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Guias e Dicas
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09 - Tomas de Aquino - Dante, Notas de estudo de Filosofia

Coleção Os pensadores

Tipologia: Notas de estudo

2015

Compartilhado em 01/12/2015

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Baixe 09 - Tomas de Aquino - Dante e outras Notas de estudo em PDF para Filosofia, somente na Docsity! Os Pensadores http://groups.google.com/group/digitalsource Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Seleção de textos / Sto. Tomás de Aquino, Dante Alighieri ; tradu - ção Luiz João Baraúna... [et al.]. — São Paulo : Nova Cultural, 1988- (os pensadores)(Os pensadores) Inclui vida e obra de Santo Tomás de Aquino e Dante Alighieri. Bibliografia. 1. Filosofia medieval 2. Itália - Política e governo - 476-12681. Tomás de Aquino, Santo, 12257-1274. II. Dante Alighieri, 1265-1321. III. Série. CDD-189 88-0490 -320.94504 Índices para catálogo sistemático: 1. Filosofia medieval ocidental 189 2. Filósofos medievais 189 3. Século 12 : Itália : Política 320.94504 STO. TOMAS DE AQUINO DANTE ALIGHIERI SELEÇÃO DE TEXTOS Tradução: Luiz João Baraúna, Alexandre Correia, Paulo M. Oliveira, Blasio Demétrio, Carlos do Soveral NOVA CULTURAL 1988 Títulos originais: Textos de Sto. Tomás de Aquino, selecionados de: De Ente et Essentia Quaestiones Disputatae de Veritate Summa de Veritate Catholicae Fidei Contra Gentiles Compendium Theologiae Summa Theologica Textos de Dante Alighieri: Vita Nuova Monarchia ©Copyright desta edição, Editora Nova Cultural Ltda., São Paulo, 1988. Av. Brig. Faria Lima, 2000 — CEP 01452 — São Paulo, SP. Traduções publicadas sob licença do Prof. Alexandre Correia (Suma Teológica); D. Giosa Indústrias Gráficas S. A., São Paulo (Vida Nova); Guimarães & Cia. Editores, Lisboa (Monarquia). Direitos exclusivos sobre as demais traduções deste volume, Editora Nova Cultural Ltda., São Paulo. Direitos exclusivos sobre "STO. TOMÁS DE AQUINO - Vida e Obra" e "DANTE" - Vida e Obra", Editora Nova Cultural Ltda., São Paulo. XII. O efeito causado pelas obras de Aristóteles foi extremamente perturbador. O mais importante fator de conflitos entre os admiradores do estagirita e dos defensores da fé residia no fato de a doutrina aristotélica apresentar, à primeira vista, um conteúdo muito distinto da concepção cristã do mundo. Na física aristotélica o mundo é eterno e incriado. Deus é o motor imóvel do universo, o "pensamento que se pensa a si mesmo" e nada cria, movendo o mundo como causa final, sem conhecê-lo, "como o amado atrai o amante". Por sua vez, a alma não é mais do que forma do corpo organizado, devendo nascer e morrer com ele sem ter nenhuma destinação sobrenatural. Assim, a filosofia aristotélica ignorava totalmente as noções de Deus criador e providente, bem como as de alma imortal, queda e redenção do homem, todas funda- mentais à doutrina cristã. Apesar de tão distante dos dogmas cristãos, a filosofia aristotélica ganhou adeptos cada vez mais entusiasmados entre os dialéticos, que nela viam um alimento intelectual superior e se esforçavam para adaptá-la à revelação bíblica. Os esforços, contudo, não eram eficientes e os conflitos persistiam. O aristotelismo não servia, assim, à política dos papas e medidas rigorosas foram tomadas contra ele. Desde 1211, o concilio de Paris proíbe o ensino da física do filósofo grego e, em 1215, o legado papal, ao formular os estatutos da Universidade de Paris, proíbe a leitura da Metafísica e da Filosofia Natural, de Aristóteles. As proibições, contudo, caíam no vazio, diante do entusiasmo do público. O papa Gregório IX limitou-se então a ordenar a propagação das obras de Aristóteles, desde que expurgadas de afirmações contrárias aos dogmas da Igreja. Inicia-se assim a cristianização da filosofia aristotélica, o que só veio a se tornar possível graças ao espírito analítico, à capacidade de ordenação metódica e à habilidade dialética de Tomás de Aquino, que ele aliava a um profundo sentimento de fé cristã. A perfeição divina O ponto de partida para a construção do tomismo — e a conseqüente cristianização de Aristóteles — parece residir na hábil transformação que Santo Tomás operou na distinção aristotélica entre essência e existência. Aristóteles, nos Segundos Analíticos, distingue entre as questões "o que é um ser?" e "esse ser existe? A resposta à primeira pergunta constitui a definição de uma essência; mas, para Aristóteles, uma definição não implica jamais a existência, lógica ou empírica, do definido. Assim, em Aristóteles, a distinção entre essência e existência é puramente conceituai, lógica. Tomás de Aquino, ao contrário, interpreta aquela distinção como ontológica, real. Com isso, altera num ponto básico o conteúdo da filosofia aristotélica, embora mantenha seu arcabouço racional. Mas é o bastante para torná-la capaz de servir de fundamentação racional para os dogmas da revelação cristã, defender a ortodoxia da Igreja e dar combate às correntes consideradas heréticas. Fazendo apelo ao princípio do realismo ontológico (segundo o qual "tudo o que está contido na definição de uma coisa não pertence a essa coisa essencialmente, mas acidentalmente por outra"), Tomás de Aquino conclui que a definição da essência das criaturas não implica sua existência e, portanto, elas não existem por si mesmas, e sim devido a uma outra realidade (ab alio). A distinção real entre essência e existência torna-se, assim, o fundamento me- tafísico da contingência das criaturas humanas e permite introduzir no peripatetismo a idéia de criação. Apenas em Deus haveria identidade entre essência e existência. Deus existe por si e Ele mesmo teria se revelado a Moisés, afirmando: "Eu sou aquele que sou". Deus seria, assim, criador de todas as coisas e fundamento de suas existências contingentes. Deus seria o puro ato de existir, não sendo uma essência qualquer — como o uno, o bem ou o pensamento — à qual se atribuiria a existência. Ele não seria um modo eminente de existir — como a eternidade, a imutabilidade ou a necessidade, que Lhe podem ser atribuídas — mas o próprio existir, tomado em si mesmo e ao qual nada pode ser acrescentado, pois isso seria pressupor uma limitação que não Lhe cabe. Desse modo, Deus não se identifica a seus atributos; estes é que, ao contrário, devem ser referidos a Ele, pois se é o existir puro, Ele é o ser pleno, nada podendo ser-Lhe atribuído e nada Lhe faltando. Deus é imóvel e eterno, pois não é possível conceber Nele nenhuma transformação. Deus é a perfeição pura. As vias que levam a Deus Segundo Santo Tomás a razão pode provar a existência de Deus através de cinco vias, todas de índole realista: considera-se algum aspecto da realidade dada pelos sentidos como o efeito do qual se procura a causa. A primeira fundamenta-se na constatação de que no universo existe movimento. Baseado em Aristóteles, Santo Tomás considera que todo movimento tem uma causa, que deve ser exterior ao próprio ser que está em movimento, pois não se pode admitir que uma mesma coisa possa ser ela mesma a coisa movida e o princípio motor que a faz movimentar-se. Por outro lado, o próprio motor deve ser movido por um outro, este por um terceiro, e assim por diante. Nessas condições, é necessário admitir ou que a série de motores é infinita e não existe um primeiro termo (não se conseguindo, assim, explicar o movimento), ou que a série é finita e seu primeiro termo é Deus. A segunda via diz respeito à idéia de causa em geral. Todas as coisas ou são causas ou são efeitos, não se podendo conceber que alguma coisa seja causa de si mesma. Nesse caso, ela seria causa e efeito ao mesmo tempo, sendo, assim, anterior e posterior, o que seria absurdo. Por outro lado, toda causa, por sua vez, deve ter sido causada por outra e esta por uma terceira, e assim sucessivamente. Impõe-se, portanto, admitir uma primeira causa não causada, Deus, ou aceitar uma série infinita e não explicar a causalidade. A terceira via refere-se aos conceitos de necessidade e possibilidade. Todos os seres estão em permanente transformação, alguns sendo gerados, outros se corrompendo e deixando de existir. Mas poder ou não existir não é possuir uma existência necessária e sim contingente, já que aquilo que é necessário não precisa de causa para existir. Assim, o possível não teria em si razão suficiente de existência e, se nas coisas houvesse apenas o possível, não haveria nada. Para que o possível exista é necessário, portanto, que algo o faça existir. Ou seja: se alguma coisa existe é porque participa do necessário. Este, por sua vez, exige uma cadeia de causas, que culmina no necessário absoluto, ou seja, Deus. A quarta via tomista para provar a existência de Deus é de índole platônica e baseia-se nos graus hierárquicos de perfeição observados nas coisas. Há graus na bondade, na verdade, na nobreza e nas outras perfeições desse gênero. O mais e o menos, implicados na noção de grau, pressupõem um termo de comparação que seja absoluto. Deverá existir, portanto, uma verdade e um bem em si: Deus. A quinta via fundamenta-se na ordem das coisas. De acordo com o finalismo aristotélico adotado por Tomás de Aquino, todas as operações dos corpos materiais tenderiam a um fim, mesmo quando desprovidos da consciência disso. A regularidade com que alcançam seu fim mostraria que eles não estão movidos pelo acaso; a regularidade seria intencional e desejada. Uma vez que aqueles corpos estão privados de conhecimento, pode-se