas as doses posteriores se tornaram desnecessárias. Quando me lembro de como no meio do silêncio do meu escritório, o ippers se levantava impacientemente do seu lugar, e inclinando-se sobre a escrivaninha abria completamente os braços, abraçando- -a toda, e a deslocava e arrastava com um ruído horrível, chiando pelo soalho, como se a sua escrivaninha fosse um agente perverso e voluntário, postado em contrariá-Ia e vexá-Ia, então percebo que para Nippers o brandy com água era perfeitamente supérfluo. Foi realmente uma sorte para mim, devido a uma causa particular, a in- digestão, que a irritabilidade e subsequente nervosismo de Nippers fossem sobretudo observáveis da parte da manhã, enquanto de tarde ele permanecia comparativamente calmo. Assim, como os paroxismos de Turkey se faziam sentir por volta do meio-dia, nunca tinha de lidar com ambas excentricida- des ao mesmo tempo. Os acessos rendiam-se um ao outro, como sentinelas. Quando Nippers estava de serviço, Turkey estava de folga, e vice-versa. Da- das as circunstâncias, este era um bom arranjo natural. Ginger ut, o terceiro da minha lista, era um rapaziro de uns onze anos. O pai era carroceiro, desejoso de ver, antes de morrer, o filho ter assemo na barra dos tribunai em vez de no banco de uma carroça. Foi assim que o mandou para o meu escritório, como aprendiz de leis, paquete, encarregado de limpar e varrer, a um dólar por semana. Tinha uma pequena escrivaninha, mas pouco a usava. Examinada, a gaveta exibia uma grande quantidade e va- riedade de cascas de nozes. E na verdade, para este esperto rapaz, toda a nobre ciência das lei estava encerrada numa casca de noz. Decerto que o encargo, e não era dos menores, que Ginger Nut desempenhava com maior alegria era o de fornecer bolos e maçãs a Turkey e Nippers. Copiar documentação legal sendo manifestamente um trabalho árido e maçador, os meus dois es- crivães eram dados a humedecer a boca com uma determinada variedade de maçãs, Sptizenbergs, que podiam ser compradas em variadas bancas situadas perto da Alfândega ou dos Correios. Também mandavam Ginger Nut, fre- quentemente, buscar um certo tipo de bolo - pequeno, achatado, redondo 80 81 - Está então decidido a não cumprir com o que lhe peço - uma so- licitação que é feita de acordo com os usos estabelecidos e o bom senso? Fez-me perceber, quase imperceptivelmente, que neste pOntO o meu juí- w era acertado. Sim: a sua decisão era irrevogável. Não é raro suceder, quando um homem é tratado arrogantemente, de forma injusta e sem precedentes, que ele comece a perder a confiança em si próprio. Começa a desconfiar vagamente, como neste caso, que, por espanto- so que pareça, a justiça e a razão sempre estão do outro lado. E é assim que, se estão presentes pessoas que não se encontram envolvidas no assunto, ele se volta para elas de modo a que lhe sirvam de reforço - à sua razão vacilante. - Turkey - perguntei - que pensa disto? Não tenho razão? - Com o devido respeito, senhor, acho que tem - respondeu aquele no seu tom de voz mais brando. - Nippers - continuei - que pensa, você, disto? -Acho que corria com ele do escritório. (O leitor, que é perspicaz, notará por aqui que, sendo de manhã, a res- posta do Turkey vem expressa em termos polidos e tranquilos, ao passo que a de Nippers é de mau génio. Ou, para repetir uma frase anterior, os maus modos de Nippers estavam de serviço, e os de Turkey de folga.) - Ginger Nur - perguntei, desejoso de recolher o menor dos sufrá- gios em meu favor, que pensa você disto? - Penso, senhor, que ele é um bocado chanfrado - replicou Ginger Nur com um esgar. - Está a ouvir o que eles dizem - disse eu voltando-me para o biom- bo. - Saia dai e cumpra o seu dever. Mas ele não se dignou dar qualquer resposta. Ponderei um momento, em dolorosa perplexidade. Mas uma vez mais o trabalho instava, e deliberei de novo adiar a consideração deste dilema para uma oportunidade futura. Com alguma dificuldade conseguimos conferir os papéis sem Bartleby, em- bora que a cada uma ou duas páginas Turkey, com deferência, manifestasse a sua opinião que um tal procedimento era totalmente fora do comum, en- quanto Nippers, torcendo-se na cadeira com nervosismo de dispéprico, re- mofa por entre os dentes cerrados, silvando de vez em quando maldições 86 contra o imbecil teimoso que estava por detrás do biombo. E no que lhe di- zia respeito a ele (Nippers), esta era a primeira e última vez que faria o traba- lho de outro sem ser pago. Entretanto Bartleby continuava sentado no seu eremitério, alheio a tudo que não fosse o trabalho que lá estava a fazer. Passaram-se alguns dias, e o escrivão estava a braços com um outro tra- balho de fôlego. A sua estranha conduta recente, levou-me a observar-lhe os hábitos de perto. Notei que nunca ia almoçar; na verdade nunca ia a lado ne- nhum. Até à data, nunca, que eu tivesse conhecimento, o vira fora do escritó- rio. Era uma sentinela perpétua no seu canto. Cerca das onze horas da manhã, no entanto, notava que Ginger Nut se aproximava da abertura do biombo de Bartleby, como se chamado por um gesto, invisível do lugar onde eu es- tava sentado. O rapaz saia então do escritório fazendo