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Guias e Dicas
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Arlequim - Morris West, Notas de estudo de Cultura

Os "mercadores da morte" existem. São homens que, através do uso sofisticado de computadores, promovem um assassinato aqui, uma revolução além, considerando que a vida humana possui um valor meramente numérico. E este livro, a história de ARLEQUIM, narra o que acontece a um homem quando se vê envolvido e visado pelos "mercadores da morte". Arlequim achava, como todos nós, que os terrores do mundo eram algo distante e remoto, que acontecia aos outros mas jamais lhe poderia acontecer. Rico por

Tipologia: Notas de estudo

2016
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rildo-nobrega-7
rildo-nobrega-7 🇧🇷

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Baixe Arlequim - Morris West e outras Notas de estudo em PDF para Cultura, somente na Docsity! MORRIS WEST. Autor de As Sandálias do Pescador, O Advogado do Diabo e A Salamandra qo Morris West Arlequim CÍRCULO DO LIVRO 1 George Arlequim e eu somos amigos há mais de vinte anos. Contudo, devo confessar que ele é o único homem que realmente sempre invejei. Houve um tempo em que cheguei a pensar que o odiava, sendo curado de tal sentimento por sua virtude e espírito sadio. Ele é tudo o que eu não sou. Sou alto, corpulento, desajeitado, quase como partes reunidas ao acaso, o desespero dos alfaiates. Ele é esbelto, elegante, o cavaleiro clássico, um jogador de tênis que dá gosto apreciar. Eu sou alfabetizado o suficiente em uma única língua. Arlequim é poliglota, excepcional em meia dúzia de idiomas. E mais do que isso: ele usa uma cultura prodigiosa, com o encanto espontâneo de um cortesão da Renascença. Eu sou seu antípoda, impaciente, impulsivo, predisposto a ser rigoroso ou simplista em meus julgamentos. Arlequim é um europeu, frio, conciliatório, sutil, paciente até mesmo com os imbecis. Ele nasceu para o dinheiro. Seu avô fundou a Arlequim et Cie., Merchant Bankers, com sede em Genebra. O pai fez alianças internacionais e abriu filiais em Paris, Londres e Nova York. Arlequim ampliou a área de atuação e depois herdou a presidência e a maior parte das ações com direito a voto. A tradição da casa era-lhe sagrada. O caráter do cliente era mais importante que os outros fatores de garantia. O risco, uma vez assumido, não podia ser revogado. Jamais se esquivava ao cumprimento de um contrato por expedientes legais. Um simples aperto de mãos encerrava as mesmas obrigações de um documento formal. E se o cliente ou sua família atravessavam horas difíceis, o lema do banco provava ser verdadeiro: Amicus certus in re incerta (Um amigo certo nas coisas incertas). Eu, por outro lado, comecei como um aventureiro, pura e simplesmente. Abri meu caminho por entre os mercados financeiros, ganhei muito dinheiro e perdi-o. Nos anos difíceis que se seguiram, senti-me humilhado pela preocupação que Arlequim demonstrava por mim, incrédulo ante as somas consideráveis que ele arriscava a uma simples palavra minha. Quando recuperei a fortuna, entreguei-lhe o dinheiro para investir, enquanto fazia uma cura prolongada da úlcera péptica que também adquirira e aprendia algumas das artes do prazer. Casei-me cedo e não deu certo. Arlequim divertiu-se até os trinta e cinco anos e então casou-se de repente com Juliette Gerard, a quem ele conheceu em meu iate, quando eu ainda estava tentando persuadi-la a casar-se comigo. Depois disso, não nos encontramos durante três anos. Permanecemos banqueiro e cliente, mas reticentes e constrangidos, até que o filho deles nasceu e deram-lhe o meu nome, Paul Desmond, convidando-me para padrinho. No mesmo dia Arlequim ofereceu-me um lugar no conselho diretor do banco. Num impulso emocional, aceitei imediatamente e tornei-me o embaixador itinerante de Arlequim et Cie. e o padrinho apaixonado de uma criaturinha loura, parecida demais com a mãe para servir-me de consolo. Preciso deixar claro: éramos amigos de coração, mas eu continuava a ter ciúmes de Arlequim. Ele era por demais o árbitro da elegância, mas também judicioso o suficiente para que até os homens experientes do mundo das altas finanças lhe prestassem um respeito como o que se presta a um rabino. Ele era afortunado demais, possuía virtudes demais. Suponho que se possa dizer que ele era também, obviamente, feliz. Dirigia automóveis, velejava, montava purossangues, colecionava quadros e porcelanas. Era cortejado por lindas mulheres e adorado por sua esposa. Ele era tão impressionante em seus atributos que intimidava as pessoas de menor importância. Em momentos de desânimo e abatimento, eu me perguntava por que ele se importava com um tipo confuso e difícil como eu. Sentia-me um bobo da corte, circulando em torno do mais requintado dos príncipes. Não escrevo isso para depreciá-lo. Deus me livre! Devo deixar claro que o bobo da corte adorava o príncipe e, para mal de seus pecados, continuava apaixonado pela princesa. E o que eu quero mostrar aqui é o quão alto Arlequim estava, quão visível e vulnerável, quão alheio aos perigos de ser ele próprio. Mesmo eu não via isso então com muita nitidez. Juliette podia apenas adivinhar. Mas, sendo mulher, ela encarava o fato por outro ângulo. — ... sinto-me tão inútil, Paul! Não posso dar a ele nada senão a mim mesma na cama, e outro filho, quando ele o desejar. Há pelo menos vinte mulheres que poderiam tomar o meu lugar amanhã mesmo. Não importa que George não o veja, pois eu vejo. Não lhe sou necessária e um dia ele vai descobrir... Não sou nenhum lago, se bem que algumas vezes tenha desejado sê-lo. Disse-lhe a única verdade que conhecia. — Está casada com um homem venturoso, Julie. Seja feliz com ele. Para George, tudo é alegria, sendo que você é a maior alegria de todas. Aceite isso e mande o futuro para o inferno. Arlequim chegou então, exuberante e feliz, com uma nova tela debaixo do braço e um novo cliente em seu banco, com planos para um fim de semana em Gstaad, onde a neve estaria profunda e o tempo prometia ser bom e ensolarado para o prazer do beautiful people. Pouco depois chegou o mês de abril e Arlequim e eu fomos para Pequim, porque os chineses estavam querendo fazer negócios com a Europa, e Arlequim queria uma fatia para seu banco e para seus clientes. Fiquei imaginando como ele, o mandarim dos mandarins, iria reagir diante dos padrões espartanos da República Popular. Mas, como sempre, subestimei-o. Ele imediatamente se sentiu em casa, inteiramente à vontade. Falava fluentemente, era hábil na caligrafia. Sua cortesia era impecável, a paciência, ilimitada. Em um mês já mantinha os contatos mais tranqüilos com os altos escalões da hierarquia, sendo respeitado igualmente pelos políticos e pelos tecnocratas. Comprou muitas antigüidades, peças de jade, tapetes. Discutiu projetos de fabricação de antibióticos, drogas sintéticas e instrumentos de precisão. Fez amigos entre os estudiosos e os arqueólogos. Aprendeu as sutilezas do humor oriental, mas jamais perdeu a dignidade, nem a alegria. Foi um desempenho impecável, e nossos anfitriões não fizeram segredo de sua plena aprovação. Mas nem tudo foi encantamento e alegria. Arlequim ficou profundamente comovido com a experiência. As mesmas coisas que me deprimiram, a imensidão da terra, o vulto dos empreendimentos tribais, despertaram nele o poeta e o sonhador. Ele passava uma hora inteira contemplando extasiado os vultos épicos na paisagem: um barqueiro voltando para casa ao pôr-do-sol, as mulheres acionando um moinho para irrigar os arrozais. Fazia então um comentário apaixonado, mas um pouco incoerente. — ... Existe muito de insensatez em nossa existência, Paul...Vivemos por fantasias e fragmentos de realidade. Destruímos os princípios tribais e nos condenamos à solidão das cidades. Esforçamo-nos arduamente para conquistar coisas supérfluas e depois lançamo-nos a batalhas sangrentas para defender o de que não precisamos. Acumulamos dinheiro e depois depreciamos o que possuímos. Afastamo-nos do Deus de nossos pais para freqüentar as salas dos magos e dos charlatães...Sabe que algumas vezes eu sinto medo? Vivo num jardim murado, bastante agradável, com gramados e canteiros de flores. Mas, em pesadelos, me pergunto se não é esse o vale dos assassinos... Depois de Pequim, fomos a Hong Kong e Tóquio e em seguida ao Havaí e a Los Angeles, onde Arlequim caiu de súbito doente. O médico — Estou disposto a apostar que essa é a conseqüência inevitável. Se Arlequim morrer, quero comprar as ações dele. Cobrirei qualquer proposta que seja feita. — Esse é um problema que competirá aos executores testamentários. — Dos quais você é o principal. — Isso é novidade para mim. — Pode aceitar a informação como verdadeira. — E se Arlequim viver, como eu não tenho a menor dúvida de que acontecerá? — A mesma proposta continua de pé. Solicito que a transmita a ele, assim que estiver em condições de examiná-la. — Estou certo de que ele recusará. — Como alternativa, estou preparado para comprar as ações de seus sócios, muitos dos quais se mostram dispostos a vender. — Pelos estatutos de Arlequim et Cie., George Arlequim tem opção para comprá-las. — Eu sei. Ele pode estar disposto a renunciar à opção ou a vendê-la. — Duvido também que isso aconteça. — Está sendo muito positivo, Sr. Desmond. Deixe-me informar-lhe que se pode hoje computar, com uma precisão de setenta e cinco por cento, o comportamento futuro de pacientes não-psicóticos. — E Arlequim é um dos pacientes dos seus computadores? — Um dos mais importantes. — Ele ficará lisonjeado ao sabê-lo. — Não o superestime, Desmond. E também não me subestime. Eu geralmente consigo tudo o que desejo. — E por que está querendo Arlequim et Cie.? A boca pequena retorceu-se num arremedo de sorriso. — Sabe de onde vem o nome Arlequim? O trisavô dele era um truão que fazia o papel de Arlecchino na commedia dell'arte. Pode ter certeza de que é a pura verdade. Conheço a fundo a história da família. Houve uma transformação e tanto em quatro gerações. Mas, afinal, assim é o papel, tradicionalmente. Arlequim transforma o mundo com um golpe do seu porrete de palhaço, depois ri furtivamente de toda a aflição que provocou. Por falar nisso... Ele fez uma pausa e tirou da maleta uma pasta volumosa, acrescentando: — Vocês nos pagam para efetuarmos uma verificação de segurança em suas contas. Este é o relatório dos últimos seis meses. Os computadores mostraram algumas anomalias curiosas. Descobrirá que algumas estão a exigir ação imediata. Se precisar de mais algum esclarecimento ou ajuda, o meu pessoal está à sua disposição. Ele levantou-se. A mão que me estendeu era frouxa e fria como um peixe morto. — Obrigado por dispor do seu tempo. Por gentileza, apresente meus respeitos a Madame Arlequim e diga-lhe que espero uma recuperação rápida do seu marido. Bom dia, Sr. Desmond. Ao acompanhá-lo até o elevador, senti um tênue calafrio, como se um vento gelado tivesse passado sobre a minha tumba. Os primeiros banqueiros foram sacerdotes e o dinheiro ainda possui uma linguagem ritual. Assim, quando se diz a um banqueiro que existem anomalias nas contas que ele opera, é como apontar um osso em sua direção ou lançar uma praga mortal sobre sua cabeça. Na teoria, é claro, o computador deve proteger o banqueiro de tal desastre primitivo. O computador é um cérebro poderoso, que pode acumular séculos de conhecimento, efetuar milagres de matemática num piscar de olhos e fornecer respostas infalíveis às mais intrincadas equações. O computador seduz o homem a uma fé cega por ele e depois o denuncia à sua própria idiotice. Não podemos comprar o cérebro. Alugamos o seu tempo. Contratamos analistas de sistemas e lhes explicamos as nossas necessidades. Recorremos a programadores para fornecer ao cérebro os fatos e os números. Baseamos decisões de fundamental importância nas respostas que nos foram proporcionadas pelo computador. Mas, porque vivíamos atormentados pela possibilidade de os programadores cometerem erros ou serem subornados, utilizamos monitores para controlarem o cérebro em busca do menor indício de erro ou fraude. E assim acreditávamos, como homens religiosos o fariam, que o sistema era seguro e sagrado, à prova de tolos e escroques. Havia apenas um único problema: o cérebro eletrônico, os programadores e os monitores eram todos membros da mesma família, a Creative Systems Incorporated, que sonhava em ter-nos a todos sob o seu controle, ao comando do seu chefe, Basil Yanko. Quer gostássemos quer não, estávamos presos dentro de um círculo mágico, traçado por um mago do século XX. O relatório que estava em cima da minha mesa, esperando ser aberto, era um documento de magia, cheio de encantamentos e perigosos mistérios. Eu precisava reunir toda a minha coragem para abri-lo, precisava de silêncio e tranqüilidade para examiná-lo. Disse a Suzanne que não me passasse nenhum telefonema, tranquei a porta e comecei a ler o relatório. Duas horas depois eu enfrentava a brutal realidade: Arlequim et Cie. fora sangrada em quinze milhões de dólares. E quem a sangrara fora o próprio George Arlequim. Surgia-me agora uma questão das mais simples: como o rabino que falta à sinagoga e vai jogar golfe no sabá, acertando um buraco com uma só tacada, a quem eu poderia contar o fato? O réu — ou a vítima — estava a doze mil quilômetros de distância, internado num hospital, esperando que um homem de jaleco branco lhe dissesse se iria viver ou morrer. De qualquer forma, porém, eu precisava cobrir os quinze milhões antes que os auditores entrassem em ação. Mesmo que eu utilizasse todos os meus recursos, poderia cobrir cinco milhões, faltando ainda dez. A quem eu poderia explicar a necessidade? Quem poderia entrar com tanto dinheiro, em confiança? Há poucos heróis no mundo das altas finanças. Os banqueiros são sensíveis como anêmonas-do-mar. Basta encostar um dedo neles e se encolhem todos, tremendo com o ultraje, e de apreensão. Eu precisava também comprovar se o relatório era falso ou não. Mas em quem poderia confiar para isso? O pessoal de computadores também é fechado. Casam-se e promovem casamentos entre si, encontrando-se nos bailes do condado. Além do mais, a informação dos computadores é como sexo. Pode-se vendê-la dez vezes e ainda se continua a possuí-la. E quem pode sabê-lo ou com isso se importar, desde que não se negocie a mercadoria diante dos olhos de um guarda que está passando? Um de nossos clientes gastou vinte milhões de dólares em pesquisas de petróleo em plataforma continental, apenas para descobrir que seus rivais já estavam perfurando no local antes mesmo que os últimos dados fossem gravados em fita. Era uma hora da tarde. À uma e meia eu deveria almoçar e falar no Clube Comercial de Genebra. Eu sabia que, se deixasse escapar a menor palavra de dúvida ou desânimo, ela daria a volta ao mundo antes que a Bolsa de Nova York abrisse. Tranquei o relatório em minha maleta, lavei-me no banheiro de Arlequim, destranquei a porta e chamei Suzanne. Já que eu tinha de explicar-lhe alguma coisa, o melhor era fazê-lo rapidamente. Suzanne é a secretária de Arlequim. Está com quarenta anos de idade, mais um ou menos um, e ama Arlequim desde o dia em que entrou em seu escritório, quinze anos atrás. Está ficando um pouco grisalha, mas ainda é uma mulher bonita, com um bom corpo e uma mente brilhante, tendo uma atitude muito prática em relação ao sexo e à amizade. Por algum tempo fomos minha. Recebeu-me como a um irmão há muito desaparecido, passou o braço pelos meus ombros e empurrou-me, cambaleando, para junto do fogo. — Ora essa, Paul, você está pálido como uma freira assustada! Vamos ter que pôr um pouco de fogo nessa sua