concluir que há uma inteligência primeira, ordenadora da finalidade das coisas. Essa inteligência soberana seria Deus. A hierarquia das criaturas: anjos e homens Todas as provas da existência de Deus contêm já, implicitamente, o quadro tomista explicativo da realidade como um todo e esse quadro concilia as verdades da razão aristotélica e o conteúdo da revelação bíblica. Torna-se perfeitamente concebível pela razão que o mundo seja um conjunto de criaturas contingentes, cuja existência é dada por Deus, criadas a partir do nada e escalonadas segundo graus diversos de perfeição e participação na essência e existência divinas. No ápice da hierarquia das criaturas encontram-se os anjos e, para explicá-los, a distinção tomista entre essência e existência revela-se particularmente eficiente. Conforme os textos bíblicos, os anjos seriam puros espíritos, o que — interpretado aristotelicamente, sem o princípio tomista da distinção ontológica entre essência e existência — levaria à conclusão de que são puras formas e, portanto, incriados, eternos. Isso seria o mesmo que afirmar serem os anjos iguais a Deus, ou seja, cair-se-ia numa visão politeísta. Por outro lado, a Igreja seria uma instituição dotada fundamentalmente de fins sobrenaturais. Assim, o Estado não precisaria se subordinar à Igreja, como se ela fosse um Estado superior. A subordinação do Estado à Igreja deveria limitar-se aos vínculos de subordinação existentes entre a ordem natural e a ordem sobrenatural, na medida em que esta aperfeiçoaria a primeira. A harmonização, no plano social e político, entre poder temporal e poder espiritual seria, portanto, análoga à que Santo Tomás procura estabelecer entre filosofia e teologia, entre razão e fé. Cronologia 1225 — Tomás de Aquino nasce no castelo de Roccasecca. 1226 — Morte de São Francisco de Assis. 1230 — Tomás inicia seus estudos na Abadia de Montecassino. 1240 — Alberto Magno começa a ensinar em Paris e a comentar Aristóteles. 1241 — Morte do papa Gregório IX. 1244 — Fundação da Universidade de Roma. Tomás entra para a Ordem dos Dominicanos. 1245 — Estuda em Paris até 1248, sob a orientação de Alberto Magno. 1248 — Alberto Magno funda, em Colônia, uma faculdade de teologia. Tomás continua seus estudos em Colônia até 1259. 1252 — Leciona em Paris até 1259. 1257— Robert de Sorbon funda um colégio na Universidade de Paris. 1259 — Tomás escreve o Comentário Sobre as Sentenças e a Suma Contra os Gentios. Leciona na Itália até 1268: Agnani, Orvieto, Roma e Viterbo. 1261 — Início do pontificado de Urbano IV. 1265 — Clemente IV ascende ao trono papal. Nasce Dante. Tomás redige a Suma Teológica, até 1273. 1266(?) — Nasce Duns Scot. 1268 — Morte de Clemente IV. Interregno pontifical. 1269 — Tomás ensina em Paris até 1272. 1271 — Eleição de Gregório X. 1274 — Tomás falece a 7 de março, em Fossanova. 1323 — É canonizado pelo papa João XXII. Bibliografia GARRICOU-LACRANCE, R.: Dieu, son Existence, sa Nature, Beauchesne, Paris, 1924. GILSON, E.: Index Scolastico-Cartésien, Alcan, Paris, 1913. GILSON, E.: L'Être et l'Essence, J. Vrin, Paris, 1948. GILSON, E.: Le Thomisme, J. Vrin, Paris, 1948. GILSON, E.: La Philosophie au Moyen Âge, Payot, Paris, 1952. GILSON, E.: Le Philosophe et la Théologie, Fauard, Paris, 1960. GILSON, E.: L'Esprit de la Philosophie Médiévale, J. Vrin, Paris, 1969. MARC, A.: L'Idée de l'Être chez Saint Thomas et dans Ia Scolastique Postérieure, Beauchesne, Paris, 1933. MARC, A.: Dialectique de l'Affirmation, Desclée de Brauwer, Paris, 1952. MARITAIN, J.: Réflexiõns sur l'lntelligence, Desclée de Brauwer, Paris, 1924. MARITAIN, J.: Le Docteur Angélique, Desclée de Brauwer, Paris, 1930. MARITAIN, J.: Distinguerpour Unir, Desclée de Brauwer, Paris, 1932. MARITAIN, J.: Sept Leçons sur l'Être, Téqui, 1932. ROUCIER, L.: La Scolastique et le Thomisme, Paris, 1925. S ERTILLANGES, A. D.: 5a/nf Thomas d'Aquin, 2 vols., Alcan, Paris, 1925. STO. TOMAS DE AQUINO O ENTE E A ESSÊNCIA1 Tradução:Luiz João Baraúna PROÊMIO 1. Já que um erro insignificante ao início pode tornar-se grande ao final, segundo o dizer do Filósofo (Aristóteles) no livro I da obra intitulada Sobre o Céu e o Mundo, e uma vez que, con- forme afirma Avicena no início de sua Metafísica, as primeiras coisas que se concebem na inteli- gência são o ente e a essência, por isso, a fim de que o desconhecimento desses conceitos não conduza a erro, e para remover as dificuldades que lhes são inerentes, cumpre explanar o que se entende pelos termos essência e ente, e além disso de que maneira esses dois conceitos se concre- tizam nas diversas coisas, e como se relacionam com as assim chamadas intenções lógicas, isto é, o gênero, a espécie e a diferença. 2. Sendo óbvio que é a partir das coisas compostas que se deve chegar ao conhecimento das coisas simples, e das posteriores chegar às primeiras, para que, partindo das noções mais fáceis, a exposição seja mais ordenada, por esta razão cumpre-nos partir do conceito de ente para depois atingir o de essência. CAPITULO PRIMEIRO 1. Importa saber que, segundo afirma o Filósofo no quinto livro da Metafísica, o ente em si mesmo comporta duas acepções: segundo a primeira delas, divide-se nas dez categorias, e con- soante a segunda designa a verdade das proposições. A diferença desses significados está no fato de que, na segunda acepção, pode-se dizer que ente constitui tudo aquilo acerca de que se pode construir uma proposição afirmativa, embora isto nada acrescente à coisa; neste segundo sentido as privações e as negações são consideradas entes, e assim é que dizemos que a afirmação é opos- ta à negação e que a cegueira está nos olhos. Todavia, considerando-se a primeira acepção, não pode ser chamado ente senão aquilo que acrescenta algo à coisa. Daí que, neste primeiro sentido, a cegueira e outros conceitos congêneres não constituem entes. Eis a razão pela qual o termo essência não deriva do ente, tomado na segunda acepção, visto que neste caso se denominam entes algumas coisas que são 1 Servimo-nos da tradução do Professor José Cretella Júnior, Sobre o Ente e a Essência, São Paulo, 1952. Sendo que em várias passagens o texto original latino é obscuro, consideramos mais honesto respeitar na tradução esta obscuridade do que apresentar um texto português claro que, ao invés de uma tradução, poderia ser uma interpretação. Tampouco pudemos evitar uma linguagem estritamente filosófica, dificilmente acessível a não iniciados na matéria. Nota do Tradutor substâncias compostas é a mesma composição de matéria e forma. Comentando o livro VII da Metafísica, escreve o seguinte: "A natureza, possuída pelas espécies sujeitas a serem geradas, constitui um termo médio, ou seja, o composto de matéria e forma". Com isto concorda igualmente a razão, uma vez que o ser da substância composta não é apenas o ser da forma, nem somente o da matéria, mas o do próprio composto, pois a essência consiste naquilo segundo o qual se diz que uma coisa existe. Conseqüentemente, é necessário que a essência, em virtude da qual uma coisa se denomina ente, não consista só na matéria ou só na forma, senão nas duas juntas, embora só a forma seja a causa, a seu modo, de tal ser ou essência. Com efeito, observamos nas outras coisas, constituídas de muitos princípios, que as coisas não são denominadas somente por um dos referidos princípios, mas por aquele que compreende ambos, conforme se evidencia no caso dos sabores. Efetivamente, a doçura é produzida pela ação do calor que digere e dissolve o úmido, e, embora deste modo o calor constitua a causa da doçura, contudo o corpo se denomina doce não pelo calor, mas pelo sabor, o qual engloba tanto o calor como o úmido. 6. Contudo, visto como o princípio de individuação é a matéria, daqui pareceria talvez que a essência, a qual abrange simultaneamente a matéria e a forma, é apenas particular, e não univer- sal, donde seguiria que os universais não possuem definição, uma vez que a essência constitui aquilo que é significado ou expresso pela definição. Por isto mesmo cumpre notar que a matéria é, sim, o princípio individualizante: não, porém, a matéria tout court, mas a matéria signada. Por matéria signada entendemos aquela que é considerada sob certas dimensões. Esta matéria signada não integra a definição de homem enquanto homem, mas integraria a definição de Sócrates, se este possuísse definição. Na definição de homem se trata da matéria não signada, visto que na definição de homem não se costuma colocar este osso e esta carne concretos, mas pura e simplesmente o osso e a carne, os quais constituem a matéria não signada do homem. CAPITULO TERCEIRO 1. Por conseguinte, é evidente que a definição de homem em geral, e a deste homem cha- mado Sócrates, só se diferenciam pelo signado e pelo não signado. É por esta razão que o comentador afirma, ao glosar o livro VII da Metafísica, que Sócrates não constitui outra coisa senão a animalidade e a racionalidade, as quais constituem a sua qüididade. Da mesma forma, a essência do gênero e a essência da espécie se diferenciam segundo o signado e o não signado, embora haja outro modo de designação em ambos os casos, uma vez que a designação do indivíduo em relação à espécie ocorre pela matéria determinada por dimensões; contudo, a designação da espécie em relação ao gênero se realiza pela diferença constitutiva derivante da forma da coisa. Esta determinação ou designação, que se encontra na espécie em respeito ao gênero, não ocorre mediante algo que existe na essência