tinir alguns pence, e reaparecia com uma mão cheia de ginger nuts, que ele entregava no eremité- rio, recebendo dois pelo trabalho. Ele então vive de ginger nuts, pensei eu. Nunca come um almoço pro- priamente dito. Deve ser vegetariano, então. Mas não, ele nunca come sequer vegetais, não come nada a não ser bolos de gengibre. A minha mente pôs-se então a devanear sobre os efeitos prováveis na constituição do corpo humano de se viver exclusivamente de bolos de gengibre. Chamam-se bolos de gengi- bre porque contêm gengibre como um dos seus ingredientes típicos, e aquele que lhe dá o sabor característico. Ora, o que era o gengibre? Um produto api- mentado e quente. Era Bartleby picante e quente? Nada disso. O gengibre, nesse caso, não tinha qualquer efeito sobre ele. Provavelmente ele preferia que não tivesse nenhum. Não há nada que irrite mais uma pessoa enérgica do que a resistência passiva. Se aquele que é posto à prova não possui têmpera inumana, e se o que resiste é alguém completamente inofensivo, então o primeiro procurará, com a sua melhor boa vontade, explicar pelo recurso à imaginação o que se mostra incapaz de ser resolvido pela razão. Me mo assim, eu respeitava em grande parte Bartleby e a sua maneira de ser. Pobre criatura! - pensava eu, não tem qualquer intenção de fazer mal, e é evidente que não quer ser inso- lente; pelo seu aspecto se vê perfeitamente que as suas excentricidades são in- voluntárias. É-me útil. Posso mantê-lo comigo. Se o abandono, o que pode- rá suceder é ele cair nas mãos de um patrão menos indulgente, e será tratado com rudeza, vindo talvez a ser empurrado para uma situação em que morra de fome, miseravelmente. Sim. Ora aqui está uma maneira de eu me garantir, por pouco, uma deliciosa auro-satisfação. er amigo de Bartleby. Condes- cender com a sua esquisita teimosia, pouco ou nada me custará, ao passo que estou a armazenar na minha alma o que bem poderá tornar-se um rico ali- mento para a minha consciência. Mas nem sempre tinha esta disposição de espírito. A passividade de Bartleby por vezes irritava-me. Era algo que me es- picaçava, e que fazia com que eu quisesse despertar nele novas recusas, - de modo a que se desencadeasse a faísca de cólera que respondesse à minha. Mas era como se eu tentasse fàzer fogo contra um pedaço de sabão de Windsor com os nós dos dedos. Mas uma tarde o mau irnpul o tomou conta de mim, seguindo-se a cenazita seguinte: - Bartleby - disse eu - quando tiver terminado esses papéis, vou conferi-Ios consigo. - Preferiria de não. - O quê? Decerto não pensa continuar nesse capricho de teimosia? enhuma resposta. Abri de par em par as pOrtas de correr mesmo ao lado, e voltando-me para Turkey e ippers, exclamei: - Bartleby diz-me uma segunda vez que não conferirá as suas cópias. Que pensa disto Turkey? Era de tarde, recorde-se. Turkey, enrado, b~ilhava como uma chaleira de cobre; a cabeça calva fumegava; as mãos rodopiavam por entre os docu- mentos esborratados. - O que é que eu penso? berrou Turkey. -Acho que vou aí atrás des- se biombo e lhe ponho os olhos negros! Dizendo isto, Turkey pôs-se de pé e colocou os braços em atitude de pugilista. Já se preparava para cumprir a sua promessa, quando o detive, alar- mado por ter inadvertidamente despertado a combatividade - após o al- moço - de Turkey. - Sente-se Turkey - disse-lhe eu - e ouça o que ippers tem para dizer. - Que pensa disto, Nippers? Não teria eu motivo para despedir ime- diatamente Bartleby? - Desculpe-me, mas isso cabe ao senhor decidir. Julgo a condura dele deveras insólita, e mesmo injusta, no que diz respeito ao Turkey e a mim próprio. Mas pode ser que se trate de um capricho passageiro. - Ah! - exclamei - mudou estranharnente de ideias, então - fala dele com muita brandura. - É tudo da cerveja - gritou Turkey. A brandura é efeito da cerveja- Nippers e eu almoçárnos hoje juntos. Está a ver como eu estou hoje amável, senhor? Vou lá pôr-lhe os olhos negros? - Está a referir-se a Bartleby, suponho? Não, hoje não. Turkey - re- pliquei - baixe os punhos por favor. Fechei as portas, e de novo me dirigi para Bartleby. Tinha um incentivo adicional para persistir no meu intento. Ardia por me ver outra vez desobe- decido. Lembrei-me de que Bartleby nunca abandonava o escritório. - Bartleby, disse eu - o Ginger Nut não está, importa-se de ir ao Correio, não quer ((won'tyou?»)? (Não eram mais de três minutos) Ver se há alguma coisa para mim? - Preferiria de não. ão quer (~Oll will llOt/,,)? - Prefiro não ((I prefer not.»). Dirigi-me para a minha secretária, a cambalear, e lá me sentei, em pro- funda meditação. A minha cega mania estava de volta. Haveria ainda alguma coisa mais que me pudesse ser ignominiosamente recusada por esta criatura magra e sem vintém - meu empregado assalariado? Seria ainda possível ar- ranjar alguma coisa mais perfeitamente razoável, mas que ele certamente se recusaria a fazer? - Bartleby! Não houve resposta. - Bartleby! - agora num tom mais forte. Não houve resposta. 