barriga. Disse a Hilde que você estava vindo e ela declarou que guardaria todo o seu amor até encontrá- lo...Toma um scotch, não é?...Sabe, Paul, conheci Hilde quando ela fazia filmes especiais para Gregory em Munique. Isso foi há vinte anos, e Hilde continua linda. Portanto, vamos cuidar logo dos negócios. Sobre o que está querendo falar-me? — Quinze milhões de dólares. — O que está vendendo? — Nada. Essa quantia é o quanto está faltando em nossa caixa. Sofremos um desfalque, Karl. — E quem o deu? — Os registros dizem que foi George Arlequim. — E o que você diz? — Eu digo que não foi ele. — Já lhe perguntou? — Ainda não, mas o farei assim que souber se ele vai viver ou morrer. — Então não foi George. Quem poderia ter sido? — Alguém que tivesse acesso ao nosso sistema de computadores. — Quem? — Digo que foi Basil Yanko. — Por quê? Ele tem dinheiro que não acaba mais. — Ele quer assumir o controle de nosso banco. Disse-me isso hoje, ao entregar-me o relatório de segurança. — E o que está querendo de mim, Paul? — Que cubra dez milhões, imediatamente, deixando-nos a limpo, até que eu possa arrumar as contas e fazer as necessárias transferências. — E de onde virão os outros cinco milhões? — Eu mesmo os porei. É tudo o que eu tenho. — Você é um tolo sentimental, Paul. Está procurando salvar Arlequim de qualquer maneira. Mas não se esqueça de que, mesmo que cubra, Yanko continuará a ter provas do desfalque. — Se estivermos cobertos, será mais difícil para ele usar as provas de que dispõe. Se o fizer, isso tornará evidente sua cumplicidade. Talvez eu não tenha que usar os fundos de emergência, Karl, pois, afinal de contas, somos sólidos como Gibraltar. Mas tenho que ganhar tempo até conversar com Arlequim e receber autorização para iniciar uma investigação independente. — E por que procurou a mim e não a seus próprios acionistas? — Yanko disse que os tem sob controle. Você é o único homem em quem posso confiar, que tenho certeza de que nada dirá, quer resolva ou não emprestar o dinheiro para cobrir o déficit. — E quem vai realizar a sua investigação? — Esse é outro problema. Preciso de um técnico internacional ou de uma firma de segurança bem conhecida. Mas o mercado é bastante fechado e Yanko certamente saberá assim que eu começar a procurar. — E comprará imediatamente o homem que você contratar. — Ou talvez faça pior ainda. Pessoas são mortas por muito menos nesse negócio, Karl. — Quem foi que disse que o dinheiro não tinha cheiro? Você está bastante abalado, meu jovem Paul. Sirva-se de outro uísque. Tenho que pensar um pouco. Karl Kruger pensando era como uma britadeira triturando concreto. Andava de um lado para outro da imensa sala, ofegando e arrotando, murmurando para si mesmo. Abriu as cortinas, plantou o vulto corpulento diante da janela e ficou um longo tempo contemplando as luzes da velha cidade hanseática, tão profundamente enraizada no dinheiro da burguesia e na lama do Báltico que sobrevivera até mesmo ao cataclismo do bombardeio maciço e à divisão do Reich no pós-guerra. Seus habitantes são banqueiros e comerciantes, armadores e marinheiros esfuziantes, ciumentos da sua cidade e das suas liberdades históricas. São espertos e fleumáticos, amigos dedicados e inimigos obstinados. Se Karl Kruger resolvesse apoiar-me, eu poderia começar a lutar. Se ele recusasse, no entanto, seria como se eu ficasse nu em meio à mais terrível tempestade. Finalmente ele virou-se para mim, o rosto sério. — Conheci Basil Yanko e creio que o compreendo. Ele é um gênio, mas só tem cabeça e mais nada. Por isso dedica-se totalmente ao jogo do poder. O seu George Arlequim, por outro lado, o que é? Um playboy, um bufão, um amador? Dinheiro é negócio de homem. Esta cidade é prova disto. Mas o seu Arlequim se comporta como se isso fosse uma brincadeira de criança. — Você também sente inveja dele, Karl? — Inveja? Oh, meu Deus, claro que não! Como posso sentir inveja de um homem que precisa de uma cobertura de quinze milhões porque não sabe vigiar suas próprias contas? — Deixe disso, Karl! Você sabe muito bem que qualquer sistema pode ser corrompido. Existe em Londres um técnico de segurança que consegue seus clientes provando justamente isso. Se o contratar, ele demonstra sua habilidade desviando dinheiro durante seis meses a fio, sem que você o perceba, depositando o que tirou num fundo de investimento. O que você está realmente querendo saber é se vale a pena ou não salvar Arlequim. Eu digo que vale. Não é necessário ser asceta para ser bom banqueiro. Pode-se sê-lo levando uma vida como a de Arlequim. No seu tempo, você fazia até mais do que ele. E é capaz de liquidá-lo só porque não aprecia seu estilo de vida? — Não é esse o problema. Por que Yanko o escolheu? Por que não a mim ou a meia dúzia de outros que ambos poderíamos enumerar? Ele escolheu Arlequim porque há uma fraqueza no homem, assim como em seu sistema. E eu quero saber precisamente qual é. — Sou o homem errado para responder, Karl. — Por quê? — Porque ele é meu amigo, sou padrinho de seu filho e estou apaixonado pela esposa dele. — Deus Todo-Poderoso! E em vez de roubar-lhe a esposa, você prefere ser o mártir no altar da amizade? E muito mais tolo do que eu imaginava, Paul. — Agora que já sabe, Karl, qual é sua resposta? — Darei a cobertura, mas com uma condição. — Qual? — Quer esteja à porta da morte quer não, Arlequim terá que saber de tudo. E quero a primeira opção sobre suas ações e seus direitos de preferência em relação aos outros acionistas. Se ele não concordar, então não há negócio. — Está sendo muito exigente, Karl. — Isto é Hamburgo, irmãozinho. Aqui não se dá nada por nada. E quem não andar com a braguilha abotoada, pode pegar uma doença. — Apresentarei a proposta a Arlequim. — Está certo. Agora, quanto a seu investigador...Não pode realmente procurar alguém no campo dos computadores, pois Yanko iria antecipar-se a todos os seus atos. Concorda? — Concordo. receberia alta do hospital dentro de uma semana e dentro de um mês estaria pronto para recomeçar a trabalhar, moderadamente. Juliette relatava-me os planos que tinham feito. — ... Decidimos ir para Acapulco. Lola Frank emprestou-nos a villa que possui lá. Teremos toda uma equipe para cuidar de nós. A casa tem uma lancha e...Oh, Paul, será como uma segunda lua-de-mel! Mal posso esperar o momento de seguirmos para Acapulco. As últimas semanas foram terríveis. Cada vez que o telefone tocava, eu pulava sobressaltada. George parecia-me completamente estranho, de tão calmo e distante. Era como se ele estivesse procurando conservar todas as suas forças para o dia do veredicto final. Ele jamais se queixou. Mostrava-se extremamente cuidadoso para comigo, bastante atencioso, mas vivia em seu próprio mundo. Mesmo quando lhe deram a boa notícia, ele mostrou-se tão reservado que foi quase sobrenatural. Sorriu e agradeceu ao médico por seus cuidados. Quando ficamos a sós, ele abraçou-me e chorou um pouco. Depois disse uma coisa estranha: "Agora eu sei o nome do anjo". Quando lhe perguntei o que aquilo significava, disse que era algo que preferia não explicar... — Quando posso visitá-lo? — Esta tarde. Por que não vai sozinho fazer-lhe uma surpresa? — Se acha que... — Não há o menor problema. Isso me dará uma oportunidade de ir a um cabeleireiro e fazer algumas compras. Mas não o deixe falar de negócios, está certo? — Prometo que não o deixarei alongar-se muito no assunto. — Ele ficará na maior alegria em vê-lo! Oh, Paul, não está fazendo um dia maravilhoso? Eu achava que o dia era infernal e repugnante. Compreendia agora por que, nos velhos tempos, mandavam cortar a garganta dos portadores de más notícias. Ao seguir para o centro da cidade a fim de visitar Arlequim, tinha vontade de cortar minha própria garganta. Pensei em reter as notícias por mais algum tempo, mas sabia que não poderia fazê-lo. Sem o consentimento de Arlequim, não tinha poderes para entrar em ação. Meu coração contraiu-se quando o vi. Estava sentado numa poltrona, usando um pijama de seda e roupão, parecendo transparente de tão pálido. Quando lhe apertei a mão, verifiquei que estava seca e encarquilhada. Apenas seu sorriso permanecia o mesmo, luminoso, grave, com a eterna expressão de malícia. Ele não procurou atrair a atenção para si mesmo, como os doentes costumam fazer. Afastou minhas perguntas sobre a doença com um sacudir de ombros. — Já passou, Paul. Tive muita sorte e estou contente por Julie. Agora quero sair daqui o mais depressa possível. Disseram-me que a convalescença será demorada. Pode defender o forte por mais algum tempo? — Claro. Mas vou precisar importuná-lo com o exame de alguns negócios. Acha que agüenta? — Não há problema. Pode falar. — São más notícias, George. Ele sorriu e sacudiu os ombros. — Pode contar-me o pior e mesmo assim continuarei a sentir-me um homem de sorte. Contei-lhe tudo. Ele ouviu-me em silêncio, de olhos fechados, a cabeça caída de encontro ao peito, as mãos placidamente no colo. Quando acabei, ele perguntou calmamente: — Como foi que aconteceu, Paul? — Está tudo no relatório. Precisaremos de um técnico para verificar os detalhes, porque há uma ampla série de transações implícitas. O método, porém, é essencialmente simples. Suborna-se um programador para fornecer informações fraudulentas ao computador. A menos que elas sejam canceladas, o computador a partir daí desenvolve todos os seus cálculos tendo-as por base, até o juízo final...Sabe como operamos no mercado. Compramos e vendemos em bloco para grupos de clientes, separando depois as ações de cada um, os lucros e as despesas. Nosso computador foi programado para apresentar despesas falsas nas transações, o lucro daí proveniente sendo depositado numa conta numerada do Union Bank, de Zurique. E essa conta está em sem nome. — Mas eu nunca tive, em toda a minha vida, nenhuma conta no Union Bank! — O relatório declara que é sua a assinatura na abertura da conta e nos cheques. — Está dizendo que a conta tem sido operada? — Retiraram todo o dinheiro. — Mas então falsificaram o meu nome! — Teremos de prová-lo e descobrir também quem o fez. Teremos também que descobrir quem forneceu informações falsas ao computador, em todas as nossas filiais, e quem pagou para que isso fosse feito. — Por que nós mesmos não descobrimos a diferença? — Porque consideramos o computador como coisa garantida. Enquanto as transações diárias se ajustam, nem mesmo questionamos os seus resultados. E temos uma tão ampla variedade de operações que somente os contadores e os auditores preocupam-se com os números finais. — Mas isso é uma loucura, Paul! Fazer com que pareça que eu estou roubando minha própria empresa...Não estou entendendo nada. — Alguém quer fazê-lo de alvo, e creio que esse alguém se chama Basil Yanko. — Se isso é verdade, podemos nos livrar dele e contratar os serviços de outros. — O diabo que podemos! Já se esqueceu quanto tempo demora para instalar e treinar operadores num determinado sistema? Além disso, o que está acontecendo é apenas um aviso, um primeiro bilhete de chantagista. — Mesmo assim, é um ato criminoso. — Se pudermos prová-lo. E temos também que cobrir os fundos que estão faltando. Preciso de instruções suas quanto a isso. No momento, Karl Kruger e eu estamos dando as garantias necessárias, mas Karl quer muita coisa em troca. — Não tem importância, Paul. — Neste caso, precisarei de uma procuração plena, para poder movimentar todos os seus bens, pelo menos enquanto não for capaz de viajar e agir por si mesmo. Sei que isso é um risco muito grande e não me incomodarei se você não quiser assumi-lo. — Tenho que confiar em alguém, Paul. E se não puder confiar em você, quem mais me restará? — Então vamos enfrentar Basil Yanko. — Eu não disse isso. Engasguei, incrédulo. Arlequim sorriu, um sorriso lívido e desalentado. — Não fique tão chocado, Paul! Acabei de caminhar até a beira da morte e voltei. Sei agora de quão pouca bagagem um homem realmente necessita. Devo confessar-lhe que não tenho muita certeza se desejo manter Arlequim et Cie. Não gostaria de que ela ficasse com Basil Yanko, mas não me recusaria a vendê-la para Karl Kruger. É uma ótima solução, pois assim Julie e o menino não teriam que se preocupar com mais nada e eu estaria de fora da corrida de ratos. — Se vender agora, será uma atitude tomada sob coação. — Esse é apenas um dos lados da moeda. Quarenta minutos depois, descansando em seu jardim, apresentei-lhe a pergunta: — O que sabe dizer-me sobre Basil Yanko e a Creative Systems Incorporated? Ele fez uma expressão de repugnância. — É um bruto, mas um bruto poderoso. Metade das empresas da costa usa os seus serviços e lambe suas botas na hora de pagar a conta. Mas eu não tomaria banho no mesmo oceano que ele. — O que há de errado com ele? — Legalmente, nada. Ele fornece os melhores serviços de computadores deste país — sistemas, programas, segurança, tudo enfim. É o chamado garoto prodígio. Mas, uma vez entrando em algum lugar, não se consegue mais tirá-lo de lá. Ele controla todos os sistemas e fica sabendo de cada movimento de seus clientes. Ao menor indício de fraqueza, ele se instala prontamente no gabinete do presidente. Já fez assim com três amigos meus e um inimigo, que bem o mereceu. Mas por que está perguntando, Paul? — Nós também o usamos e achamos que adulterou nossos registros. — Ay de mi! Mas isso é terrível! — Ele já fez o mesmo com alguém por aqui? Há rumores de que sim, mas nenhuma prova. — E, se procurarmos, não encontraremos as provas necessárias? — Na Califórnia de hoje? Perca as esperanças. O presidente está desacreditado, o Congresso está com medo, o povo desmoralizado. Duvido muito que eu consiga relacionar vinte pessoas nesta cidade que jamais tenham sido compradas por alguém. Eu não poderia nem mesmo enumerar dez pessoas que pudessem enfrentar uma investigação pública de seus negócios. — É uma triste conclusão. — Triste e sinistra. Posso descobrir-lhe um assassino muito mais depressa do que um homem honesto ou um homem corajoso. Ele fez uma pausa, abrindo os braços num gesto de desespero. — Sei que estou exagerando um pouco, como sempre o faço. Mas é que sou como Diógenes, enfiado em sua barrica. Não se pode negar, contudo, que assim são os tempos em que vivemos. Quando se vive do crédito, como nós, americanos, o fazemos, sempre se pode ser pressionado. À medida que - se sobe a escada das corporações, fica-se com medo do homem que está acima e do que está abaixo. É esse o poder que Yanko utiliza. Ele conhece os segredos de todo mundo. O que ele não sabe, trata de inventar, alimentando com mentiras os seus computadores, e depois apresenta-as como um evangelho, no momento em que julga mais conveniente. — E como então se pode vencê-lo? — Só há uma maneira: viver em seu mundo. É preciso espreitá-lo nas sombras, talvez durante anos, até o dia em que se possa forçá-lo a sair em campo aberto, derrotando-o então. Mas para fazer tal coisa é indispensável ter nervos fortes. E quando sair para jantar num restaurante, não se pode esquecer de ficar de frente para a porta, as costas contra uma parede sólida de tijolos. Estou lhe dando um bom conselho, Paul, jamais se esqueça disso. Vou verificar por aí. Se ouvir algo de útil, eu lhe informarei imediatamente. — Você me surpreende, Francis, como um legítimo cavalheiro cristão. — O mérito não é meu. Tive uma mãe — que Deus a tenha! — que me puxou as orelhas e ensinou-me boas maneiras. Agora, deixe-me oferecer- lhe um sherry. É o melhor que tenho e sinto o maior orgulho dele. Ele serviu-me a bebida e fez o brinde: saúde, dinheiro, amor e tempo para gozar as três coisas. Ao beber, experimentei a sensação sobrenatural de que Basil Yanko espreitava por cima do meu