da espécie e de modo algum existiria na essência do gênero; pelo contrário, tudo quanto está na espécie encontra-se também no gênero, como algo não determinado. Com efeito, se o animal não fosse o todo que é o homem, mas apenas uma parte dele, não se poderia predicar dele, já que nenhuma parte integral se predica do seu todo. A maneira como isto acontece, podemos observá-la ao considerarmos o corpo tomado como parte do animal e tomado como gênero, pois não se pode dizer que o corpo seja gênero da mesma forma como é parte integral. Por conseguinte, o termo corpo pode ser tomado em muitas acepções. Assim, corpo, enquanto se encontra no predicamento da substância, é aquilo que possui uma natureza tal, que nele se podem apontar três dimensões; essas três dimensões assinaladas constituem o corpo, que se engloba na categoria de quantidade. Ora, acontece nos seres que aquilo que possui uma perfeição chega a atingir uma perfeição ulterior. Tal acontece, por exemplo, no homem, o qual tem uma natureza sensitiva, e além disso uma natureza intelectiva. Semelhantemente, além desta perfeição, que consiste em ter uma forma tal que nela se possam apontar três dimensões, é possível acrescentar-lhe uma outra perfeição, qual seria a vida ou outra semelhante. Por conseguinte, o termo corpo pode designar uma coisa que possui uma certa forma, da qual deriva, nela mesma, a designação das três dimensões exclusivamente, de maneira tal, que, daquela forma, não derive nenhuma outra perfeição ulterior; se, todavia, alguma coisa se lhe acrescentar, seja fora da significação do corpo assim entendido, não só desta maneira o corpo será parte material, como também integral do animal, pois assim a alma será, além daquilo que é designado pela palavra corpo e que se acrescenta ao próprio corpo, de fôrma tal, que destes dois elementos, a saber, a alma e o corpo, à guisa de partes, se constitui o animal. O termo corpo pode ser também compreendido de maneira a significar uma certa coisa que tem uma forma tal que, em relação a ela, possam ser apontadas três dimensões, qualquer que seja essa forma, ou dela possa derivar uma outra perfeição, ou não o possa. Deste modo, corpo será gênero de animal, visto que em animal nada se pode aceitar que não esteja implicitamente contido no conceito de corpo; com efeito, a alma não consiste em outra coisa senão naquela forma em que três dimensões podiam ser apontadas. Por isto, quando dizíamos que o corpo é o que tem uma forma em relação à qual podem ser apontadas três dimensões, nisto entendíamos uma forma, qualquer que fosse, animada ou pétrea, ou outra qualquer; e, assim, a forma de animal está implicitamente em corpo, ou está contida na forma de corpo, uma vez que o corpo constitui o gênero de animal. Esta é também a relação existente entre animal e homem. Com efeito, se animal designasse tão-somente uma certa coisa que possui uma certa perfeição em virtude da qual pode sentir e movimentar-se por um princípio nele existente, com exclusão de outra perfeição, neste caso qualquer outra perfeição que sobreviesse ulteriormente estaria para a alma como uma parte, e não como algo contido implicitamente no conceito de animal. Neste caso, animal não seria gênero, quando na realidade é gênero, visto significar uma certa coisa, de cuja forma pode derivar a sensibilidade e o movimento, qualquer que seja a referida forma: uma alma apenas sensível, ou uma alma ao mesmo tempo sensível e racional. 2. Assim, portanto, gênero significa indeterminadamente tudo aquilo que se encontra na espécie, pois não designa apenas a matéria. Analogamente, diferença designa tudo quanto se encontra na espécie, e não somente a forma; também a definição abarca tudo, não só as espécies, porém diversamente. Com efeito, gênero designa o todo, como uma certa denominação que determina aquilo que é material na coisa, sem determinação da própria forma. Daí que o gênero deriva da matéria, ainda que não seja matéria. Disto se evidencia que corpo se denomina tudo aquilo que possui uma perfeição tal, que nele se possam apontar três dimensões, perfeição esta que, por ser material, é passível de perfeição ulterior, Com a diferença acontece o contrário: é como que uma certa determinação extraída de uma forma determinada, sem que isto seja matéria determinada pela primeira intelecção, como é patente, por exemplo, quando se diz que animado é o que possui alma, sem especificar se se trata de corpo ou de outra coisa. É por esta razão que Avicena afirma que o gênero não está na diferença, como parte da essência deste, mas tão- somente como ente fora da qüididade ou da essência, como o sujeito existe no intelecto das paixões. Por isso o gênero não se predica da diferença, falando-se a rigor de termos, conforme afirma Aristóteles no livro III da sua Metafísica e no livro IV dos Tópicos, a não ser talvez como o sujeito se predica da paixão. A definição ou espécie, porém, compreende ambos os elementos, isto é, a matéria determinada, que se designa pelo termo gênero, e a forma determinada, que se designa pelo termo diferença. A partir disto se evidencia a razão pela qual o gênero, a espécie e a diferença se relacionam de modo proporcional à matéria, à forma e ao composto na natureza embora não se identifiquem com eles. Com efeito, nem o gênero é matéria, embora seja tomado da matéria como significando um todo; nem a diferença é forma, embora seja tirada da forma como significando um todo. Por esta razão afirmamos que o homem é um animal racional, e no entanto não dizemos que consta do animal e do racional, como dizemos constar de alma e corpo. Dizemos que o homem se compõe de corpo e alma, expressando com isto que de duas coisas se constitui uma terceira, a qual não se identifica com nenhuma das duas. De fato, o homem não é CAPITULO QUARTO 1. Após havermos examinado o que significa o termo essência nas substâncias compostas, cumpre inquirir qual a relação existente entre o conceito de essência e os de gênero, espécie e diferença. Entretanto, uma vez que aquilo a que convém o conceito de gênero, de espécie ou de diferença se predica acerca deste signado singular, sendo impossível que as noções de gênero, espécie e diferença se atribuam à essência, considerada como tendo significação de parte, como, por exemplo, o termo "humanidade" ou animalidade, por esta razão afirma Avicena que a racionalidade não constitui diferença, mas antes princípio do qual deriva a diferença; pelo mesmo motivo, também a animalidade não constitui gênero. Analogamente, tampouco se pode afirmar que as noções de gênero, espécie e diferença convenham à essência enquanto esta constitui uma coisa existente fora dos singulares, como pretendiam os filósofos platônicos. Com efeito, se assim fora, o gênero e a espécie não se poderiam predicar deste determinado indivíduo, pois não se pode dizer que Sócrates seja aquilo que foi separado dele. Nem o que foi separado dele é de utilidade para o conhecimento deste signado singular. Conseqüentemente, infere-se que os conceitos de gênero, espécie e diferença convêm à essência enquanto esta significa à maneira de um todo, do mesmo modo que os termos homem ou animal, enquanto contêm implícita e indistintamente tudo aquilo que existe no indivíduo. Se for entendida nesta acepção, a essência ou natureza pode ser considerada de duas maneiras. A primeira maneira é segundo a sua natureza e noção próprias, sendo que esta é a consideração absoluta da mesma. Considerada a essência neste sentido, nada é verdadeiro afirmar a respeito dela, exceto aquilo que se lhe aplica enquanto tal. Em conseqüência, toda e qualquer outra coisa que se lhe atribua trata-se de uma atribuição falsa. Por exemplo: ao homem enquanto homem cabe o animal e o racional, bem como outros elementos que perfazem a definição de homem. Ao contrário, o branco e o negro, ou qualquer outra coisa semelhante que não perfaz o conceito de "humanidade", não cabem ao conceito de homem enquanto tal. Por isso, se se perguntar se esta natureza pode ser denominada uma ou múltipla, não se pode admitir nenhuma das duas alternativas, pois ambas estão fora do conceito de "humanidade" e ambas podem aplicar-se a ele. Com efeito, se houvesse pluralidade neste conceito, nunca a natureza poderia ser una, quando de fato é una enquanto se concretiza em Sócrates. Analogamente, se a unidade pertencesse ao conceito de natureza, nesta hipótese a natureza de Sócrates e a de Platão seriam uma só, e não se poderia afirmar que a natureza se plurifica ou diversifica em muitos. A segunda maneira de considerar a essência ou natureza é enquanto tem o ser nisto ou naquilo. Neste sentido, sim, pode-se predicar da natureza alguma coisa que é acidental com res- peito àquilo em que se encontra, assim como quando se diz que o homem é branco, pelo fato de Sócrates ser branco, embora o conceito de branco não pertença ao conceito de homem enquanto tal. Esta natureza que acabamos de definir tem um duplo ser ou existência: um nos singulares, outro na alma, sendo que, segundo um e outro, os acidentes seguem a mencionada natureza, e assim, nos singulares, têm uma existência múltipla conforme a diversidade desses singulares. E, todavia, nenhum destes pertence à própria natureza, segundo a sua própria consideração, isto é, absoluta. Com efeito, é falso afirmar que a natureza do homem, enquanto homem, tenha existência neste determinado singular, visto que. se o ser neste indivíduo conviesse ao homem enquanto homem, nunca poderia concretizar-se fora deste determinado indivíduo. Analogamente, se conviesse ao homem enquanto homem o não estar neste determinado indivíduo, nunca estaria nele. Todavia, é verdadeiro dizer que o homem enquanto homem não tem o que esteja neste indivíduo ou naquele. Por conseguinte, é evidente que a natureza do homem, considerada em sentido absoluto, prescinde de qualquer ser, mas de tal modo que não se torne exclusão de nenhum deles. E esta natureza, assim considerada, isto é, em sentido absoluto, que se predica de todos os indivíduos. 