88 - Bartleby! - berrei. Tal qual um fantasma, afecto às leis da invocação mágica, à terceira cha- mada apareceu ele à entrada do seu eremitério. - Vá à sala ao lado e diga ao Nippers que venha aqui. - Prefiro de não - disse ele lenta e respeitosamente, e calmamente desapareceu. - Muito bem, Bartleby - disse eu, num tom calmo, severo, segura- mente seguro de si próprio, como que insinuando o inalterável propósito de uma qualquer terrível retribuição, ali bem à mão. aquele momento eu esta- va meio decidido a uma resolução dessas. Mas, vistas bem as coisas, como se aproximava a minha hora do almoço, achei melhor pôr o chapéu e ir até casa, dominado por violenta perplexidade e perturbação. Devo confessá-Io? O resultado disto tudo foi que em breve se tornou um dado adquirido que os meus escritórios albergavam um jovem escrivão pálido, que dava pelo nome de Bartleby, que tinha lá uma secretária. Que copiava ao preço habitual de quatro cents à página (cem palavras); mas que estava permanentemente isento de conferir o trabalho que fazia, sendo e te transferido para Turkey ou ippers, sem dúvida como uma homenagem à superior agudeza dos ditos. Além disso, o referido Bartleby nunca, por mo- tivo algum, deveria ser mandado fazer qualquer recado; e mesmo que lhe so- licitassem que se encarregasse de algum, era tacitamente compreendido que «ele preferiria de não» - por outras palavras, que ele se recusaria terminan- temente. Com o passar dos dias, ia-me reconciliando com Bartleby. A sua perse- verança, o estar liberto de qualquer dissipação, o seu trabalho incessante (ex- cepto quando decidia lançar-se num devaneio extático por trás do biombo), a ua imensa quietude, a inalrerabilidade da ua conduta em qualquer circuns- tância, faziam dele uma aquisição de valor. Havia uma coisa fulcral- é que ele estava sempre lá - o primeiro logo de manhã, o dia todo sucessivamente, e por fim a noite. Tinha uma confiança especial na sua honestidade. Sentia que os meus documentos mais preciosos estavam seguros nas suas mãos. Por vezes, no entanto, eu não podia, pese embora à minha alma, deixar de cair em acesso súbitos, espasmódicos, de cólera - que o visavam. Pois que era ex- 9° tremam ente difícil suportar constantemente essas esquisitas peculiaridades, privilégios e isenções nunca vistos, que formavam as tácitas estipulações de Bartleby tendo em vista a sua permanência no meu escritório. Uma vez por outra, na ânsia de despachar assuntos urgentes, chamava eu por Bartleby inad- vertidamente, num tom brusco e rápido, para pôr por exemplo o seu dedo num nó incipiente que eu fazia com um bocado de tira vermelha, e com a qual me preparava para atar alguns documentos. Mas é claro que detrás do biombo vinha de certeza a resposta habitual: «prefiro de não». E nessa cir- cunstância como é que uma criatura humana, enfermando dos vícios comuns da nossa natureza, como é que ela poderia conter-se de proferir exclamações amargas contra uma tal perversidade - tanta irracionalidade. o entanto, cada reiterada recusa da sua parte fazia com que diminuísse a probabilidade de eu repetir a inadvertência. É por esta altura que se deve referir, obedecendo nisso a um costume de muitos cavalheiros que tratam de assuntos do foro e que ocupam escritórios em edifícios densamente ocupados, que havia várias chaves de acesso à minha porta. Uma tinha-a a mulher que morava no sótão, que era a pessoa que se- manalmente esfregava o meu escritório e que todos os dias o varria, limpando também o pó. Outra possuía-a o Turkey, por uma questão de conveniência. A terceira andava eu às vezes com ela no bolso. A quarta não sei quem a tinha. Sucede que um Domingo de manhã me dirigi para a Trinity Church, a fim de ouvir um pregador de nomeada, e tendo chegado ao local bastante cedo, decidi dar uma volta até ao meu escritório. Felizmente tinha a minha chave comigo; mas ao metê-Ia na fechadura, encontrei resistência - algo fora in- serido nela pela parte de dentro. Bastante surpreendido, chamei, e foi quando, para grande consternação minha, deram do outro lado volta à chave, e, en- treaberta a porta surgiu o fantasma de Bartleby com o seu ro to magro, em mangas de camisa, em traje meio esfarrapado, dizendo placidamente que la- mentava, mas que estava naquele momento muito ocupado e - que de mo- mento preferia não me deixar entrar. Com mais uma ou duas palavra, acrescentou ainda que se eu desse duas ou três voltas ao quarteirão, nessa altura possivelmente já então ele teria con- cluído o que estava a fazer. 91 - Que resposta me dá, Bartleby - disse eu, depois de esperar um bom bocado, durante o qual o seu aspecto se manteve irnperrurbãvel, vendo-se apenas um tremor quase imperceptível na sua boca, de lábios finos e brancos. - De momento prefiro de não dar resposta - disse ele, e retirou-se para o seu eremitério. Bem sei que foi uma grande fraqueza da minha parte, confesso-o, mas a sua maneira de agir na ocasião irritou-me. Não só porque parecia espreitar nela uma espécie de suave desdém, como por a sua perversidade me parecer ingratidão, considerando o inegável bom trato e indulgência que de mim re- cebera. Uma vez mais fiquei sentado a magicar no que deveria fazer. Mortifica- do como estava com o seu comportamento, e decidido a despedi-lo como vi- nha quando entrara no escritório, apesar disso senti