ombro, sorrindo da ironia. Anos atrás, quando eu estava em Tóquio, negociando um minério de ferro que ainda estava debaixo da terra e gastando a minha comissão antes mesmo de recebê-la, fiz amizade com Kiyoshi Kawai, o decano dos gravadores japoneses. Ele já era um homem idoso então, mas cheio de vitalidade e com uma extraordinária sagacidade. Sempre que eu me sentia infeliz, o que acontecia com freqüência, ia a seu estúdio e lá ficava sentado durante muitas horas, vendo-o cortar os blocos e misturar as cores, censurando os aprendizes se as definições não fossem absolutamente perfeitas. Quando Kiyoshi estava deprimido, um acontecimento raro mas cataclísmico, arrastava-me para um clube de travestis em Shinjuku, onde os rapazes se vestiam como gueixas e as poucas moças presentes pareciam os sete samurais. Todos adejavam em torno do mestre, enquanto este os desenhava. Serviam-lhe intermináveis copinhos de saque, enquanto Kiyoshi improvisava haiku e reproduzia-os em maravilhosas pinceladas. Eu achava a experiência enervante, porque, depois de uma longa sessão de saque e de cerveja Kirin, era difícil distinguir os rapazes das moças. Eu tinha sempre que levar o velho para casa, antes que ele começasse a assinar promissórias e as distribuísse, como souvenirs. E numa dessas excursões que ele me deu a receita para uma boa vida. Quando ficou sóbrio, fiz com que a transcrevesse em caracteres kanji. Agora, aonde quer que eu vá, sempre levo o pergaminho comigo. Diz o seguinte: "Nunca misture as cores quando o vento do oeste está soprando e jamais faça amor com uma mulher que tenha cara de raposa". É difícil explicar o significado de tal inscrição, mas aqui a reproduzo como prólogo a um dia péssimo. Começou com uma série de pequenos desastres. Acordei cedo e fui dar um mergulho na piscina, escorreguei nos ladrilhos molhados e torci o tornozelo. Logo depois baixou um nevoeiro intenso e em cinco minutos eu estava com os olhos turvos e espirrando. Às oito horas, Suzanne telefonou- me de Genebra. Transmiti-lhe a boa notícia da recuperação de Arlequim e ela reagiu com um despacho da frente doméstica. Nossos gerentes de filiais tinham ficado extremamente nervosos com meu cabograma. Estavam subitamente preocupados com os interesses de seus clientes e com os próprios pescoços. Será que eu poderia prestar alguns esclarecimentos sobre as instruções? Como eu nada poderia fazer sem a autorização expressa de Arlequim em meu bolso, ditei uma mensagem tranqüilizante, dizendo-lhes que o presidente estava passando bem e em recuperação, e em breve iria apertar- lhes as mãos. Novas instruções seriam transmitidas dentro de quarenta e oito horas. Pelo menos era o que eu esperava. Para coroar tudo, Juliette telefonou e pediu-me que fosse tomar o café da manhã em sua companhia. Achava-se bastante nervosa porque o pequeno Paul estava com catapora e a idiota da babá celebrara o acontecimento num telegrama de cem palavras, escrito em alemão-suíço e mutilado em trânsito. Tinha ainda outras preocupações e escolheu-me para padre confessor. — Somos amigos há bastante tempo, Paul. Entre nós, não existem segredos. — Existem, minha cara, pois não podemos viver sem eles. Comece novamente. — Está sendo detestável agora, Paul. — Então estou de mau humor e com uma péssima disposição. Hoje não é meu dia. Qual é o próximo item? — Estou preocupada com George. — George e você ou apenas George? — Apenas George. — Ontem você me falava sobre uma segunda lua-de-mel. O que aconteceu para fazê-la mudar assim? Eu não tinha a menor idéia do que ia dizer-lhe no dia marcado nem em qualquer outro dia, mas pelo menos lhe pusera uma pulga atrás da orelha e esperava que ele ficasse a se cocar por algum tempo. Voltei para meu quarto e pedi que me providenciassem uma estenografa. Sentei-me junto com ela à beira da piscina e ditei-lhe as procurações que George Arlequim deveria assinar. Era uma tarefa longa e tediosa, mas teve o mérito de manter-me ocupado até meio-dia, quando fui para o bar a fim de tomar um coquetel antes do almoço. O barman cumprimentou-me pelo nome e apontou para um homem que estava sentado sozinho junto à janela. — Aquele cavalheiro chegou aqui um minuto atrás e perguntou pelo senhor. Ele era jovem, não tinha mais do que trinta anos, trajava um terno de corte italiano. Levantou-se quando me aproximei e apresentou-se respeitosamente: — Sr. Desmond? Prazer em conhecê-lo. Sou Alex Duggan, da Creative Systems Incorporated. Nosso escritório de Nova York pediu-me que lhe entregasse uma mensagem urgente. Liguei para sua suíte e, como não estava lá, calculei que poderia encontrá-lo aqui no bar. Não quer sentar-se? Sentei-me. O barman trouxe minha bebida para a mesa. Só depois é que perguntei: — E qual é a mensagem que tem para mim? — É um telex do gabinete de nosso presidente. Se tiver alguma resposta, ficarei feliz em transmiti-la para o senhor. A mensagem era um documento, formal e objetivo: "Tendo por base os dados atuais e uma projeção de três anos, avaliamos Arlequim et Cie. à razão de oitenta e cinco dólares por ação. Este comunicado constitui uma proposta formal de compra à vista da totalidade das ações, à razão de cem dólares cada uma. Solicitamos que transmita a proposta imediatamente ao Sr. George Arlequim e informe-o também de que estamos dispostos a negociar, em termos generosos, a venda ou renúncia às opções existentes. Os outros acionistas já foram devidamente informados. Basil Yanko, presidente da Creative Systems Incorporated". Meti a mensagem no bolso do paletó e rabisquei a resposta no envelope: "Comunicação recebida. Paul Desmond". O jovem dobrou o envelope reverentemente e guardou-o na carteira. — Mandarei sua resposta assim que voltar para o escritório. — Aceita beber alguma coisa, Sr. Duggan? — Não, obrigado. Nunca bebo quando estou trabalhando. É essa a política da companhia. — Há quanto tempo trabalha para a Creative Systems, Sr. Duggan? — Há três anos. — E o que faz? — Relações com os clientes. — E isso significa precisamente o quê? — Tenho um setor exclusivo. Visito todos os clientes uma vez por mês, verifico as queixas, sugiro melhorias, faço projeções para a ampliação dos nossos serviços, que são projetados, é claro, para crescerem com os negócios do cliente. — E é bem pago? — Muito bem. Temos um sistema de gratificações, opções para compras de ações e tudo o mais. É de fato um excelente emprego, com boas perspectivas. — E está sempre com o Sr. Basil Yanko? — Quase nunca. Mas a gente sabe que ele está presente. E como! Ele sabe o que cada um está fazendo, até o pessoal da limpeza. E quem não está preparado, não fica muito tempo na Creative Systems. — Quer dizer então que a movimentação da equipe é muito grande? — Nem tanto. Acho que só o bastante para nos manter alerta. Eles ainda dizem que os funcionários que rejeitamos são melhores do que a maioria. Todos parecem encontrar emprego com bastante facilidade. — Isso é interessante. E onde eles vão procurar emprego? — A maioria do pessoal mais experiente em computação registra-se em três agências de empregos de Nova York e duas aqui na costa do Pacífico. — E a sua companhia também recorre a uma agência de empregos? — Não, senhor. Treinamos e recrutamos pessoal apenas para nós mesmos e para nossos clientes. O Sr. Yanko é inflexível com relação a isso. — Muito obrigado, Sr. Duggan. Agora não vou prendê-lo por mais tempo. — Foi um prazer, senhor. Pode estar certo de que sua mensagem estará em Nova York dentro de meia hora. Ele era um jovem simpático, mas ingênuo demais para ser real. Apertei- lhe a mão e acompanhei-o até a porta, voltando depois, pensativo e infeliz, para acabar minha bebida. Agora a pulga estava atrás da minha orelha. Yanko sabia de tudo a respeito do comportamento dependente de pessoas não- psicóticas. Sabia mesmo! Uma proposta vaga deixa um homem inquieto, uma proposta concreta deixa-o ganancioso...e uma oferta dezoito por cento acima do mercado fá-lo sair correndo para assinar os papéis, antes mesmo que Papai Noel possa sair da chaminé! Arlequim podia se recusar a vender. Mas a verdade absoluta é que ele não poderia comprar todas as suas opções e ainda por cima cobrir um desfalque de quinze milhões de dólares. Karl Kruger poderia comprar a noventa dólares por ação, mas não daria um cent acima disso e eu não podia culpá-lo por tal atitude. Arlequim poderia tentar travar uma batalha por procuração. Nesse caso, Yanko jogaria seu trunfo: a prova documentada de fraude e apropriação indébita. Quando tal acontecesse, nossos amigos, clientes e aliados nos abandonariam em massa. Era realmente um quadro animador para se pintar num quarto de doente. Arlequim resumiu a situação com um sorriso triste: — Estamos presos entre garras de caranguejo. Há apenas um consolo nisso tudo: o preço é justo. Juliette ficou furiosa, desafiando-o: — Arlequim et Cie. foi-lhe entregue numa bandeja de ouro. E vai vendê-la sem a menor preocupação só porque o preço é justo? Estou envergonhada de você, George. Ele corou, irritado, virando-se em seguida para mim. — Qual é o seu conselho, Paul? — A razão diz para vender, o instinto diz para lutar. — E podemos vencer? — Podemos. — Mas, mesmo que isso venha a acontecer, sairíamos bastante abalados, não é mesmo? — Pelo amor de Deus, George! Juliette voltava a enfrentá-lo, fria e com uma expressão de desprezo. — Pare de fazer rodeios e admita logo de uma vez! Você nunca teve que lutar por coisa alguma em toda a sua vida. Recebeu tudo de presente, até mesmo o talento que possui. E agora estão-lhe propondo outro presente: 2 Sinto-me inteiramente em casa em Nova York, um capitalista descarado a gozar os despojos da livre iniciativa. Tenho um apartamento, um criado japonês, um bom clube e uma miscelânea de amigos, de ambos os sexos. Adoro a cidade por todas as suas loucuras e delírios. Regozijo-me com sua ostentação espalhafatosa, seu lacônico cinismo e suas bruscas e péssimas maneiras. E um lugar arriscado para se viver, um lugar muito fácil para se morrer. Mas sinto-me mais feliz em Nova York do que em qualquer outra cidade do mundo. Possuo também em Nova York um abençoado isolamento, porque o telefone não está no catálogo, na portaria do prédio consta o nome de outro homem e uso também o apartamento do banco, no Salvador, onde posso receber os importunos, evitando assim que eles ingressem em meu refúgio. O arranjo possui suas vantagens diplomáticas. O Salvador é bastante público, onde todo mundo é visto e se fica especulando sobre os negócios ali realizados. Lanço as insinuações que desejo num lugar e posso tranqüilamente descansar em outro. Às oito horas da manhã, amarrotado e sonolento, registrei-me no Salvador. Às nove já estava em meu próprio apartamento. Às dez, graças aos cuidados de Takeshi, estava barbeado, banhado, alimentado, novamente com uma forma humana. Às dez e meia estava descendo a Third Avenue, a fim de entrar em contato com Aaron Bogdanovich, que negociava com o terror e com flores exóticas e caras. O comércio de flores era bastante próspero. Duas moças, armadas de tesouras grandes e arames, estavam fazendo arranjos de mesa. Um jovem exótico estava arrumando um buquê numa caixa. Uma dama opulenta, com óculos de ouro, uma túnica amarelo-limão e um sorriso voraz, indagou-me o que eu desejava e já estava me mostrando um catálogo de flores da primavera antes mesmo que eu tivesse tempo de respirar. Quando pedi para ver o proprietário, o sorriso dela instantaneamente desapareceu, não mais queria saber o que me agradava e sim meu nome e ofício. A informação não lhe proporcionou nenhuma satisfação visível. Quando lhe entreguei a carta de Karl Kruger, ela segurou-a cuidadosamente, quase como se fosse explosiva, colocando-a numa pequena bandeja e levando- a para uma sala nos fundos. Voltou momentos depois, dizendo que eu deveria atravessar a rua, até a Taverna Ginty's, e esperar por uma chamada no telefone público. Saí rapidamente, sentindo-me leproso e indesejável. No Ginty's, tomei um suco de tomate e contei todas as garrafas nas prateleiras, até que o telefone tocou e uma voz me ordenou que seguisse até a Catedral de Saint Patrick e me ajoelhasse no primeiro confessionário do lado direito. A essa altura já estava começando a achar que toda aquela rotina era um absurdo total. E foi o que eu disse. A voz censurou-me asperamente: — Quando precisamos de um banqueiro, vamos procurá-lo. Em nosso negócio, somos os especialistas. Entendido? A coisa colocada naqueles termos, claro que estava entendido. A Catedral de Saint Patrick não ficava muito longe e uma pequena oração poderia ajudar — contanto que eu me lembrasse das palavras certas. O confessionário estava escuro e com um cheiro de ranço de muitos pecados. A grade que separava o penitente do confessor estava coberta por uma tela opaca. A voz que me falou através dela era anônima, um murmúrio suave: — Você é Paul Desmond? — Sou. — Eu sou Aaron Bogdanovich. Possuo uma memória fotográfica. Irá dizer-me os serviços que deseja. Eu lhe direi se, aceito e em que termos poderemos aceitá-los. Comece, por favor. Contei-lhe tudo, numa confissão monótona. Foi um exercício interessante, pois fez-me ver o quão vagamente eu definira minha própria posição e quanta razão existia para as dúvidas e hesitações de Arlequim. Aaron Bogdanovich era um bom ouvinte e um hábil inquisidor. Fez-me algumas perguntas constrangedoras. — Como classificaria suas necessidades em ordem de importância? — Evitar que assumam nosso negócio, investigar a operação fraudulenta e limpar nosso sistema, provar que Basil Yanko é culpado de conspiração criminosa. — As duas primeiras operações são defensivas. A terceira é ofensiva. Por quê? — Se empreendermos uma guerra defensiva, estaremos fadados a perder. — Já imaginou o custo possível? — Em dinheiro? Não. Partimos do princípio de que poderá ser bastante dispendioso. — O dinheiro não é o problema fundamental. — E qual é então? — Vida e morte. Quando se vai à polícia ou a uma empresa de reconhecida segurança, contrata-se um homem com uma arma para defender a vida e a propriedade do cliente. A procuração que eles recebem é limitada. São responsáveis perante a lei por tudo o que fazem. O mesmo não acontece conosco, porque operamos fora da lei. Contudo, temos alguns princípios morais e não somos assassinos de aluguel. Pode comprá-los, se quiser, num mercado que funciona abertamente. A taxa começa em vinte mil dólares por assassinato. — Não estamos querendo contratar assassinos. — Mas talvez haja alguma violência implicada na operação e a morte é a conseqüência inevitável da violência. Por isso terá que decidir primeiro — e nós depois — se o problema é grave o suficiente para justificar um risco de morte. — Temos que discutir isso? — Não agora. Gostaria que primeiro definisse à vontade sua posição. Depois tornaremos a nos encontrar. — Frente a frente? — Por que quer saber? — Falou em princípios morais. Precisamos saber quais são os que temos em comum. Nunca fiz contrato com um homem que não conhecesse. Jamais assinei um contrato em aberto. Portanto, a próxima reunião terá que ser frente a frente ou terminamos tudo agora mesmo. — Concordo. — Sugiro que seja em meu apartamento. Pode escolher o dia e a hora que mais lhe convierem. — Esta noite, às onze e meia. Tem documentos que eu possa estudar? — Estão aqui, em minha maleta. — Deixe-a aberta aí no chão, com seu endereço e telefone. Eu a pegarei depois que sair. Só mais uma coisa. — Pois não? — Sirvo antes de mais nada a um país. Ajudo os seus amigos e os meus por concessão e corolário. Não posso pôr meu trabalho em risco. Portanto, deve comprometer-se a manter sigilo absoluto. — Está certo. — Deve saber também qual a penalidade