2. Sem embargo, não se pode afirmar que o conceito de universal convenha à natureza no sentido que acabamos de explanar, visto que o conceito de universal implica o de unidade e comunidade. Ora, nem a unidade nem a comunidade convêm à natureza humana, tomada no sentido explicado, isto é, absoluto. Com efeito, se a noção de comunidade estivesse contida no conceito de homem, necessariamente aconteceria que, em toda coisa em que se encontrasse a "humanidade" (o ser homem), encontrar-se-ia também a comunidade. Ora, isto é falso, visto que em Sócrates não se encontra nenhuma comunidade, mas tudo o que nele existe, existe como individualizado nele. Similarmente, também não se pode afirmar que o conceito de gênero seja próprio da natureza humana segundo aquele ser que tem nos indivíduos, pois nos indivíduos não se encontra a natureza humana em sua unidade, isto é, como algo que conviria igualmente a todos, tal qual o exigiria o conceito de universal. Conclui-se, por conseguinte, que a noção de espécie se aplica à natureza humana segundo aquele ser que possui no intelecto. Efetivamente, esta natureza tem na inteligência uma existência abstraída de todas as notas individualizantes, e conseqüentemente tem um conceito uniforme para todos os indivíduos concretos que existem fora do intelecto, visto que é a imagem de todos eles, enquanto são homens, e, porque tem uma relação tal com todos os indivíduos concretos, o intelecto descobre o conceito de espécie e o atribui a si. Em razão disto, o Comentador afirma, em seu primeiro livro Sobre a Alma, que é o intelecto que cria a universalidade nas coisas, o que, aliás, é também afirmado por Avicena no livro V da sua Metafísica. E, embora esta natureza, entendida no sentido exposto, tenha caráter de universal ao ser comparada com as coisas existentes fora da inteligência, por ser semelhante a todas elas, contudo, segundo tem existência neste ou naquele intelecto, é uma certa noção do particular. Daqui resulta evidente o equívoco do Comentador no livro III da obra Sobre a Alma, ao querer deduzir, da universalidade da forma inteligível, a unidade do intelecto. Com efeito, não provém a universa- lidade daquela forma segundo o que o ser tem no intelecto, mas segundo o que se refere às realidades como semelhança delas. Assim como, se houvesse uma estátua de corpo humano que representasse muitos homens, poderíamos, sim, admitir que tal imagem tivesse um conceito de comunidade segundo fosse a representação comum de muitos indivíduos humanos. E já que para a natureza humana, tomada em seu sentido absoluto, convém que se predique de Sócrates, e o conceito de espécie não convém a ela segundo o seu sentido absoluto, isto é, para a natureza humana, mas é sobre os acidentes, os quais a seguem segundo um certo ser que tem no intelecto, por esta razão o termo espécie não se predica de Sócrates, como para dizer que Sócrates é espécie. Ora, isto aconteceria necessariamente se o conceito de espécie se aplicasse a homem segundo o ser que tem em Sócrates, ou segundo a sua acepção absoluta, a saber, enquanto Sócrates é homem. Pois é evidente que tudo quanto cabe ao homem enquanto homem se predica inclusivamente de Sócrates. E, todavia, o "ser predicado de outros" convém ao gênero em si mesmo, visto que esta propriedade pertence à própria definição do gênero. Com efeito, a predicação consiste em algo efetuado pelo intelecto sintetizante e analisante, algo que, porém, tem fundamento na própria coisa, e este fundamento é a unidade daqueles elementos, dos quais um se predica acerca do outro. Daí que o conceito de predicabilidade pode estar encerrado no conceito desta noção lógica que é o gênero, a qual, analogamente, se efetua mediante a ação do intelecto. Todavia, aquilo a que o intelecto atribui a noção de predicabilidade, unindo-o com outro, não é a própria noção de gênero, mas antes aquilo a que o intelecto atribui a noção de gênero, como, por exemplo, o que é significado pelo termo animal. Destarte aparece claro de que maneira a essência ou a natureza se relaciona com o conceito de espécie: a noção de espécie não se refere àquilo que cabe à natureza ou essência na sua acepção absoluta, nem aos acidentes que a acompanham segundo o que o ser tem fora da sem que se compreenda qualquer coisa acerca do seu ser ou existência. Com efeito, posso compreender o que seja o homem e a fênix, ignorando se possuem ou não existência real. É evidente, por conseguinte, que a existência difere da essência ou qüididade. . A não ser que exista alguma realidade cuja qüididade seja o seu próprio ser, e tal coisa não pode ser senão una e a primeira, pois é impossível que se opere a plurificação de alguma coisa a não ser pela adição de alguma diferença, como acontece quando a natureza do gênero se multiplica em espécies, ou pelo motivo de a forma ser recebida em diversas matérias, como quando se multiplica a natureza da espécie nos diversos indivíduos, ou pelo motivo de uma coisa ser una e abstrata e a outra recebida em algo: como se houvesse uma certa cor separada, esta seria distinta de uma cor não separada em virtude da sua própria separação. Se. porém, houvesse alguma coisa que fosse exclusivamente ser, de maneira que o próprio ser fosse subsistente, este ser não receberia adição de diferença, pois que já não seria apenas ser, mas ser e além disso alguma forma. Muito menos receberia adição da matéria, pois que já seria ser não subsistente, mas material, donde se conclui que a tal realidade que constitui a sua existência não pode ser senão uma só; por conseguinte, é necessário que em qualquer outra coisa, com exceção dela, seja distinta a existência da qüididade ou natureza ou sua forma. Daí ser necessário que nas inteligências haja ser ou existência além da forma, razão pela qual observamos acima que inteligência é forma e ser ou existência. 4. Tudo aquilo que cabe a alguma coisa, ou é causado pelos princípios inerentes à sua pró- pria natureza, assim como a capacidade de rir no homem, ou provém de outro princípio extrínseco. assim como a luz existente no ar provém da influência do sol. Ora, não pode acontecer que o ser ou existência seja causado pela própria forma, ou pela qüididade da coisa. Estamos falando, naturalmente, de causa eficiente, pois neste caso uma coisa seria causa de si mesma, e uma coisa se produziria a si mesma, o que é impossível. Por conseguinte, é necessário que toda coisa cujo ser difere da sua natureza tenha sua existência de outra. Ora, já que tudo aquilo que existe por outro pode ser reduzido àquilo que existe por si, como à sua causa primeira, por esta razão é necessário que exista uma determinada coisa que seja a causa do ser para todas as outras coisas, pelo fato de ela ser puro ser; do contrário, iríamos até ao infinito, em termos de causalidade, já que toda coisa que não é puro ser tem a causa do seu ser em outro, como já dissemos. É evidente, por conseguinte, que o intelecto é forma e ser. como é patente também que tem a existência do primeiro ser, que é exclusivamente ser: este ser é a causa primeira, isto é, Deus. Tudo aquilo que recebe alguma coisa de outro está em potência com respeito a este outro, e o que se recebe é para ele seu ato. Em conseqüência, esta forma ou qüididade que é a inteligência humana necessariamente está em potência em relação ao ser que recebe de Deus; além disso, este ser é recebido à maneira de ato, e por conseguinte existe nas inteligências ato e potência, não, porém, forma e matéria, a não ser que os termos se entendam em sentido equívoco. Pela mesma razão, as noções de ser passivo, receber, ser sujeito, e outras congêneres, que convêm às coisas em virtude da matéria, não convêm às substâncias intelectuais — conforme afirma o Comentador no livro III da obra Sobre a Alma — a não ser que todos esses termos se tomem em acepção equívoca. E uma vez que, como já dissemos, a qüididade da inteligência é a própria inteligência, a qüididade ou essência do intelecto é o mesmo que ela própria, e o seu ser, recebido de Deus. é aquilo em virtude do qual subsiste na natureza das coisas. Esta é a razão pela qual alguns filósofos afirmam que estas substâncias se compõem de quo est (aquilo pelo qual são) e de quod est (o que são), ou seja, do quo est e de essência, como diz Boécio. Uma vez que nas inteligências existe potência e ato, não ê difícil encontrar grande número de inteligências, o que seria impossível caso nelas não houvesse potência. Daí que o Comentador afirma, no livro III da obra Sobre a Alma, que, se a natureza do intelecto possível fosse desconhe- cida, não poderíamos encontrar multiplicidade nas substâncias separadas. Por conseguinte, existe distinção de uma inteligência para outra, segundo o grau de potência e de ato, de maneira que uma inteligência superior, que está mais próxima do primeiro princípio, tem mais de ato e menos de potência, e assim por diante nas demais. Isto se realiza na alma humana, que ocupa o último lugar entre as