estranharnente qualquer coisa de supersticioso a bater-me no coração, proibindo-me de levar avance o meu propósito, e acusando-me de ser um patife se me atrevesse a proferir uma só palavra dura contra este homem, o mais abandonado de todos. Por fim, arrastando Familiarmente a minha cadeira para o interior do biombo, sentei-me e disse-lhe: - Bartleby, deixe, não se preocupe em revelar-me a sua história; mas, como amigo, peço-lhe que obedeça até onde lhe for possível aos usos desta casa. Por exemplo, prometa-me que ajudará a conferir documentos, amanhã ou no dia seguinte; em resumo, garanta-me que dentro de um dia ou doi começará a ser um pouco razoável- diga Bardeby. - De momento preferiria de não ser um pouco razoável - foi a sua calma e débil resposta. Nesse momento abriram-se as portas de correr, e Nippers aproximou-se. Parecia estar a padecer de uma noite muito mal passada, provocada por uma indigestão mais violenta do que as anteriores. Ainda ouvira as palavras finais de Barcleby. - Prefiro de não, hem? - vociferou ippers - Eu dava-lhe o preferir se fosse a si, senhor - dirigindo-se-me. - Eu dava-lhe o preferir, eu dava-lhe aspreferências a essa mula casmurra! Mas diga-me por favor, o que é que ele agora prefere não fazer? Bardeby não mexera um músculo. _ Senhor ippers - disse eu - Preferiria que de momento e recirasse. De certa maneira, adquirira recentemente o hábito de usar involunta- riamente o vocábulo «preferir» em toda a espécie de ocasiões, por vezes nada a propósito. E tremia ao pensar que o contacto com o escrivão me ~nha já afec- tado seriamente a integridade mental. E que subsequente e mais profunda aberração não viria ele ainda a causar? Esta inquietação não deixara de me influenciar no sentido de usar de medidas sumárias. Enquanto Nippers com um ar muito zangado e mal-hurnorado se ia embora, aproximava-se Turkey afavelmente e com aspecto solícito. _ Com o devido respeito, senhor - disse ele - eu ontem estive a pen- sar aqui no Barcleby,e julgo que se ele pelo menos preferisse tomar um quarto de boa cerveja todos os dias, i so o faria corrigir-se, e lhe permitiria trabalhar no conferir dos documentos. _ Então você também já emprega a palavra - exclamei eu já um pou- co irritado. _ Com o devido respeito, que palavra, senhor? - perguntou Turkey, introduzindo- e respeitosamente no espaço reduzido atrás do biombo, e, ao fazê-lo, levando-me a colidir com o escrivão. - Que palavra, senhor? _ Preferiria ser deixado aqui sozinho - declarou Barrleby, como que ofendido por ver tanta gente perturbar a sua privacidade. _ É essa a palavra, Turkey - exclamei eu - é essa. _ Ah! preferir. Sim - esquisita palavra. Eu nunca a uso. Mas, senhor, como eu ia a dizer, se ele ao menos preferisse - ... - Turkey - interrompi - retire-se por favor. - Certamente, senhor, se assim o prefere. Como ele abrisse a porta de correr para se ir embora, Nippers avistou-me da sua escrivaninha, e perguntou-me se eu preferiria um determinado docu- mento copiado em papel branco ou azul. Ele nem por sombras deu qualquer ênfase impertinente à palavra preferir. Era evidente que ela rolara involunta- riamente da sua língua. Pensei para mim que eu tinha mesmo de me ver livre de um homem demente, que já em certa medida dera a volta à língua, se não à cabeça, de mim próprio e dos empregados. Mas achei prudente não o fazer imediatamente. 97 Notei que no dia seguinte Bartleby nada fazia a não ser estar à sua janela, de pé, em devaneio frente à parede cega. Após Lheter perguntado por que razão não escrevia, respondeu-me que decidira não fazer mais trabalho de cópias. - Porquê? - Como? - exclamei. - ão trabalha mais? ão. - E qual a razão? - Não vê por si mesmo a razão? - respondeu ele com indiferença. Olhei-o atentamente, e apercebi-me de que os seus olhos estavam ba- ços, vidrados. Ocorreu-me de imediato que o seu labor exemplar copiando junto à janela mal iluminada durante as primeiras semanas da sua estadia Lhe pudesse ter momentaneamente afectado a visão. Isto sensibilizou-me. Disse-Lhe que lamentava o sucedido. Sugeri que realmente ele fazia bem em se abster de copiar durante algum tempo; e incitei- -o a que agarrasse esta oportunidade e fizesse exercício ao ar livre. Contudo, não foi isto que ele fez. Alguns dias depois, com os meus Outros empregados ausentes, estando com grande urgência em mandar algumas cartas pelo cor- reio, julguei que não tendo mais nada nesta terra para fazer, Bartleby seria por certo menos inflexível do que era costume, e as levasseele. Mas recusou-se terminantemente. E assim, para meu transtorno, eu próprio é que fui. Mais uns dias se passaram. Se os olhos de Barcleby tinham ou não melhorado, não sei dizer. À primeira vista era de crer que sim. Mas quando lhe perguntei se estava melhor, não se dignou responder-me. Em todo o caso, não mais copia- ria. Por fim, em resposta à minha insistência, informou-me que deixara de- finitivamente de fazer cópias. - O quê? - exclamei eu - suponha que os seu olhos melhoram, ainda ficam melhor do que dantes, não voltará a copiar? - Desisti de copiar - respondeu, afastando-se. Ficou como sempre, um enfeite no meu cartório. Bem, se tal é