por qualquer violação. — E qual é? — A morte, Sr. Desmond. E não receberá um segundo aviso. — Se Arlequim estaria apto a um trabalho ativo novamente. — Estará, muito em breve. — Se eu sentia qualquer fraqueza em nossas operações de Genebra. — E você assegurou-lhes que não havia nenhuma? — Ao que eu soubesse...Nunca faço declarações precipitadas. — Eu sei, Larry, eu sei. Quais foram as outras perguntas? — Se estávamos aceitando propostas para a transferência de controle e se era verdade que já fora formulada uma. Eu respondi "não" a ambas. — Novamente ao que você soubesse... — Claro. Depois me perguntaram se eu estaria propenso a uma mudança. Respondi que estava bastante satisfeito com Arlequim et Cie., e muito mais ainda com minhas relações com o nosso presidente. Temos muitas coisas em comum, como o interesse pela pintura e o respeito aos antecedentes sólidos. E, se assim posso dizê-lo, somos ambos descendentes de famílias tradicionais. — Fico satisfeito em ouvi-lo dizer isso, Larry. Arlequim está contando com seu apoio neste momento difícil. — Pois então, por favor, assegure-lhe que pode contar comigo. Mas eu não seria honesto se não dissesse também que a menor sombra de suspeita sobre a reputação do banco ou sobre mim pode levar-me a reavaliar minha posição. — Agradeço sua sinceridade, Larry. E tenho certeza de que Arlequim irá procurá-lo assim que chegar a Nova York. Até lá, estarei em contato com você diariamente. E, Larry... — O que é, Paul? — Este é o momento de todos mostrarem o que realmente são. Sabe disso, não é? — Sei, Paul. E obrigado por sua confiança. Agora é melhor eu voltar e cuidar dos negócios. Ele saiu da sala de cabeça erguida, o rosto brilhando de dedicação, um bom bostoniano, no qual, como dizia Tom Appleton, o vento leste encontrava abrigo. A informação que ele me fornecera era desoladora. A notícia de nosso problema já transpirara. Haveria novos rumores a cada dia que surgisse. Os boatos dos bares iriam rapidamente espalhar-se pela cidade e muito em breve uma proposta de cem dólares por ação pareceria um maná no deserto. Eu estava precisando tomar um conhaque bem porte. Mas decidi não tomá-lo, porque Valerie Hallstrom ficara de chegar às três e meia e eu precisaria de toda a minha lucidez quando nos sentássemos para analisar o relatório. Valerie Adele Hallstrom — seu nome completo, conforme pude verificar no cartão de visitas — era realmente um fenômeno. Alta e loura, possuía um desses rostos escandinavos francos e saudáveis que os agentes de viagens usam para seduzir os incautos a um cruzeiro pelo Báltico em pleno inverno. O corpo era um incitamento ao motim. Não que ela procurasse exibi-lo, muito pelo contrário. A roupa que usava era um milagre de discrição. Os gestos eram comedidos, a voz de um contralto suave. Ela sabia o que pensava e tinha na ponta da língua todas as palavras necessárias para expressar seus pensamentos. A princípio, deixou-me um pouco perturbado. Mas à medida que analisamos o documento, item por item, o efeito que me causou foi apavorante. — Espero que compreenda, Sr. Desmond, que se resolver tomar medidas legais, este documento terá que valer como prova nos tribunais. No momento em que o assinei, o documento passou a contar com minha reputação profissional e a da corporação onde trabalho. — Conclui então, como o documento declara categoricamente, que as fraudes ocorreram dentro de nossa própria organização. — Não temos a menor dúvida quanto a isso. — Poderia explicar-me novamente qual o processo que pode ter sido utilizado? — Tomemos como exemplo a matriz de vocês em Genebra. O sistema de computadores está localizado em Zurique. Vocês alugam tempo de uso, quatro horas por dia, cinco dias por semana. Usam duas linhas diretas para o computador central, comunicando-se através de um código exclusivo. Quem quer que conheça esse código, pode usar as linhas de vocês ou as de qualquer outro para fornecer informações e instruções ao computador ou para retirar informações. — Isso tudo está claro, mas há algumas brechas. Ou nossos operadores cometeram a fraude ou alguém de fora o fez, usando nossa palavra-código. — A qual só poderiam obter com alguém de dentro de sua organização, não é mesmo? — Possivelmente...Segundo estou entendendo, no momento em que uma instrução é fornecida ao computador, fica depositada no banco de memória e é automaticamente executada. * — Exatamente. — E ninguém sabe que a instrução existe, exceto a pessoa que a transmitiu ao banco de memória. — Isso mesmo. E essa é a base de todas as fraudes clássicas. Por exemplo: se a pessoa possui um limite de saque a descoberto de dois mil dólares, pode aumentá-lo para duzentos mil, apenas acrescentando dois zeros ao programa. Depois que tal dado foi incluído no registro, o correntista pode operar tranqüilamente dentro do falso limite, * sem que ninguém o ponha em dúvida — a menos e até que alguém vá verificar a instrução original. Posso dar-lhe outro exemplo. Alguém pode ordenar ao computador que registre um saldo de cem mil dólares em sua conta num dia determinado, apagando a transação do banco de memória no dia seguinte. Retira o dinheiro da conta com um cheque marcado "saldo de conta" e sai tranqüilamente do país. A menos que possa ser provado que a pessoa foi quem deu a instrução ao computador para cometer a fraude, é muito difícil provar que tal pessoa foi culpada de algum crime. Afinal, a pessoa não declarou ter um dinheiro a que não tinha direito. O erro foi cometido pelo computador, agindo e operando pelo banco. — Gostaria, senhorita, de repassar o que aconteceu exatamente em nosso escritório de Genebra. Alguém, supostamente o próprio George Arlequim, abriu uma conta numerada no Union Bank. A conta foi aberta pelo correio, usando documentos assinados ou aparentemente assinados por George Arlequim. As assinaturas conferem. Arlequim, no entanto, nega ter qualquer conhecimento de tal conta. Portanto, podemos concluir que as assinaturas são falsificadas. Em seguida, alguém, usando nosso código, dá ordens ao computador para cobrar uma despesa de um por cento em cada transação, depositando os lucros, semanalmente, na suposta conta de Arlequim no Union Bank. Como as despesas bancárias estão ficando cada vez mais complicadas, uma decorrência da ganância cada vez maior dos banqueiros, tal despesa poderia facilmente passar despercebida até o momento de uma auditoria. Certo? — Certo. Mas, por ocasião da auditoria, ela teria que ser justificada por uma instrução original. — E então, se fosse Arlequim que tivesse emitido tal instrução, ele estaria imediatamente sujeito a um processo criminal. — Certo. — Mas ele não é estúpido e não precisa desse dinheiro. Portanto, senhorita, qual sua conclusão? Às onze e meia, pontual como o Juízo Final, Aaron Bogdanovich apareceu. Era um homem alto, esguio, bronzeado e musculoso. Parecia ter quarenta anos, mas poderia perfeitamente ter cinqüenta. Era impossível dizê- lo, sem uma certidão de nascimento. Vestia-se de forma negligente, mas impecável. Sorria com facilidade. O aperto de mão foi bastante firme. Depois de um olhar avaliador para o apartamento, ele disse: — Temos um homem vigiando a porta do edifício. Há outro aqui no corredor. Gostaria de chamá-lo para ele verificar se há microfones ocultos no apartamento. Faz alguma objeção? — Absolutamente nenhuma. Seu agente entrou, um jovem silencioso que examinou todos os cômodos com um detector, sacudiu a cabeça num gesto de satisfação e depois saiu do apartamento, sem dizer uma palavra sequer. Bogdanovich relaxou visivelmente. — Agora podemos conversar. — Quer beber alguma coisa? — Um suco de frutas, por gentileza. Takeshi serviu as bebidas e retirou-se. Aaron Bogdanovich sorriu-me por cima de seu copo. — E então, Sr. Desmond, o que decidiu? — Estamos encurralados e vamos ter que lutar. Aceitamos a possibilidade de conseqüências drásticas. — Seu superior concorda com tal decisão? — Ele me deu carta branca. — As despesas são as seguintes: terá que pôr à nossa disposição, imediatamente, duzentos e cinqüenta mil dólares em dinheiro; manterá de reserva uma quantia igual, para pôr à nossa disposição em qualquer moeda e na capital que indicarmos. O total é de meio milhão de dólares, podendo haver um acréscimo que não superará dez por cento. — Ganhando ou perdendo? — Exatamente. É um ato de fé. O outro lado da barganha é que assumimos todos os nossos riscos e nunca, em quaisquer circunstâncias, os transferimos para o cliente. Se houver sangue na operação, nós mesmos trataremos de limpá-lo. Pode comprometer-se a nos pagar tal quantia? — Posso. — L'chaim, Sr. Desmond! — Saúde! Fizemos o brinde e fechamos o acordo. Sentamo-nos para jantar e Bogdanovich discorreu sobre a campanha, como se fosse um general a instruir seu estado-maior. — Li o documento e concordo com suas conclusões. A fraude está relacionada com a proposta de venda do controle acionário da companhia. Yanko é o provável instigador. Para prová-lo, teremos que trabalhar dentro da organização dele e também da sua. — E podem fazê-lo? — Podemos. Vamos ter também que montar uma operação de cobertura, para desviar as atenções de nossas atividades. — E como o faremos? — Vocês devem solicitar os serviços de uma organização regular de segurança.-Sugerimos que usem a Lichtman Wells, que tem âmbito internacional. Deverão pedir que a operação seja dirigida pessoalmente pelo Sr. Saul Wells. Ele aceitará a incumbência. — Por quê? — Por ter certeza de que ele o fará e designará os agentes adequados. — Seus agentes, não é mesmo? — Eu não disse isso. E também não deveria perguntar...Espero que compreenda, Sr. Desmond, que não é de todo impossível que um dia seja pressionado para revelar o que sabe sobre esta operação. Considerando a sanção sobre a qual já discutimos, não acha que é melhor não ter nada para dizer? ...É por acaso casado, Sr. Desmond? — Não. — Tem parentes ou ligações íntimas pelas quais possa ser chantageado? Uma amante, talvez? Ou então um filho? — Não. Mas Arlequim tem esposa e um filho. — Então ele também deve ficar a par dos riscos. — Tratarei de informá-lo. — Quero também conhecê-lo pessoalmente. — Ele recebeu alta do hospital esta manhã. Tencionava tirar umas férias e passar alguns dias em Acapulco com a esposa. Mas agora os dois virão para Nova York. Ficarão no apartamento do banco, no Salvador. Já providenciamos a supervisão médica necessária durante seu período de convalescença. — É uma medida sensata, pois é bem possível que ambos tenham de viajar bastante num futuro próximo. — Como assim? — O banco está em crise. Precisarão, evidentemente, visitar todas as filiais. Além disso, para segurança de vocês e de nossas operações, talvez seja necessário mantê-los em permanente movimento. — Confesso que é uma idéia alarmante. — Eu sei que é. Mas pense no assunto, Sr. Desmond. A sua empresa é um grande prêmio e as corporações não possuem princípios morais. É muito fácil providenciarem-se acidentes fatais. Hoje em dia seqüestram-se executivos e diplomatas por resgate. A tortura foi elevada à categoria de ciência. Leia qualquer jornal diário e verá que não estou exagerando. E o que não aparece nos jornais é ainda mais sinistro. Neste momento, por exemplo, há um corpo flutuando no rio East. É o corpo de um pistoleiro que foi contratado para assassinar esta noite um delegado árabe junto à ONU. Ele deveria matar o referido delegado às oito e meia, quando saltasse do carro para comparecer a um jantar em sua homenagem. E meu povo, obviamente, seria responsabilizado por sua morte...Espero estar sendo bastante claro, Sr. Desmond. — Claro demais para que eu me sinta tranqüilo. — Dinheiro é poder, Sr. Desmond. Não há tranqüilidade em nenhum dos dois. — Quer dizer então que Arlequim e eu talvez tenhamos que viajar bastante. O que mais? — Aja o mais normalmente que puder. Yanko espera que entrem em negociações com ele a propósito da venda das ações. Pois negociem. Ele espera que realizem uma investigação. Façam-na. E seus gerentes e executivos devem permanecer ignorando minhas atividades e prosseguir em seus negócios normais. Deverá transmitir-nos imediatamente qualquer informação nova que venha a ter. — De que jeito? — Aqui em Nova York, pelo telefone, falando de uma cabine pública. Eu lhe darei dois números que deverá decorar. Deverá identificar-se pelo nome de Weizman. Quando deixar Nova York, deverá providenciar tudo através de uma agência de viagens que lhe indicarei. Quando for pegar suas passagens, receberá as indicações sobre seus contatos nas cidades para onde for. — Pois já tenho uma informação nova para lhe fornecer. Conversei esta tarde com uma mulher, Valerie Hallstrom. Ela trabalha para Yanko e foi quem preparou o relatório. — Ela lhe contou algo útil? silencioso por causa dos grossos tapetes, ornado com quadros e artefatos caríssimos. A recepção era dominada por uma duquesa de meia-idade e dois guardas, um dos quais conduzia os visitantes através dos corredores silenciosos, enquanto o outro permanecia vigilante contra os intrusos. Quando cheguei, faltavam dois minutos para as onze horas. O guarda verificou meu nome numa relação datilografada; a duquesa anunciou-o pelo aparelho de intercomunicação e depois pediu-me que me sentasse por um momento. Às onze horas em ponto acendeu-se uma luz vermelha no painel e a duquesa fez um sinal para o guarda, que me conduziu ao santo dos santos, uma sala imensa onde Basil Yanko estava sentado atrás de uma vasta mesa, sobre a qual não havia nenhum papel. O guarda retirou-se e a porta se fechou silenciosamente. Percorri quase meio quilômetro de tapete para apertar a mão fria do senhor daquele império. Ele se mostrou brusco como sempre, mas favoreceu-me com um sorriso e com uma preocupação rápida por meu bem-estar. — Espero que esteja descansado, Sr. Desmond. — Estou, sim, obrigado. — E como está George Arlequim? — Já recebeu alta do hospital e deve chegar hoje a Nova York. Não estou muito satisfeito com isso, mas ele insistiu. Deverá continuar por algum tempo sob cuidados médicos. — Lamento que isso ainda seja necessário. Ele já chegou a alguma decisão com relação à minha proposta? — Já. Pediu-me que lhe dissesse que está preparado para negociar, assim que estiver recuperado o suficiente para empenhar-se em discussões de negócios. — E quando isso pode ser? — Espero que muito em breve. Mas o médico dele aqui em Nova York é que poderá dar a resposta definitiva. — Compreendo. Até lá, nós dois podemos fixar as bases para as discussões, não é mesmo? — Arlequim deu-me uma diretiva a esse respeito. — E qual é? — Ele não está preparado para iniciar qualquer negociação enquanto estiver sob dificuldades. Determinou-me que iniciasse uma ampla investigação sobre as fraudes dos computadores, usando uma organização independente. Escolhemos a Lichtman Wells. Terei meu primeiro encontro com eles esta tarde. — É uma excelente organização. Seus agentes são muito bem treinados. — Foi o que me disseram. — Estamos prontos, é claro, a ajudá-los, de todas as formas possíveis. — Obrigado. — Mas não podemos esquecer que o elemento tempo é muito importante para todos nós, Sr. Desmond. — Sabemos disso perfeitamente. — Acho, portanto, que devemos fixar um limite. — Como assim? — Nossa proposta de cem dólares por ação continua de pé. Contudo, temos que fixar um limite para sua validade. Como sabe muito bem, o mercado de dinheiro é hoje muito inconstante. Não podemos manter indefinidamente o ágio que oferecemos. — E que prazo sugere? — Trinta dias a partir de hoje. — É muito pouco, Sr. Yanko. Representa apenas vinte e dois dias úteis. Provavelmente não conseguiremos concluir uma investigação internacional em período tão exíguo. Precisamos