substâncias intelectuais, razão pela qual a sua intelecção potencial está para as formas inteligíveis do mesmo modo como a matéria primeira, que ocupa o último lugar nos seres sensíveis, está para as formas sensíveis, conforme afirma o Comentador no livro III Sobre a Alma. Por este motivo o Filósofo a compara com uma tábua rasa, na qual nada está escrito. E já que a alma humana é a que, dentre as substâncias intelectuais, mais tem de potência, se torna de tal maneira próxima das coisas materiais, que a coisa material é forçada a participar do seu ser, de modo tal, que da alma e do corpo resulta um só ser em um composto, se bem que aquele ser, enquanto é da alma, não dependa do corpo. Por isto, depois desta forma que é a alma humana, existem outras formas que têm ainda mais de potência e são ainda mais próximas à matéria, a tal ponto, que o ser delas é impossível sem a matéria. Também entre estas formas existe uma ordem ou hierarquia, até se chegar às primeiras formas dos elementos, que são as mais próximas da matéria. Por esta razão, tais formas não possuem operação alguma a não ser segundo a exigência das qualidades ativas e passivas, e de outras mediante as quais a matéria se dispõe para receber a forma. CAPÍTULO SEXTO Do que até aqui expusemos se evidencia de que maneira a essência se encontra concreti- zada nas diversas coisas. Ora, existem três modos segundo os quais a essência pode encontrar-se nas substâncias. a) Primeiramente, existe algo, como Deus, cuja essência é o seu próprio ser ou existência. Razão pela qual há filósofos que afirmam que Deus não possui essência, pelo fato de a sua essên- cia coincidir com a sua existência. Disto se infere que Deus não pode ser incluído em nenhum gênero, pois tudo aquilo que está englobado em algum gênero necessariamente possui qüididade além do seu ser ou existência, uma vez que a qüididade ou natureza do gênero ou da espécie não se distingue segundo a razão da natureza naquelas coisas, das quais é gênero ou espécie, senão que o ser se encontra nas diversas coisas de maneira diversa. Tampouco é inevitável que. se afirmarmos que Deus é exclusivamente ser ou existência, caiamos no erro daqueles que disseram ser Deus aquele ser universal, em virtude do qual todas as coisas existem formalmente. Com efeito, este ser que é Deus é de tal condição, que nada se lhe pode adicionar. Em conseqüência, em virtude da sua própria pureza, é um ser distinto de qualquer outro. Por este motivo afirma-se no comentário à nona proposição do livro Sobre as Causas, que a individuação da causa primeira, a qual é puro ser. ocorre por sua pura bondade. Assim como o ser comum em seu intelecto não inclui nenhuma adição, da mesma forma não inclui no seu intelecto qualquer precisão de adição, pois, se isto acontecesse, nada poderia ser compreendido como ser, se nele algo pudesse ser acrescentado. Pelos mesmos motivos, embora Deus seja exclusivamente ser, não segue daí que lhe faltem as demais perfeições ou outras qualidades nobres. Pelo contrário, possui todas as perfeições existentes em todos os gêneros, razão pela qual se denomina o Perfeito pura e simplesmente, como dizem o Filósofo e o seu Comentador no livro V da Metafísica, com a diferença de que possui todas essas perfeições de maneira mais excelsa que as outras coisas, pelo fato de n'Ele todas as perfeições constituírem uma só coisa, ao passo que nas outras coisas são diversas. Esta é a razão pela qual todas essas perfeições Lhe cabem segundo o seu ser simples, assim como se alguém, através de uma só qualidade, pudesse efetuar as operações próprias de todas as qualidades, teria nessa única qualidade todas as outras qualidades. Assim Deus possui no seu próprio ser todas as perfeições existentes. b) De um segundo modo. a essência se encontra concretizada nas substâncias criadas intelectuais, nas quais o ser ou existência difere da essência, embora a essência nelas exista sem a matéria. Daí que o ser dessas substâncias não é absoluto, mas recebido, e por conseguinte limi- quando o acidente sobrevém do sujeito. Aliás, nem a forma substancial possui uma essência completa, como também não a possui a matéria, visto que na definição da forma substancial deve necessariamente entrar aquilo de que é forma (a matéria), de sorte que a definição da forma substancial se obtém pela adição de algo que está fora do seu gênero. O mesmo acontece, analogamente, com a definição da forma acidental. Assim, na definição da alma, o naturalista, que só a considera como forma do corpo físico, coloca o corpo. Contudo, existe uma grande diferença entre as formas substanciais e as formas acidentais, visto que, assim como a forma substancial não possui por si mesma um ser absoluto, independentemente daquilo a que sobrevém, da mesma forma não possui um ser absoluto a matéria, à qual advém a forma. Por isso, é da conjunção de uma e outra (forma e matéria) que resulta aquele ser mediante o qual a coisa subsiste em si mesma, e dos dois elementos surge uma unidade autônoma, sendo da conjunção de uma e de outra que nasce uma certa essência. Conseqüentemente, a forma, embora considerada isoladamente não possua caráter completo de essência, todavia constitui uma parte da essência completa. Ao contrário, aquilo a que sobrevém o acidente já é um ente completo em si mesmo, o qual consiste em seu ser, que certamente antecede o acidente que lhe sobrevém adicionalmente. Por conseguinte, o acidente que sobrevém e se une com a coisa que já existe não é causa deste ser, no qual a coisa subsiste e em virtude do qual a coisa é um ente em si mesmo. O acidente causa na coisa preexistente apenas um ser segundo ou secundário, sem o qual a coisa já pode ser considerada como subsistente em si mesma, da mesma forma que um elemento primário pode ser compreendido sem o secundário, e um predicado sem o sujeito. Em conseqüência do que dissemos, da união de um acidente com um sujeito não se origina um ser uno em si mesmo, mas um ser uno acidentalmente, razão pela qual da conjunção dos dois não resulta uma certa essência, como acontece com a conjunção entre a forma e a matéria, porquanto o acidente não é uma essência completa nem mesmo constitui uma parte de uma essência completa. Logo, assim como o acidente é um ente em sentido apenas analógico, da mesma forma tem uma essência apenas em sentido analógico. 2. Todavia, já que aquilo que se afirma em grau máximo e verdadeiro em qualquer gênero constitui causa daquilo que vem depois naquele gênero, assim como o fogo, no fim do calor, é a causa do calor nas coisas quentes, conforme se lê no segundo livro da Metafísica, por esta razão a substância, que é o princípio no gênero do ente e encerra a essência no sentido máximo e mais verdadeiro, é necessariamente a causa dos acidentes que partilham o conceito de ente em sentido secundário e por assim dizer analógico. Isto acontece de maneira diversa, pelo fato de que as partes da substância são a matéria e a forma, e por este motivo alguns acidentes defluem principalmente da forma, outros defluem principalmente da matéria. Ora, existe alguma forma cujo ser não depende da matéria: tal é a alma intelectual. Ao contrário, a matéria não tem ser senão pela forma. Daí que nos acidentes que defluem da forma existe algo que não tem comunicação com a matéria, assim como, por exemplo, o ato da intelecção, que não se efetua em virtude de um órgão corporal, conforme o demonstra o Filósofo no livro III Sobre a Alma. Existem, porém, acidentes que acompanham a forma e que têm comunicação com a matéria: tal é, por exemplo, o sentir. Não existe, porém, nenhum acidente que acompanhe a matéria e não tenha comunicação com a forma. Contudo, nos acidentes que acompanham a matéria encontra-se uma certa diversidade. Com efeito, alguns acidentes inerem à matéria segundo a ordem que esta tem com respeito a uma forma especial, como o masculino e o feminino nos animais cuja diversidade se reduz à matéria, como se diz no livro X da Metafísica, donde, ao se remover a forma de animal, os mencionados acidentes não permanecem a não ser em sentido equívoco. Ao contrário, alguns acidentes inerem à matéria segundo a ordem que esta tem com respeito à forma geral, razão pela qual, ao se remover esta forma geral, os acidentes permanecem ainda nela. Assim, por exemplo, a negrura da pele está no habitante da Etiópia devido à mistura dos elementos do seu organismo, e não em razão da alma, razão pela qual este acidente da negrura permanece no dito cidadão, mesmo depois da morte dele. E, já que cada coisa é individualizada pela matéria e se engloba no seu gênero ou na sua espécie em virtude da sua forma, por este motivo os acidentes que inerem à matéria são acidentes do indivíduo, e é por eles que os indivíduos da mesma espécie diferem uns dos outros. Ao contrário, os acidentes que inerem à forma constituem propriedades características ou do gênero ou da espécie, motivo pelo qual se encontram em todos os seres que partilham a natureza daquele gênero ou daquela espécie. Assim, o risível (capacidade de rir), no homem, inere à forma, pelo fato de que o riso se origina de um certo tipo de apreensão da alma humana. Importa notar, também, que por vezes os acidentes se originam dos princípios essenciais segundo um ato completo ou perfeito, tal como sucede no fogo, que é sempre quente em ato, ao passo que outras vezes isto ocorre apenas quanto à aptidão. Todavia, os acidentes recebem complemento de um agente externo, tal como acontece com a diafaneidade no ar, que se completa por um corpo lúcido externamente. Em tais casos a aptidão constitui um acidente inseparável. Ao contrário, o complemento que advém de algum princípio existente fora da essência da coisa ou não faz parte da constituição da coisa é separável, tal como sucede com o ato de mover-se e coisas congêneres. 