possível, ficou ainda mais um enfeite do que era anteriormente. O que havia de fazer? Não mia nada no escritório, por que havia de permanecer ali?Em termos sim- ples, ele transformara-se numa mó que eu tinha ao pescoço, e não somente inútil como um colar, como difícil de suportar. No entanto tive pena dele. ão me afasto muito da verdade quando afirmo que, por causa dele, eu vivia inquieto. Se ele ao menos tivesse um qualquer familiar ou amigo, eu ter-lhe- -ia imediatamente escrito, solicitando-lhe que levasse a pobre criatura para um qualquer retiro conveniente. Mas ele parecia estar só, absolutamente so- zinho no universo. Um destroço de um naufrágio no meio do Atlântico. Por fim, necessidades que tinham a ver com o meu trabalho apoderaram-se de quaisquer outras considerações. O mais decentemente que pude disse a Bardeby que no prazo de seis dias ele deveria abandonar impreterivelmente o meu escritório. Avisei-o para que tomasse providências, durante esse prazo, no sentido de encontrar outro tecto. _ E quando finalmente se despedir, Bartleby, - acrescentei eu - pro- videnciarei no sentido de não ir inteiramente desprevenido. eis dias a par- tir de agora, tome nota. Ao expirar o prazo, espreitei para trás do biombo, e lá estava Bartleby! Abotoei a casaca, tomei balanço; avancei lentamente na sua direcção, toquei- -Lheno ombro e disse-Lhe.- Chegou a altura, deve abandonar este local, la- mento, tem aqui dinheiro, mas deve ir- e embora. _ Preferiria de não - respondeu, ainda com as costas voltadas para mim. -Mas deve. Permaneceu silencioso. Ora eu tinha uma confiança sem limites na proverbial honestidade des- te homem. Frequentemente me tinha ele devolvido moedas de sixpence e de shillingque tinham inadvertidamente caído ao chão, pois sou mesmo muito negligente no que diz respeito a tais ninharia. O que se passou a seguir não será pois considerado um procedimento extraordinário. _ Bartleby - disse eu - devo-Lhedoze dólares; aqui tem trinta e dois; os vinte restantes são para si também. Aceita? - e estendi-lhe as notas. Mas ele não se mexeu. _ Vou então deixá-Ias aqui - e pu-Ias sobre a escrivaninha debaixo dum peso. Pegando de seguida no meu chapéu e bengala, e dirigindo-me para a porta, voltei-me calmamente e acrescentei: - Depois de ter levado as suas coi as deste escritório, Barrleby, feche a porta à chave, é claro, - que hoje roda a gente se foi já embora excepto você -, e por favor, ponha a chave de- 99 baixo do capacho, para eu a tirar amanhã. Não voltarei a vê-lo, adeus, por- tanto. Se, daqui em diante, no seu novo domicílio lhe puder ser útil em al- guma coisa, por favor não se esqueça de mo fazer saber por carta. Adeus, Barcleby, passe bem. Mas ele não respondeu nem uma palavra. Como a derradeira coluna de um templo arruinado, permaneceu de pé calado e sozinho no meio da sala deserra. Enquanto caminhava, em direcção a casa, e meditando, a minha vaida- de levou a melhor sobre a minha piedade. Não podia senão orgulhar-me da mestria com que me tinha desembaraçado de Barcleby. Magistralmente, como eu dizia, e assim o veria qualquer pensador desapaixonado. A beleza do meu modo de agir parecia consistir na sua perfeita tranquilidade. ão houvera qualquer vulgar disputa, nem bravatas, nem explosões de cólera, ou passadas largas de cá para lá no escritório, nem ordens violentamente profe- ridas com veemência, a fim de que Barcleby e pusesse lá fora, fazendo rapi- damente uma trouxa com os seus miseráveis trapos. Nada dis o. em me pôr a gritar para que Barcleby partisse - como alguém de carácter inferior pode- ria ter feito - eu - eu assumi o princípio de que ele deveria partir; e basea- do nessa assumpção construí tudo o que eu tinha a dizer. Quanto mais pensava no meu procedimento, mais ele me encantava. No entanto, na ma- nhã seguinte, ao acordar, tinha as minha dúvidas - tinha de certo modo desvanecido pelo sono os fumos da vaidade. Uma das mais serenas e sábias horas que um homem tem, é logo após acordar pela manhã. O meu proce- dimen to parecia-me tão sagaz como anteriormente - mas omente em teoria. Como é que ele se mostraria na prática, aí é que estava o busílis. Era verda- deiramente um belo pensamento ter assumido a partida de Barcleby; mas, no fim de COntas, essa assumpção era somente minha, e não de Bardeby. A grande questão era não se eu assumira que ele se tinha ido embora, mas se ele preferiria realmente fazê-lo. Ele era mais um homem de preferências do que de assumpções. Depois do pequeno-almoço dirigi-me para a Baixa, debatendo as pro- babilidades pró e contra. Num momento parecia-me que tudo fracassara mi- seravelmente, e que encontraria Bardeby bem vivo no meu escritório, como de costume; e logo a seguir parecia-me que ia encontrar a sua cadeira vazia. E assim eu ia variando de opinião. Na esquina da Broadway com Canal Street, vi um grupo de pessoas bastante exaltado, de pé, a discutir. - Aposto que não vai - disse uma voz quando eu passava. - Não vai? Apostado - disse eu - ponha o dinheiro. Já me preparava instintivamente, metendo a mão no bolso, para tirar o dinheiro, quando me lembrei que era dia de eleições. As palavras que ouvira nada tinham que