de noventa dias, no mínimo. — Da maneira como o mercado anda atualmente? Não há condição. — Seu telex declarava que a proposta era formulada tendo por base uma projeção de três anos. — A avaliação, não o ágio. — Mesmo assim, não podemos fazer por menos de três meses. — Sessenta dias, não mais do que isso. — Esse detalhe não consta de minhas instruções. Terei que conversar com Arlequim. — Faça-o então, por favor. E quando posso contar com a resposta? — Isso compete a ele. No entanto, sei que Arlequim é um homem suscetível à cortesia. — Coisa que às vezes me falta. Sei disso, Sr. Desmond. Vamos pôr a coisa nos seguintes termos: se Arlequim desejar adiar sua resposta, estarei livre para reduzir meu limite de tempo por um período equivalente. Não acha justo? — Está sendo muito duro, mas transmitirei sua posição a Arlequim. — Também é um homem duro, Sr. Desmond. Mas respeito-o por isso. Se algum dia sentir vontade de mudar de ritmo ou de cenário, ficarei feliz em poder oferecer-lhe condições das mais generosas. - E assim, ao melhor estilo de negócios, de forma sóbria e legal, a ameaça fora finalmente formulada. Se não pudéssemos ser comprados nem enganados, seríamos espremidos entre as pedras de um moinho. A habilidade sardônica do predador era uma afronta. Tive vontade de cuspir-lhe no olho. Em vez disso, porém, agradeci-lhe a cortesia e saí novamente para a loucura humana da Park Avenue. Às três horas da tarde compareci à reunião na Lichtman Wells. A experiência não foi nada confortadora, já que o pessoal de segurança, assim como os corretores de seguros, vive da perspectiva de desastre. O sócio mais velho, um ex-coronel da polícia militar, de cabelos brancos, leu-me uma lista aterrorizante de casos existentes em seus arquivos, nenhum dos quais teria acontecido se as vítimas tivessem usado os serviços da Lichtman Wells. Saul Wells, o sócio mais novo, ficou sentado pacientemente durante toda a reunião. Depois que o contrato foi assinado, reanimou-me com um café em sua própria sala. Era um homem pequeno e agitado, ruivo, que mastigava incessantemente um charuto apagado e pontuava sua fala com piscadelas e gestos. — Não deixe que o velho o preocupe, Sr. Desmond. Ele é o vendedor da organização e precisa fazer um discurso. De minha parte terá ação, sem muita conversa. Gostaria de saber como operamos? Bem, internamente é uma investigação direta. Nosso agente entra pela porta da frente, sem segredos, sem disfarces, verifica todos os procedimentos, interroga as pessoas, procura falhas e contradições. Externamente? ...Bem, aí a coisa é um pouco diferente. Procuramos descobrir quem dorme onde, quem gasta mais do que ganha, quem se entrega excessivamente ao sexo ou gosta de jogar nas corridas, coisas assim...É como um quebra-cabeça, sabe? Ao final, todas as peças têm que se ajustar. Se fica faltando uma peça, deve estar no bolso de alguém ou fugiu pelo ralo. Lembro-me de uma vez... Ele lembrou e lembrou, quase interminavelmente, representando cada episódio como um comediante. De certa forma, porém, simpatizei com ele. E, ao final de duas horas, compreendi que sua dissertação sobre método arrancara-me uma considerável massa de detalhes que, de outra forma, eu jamais teria pensado em fornecer-lhe. Finalmente ele jogou a ponta apagada de charuto no cinzeiro e anunciou jovialmente: Gully dedilhou uma cadência suave e começou a cantarolar a melodia, murmurando-me por entre as frases musicais: — Ela gosta disso, companheiro. Suave, suave, a gente vai atraindo a presa. Venha, menina, venha...Se você per- der essa chance, Paul, nunca mais vou perdoá-lo...Boa noite, Srta. Hallstrom. Tem algum pedido especial? Estávamos lado a lado, os copos quase encostando, antes que ela me reconhecesse. Ficou surpresa, mas pude sentir também que o fato não a desagradou. — Mas que surpresa, Sr. Desmond! Como este mundo é pequeno! Que Deus abençoe Gully Gordon! Ele sabia aproveitar habilmente a menor deixa. — Ele é um velho amigo, Srta. Hallstrom. Só que não o vejo com muita freqüência, pois anda ocupado demais empilhando seu dinheiro. — Está ficando cada vez mais difícil, Gully. Acho que estou envelhecendo. Vem aqui com freqüência, Srta. Hallstrom? — Ela também é uma velha amiga — interveio Gully. — O que gostaria que eu tocasse para você, menina? — Está indo muito bem, Gully. Continue apenas a tocar. Teve um dia agradável, Sr. Desmond? — Paul...E meu dia foi comprido e desagradável. — Então fomos dois. — Mas meu dia ainda não terminou. Se não fosse isso, eu a convidaria para jantar. — Não há nenhum compromisso firmado. — Mas importa-se de assinar um para amanhã? — Se quiser... — Onde posso apanhá-la? — Em meu apartamento, às sete e meia. — Contrato assinado e selado. — Sabe, é um homem bastante delicado... — Eu sei. Meu irmão gêmeo é que é o miserável. Mas esta noite ele está de folga. Era uma tirada antiga, mas arrancou um sorriso dela e uma piscadela de Gully, levando-nos até um reservado, onde nos sentamos com nossos copos, enquanto a música se espalhava ao nosso redor. Depois de algum tempo, ela comentou: — O bar de Gully é um lugar muito especial para mim. — Para mim também. Estive aqui na noite da inauguração. Tudo o que eu possuía então era uma pilha de dívidas e o pouco dinheiro que tinha no bolso. — E...? — Ele deve ter-me dado sorte. No dia seguinte o mercado deu um pulo e tive um lucro considerável. — Talvez tenha sorte novamente. — Já tive: basta ver o que encontrei. — Agora vai certamente perguntar o que uma moça como eu está fazendo num bar de gente desacompanhada. — Não, não vou. Acho que esta é uma cidade solitária e é bom ter um lugar aonde se possa ir, sem que ninguém lhe pergunte quem é e o que faz. É melhor do que ser um número num computador de banco. — Um filósofo ainda por cima! — Não, apenas um homem de meia-idade, que já viveu muita coisa. — Pois acho que se conservou muito bem. Não está muito gasto. — E você, minha jovem Valerie, não o está nem um pouco. — Não foi o que pensou ontem. — Não se esqueça de que hoje estou um dia mais velho. — Desculpe o momento difícil que o fiz passar ontem. — É seu comportamento usual? — Não. Ordens. E recebo setecentos e cinqüenta dólares por semana, com benefícios adicionais, para fazer o que mandam. Era uma isca que eu não pretendia morder. Se fosse uma indiscrição, bastava esperar, que outras se seguiriam. Decidi que estava na hora de partir. — Detesto ter que retirar-me, Valerie, mas não há outro jeito. Meu presidente chegou a Nova York esta tarde. Tenho que mudar de roupa e ir jantar com ele, às oito horas. O que me deixa um pouco de tempo para acompanhá-la à sua casa, se quiser. — Obrigada, mas vou ficar mais um pouco. — Então até amanhã. — Estarei à sua espera. Boa noite, Paul. Tudo terminou com um sorriso e um aperto de mão. Paguei a conta e levei uma bebida para Gully no piano. Ele continuou tocando com a mão esquerda, erguendo o copo com a direita num brinde. — Saúde, companheiro. Quer dizer que vai agora aparecer mais vezes, não é? — Vou, Gully. Dê uma olhada na moça por mim. — Pode deixar, companheiro. Divirta-se. Quando cheguei ao Salvador para jantar, encontrei Arlequim e Julie relaxados e alegres. Arlequim dormira durante quase toda a viagem. Já havia um pouco de cor em seu rosto. Ele estava inquieto e ansioso por ouvir meu relatório, mas Julie declarou com firmeza que não poderíamos tratar de negócios durante o jantar. Depois, ela nos deixaria a sós, contanto que eu mandasse George para a cama antes da meia-noite. Achei a idéia esplêndida. Não tinha a menor vontade de falar sobre Aaron Bogdanovich enquanto comia mos as costeletas à francesa, e havia também alguns assuntos difíceis sobre os quais eu precisava conversar com Arlequim. Apresentei o relatório completo enquanto tomávamos café. Arlequim ouviu em silêncio e passou a interrogar-me minuciosamente. — Temos então duas investigações paralelas; uma aos cuidados de Lichtman Wells, que seguirá os padrões convencionais, a outra a cargo de Aaron Bogdanovich, que poderá envolver ilegalidade e violência. É isso mesmo? — É. — E, enquanto duram as investigações, temos uma equipe apreensiva, que devemos tentar manter satisfeita e leal, não é mesmo? — Essa tarefa compete a você, George. Não pode ser feita por procuração. — E, externamente, temos Yanko, que está pressionando para tomarmos uma decisão em sessenta dias. — Talvez até menos. Ele está aguardando um encontro com você, assim que estiver apto a tratar de negócios. — Já estou. Poderemos encontrar-nos dentro de um dia ou dois. — Por que não o deixa esperar mais um pouco? Vamos fazê-lo suar. — Só que ele não está suando, Paul. Nós é que estamos. E não gosto disso. Conte-me agora o resto da estratégia. — Primeiro vamos deixar clara a nossa posição. A Lichtman Wells está investigando as fraudes do computador. É uma ação defensiva, para limpar o nome do banco e o seu. Aaron Bogdanovich está investigando Yanko. Isto é ataque, para incriminá-lo e à sua companhia como responsáveis pelas fraudes, desacreditando-os. — Mas isso ainda não é suficiente, não é mesmo? — Não. Representa apenas quarenta e oito horas de trabalho da minha parte. Mas sou somente um procurador, não o diretor principal. necessidade da compreensão do outro. Arlequim, o eloqüente, estava quieto e súplice. Bogdanovich, o apologista da violência, sentia necessidade de justificar a si mesmo e a seu ofício. — Espero que compreenda, Sr. Arlequim, que a violência começa quando a argumentação racional se torna impossível. — Sei disso. Mas não podemos esquecer o outro lado. Eu posso permanecer cego, saboreando meu conhaque, enquanto alguém morre diante de minha porta, suplicando por um copo de água. Entre nós dois fica o mordomo traidor, que assim procura agradar-me e o deixa morrer, só para ganhar algum dinheiro. Como resolvemos esse impasse? — Eu o resolvo pela fórmula antiga. Olho por olho, vida por vida. Sem questionar, sem piedade, sem sentimento de culpa. — Enquanto eu quero a absolvição por tudo o que faço. Vou contar- lhe um segredo: procuro refúgio em meu nome, Arlequim, o bufão. O bufão é sempre perdoado, porque até mesmo sua maldade arranca risadas da platéia. — Enquanto o carrasco público é um homem sem nome, que vive por trás de uma máscara. Acha que seria capaz de matar um homem, Arlequim? — Eu poderia ser levado a fazê-lo. — Mas acha que é capaz de cometer o ato, o ato final e irrevogável, o dedo apertando o gatilho, o polegar segurando a lâmina enquanto a mão sobe de baixo para cima, sim ou não? — Como posso saber, antes de chegado o momento? — Tem razão, não pode. Só depois. Fica então muito fácil: o estímulo, a reação, a racionalização, o sono. Os assassinos, como os adúlteros, sempre dormem muito bem. Mas basta uma simples migalha no colchão para deixá- los quase loucos. — O que acha que devo fazer, Sr. Bogdanovich? — Seu amigo Desmond disse-me que se considera um comediante. Deve então entreter a cidade, enquanto nós minamos as muralhas. — Isso foi apenas uma fantasia, mas reconheço que há nela um pouco de verdade. Tenho encargos, obrigações, um papel para representar. O papel acarreta uma obrigação? A obrigação o cria. Basil Yanko está no mesmo barco. Ele é um gênio. Uma vez reconhecido, precisa justificar-se a todas as horas de todos os dias. — É como pensa então tratar com Yanko, Sr. Arlequim? — Tenciono negociar, se for possível, ganhar tempo para suas investigações. Se não for possível, irei desafiá-lo e empenhar-me até o pescoço para cobrir a oferta dele. — Espero que saiba que há muitos perigos implícitos no que estamos fazendo, Sr. Arlequim. — Paul já me explicou. — Tem uma esposa e um filho. Compreende que está arriscando a vida de ambos? — Minha esposa aceita o risco, está disposta a corrê-lo. — Por quê? — Porque é algo que pode partilhar comigo plenamente. — Foi difícil admitir tal coisa? — Sabe perfeitamente que foi. Alguma coisa lhe é difícil, Sr. Bogdanovich? — Muitas. — Quais? — Por exemplo: passear ao sol e contemplar as moças, desejando-as; saber que, ao deitar-me com uma delas, acordarei gritando, por ter dormido com um cadáver. Ver crianças e querer que fossem minhas, mas saber que não posso atrever-me a ter filhos, pois os monstros ao final terminariam devorando-os. Não nos devemos encontrar com muita freqüência, Sr. Arlequim. — Tem razão. Compreendo os motivos. — O Sr. Desmond funcionará como o elemento de ligação entre nós. — Está certo. — Quando for tratar com Basil Yanko, não se esqueça de uma coisa: ele não compreende os palhaços e por isso os teme. — Por quê? — Ele nunca aprendeu a rir de si mesmo. E é capaz de matar quem quer que ria dele. — O que me faz sentir pena dele. — Ele é capaz de matá-lo por isso também. Fico satisfeito de tê-lo conhecido, Sr. Arlequim. Lamento que o preço seja tão elevado. — É apenas dinheiro. — É essa justamente a vergonha de tudo, Sr. Arlequim. O dinheiro é a medida de um homem. Boa sorte. — Obrigado, amigo. — Eu é que lhe agradeço. Mantenha-se em contato comigo, Sr. Desmond. E então ele se foi, um vulto alto e esguio, caminhando pela grama, com os dois sabujos a formarem o séquito. George Arlequim ficou parado a observá-lo, em silêncio, até que ele desapareceu além de uma pequena elevação. Depois virou-se em minha direção e indagou: — Como vamos contar a Julie, Paul? — Acha que devemos fazê-lo? — Creio que sim. Eu estava presente quando ele contou. Não o queria, mas ambos insistiram, como se eu fosse um intérprete, um dicionário ao qual podiam recorrer para se explicarem um ao outro. Juliette fez poucas perguntas, não levantou nenhum protesto. Era como se ela compreendesse, pela primeira vez, todas as conseqüências de suas próprias atitudes agressivas. Arlequim, por outro lado, mostrou-se veemente e exaltado, como se tivesse experimentado uma revelação particular. — Foi como se eu conversasse com um homem que voltou do outro lado, Julie, alguém que compreendeu a continuidade das coisas, a terrível repetição da maldade e da tragédia humanas. Até hoje, você e eu nunca tivemos de enfrentá-las. Agora somos obrigados a isso. E é por algo inútil, um banco, um simples repositório de papéis — florins, francos, dólares. É justamente isso o que eu desprezo, a coisa perecível. Chegamos ao mundo sem ela e saímos também sem ela. Mas compreendi também que se trata de algo com propriedades mágicas. Se a tiver nas mãos, terá um gênio às suas ordens. É isso o que homens como Yanko estão querendo: o gênio que pode extrair exércitos dos dentes do dragão. Mas nós dizemos que não! Somos os exorcistas do bem. Vamos dar trigo em vez de espadas. Vamos mesmo? É o que estamos fazendo? Não posso jurá-lo. E, contudo, também não posso vender a lâmpada e ficar de lado, observando os janízaros se erguerem do pó. Mas por que não, Julie? Os janízaros guardarão a mim, a você e ao menino. Por que nos deveremos importar com os outros, com os quais nunca nos importamos antes? Por quê, Paul? Eu estava muito cansado. Queria terminar logo aquela discussão e ir embora. — Por que deveremos fazê-lo? Não sei muito bem. Porque nós...Por Deus, é isso mesmo! Porque um dia, antes de o sol se levantar, os canalhas estarão em minha porta, à minha procura, porque tenho um nariz errado ou a pele errada, porque estou na lista errada e ninguém sabe quem me pôs nela. Quero então ter amigos. Quero ter irmãos e irmãs. Ponha-me no inferno e mais ainda hei de querer tê-los! Acho que é isso. Agora, vou embora, pois — Pode estar certo de que de mim não terá outra coisa. A esta altura, já deveria sabê-lo. — Ótimo. O desfalque é de quinze milhões de dólares. — É uma quantia considerável. — Mas podemos dar um jeito. Quanto a isso, não há problema. A dificuldade é que