3. Cumpre observar, porém, que os conceitos de gênero, diferença e espécie revestem nos acidentes um sentido diverso do que têm nas substâncias. Com efeito, nas substâncias, é da conjunção da matéria e da forma substancial que surge um ser uno em si mesmo, resultando da união de ambas uma certa natureza, a qual se cataloga em sentido próprio na categoria de substância. Eis por que se diz que, nas substâncias, os nomes ou termos concretos que indicam o composto estão em sentido próprio no gênero, como gêneros ou espécies, homem ou animal. No entanto, nem a forma nem a matéria se encontram deste modo na categoria, exceto redutivamente, assim como os princípios que se consideram como estando no gênero dos principiados. Ao contrário, da conjunção do acidente e do sujeito não resulta uma coisa una em si mesma, e conseqüentemente não nasce da conjunção dos dois elementos uma natureza à qual se possa atribuir o conceito de gênero ou de espécie. Daí que os nomes dos acidentes concretamente mencionados não se incluem na categoria como espécie ou gênero, como o branco ou o musical, a não ser por redução, e mesmo assim só enquanto significam coisas abstratas, como a brancura e a música. E uma vez que os acidentes não se compõem de matéria e forma, por esta razão não se pode, neles, tomar o gênero da matéria, e a espécie da forma, como sucede nas substâncias compostas. Ao contrário, é preciso que o gênero primeiro se tome do mesmo modo do ser, segundo o qual o ente se predica diversamente segundo o primeiro e o posterior dos dez gêneros, como quando se diz quantidade para aquilo que constitui a medida da substância, e qualidade para aquilo que é a disposição da substância, e assim por diante, segundo ensina o Filósofo no livro IV da sua Metafísica. As diferenças, nos acidentes, se tomam da diversidade dos princípios dos quais se originam. E já que as próprias paixões se originam dos próprios princípios do sujeito, por esta razão o sujeito se coloca na definição em lugar da diferença deles, se se definem abstratamente, segundo estão em sentido próprio no gênero, como quando se diz que a aquilinidade é a curvatura do nariz. Aconteceria, porém, o contrário, se se tomasse a definição deles de modo concreto. Assim, o sujeito, na definição destes, funcionaria como se fosse gênero, pois neste caso seriam definidos ao modo das substâncias compostas, nas quais o conceito de gênero deriva da matéria, assim como quando afirmamos que aquilino é o nariz curvo. homem está morto, logo não é mais um homem. Tampouco o verdadeiro é uma disposição que diminua o ente ou tire algo dele, pois do contrário não seguiria o seguinte: é verdadeiro, logo é ente, da mesma forma como não procede dizer: os dentes dele são brancos, logo ele é branco. Tampouco o verdadeiro é uma disposição que limite ou especifique o ente, pois, se o fora. o verdadeiro não seria conversível com o ente. Por conseguinte, o verdadeiro e o ente são exatamente a mesma coisa. 5. Além disso, aquelas coisas cuja disposição é a mesma se equivalem. Ora, o verdadeiro e o ente têm a mesma disposição. Logo, são a mesma coisa. Com efeito, afirma-se no livro II da Metafísica (Aristóteles, texto 4): "A disposição de uma coisa no ser é como a sua disposição na verdade". Logo, o verdadeiro e o ente se equivalem completamente. 6. Além disso, todas as coisas que não se equivalem, diferem entre si de alguma forma. Ora, o verdadeiro e o ente não diferem entre si de maneira alguma. Não diferem pela essência, visto que o ente, pela sua própria natureza, é verdadeiro. Tampouco se diversificam em virtude de outras diferenças, pois teriam que concordar em algum gênero. Logo, o verdadeiro e o ente se equivalem totalmente. 7. Além disso, se o verdadeiro e o ente não fossem exatamente a mesma coisa, necessaria- mente o verdadeiro acrescentaria alguma coisa ao ente. Isto é evidenciado pelo Filósofo (Aristóteles), que no livro IV da Metafísica (comentário 27) afirma: "Ao definirmos o verdadeiro, dizemos ser ele aquilo que é; ou, então, não ser ele aquilo que não é". Portanto, o verdadeiro inclui tanto o ente como o não-ente. Logo, o verdadeiro nada acrescenta ao ente, e conseqüentemente parece identificar-se totalmente com ele. II — CONTRATESE: PARECERIA QUE O VERDADEIRO NÃO E A MESMA COISA QUE ENTE. 1. A tautologia é uma repetição inútil. Ora, se o verdadeiro fosse a mesma coisa que o ente, seria uma tautologia, porquanto se afirma que "um ente é verdadeiro". Ora, é falso dizer que tal afirmação constitui uma tautologia. Logo, o verdadeiro e o ente não exprimem exatamente a mesma coisa. 2. Além disso, o ente e o bom são conversíveis. Ora, o verdadeiro não é conversível com o bom, visto que uma coisa pode ser verdadeira sem ser boa; por exemplo, o fato expresso nesta proposição: este homem está fornicando. Logo, tampouco o verdadeiro é conversível com o ente. 3. Além disso, Boécio afirma no livro Sobre as Semanas: "Em todas as criaturas, o ser (esse) difere daquilo que é (quod est) ". Ora, o verdadeiro segue o ser das coisas. Logo, o verdadeiro se diferencia, nas criaturas, daquilo que é. Ora, aquilo que é, equivale ao ente. Em conseqüência, o verdadeiro, nos seres criados, se diferencia do ente. 4. Além disso, todas as coisas que estão uma para a outra da mesma forma que a anterior está para a posterior necessariamente se diferenciam entre si. Ora, com o verdadeiro e o ente é isto que ocorre, porquanto, segundo se lê no livro Sobre as Causas (proposição 4.a), a primeira das coisas criadas é o ser. E o Comentador (de Aristóteles, isto é, Averroes ou Ibn Roshd), ao glosar o referido livro, diz: "Tudo o que se afirmar para além do ente são predicados ou informações que se adicionam ao ente" e, por conseguinte, lhe são posteriores. Logo, o verdadeiro e o ente se diferenciam um do outro. 5. Além disso, as coisas que se predicam em comum da causa e dos efeitos, identificam-se entre si mais na causa do que nos efeitos, e, sobretudo, identificam-se mais ao serem predicadas de Deus do que ao serem predicadas dos seres criados. Ora, em Deus os quatro elementos, a saber, o ente, o uno, o verdadeiro e o bom, se apropriam ou predicam da forma seguinte: o ente pertence à essência, o uno à pessoa do Pai, o verdadeiro à pessoa do Filho, o bom à pessoa do Espírito Santo. Ora, as pessoas divinas não se diferenciam apenas logicamente, mas realmente, e por conseguinte uma não pode ser predicada da outra. Logo, com muito maior razão se deve dizer que os quatro conceitos mencionados não podem distinguir-se apenas logicamente. III — RESPOSTA À QUESTÃO ENUNCIADA. Assim como nas demonstrações é necessário operar uma redução a um certo número de princípios evidentes à inteligência, o mesmo ocorre ao investigarmos o que é uma determinada coisa. Do contrário se chegaria, tanto em um caso como em outro, ao infinito, o que tornaria totalmente impossíveis a ciência e o conhecimento das coisas. Ora, a primeira coisa que a inteligência concebe como a mais conhecida, e à qual se reduz tudo, é o ente, conforme afirma Avicena no início da sua Metafísica (livro I, capítulo IX). Daí que necessariamente todos os outros conceitos da inteligência se obtêm por adjunção ao ente. Ora, ao ente não se pode acrescentar algo à maneira de uma natureza estranha, assim como, por exemplo, a diferença específica se acrescenta ao gênero, ou o acidente ao sujeito, uma vez que toda natureza é essencialmente um ente. Razão pela qual o Filósofo demonstra (na Metafísica, livro III, comentário 10) que o ente não pode ser um gênero e que só se pode afirmar que certas coisas são passíveis de ser acrescentadas ao ser, no sentido de que exprimem um determinado modo do mesmo, modo que não está expresso no próprio termo ente. A adjunção ao ente pode ocorrer de duas maneiras. A primeira se dá quando o modo expresso constitui um certo modo especial do ente. pois há graus diferentes do ente, e de acordo com eles existem gêneros diversos de coisas. Pois a subs- tância não acrescenta ao ser qualquer diferença que pudesse significar alguma natureza somada ao ente. O termo substância designa antes um certo modo peculiar do ente, isto é, o que é em vir- tude de si mesmo. O mesmo acontece com os outros gêneros. A segunda maneira de adjunção ao ente ocorre quando o modo expresso compete a cada ser de maneira geral. Este modo pode ser compreendido de duas maneiras: primeiro, enquanto ele convém a todo ente considerado em si mesmo; segundo, enquanto convém a todo ente em relação a outro. No primeiro caso, isto significa que o modo exprime no ente algo de maneira afirmativa ou negativa. Ora, não existe nenhuma afirmação positiva e absoluta que se possa atribuir a cada ente, a não ser a sua própria essência, em virtude da qual se denomina ente. Assim é que se dá o nome de coisa, a qual se diferencia do ente, conforme ensina Avicena no início da Metafísica, pelo fato de que o ente deriva da atualidade do ser, ao passo que o termo coisa exprime a "qüididade" (quidditas) ou "entidade" do ente. A negação, porém, que convém de maneira absoluta a todo ente é a indivisão. Esta se exprime pelo termo "uno", visto que o uno outra coisa não é senão um ente indiviso. Se, contudo, o