ver com Bartleby, mas com o sucesso ou insucesso de al- gum candidato à presidência da câmara. Na disposição de espírito em que me encontrava, imaginara que toda a Broadway partilhava da minha excitação, e que estavam a debater comigo essa mesma questão. Continuei para diante, muito contente pelo barulho da rua ter encoberro a minha distracção mo- mentânea. Como era meu propósito, tinha chegado mais cedo à porta do meu escri- tório. Pus-me à escura um instante. Estava rudo calmo. Deve ter ido embora. Experimentei a maçaneta. A porra estava fechada. im, o meu procedimento acruara como por um encanto: ele devia ter mesmo desaparecido. o entan- to, uma cerra melancolia misturava-se com isto: tinha pena do meu brilhante êxito. Remexia debaixo do capacho da porra, à procura da chave que Barcleby lá deveria ter deixado, quando acidentalmente o meu joelho bateu contra a almofada da porta, produzindo um som de quem bate, e como resposta veio de dentro uma voz. - Ainda não. Estou ocupado. Era Barcleby. Fiquei fulrninado. Por um instante fiquei como o homem que, cachimbo na boca, fora morto numa tarde sem nuvens há muito tempo, na Virgínia, por um relâmpago de Verão; à sua janela, aberta e quente, morrera ele, e lá permaneceu inclinado durante toda a tarde sonhadora, até que alguém lhe rocou, e ele caiu. ão se foi embora! - murmurei por fim. Mas uma vez mais obedecendo àquela espanrosa ascendência que o inescrutável escrivão tinha sobre mim, e da qual, por mais que me irritasse, não conseguia escapar, desci lentamente as escadas até à rua, e enquanro dava a volta ao quarteirão, pensava no que haveria de fazer diante desta inaudita 100 101 livre dele, isso tenho; ir, há-de. Mas como? ão pensaste em forçá-Io, pobre, pálido e passivo morral- não pensaste empurrar uma criatura de tal modo indefesa pela tua porta fora? Não te vais desonrar com tamanha crueldade? ão, não o farei, não consigo fazê-lo. Antes o deixaria viver e morrer aqui, e depois metia-lhe os ossos na parede. Então, que hás-de fazer? ão há-de ser com as tuas lisonjas que ele se vai mexer (por muito que o adules ... ). ubor- nos deixa-os ele debaixo do teu próprio pisa-papéis, na tua secretária; numa palavra, é evidente que ele prefere agarrar-se a ti. esse caso medidas everas e invulgares devem ser tomadas. Quais? Cer- tamente que não estás a pensar mandá-Io prender por um polícia, encerrando a sua palidez inocente numa vulgar prisão. E sob que pretexto é que consegui- rias fazer executar uma tal coisa?- Um vagabundo, ele?O quê? Um vagabun- do, um vadio, quem recusa mexer-se? É por ele não querer ser um vagabundo, é por isso que queres que ele passe por ser um. Isso é demasiado absurdo. Não possui meios visíveis de subsistência: aí é que o apanho. Novo erro: pois que indubitavelrnente ele se sustenta a si próprio, e essa é a única prova indubirãvel que qualquer homem pode exibir de possuir meios de o fazer. ada mais, en- tão. Já que ele me não deixa, deixo-o eu a ele. Mudo de escritórios; mudo para outro lado, avisando-o lealmente que se o encontro nas minhas novas instala- ções, nesse ca o procedo para com ele como se fosse um vulgar infractor à lei. Agindo em conformidade, dirigi-me a ele no dia seguinte nestes ter- mos: -Acho este local demasiado longe da Câmara Municipal (City Halt): os ares aqui são pouco saudáveis. uma palavra, proponho-me mudar de lo- cal na próxima semana, e não precisarei mais dos seus serviços. Digo-lhe isto agora, para que possa procurar outro lugar. Ele não respondeu, e ficámos por aqui. o dia determinado contratei carroças e homens, dirigi-me aos meus escritório e, tendo pouca mobília, a mudança fez-se em poucas horas. Du- rante todo o tempo o e crivão permaneceu de pé atrás do biombo, tendo eu dado ordens para que fosse a última coisa a ser retirada. Retiraram-no dobrado como se fosse um enorme fólio, e lá ficou Bartleby, ocupante imóvel de uma sala nua. Fiquei à entrada da porta a observá-Io um momento, enquanto in- timamente algo me censurava. Voltei a entrar, com a mão no bolso - e ... e o coração na boca. - Adeus Barcleby; vou-me embora - adeus, e que Deus o guarde; tome lá isto - e passei-lhe sub-repriciamente qualquer coisa para a mão. Mas logo caiu ao chão, e então - por estranho que pareça - foi a custo que me separei dele, de quem eu tanto ansiava desembaraçar-me. Instalado nos meus novos aposentos, durante um dia ou dois mantive a porta fechada, e sobressaltava-me com quaisquer passadas no corredor. Quando voltava aos escritórios, após qualquer pequena ausência, demorava- -me um instante no limiar da porta, e punha-me a escutar atentamente, após o que introduzia a chave. Mas tais receios não tinham fundamento. Barcleby nunca veio ter comigo. Convenci-me de que tudo corria bem, quando um desconhecido, de aspecto perturbado, me fez uma visita, inquirindo se era eu quem até há pouco ocupara os escritórios do n.? ... em Wall Street. Com um mau pressentimento, respondi-lhe que sim. - Nesse caso, senhor - disse o desconhecido, que mostrou ser advo- gado - é respon ável pelo indivíduo que lá deixou. Recusa-se a fazer traba- lho de copista, recusa-se a fazer eja o que for; diz que