suspeitamos de que nossos computadores foram manobrados fraudulentamente. — Isso é óbvio. Mas por quem? — Os registros dizem que pelo próprio Arlequim. Achamos que foi Yanko. — Até que possam prová-lo, Paul, isso constitui um crime de injúria. — Eu sei. O fato é que no mesmo dia em que me apresentou o relatório sobre o desfalque, Yanko anunciou também que desejava comprar Arlequim et Cie. A proposta já foi formalizada: cem dólares por ação. — E quanto vale realmente cada ação? — Oitenta e cinco dólares...Talvez noventa, com um pouco de otimismo. — A proposta não é má. Nossos técnicos calcularam o valor entre oitenta e três e oitenta e sete dólares. Arlequim vai aceitar? — Não. — E os acionistas minoritários? — Alguns devem vender, por causa do ágio. Outros venderão por terem ouvido o rumor de que alguém deu um desfalque. — Então por que Arlequim não compra as partes dos acionistas minoritários? — Ele teria que se empenhar todo para fazê-lo. Não pode pagar cem dólares por ação e ao mesmo tempo cobrir o desfalque de quinze milhões de dólares. — E assim vocês terão Yanko no conselho... — Só por cima de nossos cadáveres. — Até assim...Quais as providências que Arlequim está pensando em tomar? — Desculpe, Herbert, mas isto você terá que perguntar diretamente a ele. — É o que farei. Diga-lhe que telefone esta noite para minha casa. Aqui está o número. — Obrigado, Herbert. — Não me agradeça, pois sou parte interessada. Tremo só de pensar em todo o poder e conhecimento armazenados dentro de uma máquina. Não se pode desencadear uma greve contra um computador, não se pode levá-lo ao banco dos réus. Mas é um absurdo que um homem que você nunca viu possa ler a qualquer momento informações sobre o que você costuma jantar e a maneira como faz amor com sua esposa. Às vezes fico contente de ser um homem velho e poder assim evitar quase todas as conseqüências. Vamos pedir um conhaque, pois estou começando a ficar mórbido. Passava um pouco das três horas quando cheguei ao banco. Arlequim já estava lá, despejando simpatia e ungüentos no espírito contundido de Larry Oliver. Foi um desempenho admirável, com lisonjas sutis, apelos à tradição e ao código dos cavalheiros, à necessidade de resistir contra a invasão dos bárbaros. Ao final, Larry ronronava como um gatinho, o leite pingando dos bigodes. Lá fora, na sala de reuniões, Saul Wells orientava os trabalhos de dois aprendizes de gênio, que estavam com- parando os impressos dos computadores com o relatório de segurança. Ele levou-me até a janela e, com melancólica admiração, disse: — É tudo tão simples que é até vergonha pegar o dinheiro. Foram três instruções codificadas: a primeira, para fazer as deduções; a segunda, para que os lucros daí provenientes ficassem numa conta suspensa; a terceira, para que fossem remetidos todas as segundas-feiras, por telex, para Zurique. As instruções originais foram transmitidas aos computadores no dia 1.° de novembro do ano passado. Já verificamos o livro de registros diários da gerência. O Sr. Oliver estava de férias na ocasião. Estava sendo substituído pelo Sr. Standish, que não fez a menor referência às instruções. Contudo, o Sr. Arlequim estava em Nova York nessa data. Esse é o ponto número um. O número dois é que a operadora do computador pediu demissão em janeiro, por motivos de saúde. Temos o nome dela, Ella Deane, o número do seu registro no seguro social e seu último endereço, em Queens. Vamos checá-la imediatamente. Agora, se eu pudesse conversar com o Sr. Arlequim... A conversa logo se transformou num interrogatório cerrado, que surpreendeu até a mim. Arlequim, no entanto, submeteu-se com uma resignação sorridente. Estivera realmente em Nova York na ocasião. Escrevera realmente memorandos e ditara cartas sobre diversos assuntos. Estavam todos arquivados, num arquivo trancado à chave na casa-forte. Poderia mostrá-los? Com prazer. Trouxeram o arquivo. Juntos, examinaram todos os documentos. Arlequim olhava cada um e depois o entregava a Wells, que o marcava com seu próprio código. Todos versavam sobre problemas de orientação política de Arlequim et Cie. Não havia nenhum que pudesse ser identificado ou mesmo interpretado como uma autorização para a transmissão de instruções aas computadores. Saul Wells pediu então que Arlequim escrevesse sua assinatura e sua rubrica meia dúzia de vezes, em rápida sucessão. Mesmo quando escrita rapidamente, a letra era firme e arrojada, com um pequeno floreio de desafio ao final da última letra. Wells resmungou, com uma expressão infeliz. — É como atirar contra um celeiro a cinco metros de distância...Eu mesmo posso falsificar essa assinatura com cinco minutos de prática. Vejam só! Durante cinco minutos, contados no relógio, ele praticou a assinatura de Arlequim, terminando por nos apresentar um fac-símile bastante aceitável. Mesmo assim, ele ainda não estava satisfeito. Pediu o talão de cheques de Arlequim e preencheu e assinou um cheque de mil dólares. Levei-o para Larry Oliver e pedi que o rubricasse para ser descontado. Escrupuloso como sempre, Oliver verificou a data, a cifra, o número escrito em palavras, a assinatura. Depois rubricou o cheque e tocou uma campainha, chamando o chefe dos caixas. Tirei-lhe o cheque da mão. — Desculpe, Larry, mas isto foi um teste. Este cheque é falsificado. Tentamos a mesma coisa com o caixa, sendo o resultado idêntico. Eu não pude resistir ao comentário de que a reputação das melhores pessoas podia ser manchada sem que elas soubessem. Oliver teve pelo menos a delicadeza de assumir uma expressão de humildade. Wells estava se divertindo com a situação. Já Arlequim parecia profundamente infeliz. — Mas este tipo de coisa pode acontecer a todo momento! Quantos milhares de assinaturas minhas não estarão rodando por aí, em cartas, cheques e abonos de cartões de crédito? Isso é um pesadelo terrível! — Mas bastante instrutivo. Saul Wells ficou subitamente pensativo. — A assinatura é muito fácil de falsificar. Por que será então que eles não puseram um memorando incriminador no arquivo, só para completar o quadro? — Tenho a resposta para isso — declarou Arlequim, enfático e recuperando um pouco de sua segurança. — Todos sabem que eu jamais — Li. — Algum comentário? — Nenhum. Meu superior já assumiu o controle da situação. — O que é o correto. Mas hoje o senhor fez alguns comentários impróprios em seu clube. — O que eu disse em meu clube, Sr. Yanko, não é de sua conta. — Posso reproduzir literalmente suas palavras, Sr. Desmond: "Não vamos aceitar. E achamos que é jogo sujo divulgar a oferta antes que ela seja discutida entre as partes interessadas". A oferta foi discutida com o senhor, na qualidade de diretor de Arlequim et Cie. Sua declaração pode ser considerada como passível de ação judicial, Sr. Desmond. — Na base do que ouviu de um informante? Duvido muito. Mas, se quiser dar-me o nome dele, ficarei feliz em confrontá-lo com o comitê diretor do clube. Mais alguma coisa, Sr. Yanko? Tenho um compromisso para o jantar. — Só mais um pequeno problema, Sr. Desmond. Arlequim et Cie. aplicou uma parte de nossos fundos para investimentos. — E creio que bem lucrativamente. — É verdade. Mas as transações referentes a esses fundos foram oneradas por comissões fraudulentas. Nossos advogados afirmaram que existem bases para ações civil e criminal. — Então não tenho a menor dúvida de que discutirá o assunto amanhã com o Sr. Arlequim. Boa noite, Sr. Yanko. Bati o telefone e amaldiçoei-o. Estava furioso comigo mesmo. Eu, um veterano de mais de uma centena de incursões no mercado, com cicatrizes nas costas e lucros no banco, saltando como o cão de Pávlov quando Yanko apertava o botão de choque. Era a mais simples de todas as técnicas de terror: o informante onipresente, a advertência imediata, a ameaça de destruição ao virar a esquina. Subitamente caí na risada, andando rapidamente pelo apartamento como um estudante, a jogar almofadas para o ar e a gritar para Takeshi que me trouxesse uma bebida, preparasse um banho, arrumasse meu melhor terno, reservasse uma mesa no Cote Basque, pedisse uma limusine na Colby Cadillac e mandasse entregar rosas à Srta. Valerie Hallstrom, antes das oito horas. Aquilo era completamente errado, num mundo faminto. Mas, se eu poupasse o dinheiro e o aplicasse através dos computadores de Yanko, haveria um grão a mais no prato de arroz de um indiano? Sabia que não haveria. Disse a mim que não estava preocupado. Mas, lá no fundo, havia a convicção de que, se um homem ao telefone podia fazer-me procurar refúgio, assustado, na cama, então estava na hora de largar as cartas em cima da mesa e ir estourar os miolos no primeiro beco disponível. Estava me barbeando quando me lembrei de que tinha de ligar para Bogdanovich. Por um momento senti-me tentado a deixar isso de lado, mas depois pensei melhor e mudei de idéia. Disquei o número que me fora dado, apresentando-me como Weizman. Um momento depois, Bogdanovich estava ao telefone. — De onde está chamando? — De meu apartamento. — Foi avisado de que deveria usar um telefone público. — Eu sei. Mas é muito tarde e tinha me esquecido de telefonar. — Desta vez está com sorte, pois eu já ia entrar em contato com o senhor. Há um homem vigiando a porta de seu prédio. — Agente seu? — Há um meu e um outro. Ele está estacionado do lado esquerdo da rua, num Corvette verde. — Isso é um embaraço, pois vou jantar com a dama sobre a qual conversamos. — Qual é o programa? — Às sete e quarenta e cinco uma limusine estará diante de meu edifício. Fiquei de apanhá-la às oito horas. Vamos ao Cote Basque. — Mude a ordem. Telefone para ela e diga que vai se atrasar um pouco. Mande a limusine apanhá-la e levá-la ao Cote Basque. Quanto ao senhor, deverá caminhar até o Saint Regis e entrar no King Cole Bar, onde receberá uma mensagem. Depois poderá seguir para o Cote Basque. Entendido? — Perfeito. Mas o que me diz de levá-la para casa? — Em que casa está pensando? — No apartamento dela, espero. — Se houver algum problema, nós o avisaremos. Senão, aja normalmente. — É uma instrução bastante objetiva. — Nem tanto assim. O apartamento dela é território inimigo, até termos a oportunidade de examiná-lo centímetro por centímetro. — Com espelhos de duas faces e microfones ocultos nas azeitonas dos martínis, não é? — Fico contente ao verificar que ainda pode rir. Por isso vou contar- lhe uma piada. O homem que está no Corvette verde é Bernie Koonig. Ele já matou dois homens e uma mulher. Divirta-se, Sr. Desmond. A medida da loucura da América foi o fato de que a notícia me deixou consideravelmente assustado, mas não me causou realmente nenhuma surpresa. Quando um sociólogo respeitado escreve com o maior desembaraço sobre "níveis aceitáveis de violência", quando um astro da televisão pode entrevistar um homem mascarado que alega ter matado trinta e oito pessoas, sob contrato e na maior impunidade, não restam muitas surpresas, apenas a difusão do terror, como se as paliçadas tivessem sido derrubadas e as bestas selvagens rondassem livremente pelo enclave humano. Por isso, fiz exatamente o que me mandaram. Ao sair do edifício, vi que o Corvette verde estava bloqueado junto ao meio-fio por uma radiopatrulha. Dois guardas tinham obrigado o motorista a se debruçar em cima do capo. Eu, macaco velho, nada vi, nada ouvi. Caminhei até o Saint Regis e sentei-me no King Cole Bar, esperando até que um recém- chegado empurrasse o pratinho de amendoins na minha direção e murmurasse o aviso de que eu já estava livre para seguir em frente. Quando cheguei ao restaurante, Valerie Hallstrom já estava acomodada, com um coquetel à sua frente e conversando com o maltre. Deu-me um sorriso caloroso e um aperto de mão de boas-vindas. Agradeceu-me pelas flores e mostrou-se indulgente para com meu atraso. Conversamos sobre assuntos superficiais durante os coquetéis e enquanto escolhíamos os pratos. Quando a refeição foi servida, estávamos à vontade. Eu repassava todo o repertório das minhas histórias de viajante. Ela estava divertida e interessada, agradecida por aquela trégua nas invasões convencionais de sua vida profissional. — Depois de algum tempo, Paul, esta cidade começa a nos sufocar. É tudo urgente, tudo impessoal, sem ter o menor sentido. Sou uma moça do interior. Meu pai ainda cria cavalos na Virgínia. Não podia esperar o momento de sair de lá e conquistar a cidade grande. Pois bem, eu o consegui, só que agora sonho cm voltar para casa. Mas isso não é possível, não acha? A casa da gente não mudou, mas nós mudamos bastante. E você, Paul? — A minha casa é onde penduro meu pergaminho kanji. — Ainda não me contou essa história. Contei então. Falei da antiga lenda das mulheres que se transformavam em raposas, deixando seus amantes mutilados e desolados. Falei dos gravadores e dos ceramistas, dos maravilhosos artesãos japoneses, da gente dos rios da Tailândia, do homem de Rangum que me ensinara a distinguir entre os rubis bons e os que não prestavam, da assombrosa beleza das selvas de Arnhem, com as pessoas de pele escura cantando ao redor das fogueiras. — Eu já sabia disso. — E George Arlequim é uma obsessão para ele. — Por quê? — Acho que pelas mesmas razões pelas quais você o admira. Arlequim já nasceu com sorte; é um homem altamente civilizado e as pessoas sentem-se atraídas por ele. Yanko teve que arrastar-se para fora de uma favela de Chicago. Ele é um gênio, um grande gênio, mas é também rude e feio. Ele é como um sapo com uma coroa de ouro na cabeça c sabe disso. É isso o que o torna perverso e cruel. A princípio eu sentia pena dele. Por algum tempo, cheguei a pensar que estivesse apaixonada por ele. Não acha romântico? E a linda princesa beijou o sapo feio e ele transformou-se num belo rapaz... — Só que isso não aconteceu, não é mesmo? — Não. — E é por isso que você vai ao bar do Gully Gordon, noite após noite? E não pode apaixonar-se porque o sapo-rei está sempre presente, rindo, porque sua vida está presa em seu cérebro mecânico. — Isso não é nenhuma brincadeira, Paul. — E por acaso está me ouvindo rir? — Acho que está na hora de irmos embora. Se esta fosse uma história de amor — o que não é! —, eu contaria agora como fomos até seu apartamento e ela convidou-me a entrar, como dançamos ao som de música suave e depois fizemos amor até que os pardais começassem a cantar pela manhã, como eu tinha todos os segredos de Basil Yanko em minhas mãos ao partir. A um quarteirão de seu apartamento, Valerie pediu que o motorista parasse o carro. Queria seguir a pé o resto do caminho. Ofereci-me para acompanhá-la. Ela recusou com um sorriso e com um comentário enigmático: — Algumas vezes Deus gosta de saber como os seus filhos passam suas noites. Obrigada pelo jantar e boa noite, Paul. Ela beijou-me rapidamente no rosto e saiu do carro. Mandei que o motorista a seguisse lentamente até a casa, a fim de mantê-la a salvo de assaltantes e viciados. Depois que a porta do prédio se fechou atrás dela, atravessei a cidade e fui até o bar do Gully Gordon, onde fiquei sentado entre os meus pares, ouvindo a música triste e suave, até uma hora da madrugada. E nas horas frias da madrugada tive um sonho. Vi uma planície imensa, circular, inteiramente vazia, iluminada por uma lua fria. E no centro dessa planície, pequeno e solitário, havia um vulto agachado. Eu não podia dizer se era humano ou animal. Sabia apenas que me sentia atraído por ele com um anseio profundo, sendo porém contido por uma ameaça visível. Em torno dos limites externos da planície circular havia uma multidão de cavaleiros, alguns negros, recortados contra a lua, outros brancos como fantasmas ao seu brilho. Ao lado de cada cavaleiro havia um cão, completamente imóvel. Estavam a uma distância