modo do ente for entendido no segundo sentido, isto é, segundo a relação de uma coisa à outra, isto pode ocorrer de dois modos. Primeiro, conforme a divisão ou distinção de uma coisa da outra: é o que se expressa no termo "algo", que etimologicamente significa mais ou menos "outra coisa" (aliud quid). Por conseguinte, assim como o ente se diz uno, enquanto é em si mesmo indiviso, da mesma forma se denomina algo, enquanto se distingue de outros. A outra maneira é segundo a concordância de um ente com o outro. E isto só é possível se se considera alguma coisa apta a concordar com todo e qualquer ente. Tal é a alma, que em certo sentido é tudo, conforme se afirma na obra Sobre a Alma (livro III, texto 37). A alma é dotada de uma faculdade cognoscitiva e outra tendencial (appetitiva), sendo que a concordância do ente com a faculdade tendencial se exprime com o termo "o bem" (bonum), con- forme está dito no livro da Ética: "O bem é aquilo a que tendem todas as coisas". Em contrapartida, a concordância do ente com a inteligência (faculdade cognoscitiva) está expressa no termo "verdadeiro". Com efeito, toda cognição se efetua mediante uma assemelhação do sujeito que conhece com a coisa conhecida, de tal maneira que a assemelhação foi denominada causa da cognição, assim como a visão apreende a cor pelo fato de tornar-se capaz disto pela imagem da respectiva cor. 7. O verdadeiro nada acrescenta ao ente, pois o ente, compreendido de certa maneira, se predica do não-ente, isto é, enquanto o não-ente é apreendido pela inteligência. Daí que, no livro IV da Metafísica (texto 2), o Filósofo afirma que tanto a negação como a privação do ente se denominam entes. Também Avicena diz, no início da Metafísica, que não se pode fazer uma enunciação a não ser do ente, visto que, necessariamente, aquilo acerca de que se faz alguma proposição deve ser apreendido pelo intelecto. Donde se infere que todo verdadeiro é de algum modo um ente. V — RESPOSTA AOS ARGUMENTOS DA CONTRATESE. 1. Ao denominar-se um ser verdadeiro, não se incide em tautologia. pois com o termo verdadeiro se exprime algo que não está ainda contido no termo ente. A razão da não-tautologia não está em que o ente e o verdadeiro se diferenciem realmente. 2. Embora seja um mal este homem estar fornicando, todavia, pelo fato de possuir algo do ente, conaturalmente tem capacidade de estar em conformidade com a inteligência, e por isso contém a noção de verdadeiro. Por conseguinte, não ultrapassa o ente nem é por ele ultrapassado. 3. Quando se afirma que "o ente difere daquilo que é", distingue-se o ato de ser daquilo a que compete este ato. Ora, o conceito de ente toma-se do ato de ser, e não daquilo a que compete o ato de ser, e por conseguinte o argumento não procede. 4. O verdadeiro é posterior ao ente, no sentido de que o conceito de verdadeiro difere do de ente da maneira acima exposta. 5. O argumento apresenta três falhas. a) Embora as três pessoas divinas se diferenciem entre si por distinção real, as coisas apropriadas a cada pessoa não diferem realmente, mas apenas na ordem lógica. b) Embora as três pessoas se distingam realmente uma da outra, todavia não se distinguem do ente. Logo, tampouco o verdadeiro atribuído à pessoa do Filho se distingue realmente do ente que está da parte da essência. c) Embora o ente, o verdadeiro, o uno e o bom se identifiquem, em Deus, mais do que nas coisas criadas, não é necessário que, pelo fato de se distinguirem logicamente em Deus, nas criaturas se distingam também realmente. Isto acontece com aquelas coisas que pelo seu próprio conceito não se identificam, tais como a sabedoria e o poder, os quais, embora em Deus constituam uma só coisa, nas criaturas se distinguem realmente. Ora, o ente, o verdadeiro, o bom e o uno, pelo seu conceito, se identificam. Daí que, onde quer que se encontrem concretizados, constituem realmente uma só coisa, embora seja mais perfeita a unidade quando se encontram em Deus do que quando se encontram nas criaturas. ARTIGO SEGUNDO A verdade encontra-se primariamente na inteligência ou nas coisas? I — TESE: PARECERIA QUE A VERDADE SE ENCONTRA PRIMARIAMENTE NAS COISAS, E NÃO NA INTELIGÊNCIA. 1. Conforme expusemos no artigo I, o verdadeiro é conversível com o ente. Ora, o ente se encontra antes de tudo fora da inteligência. Logo, também o verdadeiro se encontra antes fora da inteligência, ou seja, nas próprias coisas. 2. Além disso, as coisas não estão na inteligência pela sua essência, mas pela sua imagem (species), como se lê no livro III da obra Sobre a Alma (comentário 38). Se a verdade se encontrasse primariamente na inteligência, a verdade não constituiria a essência da coisa mas apenas uma semelhança ou imagem dela, e o verdadeiro seria apenas uma imagem do ente existente fora do intelecto. Ora, a imagem da coisa, que existe na inteligência, não se predicaria da coisa existente fora da inteligência, como também não seria conversível com ela. Portanto, tampouco o ver- dadeiro seria conversível com o ente, o que é falso. 3. Além disso, tudo aquilo que está em alguma coisa é posterior à coisa na qual está. Se, portanto, a verdade estivesse antes na inteligência do que nas coisas, o juízo sobre a verdade ocorreria segundo o parecer da inteligência. Com o que se voltaria ao erro dos filósofos antigos, segundo os quais tudo o que alguém opina é verdadeiro, e duas afirmações contraditórias seriam verdadeiras ao mesmo tempo. Ora, isto é absurdo. 4. Além disso, se a verdade residisse primariamente na inteligência, seria necessário que uma coisa que pertence à compreensão da verdade fizesse parte da definição da própria verdade. Ora, Agostinho recusa tais definições da verdade no livro dos Solilóquios (livro II, capítulos IV e V); por exemplo, a seguinte: "Verdadeiro é aquilo que é como aparece". Com efeito, se esta defi- nição fosse correta, não seria verdadeiro o que não aparece. Ora, isto é falso em se tratando das pedrinhas mais escondidas que se encontram nas entranhas da terra. Agostinho rejeita também esta definição: "Verdadeiro é aquilo que é tal qual aparece ao sujeito cognoscente, se este quiser e puder conhecer". Com efeito, segundo esta definição, uma coisa deixaria de ser verdadeira, se o sujeito cognoscente não quisesse ou não pudesse conhecê-la. O mesmo aconteceria com quaisquer outras definições da verdade, nas quais se colocasse alguma referência necessária à inteligência. Por conseguinte, a verdade não está primariamente na inteligência. II ---- CONTRATESE PARECERIA QUE A VERDADE RESIDE PRIMARIAMENTE NA INTELIGÊNCIA, E NÃO NAS COISAS. 1. O Filósofo afirma no livro VI da Metafísica (comentário 8.°): "O verdadeiro e o falso existem só na inteligência". 2. Além disso, a verdade consiste na conformidade entre a coisa e o intelecto. Ora, esta conformidade só pode residir no intelecto. Logo, também a verdade só pode residir na inteligência. III — RESPOSTA A QUESTÃO ENUNCIADA. Quando se predica algo de alguma coisa antes das outras, não é necessário que o objeto ao qual se atribui antes o predicado comum seja a causa dos outros, senão que a causa ê aquilo no qual se encontra primeiro a noção completa deste predicado comum. Assim, por exemplo, a sanidade é predicada antes de tudo do animal, no qual por primeiro se verifica o conceito completo de sanidade, embora também o remédio se possa qualificar como sadio, pelo fato de gerar sanidade. Conseqüentemente, já que o verdadeiro se predica de muitas coisas, em sentido primário e em sentidos secundários, necessariamente se predica prioritariamente daquilo em que a noção de verdade se encontra em sua plenitude. Ora, o complemento ou plenitude de qualquer movimento é constituído pelo seu fim ou termo. O movimento da faculdade cognoscitiva encontra o seu termo na inteligência, pois a coisa conhecida deve necessariamente encontrar-se na inteligência que conhece, segundo o modo característico desta última. Ao contrário, o termo da faculdade tenencial são as coisas, razão pela qual o Filósofo, em sua obra Sobre a Alma (livro III, comentário 54 e seguinte), estabelece um certo circuito nos atos da alma e da inteligência, no sentido de que o objeto que está fora da inteligência põe em movimento a inteligência; o objeto conhecido, por sua vez, desperta a faculdade tendencial (appetitiva), e esta faz com que a inteligência retorne ao objeto, do qual partiu todo o movimento do processo cognoscitivo. E já que o bem, conforme ficou demonstrado no artigo anterior, está correlacionado à faculdade tendencial, ao passo que o verdadeiro se relaciona com a inteligência, afirma o Filósofo (Metafísica, livro VI, comentário 9.°) que o bem e o mal se encontram nas coisas, ao passo que o verdadeiro e o falso residem na inteligência. Ora, uma coisa só se diz verdadeira na medida em que concorda com a inteligência que a conhece. Por conseguinte, o verdadeiro se encontra primeiramente na inteligência, e só depois nas coisas. 2. Além disso, a verdade consiste na conformidade da coisa com o intelecto. Ora, assim como o intelecto sintetizante e analisante pode pôr-se em conformidade com as coisas, da mesma forma o pode a inteligência que compreende as qüididades das coisas. Logo, a verdade não está exclusivamente no intelecto sintetizante e analisante. II — CONTRATESE: PARECERIA QUE A VERDADE RESIDE EXCLUSIVAMENTE NO INTELECTO SINTETIZANTE E ANALISANTE. 1. No livro VI da Metafísica (comentário 8.