prefere não o fazer; e recusa-se a abandonar o local. - Lamento imenso, senhor - disse eu, com afectada rranquilidade, e no entanto a tremer interiormente - mas na verdade o indivíduo a que se refere não me é nada - não é meu parente nem meu aprendiz, para se supor que sou responsável por ele. - Mas peço-lhe, diga-me quem ele é? - Realmente não posso informá-Io. Nada sei a seu respeito. Empre- guei-o como copi ta durante algum tempo. - Eu vou tratar dele então. - Bom-dia, senhor. Passaram-se alguns dias, não soube mais nada; e, embora por vezes me viesse o intuito caridoso de ir até ao local ver o pobre Barcleby, no entanto uma certa repugnância não sabia bem de quê, impedia-me. Tudo terminou já, por esta altura, pensava eu por fim, quando, passada outra semana, não tive notícias. Mas no dia seguinte à porca do meu escritório 106 dei com várias pessoas que me esperavam num estado de grande exaltaçâo nervosa. - É este o homem - aqui vem ele - gritou o que estava à frente, e que eu reconheci ser o advogado que sozinho me visitara anteriormente. - Tem de o tirar de lá imediatamente, senhor - gritou, avançando para mim, um sujeito corpulento que estava entre eles, e que eu abia ser o senhorio do n.? ... de Wall Street. Estes senhores, meus inquilinos, não aguen- tam mais tempo; o senhor B... - e apontou para o advogado -, pô-Io fora do seu escritório, e agora deu-lhe para vaguear pelo prédio, sentar-se no corri- mão das escadas durante o dia e dormir na entrada à noite. Está toda a gente preocupada. Os clientes abandonam aqueles escritórios, receia-se um mo- tim, tem de fazer alguma coisa, e sem demora. Espantado com esta catadupa, recuei diante dela, e de bom grado me teria fechado no meu novo escritório. Foi em vão que insisti dizendo que Banleby me não era nada - ou pelo menos não mais do que a qualquer outra pessoa. Foi em vão - era eu a última pessoa que se sabia ter estado relacio- nada com ele, e faziam-me sentir esse terrível encargo. Receoso, na verdade, de ver o meu nome estampado nos jornais (como um dos presentes velada- mente ameaçara), reconsiderei, dizendo-lhes nomeadamente que se o advo- gado me concedesse uma entrevista confidencial com o escrivão, no escritório daquele, eu faria nessa mesma tarde todo o possível por os livrar daquele in- cómodo. Subia eu as escadas na direcção do meu antigo escritório, e lá estava Barcleby sentado silenciosamente na balaustrada, num patamar. - Que está aqui a fazer, Barcleby! - perguntei eu. - Sentado na balaustrada - respondeu suavemente. Levei-o para o escritório do advogado, que nos deixou sós. - Bartleby - disse-lhe - está consciente de ser responsável pela gran- de atribulação em que me encontro, isto pela sua insistência em ocupar a en- trada depois de ter sido expulso do escritório? Não houve respo ta. - Ora uma destas duas coisas se deve seguir. Ou você faz alguma coi- sa, ou alguma coisa se lhe faz, a si. Ora diga-me em que espécie de negócio é que gostaria de se empenhar? Gostaria de voltar a trabalhar como copista para alguém? - Não, preferiria de não fazer mudança alguma. - Gostaria de ser caixeiro num armazém? - Isso é demasiado fechado. Não, não gostava de trabalhar num em- prego assim. Mas não sou exigente. - Demasiado fechado! - gritei eu - mas você está recluso todo o tempo! - Preferiria de não aceitar um lugar des es - acrescentou, para pôr um ponto final, de imediato, nessa questão. - E que lhe parece um emprego ao balcão dum bar? Ai não tem que forçar a vista. - De modo nenhum me agradava; embora, como já disse antes, não seja exigente. A sua invulgar loquacidade espicaçou-rne. Voltei à carga. - Bem, mas gostaria então de viajar pela região recebendo encomen- das dos comerciantes? Isso melhorava-lhe a saúde. ão, preferiria de estar a fazer qualquer outra coi a. - E que diz à ideia de ir como acompanhante de um jovem rico pela Europa fora, conversando com ele e distraindo-o? - Nem por sombras. Não me parece que haja, nisso que diz, nada de preciso. Gosto de estar no mesmo sítio. Mas não sou exigente. - E sedentário vai ficar, nesse caso - gritei eu - perdendo a paciência, e, pela primeira vez na minha exasperada relação com ele, entrando rapida- mente em fúria. - Se não abandonar este local antes do cair da noite, ver- -me-ia obrigado - na realidade, sou obrigado - a ... a ... abandonar o local eu próprio! - conclui eu de maneira absurda, já não sabendo com que espé- cie de ameaça tentaria arnedrontã-lo, mudando-lhe a imobilidade em anuência. Desesperando de qualquer ulterior tentativa, já me preparava para o deixar precipitadamente, quando uma última ideia me ocorreu - que já na verdade me aAorara antes. - Banleby - disse eu - no tom mais afável que me foi possível em tais circunstâncias de exaltação - venha para casa comigo - não para o meu es- 108 crit6rio mas para minha casa - permanecendo lá até ser possível arranjar-se uma situação conveniente. Venha, ponhamos de imediato isto em marcha. - Não: de momento preferiria de não fazer qualquer mudança. Não respondi; mas, esquivando-me eficazmente a toda a gente devido à rapidez e imprevisto da minha fuga, escapulindo-rne do prédio subi a correr a Wall