incomensurável, mas eu podia vê-los nitidamente, como se estivessem ao alcance de minha mão. Os cavaleiros não tinham rostos, apenas máscaras, vazias como cascas de ovos. Tentei distinguir as feições do vulto agachado, mas meus olhos pareciam comprimidos e eu não conseguia focalizá-los. Então os cavaleiros e os cães começaram a se deslocar, lentamente, em ritmo de funeral, convergindo inexoravelmente para o vulto solitário. Os cavaleiros estavam em silêncio, os cães não latiam. Não se ouvia o menor ruído dos arreios ou das batidas dos cascos. O vulto moveu-se, espreguiçou- se, levantou-se. Era uma mulher nua, que se virou lentamente, girando como um manequim num pedestal, até que seu rosto me ficasse visível. Era Valerie Hallstrom, sorridente, sedutora, indiferente ao perigo que corria. Senti-me dominado por um intenso desejo sexual. Chamei-a, mas nenhum som saiu de minha boca. Tentei alcançá-la, mas fui contido por mãos gigantescas. E então os cavalos iniciaram um galope desabalado, com os cães pulando em seus flancos. Senti, mais do que ouvi, os gritos para açular os cães, os latidos, a terra tremendo sob os cascos dos cavalos, o tropel irresistível para esmagá-la... Eu estava iniciando os primeiros rituais do meu despertar quando Saul Wells telefonou. Ele estava excitado e loquaz. Quase podia ver-lhe o charuto no canto da boca, pois ouvia-o perfeitamente mastigá-lo. E misteriosamente o cheiro impregnou meu quarto. — O que há, Saul? — Ella Deane. — Quem? — A tal moça do computador, a que deixou o emprego em janeiro, por motivo de saúde. — Ah, sim...O que há com ela, Saul? — É muito triste e muito ruim para nós: ela morreu. — Quando? — Duas semanas atrás, num acidente. Foi atropelada e o carro fugiu. — O que diz a polícia? — A mesma coisa de sempre. As investigações prosseguem. Não acha que a morte dela foi bastante conveniente para alguém? — Como sempre acontece. Mais alguma coisa? — Só uma confirmação. Os nossos agentes começam a agir em todas as outras filiais amanhã. — Está trabalhando rápido, Saul. Obrigado. — E mais uma coisa: Ella Deane morreu rica. — Quanto? — Com trinta mil dólares, aproximadamente. — Onde foi que ela os conseguiu? E quando? — É o que estamos procurando descobrir. O impossível demora mais um dia. Ficarei em contato. Ciao. Pouco depois, enquanto limpava a gema de ovo que respingava em meu queixo, Aaron Bogdanovich chegou, vestido como entregador e com uma cesta de flores nas mãos. — As flores acrescentam fragrância à vida, Sr. Desmond. — Não pensei que se importasse com tais coisas, Sr. Bogdanovich. — Conte-me o que aconteceu na noite passada. A pergunta foi formulada bruscamente, como se ele esperasse surpreender-me e assim levar-me a alguma confissão inesperada. — Nada aconteceu. Jantamos, conversamos. Ela me disse que perderia o emprego se Yanko soubesse que se encontrara comigo em particular. Disse- me também que já esteve apaixonada por ele, mas o caso terminou mal. Avisou-me de que ele era um homem perigoso e obcecado com relação a George Arlequim. Depois pediu-me que a levasse para casa e insistiu em percorrer a pé, sozinha, o último quarteirão. Nós a seguimos na limusine. Depois fui ao bar de Gully Gordon, para tomar um último drinque antes de dormir. — E como foi que voltou para casa? — Na limusine. — A que horas? — Uma e quinze. — Pode prová-lo? — Claro. Assinei o registro do motorista. Takeshi ainda estava acordado quando cheguei. Tomei um banho de chuveiro, vesti o pijama e ele serviu-me uma xícara de chá antes que eu me deitasse. Mas por que todas essas perguntas? — Eu sei, Sr. Desmond. Mas tudo o que lhe contei é um conto de fadas, que irá esquecer no momento em que eu partir. Esse foi o nosso acordo, lembra-se? Mais tarde, quando encontrar o homem que matou a Srta. Hallstrom, veremos o que é melhor. — E acha que irá encontrá-lo? — Tenho certeza absoluta, Sr. Desmond. A profissão prima pela discrição, mas os bons profissionais são todos bastante conhecidos. Eu o descobrirei. Ele saiu sorrindo, mas deixou atrás de si uma baforada de enxofre e uma amostra do que era o inferno. E, lentamente, vi-me forçado ao mesmo dilema em que se encontrava George Arlequim. Éramos banqueiros, limpávamos todo o dinheiro que passava por nossas mãos. Mas não conseguíamos fugir à mancha que aparecia no dinheiro. Foi então que George Arlequim telefonou, enérgico e objetivo, tão diferente de sua personalidade habitual que nem eu mesmo pude adivinhar qual o papel que escolhera para desempenhar naquele dia. — Paul? Importa-se de vir agora para o Salvador? Poderia chegar dentro de vinte minutos? Vou almoçar com Herbert Bachmann e gostaria antes de conversar com você. Às três horas Basil Yanko também virá aqui. Gostaria de que você estivesse presente ao meu encontro com ele. Até lá, há outras pessoas que estão ansiosas por falar-lhe... Meia hora? Tente chegar antes, se lhe for possível. Oh, só mais uma coisa: importa-se de levar Juliette para almoçar? Ela está começando a ficar cansada de minhas sucessivas reuniões e não posso culpá-la por isso. Obrigado, Paul. À bientôt. As pessoas que desejavam ver-me eram dois jovens e muito bem- educados detetives do Departamento de Polícia de Nova York. Explicaram- me, em frases alternadas, que haviam ligado para o banco, sendo encaminhados ao Sr. Arlequim, que delicadamente consentira em chamar-me. Esperavam, sinceramente, que não representasse muita inconveniência para mim. Assegurei-lhes que isso absolutamente não acontecia. Será que o Sr. Arlequim não se importaria de deixá-los a sós comigo por um momento? Arlequim se importava. E muito. Disse-o em frases extremamente diplomáticas. Eu era seu amigo de longa data, diretor de absoluta confiança, representante de um banco internacional. Estávamos pisando uma propriedade do referido. E os dois estavam calcando também sua dignidade. A menos que eu, especificamente, expressasse o desejo de que ele se ausentasse, continuaria ali na sala. Não foi uma argumentação muito longa, mas proporcionou-me o tempo necessário para equilibrar meu espírito aturdido e planejar um relato simples e objetivo. — Deixei meu apartamento quando faltavam quinze minutos para as oito horas e caminhei até o Saint Regis. Por volta de oito e quinze segui para o Cote Basque, onde jantei com uma moça. Deixamos o restaurante de carro por volta das onze e meia. Deixei a moça em casa e o motorista levou-me para o bar de Gully Gordon, na First Avenue. Fiquei lá até uma hora da madrugada, quando o motorista me levou para casa. Meu criado pode confirmar minha chegada, por volta de uma e quinze. Ele estava preparando um lanche para si e eu comi também...Agora posso saber qual o motivo para essas perguntas? — Tenha um pouco mais de paciência, Sr. Desmond, por favor...Disse que jantou com uma moça. Como se chama ela? — Valerie Hallstrom. — Conhece-a há muito tempo? — Três dias. A Srta. Hallstrom trabalha para a Creative Systems Incorporated, cujos sistemas utilizamos e da qual somos acionistas e banqueiros de investimentos. Ela preparou um relatório sobre nossas operações de computação e encontramo-nos para discuti-lo. Foi bastante prestimosa e deu todos os esclarecimentos necessários. Convidei-a então para jantar. — Mas não foi buscá-la em sua casa? ' — Não. Mandei o carro apanhá- la. — Alguma razão para isso? — Era mais simples e eu queria esticar um pouco as pernas, pois tinha passado quase o dia inteiro sentado. — Disse que acompanhou a Srta. Hallstrom até a casa dela. Ela não o convidou para entrar? — Muito pelo contrário. Pediu-me que a deixasse a um quarteirão de sua casa. — Não achou isso estranho? — Muito. Mas, por outro lado... — O quê, Sr. Desmond? — A Srta. Hallstrom é uma conhecida de negócios. Não tenho o menor conhecimento de sua...vida particular. Nova York é uma cidade estranha, por isso achei melhor acatar seu capricho e não fazer pergunta alguma. Pedi ao motorista que acompanhasse a Srta. Hallstrom até a porta de sua casa. Só depois que a vimos entrar em segurança foi que nos afastamos. Tenho certeza de que poderá confirmar tudo isso com a empresa onde aluguei o carro e com o motorista que o dirigia. — Quais serão seus movimentos nos próximos dias, Sr. Desmond? — Isso depende inteiramente do Sr. Arlequim. — O que nos diz, Sr. Arlequim? — É impossível definir qualquer coisa neste exato momento, senhores. Estamos empenhados em algumas negociações internacionais, altamente delicadas. Podemos ficar aqui durante uma semana inteira. É possível também que, a qualquer momento, tenha que mandar o Sr. Desmond para a Europa ou para a América do Sul. Um dos detetives tirou do bolso um envelope pardo, abriu-o e pegou lá de dentro duas fotografias, entregando uma a Arlequim e outra a mim. Embora eu já estivesse preparado, senti um choque de repugnância e horror. Valerie Hallstrom parecia uma boneca desengonçada, estendida no chão de sua sala de estar, o rosto, uma massa ensangüentada. O detetive tirou a fotografia de minhas mãos. — Ela levou um tiro, Sr. Desmond. À queima-roupa, com uma pistola de calibre 38. — Eu...eu não entendo...Quando? Como? — Estamos investigando. Importa-se, Sr. Desmond, se dermos um pulo a seu apartamento para conversarmos com seu criado e verificarmos seus pertences? — Em absoluto. Mas certamente não estão pensando que... — É apenas rotina, Sr. Desmond. Irá ajudá-lo também. — Tem razão. — Esperem um momento, senhores! George Arlequim levantou-se, um homem de ferro, dominando a todos nós com sua presença. — Sou testemunha desta entrevista. O Sr. Desmond respondeu livremente a todas as perguntas que lhe fizeram. Ofereceu-lhes também livre acesso a seu apartamento, sem um mandado judicial. Relatou-lhes os fatos e os meios de comprová-los. Agora, porém, estou precisando dos serviços do Sr. Desmond. Desejo que ele permaneça aqui, para algumas reuniões de negócios, que envolvem os interesses urgentes de clientes internacionais. Portanto, com toda a deferência devida à autoridade policial, gostaria de fazer uma sugestão: que o Sr. Desmond telefone para seu criado e o instrua para deixá-los entrar no apartamento. Ele permanecerá aqui, à disposição, caso queiram interrogá-lo novamente...E então, senhores, o que me dizem? — Não estou entendendo... — Jantei com a Srta. Hallstrom ontem à noite. Aparentemente, fui a última pessoa a vê-la com vida. — Ela disse alguma coisa? Viu...? — Não, Sr. Yanko. A polícia já está de posse das poucas informações que pude fornecer. Estou bastante deprimido. Gostaria de que houvesse algo que eu pudesse dizer ou fazer...Bem, Sr. Yanko, até amanhã. — Até amanhã...— A voz dele foi-se apagando num murmúrio vago. — Adeus, Sr. Desmond... Quando desliguei, Arlequim perguntou-me suavemente: — Acha que agiu com sensatez? — Não pude evitá-lo. — Ele ficou perturbado? — Acho que sim. Pelo menos é o que eu espero. — Creio que você deveria entrar em contato com nosso amigo Bogdanovich. — Prefiro esperar até que a polícia termine de revistar meu apartamento. Os dois detetives voltaram cinqüenta minutos depois. Tinham revistado meu apartamento, falado com o motorista da limusine e conversado com Gully Gordon. Agradeceram-me a cooperação. Tudo de que precisavam agora era uma breve declaração assinada. Escrevi-a à mão, em papel timbrado do Salvador, assinei-a e pedi a George Arlequim que assinasse também, como testemunha. Agradeceram-me novamente, declarando que esperavam não me incomodar mais. Havia apenas mais um pequeno detalhe: eles desejavam saber por que eu não mencionara meu encontro com Valerie Hallstrom no bar de Gully Gordon. Contei-lhes um pouco de verdade e um pouco de mentira. O encontro fora acidental e sem o menor significado. Eles compreendiam, é claro. O que eu não havia compreendido é que moças que freqüentam bares desacompanhadas encontram com freqüência companheiros de cama bem estranhos. Concordei em que isso era bem possível, mas que esperava que não se estivessem referindo a mim. Claro que não. Mas mesmo o solteiro mais respeitável dificilmente consegue provar que dormiu a noite inteira em sua própria cama... George Arlequim zombou do meu embaraço. Convenceu os dois detetives de que já estavam de folga e bem que podiam aceitar um aperitivo, antes do almoço. Eu não me sentia absolutamente animado, mas consegui ensaiar um sorriso de solteiro feliz, contando uma historinha escabrosa sobre os dias de minha juventude em Tóquio. Quem nos ouvisse rir, não teria imaginado que fôramos todos reunidos por um assassinato. Juliette voltou à uma hora da tarde, corada e alegre, depois de uma manhã inteira a correr Nova York como uma mocinha. Fora ao cabeleireiro, tomara café com uma amiga e fizera compras. Ficou deliciada ao saber que eu a levaria para almoçar no Fleur de Lys. Julie, quando está bem disposta, ainda é capaz de fazer os homens virarem a cabeça para admirá-la. E a minha se vira mais facilmente ainda que a da maioria. Descemos pela Fifth Avenue, de braços dados. Paramos para ver as vitrinas da Bergdorfs, da Van Cleefs e da Harry Winston's. Brincamos de "Você se lembra..." e "Não seria maravilhoso se ..." Bebemos martínis imensos e analisamos o cardápio como se aquela fosse nossa última refeição. Enquanto comíamos, fizemos planos para uma noitada no teatro e para um passeio de carro pelo campo no domingo. Conversamos sobre um coquetel para receber os amigos e os colegas e discutimos qual seria a melhor mulher para me fazer par. A conversa era agradável e divertida e eu não me importava em alimentá-la, se isso a deixava feliz. Ela de nada sabia sobre o drama da manhã e não seria eu quem iria informá-la. George Arlequim queria tomar suas próprias decisões. E uma delas era determinar o quanto sua esposa deveria saber. Além disso, eu estava começando a ficar cansado do papel de padrinho, de amigo da família, de pau- para-toda-obra. Meu dinheiro estava comprometido, a polícia estava se intrometendo em minha vida particular, havia pessoas respirando audivelmente em meu telefone. Enquanto isso, tudo o que eu queria era ser um homem sem compromissos, saindo à francesa quando as mulheres eram muito feias ou quando a bebida se acabava. Não era pedir muito. Ao final da refeição, descobri que absolutamente não podia compreender as mulheres. Na hora da sobremesa, Juliette cansou-se da conversa superficial e quis fazer-me uma confissão: — Estou feliz, Paul, feliz como há muito tempo não me sentia. George está ficando mais forte a cada dia que passa e está gostando da batalha. Somos mais francos um com o outro. Agora, quando está cansado, ele fica irritado. Houve um tempo em que ele se mostrava tão suave e delicado que eu pensava que nem mesmo um furacão poderia abalá-lo. Gosto mais dele assim. E também torna-se mais fácil conviver... Se estivesse na mesma situação que eu, o que diria você? Que estava na maior satisfação, que tinha certeza, o tempo todo, de que as coisas iam terminar dando certo, que o casamento nem sempre é um mar de rosas. Tudo isso e mais alguma coisa. É claro, porém, que isso não era suficiente, pois a confissão mal começara. — Vou ser bastante franca, Paul... Quando uma mulher diz que vai ser franca, o homem deve imediatamente sair correndo e esconder-se na primeira moita. Mas nunca é o que a gente faz. Continua-se sentado no mesmo lugar, paciente, sorridente. Afaga-se a mão dela e se murmura algo simpático, preparando-se para ouvir pela centésima vez o canto da sereia. — Sinto um ciúme imenso de George. Sou por demais insegura. Eu o amo desesperadamente, mas só o fato de ser casada com um homem como ele constitui uma ameaça constante. Ele sabe demais, sempre vê tudo com extrema lucidez. Sinto que me está avaliando a todo momento e sempre fico aquém das suas