Street em direcção à Broadway, e, pulando para o primeiro autocarro, depressa me pus a salvo de qualquer perseguição. Logo que me voltou a calma, compreendi claramente que fizera tudo o que me era possível, não somente no que dizia respeito ao senhorio e aos inquilinos, como naquilo que dizia respei- to ao meu desejo e sentido do dever - em benefício de Barcleby - escudan- do-o de uma cruel perseguição. Esforçava-me agora por estar despreocupado e tranquilo, e a minha consciência justificava-me nessa tentativa; embora na verdade não fosse tão bem sucedido como eu quereria. Tão receoso estava de ser outra vez perseguido pelo senhorio exaltado e pelos exasperados inquilinos, que, deixando por uns dias a Nippers a condução dos meus neg6cios, andei às voltas pela parte alta da cidade, através dos arrabaldes, no meu rockawaj; atra- vessei para Jersey City e Hoboken, e fiz rápidas incursões a Manhattanville e Astoria. Na realidade, quase que vivia no meu rockaway, nessa altura. Quando regressei ao meu escritório, que vejo!, estava um bilhete do se- nhorio em cima da minha escrivaninha. Tremiam-me as mãos ao abri-lo, In- formava-me que o signatário mandara chamar a polícia, e que Barcleby fora levado para as Tombs como vadio. Além disso, e visto que eu sabia mais acerca dele do que qualquer outra pessoa, esperava que eu lá fosse, e fizesse uma de- claração cabal do que sabia. Estas novas tiveram sobre mim um efeito con- traditório, Primeiro fiquei indignado, mas, finalmente, quase o aprovei. O carácter enérgico e sumário do senhorio, levara-o a adoptar uma atitude que eu julgo que não seria capaz de tomar, por mim; e, no entanto, como último re- curso, e atendendo a tão peculiares circunstâncias, parecia-me a única solução. Como soube depois, o pobre escrivão, quando lhe foi dito que ia ser le- vado para as Tombs, não ofereceu a menor resistência, acedendo silenciosa- mente naquele seu modo apagado e inalterável. Alguns dos transeuntes, compadecidos e curiosos, juntaram-se ao gru- po; e com um dos polícias à frente, de braço dado com Barcleby, a silenciosa procissão lá ia pelo meio de todo aquele barulho, do calor e alegria das ruas tumultuosas do meio-dia. No mesmo dia em que recebi o bilhete fui às Tombs, ou para falar mais propriamente, às celas da judiciária (<<tothe Hall ofJustice»). Procurei o fun- cionário conveniente, declarei-lhe o intuito da minha visita, e fui informado que o indivíduo que eu descrevera se encontrava, realmente, lá dentro. Nessa altura assegurei ao funcionário que Barcleby era um indivíduo perfeitamente honesto, e de quem se devia ter grande compaixão não obstante a sua incrí- vel bizarria. Contei tudo o que sabia, sugerindo que o deixassem num estado de reclusão tanto quanto possível benigno, até que alguma medida menos severa pudesse efecrivar-se - embora, na verdade, eu mal soubesse qual. De qualquer modo, se mais nada se pudesse fazer por ele, o asilo deveria recolhê-lo. Solicitei, de seguida, uma entrevista. Por não ter pendente contra ele nenhuma acusação infamante, e bas- tante sereno e inofensivo, haviam-no autorizado a circular livremente pela prisão, e especialmente pelos pátios murados, relvados em parte. E foi aí que o encontrei, sozinho, no mais sossegado de todos, o rosto voltado para um muro alto, enquanto à volta, das frestas estreitas das janelas da prisão, me pa- reciam surgir olhos de assassinos e ladrões, que o espiavam. - Barcleby! - Conheço-o - disse ele sem se voltar - e nada tenho a dizer-lhe. - Não fui eu quem o trouxe para aqui, Barcleby - disse eu, profun- damente sentido por aquela suspeita implícita. - E para si isto não é assim um lugar tão odioso. Nada de censurável lhe pode ser imputado por aqui es- tar. E, veja, não é assim um lugar tão triste como se poderia pensar. Olhe, lá está o céu, e aqui há erva. - Eu sei onde me encontro - respondeu ele, mas não quis dizer mais nada, e eu deixei-o. Ao penetrar de novo no corredor, um indivíduo avantajado e forte, de avental, abeirou-se de mim, e apontando com o polegar para trás do ombro, disse-me: - Aquele é seu amigo? -Sim. - Ele quer morrer à fome? Se quer, é s6 deixa-lo viver com a ração da prisão. IIO lU íNDICE 7 Bartleby, ou Da Contingência (1993) II I. O Escriba, ou Da Criação 25 lI. A Fôrmula, ou Da Potência 33 III. O Experimento, ou Da Decriação 50 Iconografia 73 Bartleby, O Escriuão de Herman Melville (1853) Trrui.os ORIGINAIS: Bnrrl~b)' Otld/n contlllgmzn (1993) Bnrr/~b)'. TI" Sair·na: A St0'Y of Wn// Strul (18\3) TRADUÇÃO DE Bnrrkb)' OUDo COlJliginmr. MANUEL ROORIGUES E PEORO A.H. PAIXÃO (1007) TRADUÇÃO DE Borrl~6)'. O EfCTlUÓtr. GIL DE CARVALHO (1988) ICONOGRAFIA: GIORGIO AGAMBEN E PEORO A.H. PAIXÃO FOTOGRAFIA NA CAPA: TABUINHA DE ESCREVER (grommotdon). sãc. 11 A.D. IPAPYRUS COLLF.CTlON. UNIVERSITY OF MICHIGM'] © GIORGIO AGAMBEN, 2007 © ASS(RIO 8< ALVIM, LISBOA. 2007 RUA PASSOS MANUEL, 67 B, 11\0-2\8 LI BOA EDIÇÃO 1211. MARÇO 1008 I B 978-972-37-129\-7 REVISÃO: ANTÓNIO LAMPREIA TIRAGEM 1100 EXEMPLARES DEPÓSITO LEGAl 274\10/08 IMI'RESSO NA GUIDE - ARTES GRÁPICAS. LDA. RUA HERÓiS DE CIIAIMlTf. '4 OOIVELAS
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