necessidades. Esta crise reuniu-nos, mas pode também levá-lo para mais longe ainda de mim, a um ponto em que não poderia segui-lo. Se ele for batido, então estarei a seu lado para levantá-lo, tirar-lhe a poeira, amá-lo. Mas, se ele vencer, então ficará novamente a um milhão de quilômetros de mim. Você está me entendendo, Paul? Era uma pergunta tola. Por que mais eu estaria ali se não fosse para compreender e calar o que não se podia dizer? Que Julie Gerard casara-se com um homem abençoado, que podia não estar feliz mas tinha que continuar em frente, até descobrir se o marido era ou não capaz de descer ao inferno como o resto de nós. Mas não se pode dizer uma coisa dessas no Fleur de Lys. Eu não podia dizer a Julie que, se tivesse casado comigo, seria uma mulher caseira e feliz, com um garoto irrequieto agarrado às suas saias, sem sentir a menor falta do Cézanne na sala de estar ou do Hieronymus Bosch no salão de banquetes. A única coisa que eu podia fazer era sorrir e assentir, imaginando o que aconteceria quando George Arlequim chegasse a casa com sangue nas mãos e ferimentos na boca de poeta. Lá fora, o ar estava carregado e trovejava. Os nova-yorkinos continuavam em sua peregrinação ruidosa e ressentida para lugar nenhum. O ressentimento estava estampado nos rostos carrancudos e cautelosos. A convicção que tinham era tão nítida como se a manifestassem em cartazes: Manhattan era um lugar terrível. E não havia condição de melhorar. Pelo contrário, a tendência era piorar. Era uma cidade enlouquecida, de gente faminta por dinheiro, faminta por homens, faminta por mulheres. Rosnava para cada um de seus habitantes em todos os minutos de todas as horas. Se não se rosnasse em resposta, a cidade tragaria o indivíduo, corpo, alma, roupa uma data em branco em seu calendário social. Ela ia à ópera. Mas, se eu quisesse, podia aparecer para a ceia. Iria encontrar Louise, Monty, aquela nova e maravilhosa soprano brasileira e uma dúzia de outras pessoas. Disse-lhe que faria o possível para comparecer; se não pudesse, contudo, mandava-lhe beijos e abraços até a próxima vez. E assim eu continuava sem ter com quem jantar e com a convicção de que estava ficando velho demais para a dança de acasalamento das borboletas sociais. Desci até o salão de bilhar do clube e ganhei dez dólares de Jack Winters, que nunca fez nada mais pesado em toda a sua vida do que podar roseiras e sempre evitou casar-se. Ele mais uma vez deixou-me assustado, como sempre acontecia. Nele podia ver-me dentro de dez ou quinze anos, o primeiro a chegar, o último a partir, uma figura patética, sempre ansioso por encontrar parceiros para o bridge ou companhia para o bar. Ao voltar para casa, através dos primeiros clarões dos anúncios luminosos e da última disparada de formigas pela cidade, estava oprimido por uma terrível sensação de solidão, um medo pânico da violência e do desastre. O terreno da lei, no qual eu caminhara com tanta segurança durante anos, estava se rompendo sob meus pés, como um rio congelado num degelo súbito. Eu estava envolvido em roubo, conspiração e homicídio. Contratara gente para semear o terror, porque me sentia encurralado por um sistema além do alcance da lei, um sistema que corrompia a lei, mantendo-a na impotência e subserviência. Era uma máquina terrível. Ela dizia: "Alerta amarelo"; e logo todas as grandes potências preparavam-se para a guerra. A máquina expelia um cálculo astronômico e logo uma moeda era desvalorizada. Mesmo Deus é capaz de perdoar nossos pecados, mas a máquina nos humilha com eles até o Juízo Final, o qual, aliás, também vai acabar determinando ...E assim se criava a grande ilusão de que o homem não deveria assumir nenhuma responsabilidade, já que não podia exercer nenhuma, de que deveria ser submisso porque seu destino já estava determinado e impresso, de que somente a máquina podia controlar as correntes cósmicas. O que ninguém dizia, porque todos se empenhavam laboriosamente em ocultá-lo, é que as máquinas são alimentadas por mecânicos humanos, tão diabólicos, bons, sensatos ou estúpidos como o resto de nós. A máquina apenas multiplica os erros cometidos por tais mecânicos, numa matemática enlouquecida, além da qual não há recurso possível...A menos, é claro, que se ataque a máquina com machadinhas, bombas, foguetes e um desprezo mortal, o que constitui a própria essência do terror moderno, a essência do desespero comum que hoje existe. Surpreendi-me de repente refletido na vitrina de uma loja. O que eu via era um homem de meia-idade, sombrio e hostil, fechado a qualquer contato humano. Virei-me e abri caminho apressadamente por entre a multidão, numa vã tentativa de livrar-me do fantasma de mim mesmo. Quando cheguei a casa, todas as misérias do dia foram suplantadas pelas atribulações domésticas. Takeshi estava num dos seus maus dias. Devo explicar agora que quando Takeshi está de bom humor é um modelo a ser apreciado acima do vinho, das mulheres e das esmeraldas. Ele cozinha melhor do que Escoffier. Passa uma camisa de forma a que fique parecendo como uma segunda pele. Tira o pó, lustra, dá polimento, como se fosse o guardião do mais valioso tesouro imperial. Por outro lado, Takeshi de mau humor é simplesmente intolerável. Ele arrasta os pés como um caso geriátrico, amarra a cara como um demônio do templo, funga, geme e se lamúria numa sinfonia de dores. Quando se digna abrir a boca, parece um idiota ou um insubordinado. A única solução que já encontrei é expulsá-lo de casa e deixá- lo ir purificar-se com saque, pôquer e uma visita à mama-san que dirige um estabelecimento para cavalheiros japoneses na West 58th Street. "Reconheci imediatamente os sinais no momento em que entrei. Cinco minutos depois eu já expulsara Takeshi de casa. Meia hora mais tarde estava de banho tomado, barbeado e pelo menos parcialmente humano, refestelado num sofá, com um copo ao meu lado e ouvindo Von Karajan reger a Patética. Chegara o pacote despachado por Francis Xavier Mendoza, mas eu ainda não o abrira. Há muito que só me movimentava de acordo com as engrenagens da máquina e achava que tinha direito agora a um pouco de descanso, entregue apenas a mim mesmo. Folheei uma revista de iatismo e deixei-me dominar pela fantasia de um longo cruzeiro. Iria da Europa para o Caribe, atravessaria o Panamá, chegaria às Galápagos, Papeete, Tonga e Fidji. Podia fazê-lo. Deveria fazê-lo, ao invés de me debater no estéreo do mercado. Poderia tirar um ano inteiro de folga. Até mesmo dois, se quisesse. Tripulação não era problema. Havia muitas alternativas para a escolha de companhia agradável. Jenny Latham estava livre e ansiosa ...Talvez Paulette...Mas por que deveria prender-me a alguém? Por que não me renovar em cada vez que aportasse em alguma terra? Despertei de meu devaneio com o toque insistente da campainha. Tropecei até a porta, ressentido, para atender. George Arlequim estava em pé no capacho, com um sorriso de arrependimento. — Estou passeando há uma hora e resolvi verificar se você estava em casa. Se não o encontrasse, teria deixado um bilhete. — Mas entre logo, George! Isto é um absurdo! Simplesmente não se pode passear à noite nesta cidade. — Eu sei, mas precisava espairecer um pouco, para poder pensar direito. Discutimos hoje, Paul. Isso não deveria ter acontecido. Peço que me desculpe. — Esqueça, George. Nós dois andamos muito nervosos. Aceita um café? — Quero sim, por favor. Você acabou não saindo? — Mandy foi à ópera. Sugeriu que fosse cear em sua companhia, mas eu não estava com a menor vontade. E ao chegar a casa ainda descobri que Takeshi está de veneta. Onde está Julie? — Esperando por Suzanne. Ela deverá chegar aqui de madrugada. — Contou a Julie o que aconteceu? — Contei. Ele deu-me seu sorriso infantil e malicioso, acrescentando: — Julie ficou admirada de você não lhe ter contado coisa alguma durante o almoço. Mas acho que, a esta altura, ela já deve tê-lo perdoado. — Espero que sim...Ali em cima do sofá, George, há um pacote. É um dossiê completo sobre Basil Yanko, que Mendoza enviou-me lá da Califórnia. Por que não o abre e dá uma olhada, enquanto faço o café? Fiquei pela cozinha durante dez minutos, satisfeito pelo fato dé Arlequim ter aparecido, perturbado por ainda não lhe haver relatado minha conversa com Bogdanovich. Não era o medo que me retinha, era ressentimento e ciúme, o triunfo menor de possuir uma informação que até então ele ignorava. Não era fácil explicar, mas, envergonhado pela cortesia de seu pedido de desculpas, tive que fazê-lo. Ele ficou chocado com os detalhes da morte de Valerie Hallstrom, mas recusou-se a permitir que eu me humilhasse. — Não, Paul! Deixei que você suportasse coisas demais por muito tempo. Você assumiu os riscos, enquanto eu bancava o crítico e o juiz. A partir de agora, trabalharemos juntos, sem segredos, sem discussões. Certo? — Certo. — Tive algumas notícias ruins esta noite. Larry Oliver foi procurar-me. Recebeu a oferta de outro emprego e apresentou seu pedido de demissão. — E quando ele quer ir embora? — Vou levá-lo comigo e estudá-lo. Quando não o estiver usando, eu o guardarei num cofre. Não é o tipo de coisa que se possa deixar à mostra. Especialmente agora... Não pude resistir a um sorriso e a uma pontada de ironia: — Está aprendendo depressa, George! Para minha surpresa, ele levou o comentário a sério. — Não, Paul, eu sempre soube. Mas tinha a vaidade pessoal de que poderia eternamente esquivar-me aos canalhas e trapaceiros, de que poderia insular-me contra a maldade através de urbanidade, de que poderia afastar a violência com uma muralha de dinheiro e privilégio. Esta noite, andando pelas ruas, compreendi que isso era uma ilusão. O mal é uma realidade e está sempre à nossa espreita, de emboscada, pronto para invadir nossa casa. Mais cedo ou mais tarde tem-se que enfrentá-lo, em luta corpo a corpo. Para mim, esse momento é agora. E fico contente por sermos amigos novamente... Tomamos dois drinques e ouvimos meia hora do piano de Gully Gordon. Ao sairmos, uma limusine com motorista estava nos esperando junto ao meio-fio. Aaron Bogdanovich estava no banco de trás. Seguimos até Washington Square, no centro da cidade, voltando depois para os subúrbios, lentamente, enquanto Bogdanovich absorvia as informações que lhe prestáramos e nos contava outras novidades. — Concordo com o senhor: não se pode brincar com o FBI. Podem dar todas as informações que eles puderem deduzir dos arquivos. E creio que não é prejudicial expressar uma certa intranqüilidade quanto às operações da Creative Systems. Podem ter certeza de que o próprio FBI também está preocupado com isso. Mas lembrem-se de que são estrangeiros e de que não compreendem perfeitamente as atitudes e procedimentos americanos. Isso ajuda bastante ao tratarem com órgãos governamentais... A única coisa que não podem mencionar é a ligação comigo. Eles sabem que existo. A política do governo é favorável a Israel, por isso eles me deixam em paz, contanto que mantenha a maior discrição com relação a meus atos e distribua de vez em quando umas gratificações generosas. Mas tenho certeza de que não permitirão que eu trabalhe para particulares. Ainda não tenho muitas novidades. Localizamos o táxi. O motorista admitiu que pegou nosso passageiro. Levou-o para o terminal da TWA no Aeroporto Kennedy. Depois disso, é claro, não pudemos seguir-lhe a pista. Ele pode ter apanhado um avião da própria TWA, ter apanhado outro táxi e voltado para o centro da cidade ou embarcado num avião de outra companhia. Não há condições de sabê-lo. Contudo, estamos investigando meticulosamente o mercado de assassinos de aluguel...Estamos também investigando os empregados pessoais de Yanko — seu motorista, o mordomo, a criada, a secretária particular. A polícia está investigando a vida particular da Srta. Hallstrom. Um amigo meu irá transmitir-me o que for descoberto, no momento conveniente. Ah, já ia me esquecendo de uma coisa, Sr. Desmond. O camarada que estava vigiando seu apartamento no Corvette verde... — Bernie Koonig. O que há com ele? — Meus rapazes o pegaram para uma conversinha. Ele disse que foi contratado por um amigo para segui-lo e informar todos os seus movimentos. — E quem é esse amigo? — Um homem chamado Frank Lemmitz. É o motorista de Yanko. — Finalmente, a primeira falha. Podemos usá-la? — Estive pensando nisso. É um risco, mas talvez valha a pena corrê-lo. Por que não jogar o nome na cara de Yanko, quando o encontrarem? — Confesso que ficaria deliciado em fazê-lo. — Deixe para mim — pediu George Arlequim, ansiosamente. — Pode ser uma tremenda surpresa. Não dizem, no teatro, que em todas as piadas deve haver sempre duas risadas? — Três, Sr. Arlequim — disse Aaron Bogdanovich. — Mas deve certificar-se de que a última não seja a seu respeito. Estávamos atrasados, mas não demais, para o jantar no Salvador. Suzanne estava presente e tomei-a nos braços e ali a mantive por mais tempo do que o usual, já que Arlequim não podia fazê-lo e ela estava precisando, assim como eu, de mais amor do que tinha. O relatório que ela nos trouxera de Genebra não era muito animador. O Union Bank mostrava-se cauteloso quanto a seus direitos e cioso de sua posição legal. A conta Arlequim fora aberta da forma apropriada. Todas as transações tinham sido formalmente corretas. O dinheiro fora pago contra uma assinatura verificada. A responsabilidade do banco terminava aí. Desde que tal posição fosse reconhecida, eles estavam dispostos a ajudar o honrado colega de todas as formas legais. A polícia suíça também não pudera prestar muita ajuda. Haviam examinado a alegada falsificação, comparando-a com uma assinatura genuína. Admiraram bastante a habilidade do falsificador. Ressaltaram que era quase impossível seguir a pista do dinheiro sacado do banco, pois ele podia inclusive ser legalmente exportado da Suíça. A posição de Arlequim era clara e difícil. As perdas estavam cobertas. E, a menos que alguma queixa formal fosse apresentada por uma terceira pessoa, não haveria acusações contra ele. As notícias do mercado também eram sombrias. Na cidade do bom Calvino, o trabalho era coisa sagrada. O dinheiro era seu fruto santificado. E qualquer coisa que manchasse a santidade do dinheiro era um anátema. George Arlequim ainda não fora excomungado e nem mesmo estava sob uma moção formal de censura. Mas na Associação dos Bancos Suíços já havia gente sacudindo a cabeça e os murmúrios corriam livremente. Ainda não perdêramos nenhum cliente, mas o fluxo de dinheiro para investimento diminuíra consideravelmente. Suzanne relatou tudo isso em seu estilo firme e prosaico, como se estivesse falando de artigos de uma mercearia e não de calamidades. Juliette ficou furiosa, cortando um nome depois do outro de sua lista de visitas. Arlequim resumiu tudo com brevidade: — Uma coisa é clara: não podemos simplesmente ganhar e voltar mancando para casa. Vamos precisar de bandeiras e fanfarras, de arrastar nossos inimigos pela lama. Mas já é tarde demais para retóricas. Voltaremos a nos reunir às dez horas da manhã, para um conselho de guerra...Durmam, crianças. Tenham lindos sonhos! Era um desejo agradável, mas não encerrava nenhuma bênção, pelo menos para mim. Assim que paguei o táxi, diante da porta do edifício onde morava, três homens saíram das sombras e convergiram em minha direção. Um deles disse-me: — Temos um recado de Bernie para você. Outro agrediu-me com um cassetete de borracha. Tentei reagir, mas eles eram por demais experientes para mim. Acordei em minha cama, com as costelas enfaixadas, uma dor terrível nos rins, um médico à minha cabeceira e dois guardas esperando para tomarem meu depoimento.
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