°) lê-se o seguinte: "O verdadeiro e o falso não estão nas coisas, mas na inteligência. Nos elementos simples, contudo, nem mesmo o que alguma coisa é, está na mente". 2. Além disso, no livro III da obra Sobre a Alma se lê que a inteligência das coisas indivisí- veis reside naquelas coisas, nas quais não há nem verdade nem falsidade. III — RESPOSTA A QUESTÃO ENUNCIADA. Assim como o verdadeiro se encontra antes na inteligência do que nas coisas, da mesma forma reside antes na atividade do intelecto sintetizante e analisante do que na do intelecto formador das essências ou qüididades das coisas. Com efeito, o conceito de verdade consiste na concordância entre a coisa e o conhecimento. Ora, uma e mesma coisa não pode concordar consigo mesma, porém é uma concordância de coisas diversas. Em conseqüência, o conceito de verdade se verifica na inteligência primariamente no instante em que esta começa a possuir algo de próprio, que a coisa existente fora da inteligência não possui, mas que corresponde ao objeto, de modo que possa surgir a concordância entre ambos (a inteligência e a coisa). Ora, o intelecto que forma as qüididades das coisas só possui uma imagem do objeto exis- tente fora do espírito, como acontece com os sentidos, que apreendem as imagens das coisas sensíveis. No momento, porém, em que a inteligência começa a fazer um julgamento sobre a coisa apreendida, este julgamento constitui algo de próprio do intelecto, algo que não se encontra no próprio objeto. Quando aquilo que está na coisa extrínseca concorda com o julgamento da inteligência, diz-se que o julgamento é verdadeiro. Ora, o intelecto formula o seu julgamento sobre o objeto apreendido, no momento em que diz que alguma coisa é ou não é, sendo que esta é a função do intelecto sintetizante e analisante. Baseado nisto, o Filósofo afirma em sua Metafísica (livro VI, texto 8.°) que a síntese e a análise estão na inteligência e não nas coisas. Daí que a verdade reside primariamente na atividade sintetizante e analisante da inteligência. Secundária e posteriormente, o verdadeiro se encontra no intelecto formulador de definições. Conseqüentemente, uma definição se diz verdadeira ou falsa, ocorrendo esta última quando se define uma coisa como sendo o que não é, como por exemplo quando se atribui ao triângulo a definição do círculo. A definição é também falsa, quando não é possível combinar ou concordar entre si as partes que a compõem. Assim, por exemplo, quando se define algo como sendo um ser vivente destituído de sensibilidade, a composição ou síntese que se pretende com isto afirmar é falsa, pois não existe ser vivente destituído de sensibilidade. Ora, uma definição só se diz verdadeira ou falsa com referência à componibilidade ou síntese entre as partes que a compõem, da mesma forma como a coisa se diz verdadeira em referência ao intelecto. Do acima exposto evidencia-se o seguinte: o verdadeiro se predica antes de tudo em relação à atividade sintetizante ou analisante da inteligência; em seguida, das definições das coisas, conforme a síntese nelas contida for verdadeira ou falsa; em terceiro lugar, o verdadeiro se predica das coisas enquanto concordam com a inteligência divina ou têm aptidão natural a concordar com o intelecto humano; em quarto lugar predica-se do homem, que pode escolher suas proposições, verdadeiras ou falsas, ou que, no que diz ou faz, formula a respeito de si mesmo ou de outros um juízo verdadeiro ou falso. Ora, a verdade se predica dos termos, do mesmo modo que se predica dos conhecimentos expressos pelos termos. IV — RESPOSTA AOS ARGUMENTOS DA TESE. 1. Embora a formação das qüididades (definições) constitua a primeira operação da inteli- gência, todavia o intelecto não tem, em virtude dela, algo mais de próprio que possa estar em conformidade com a coisa. Por conseguinte, a verdade não reside propriamente nesta operação da inteligência. 2. A resposta se deduz do ponto acima. ARTIGO QUARTO Haverá uma só verdade, em virtude da qual todas as coisas são verdadeiras? I — TESE: PARECERIA QUE HÁ UMA só VERDADE DA QUAL DERIVAM TODAS AS OUTRAS. 1. Anselmo diz no livro Sobre a Verdade (capítulo XIV) que, assim como o tempo está para tudo o que é temporal, da mesma forma a verdade está para todas as coisas verdadeiras. Ora, o tempo está para todas as coisas temporais de maneira tal, que há um tempo só. Logo, também a verdade está para todas as coisas verdadeiras de maneira tal, que existe uma só verdade. 2. Todavia, a verdade reveste uma dupla acepção. No primeiro sentido, a verdade identifica-se com a essência de uma coisa, conforme a definição de Agostinho no livro dos Solilóquios (livro V): "Verdadeiro é aquilo que é". Por conseguinte, já que existem muitas essências, deve haver também muitas verdades. Na segunda acepção, a verdade se define enquanto se exprime na inteligência, conforme a definição de Hilário: "O verdadeiro é declarador do ser". Assim, visto que nada pode manifestar algo ao intelecto a não ser conforme a virtude da Verdade Primeira divina, todas as verdades constituem de certo modo uma só coisa ao moverem a inteligência, da mesma forma que todas as coisas constituem uma só coisa ao moverem a visão, isto é, enquanto movem a visão sob o aspecto de uma só coisa,a luz. —Argumento em contrário:o tempo é numericamente um só, em tudo o que é temporal. Se, portanto, a verdade está para as coisas verdadeiras da mesma forma que o tempo está para as coisas temporais, necessariamente haverá uma só verdade numérica para todas as coisas verdadeiras. Não é. suficiente que todas as verdades constituam uma só coisa ao moverem a inteligência, ou que constituam uma só coisa em seu exemplar. 3. Além disso, Anselmo raciocina da maneira seguinte no livro Sobre a Verdade (capítulo XIV): Se a muitas coisas verdadeiras corresponderem muitas verdades, concluir-se-á que as ver- dades variam de acordo com o variar das coisas verdadeiras. Ora, as verdades não variam con- forme variam as coisas verdadeiras, pois, mesmo quando perecem as coisas verdadeiras e as coi- sas retas, continuam a subsistir a verdade e a retidão, em virtude das quais as coisas são verdadeiras ou retas. Por conseguinte, existe uma só verdade. Anselmo demonstra a premissa menor da maneira seguinte: perecendo o elemento signifi- cado, ainda permanece a retidão da significação, visto que o que é reto existe para que seja signifi- cado aquilo que aquele sinal significava. Pela mesma razão, perecendo qualquer coisa verdadeira ou reta, a sua retidão ou verdade continua a existir. 4. Além disso, nas coisas criadas nenhuma verdade é a sua própria verdade, assim como a verdade do homem não é o homem, e a verdade da carne não ê a carne. Ora, todo ente criado é das coisas contingentes. Ora, a diferença e a pluralidade no modo de reproduzir o modelo- projeto divino implica uma diferença ou pluralidade também nas coisas criadas. Logo, analogamente se dirá que as verdades criadas são múltiplas e diferentes. 7. Além disso, a verdade consiste na conformidade entre a coisa e a inteligência. Ora, sendo as coisas de espécies diferentes e múltiplas, não pode existir uma só conformidade entre a coisa e o intelecto, senão que deve haver conformidades múltiplas, correspondentes à multiplicidade das coisas. Logo, já que as coisas verdadeiras são de espécies diferentes, não pode existir uma verdade única para muitas coisas verdadeiras. 8. Além disso, Agostinho ensina no livro XII Sobre a Trindade (capítulo XI): "Deve-se crer que a natureza da inteligência humana está de tal modo relacionada com as coisas inteligíveis, que enxerga tudo o que conhece sob uma certa luz sui generis". Ora, a luz sob a qual o intelecto humano tudo vê é a verdade. Logo, a verdade pertence ao gênero da própria inteligência, e por- tanto é necessário que cada coisa criada constitua uma verdade. Conseqüentemente, a cada coisa criada corresponde uma verdade. III — RESPOSTA A QUESTÃO ENUNCIADA. Conforme se evidencia do que precede (cf. artigo segundo), a verdade reside, em sentido próprio, na inteligência divina ou na humana, assim como a sanidade se encontra no ser vivente. Nas outras coisas a verdade se encontra pela relação que estas têm com o conhecimento, da mesma forma que a certas outras coisas atribuímos a sanidade, pelo fato de elas operarem ou receberem a sanidade. Por conseguinte a verdade reside na inteligência de Deus em sentido próprio e primário, na inteligência humana em sentido próprio e secundário; nas coisas, a verdade se encontra em sentido impróprio e secundário, isto é, só com referência a uma das duas verdades que acabamos de mencionar (a verdade existente na mente divina e a existente no intelecto humano). A verdade do conhecimento divino é, portanto, uma só, derivando dela uma pluralidade de verdades para a inteligência humana, da mesma forma que de uma só face de homem deriva uma pluralidade de imagens no espelho, segundo a glosa de Agostinho ao salmo 11, versículo 2.°: "As verdades foram desvalorizadas pelos filhos dos homens". Ao contrário da verdade divina, a verdade que reside nas coisas é múltipla, assim como é múltipla a essência das coisas. A verdade que se predica das coisas enquanto relacionadas com o intelecto humano é de certo modo acidental às coisas, visto que estas permaneceriam em sua essência, na hipótese de que a inteligência humana não existisse nem pudesse existir. Ao contrá- rio, a verdade que se predica das coisas enquanto relacionadas com a inteligência de Deus reside nelas indissoluvelmente, visto que não podem subsistir a não ser pela inteligência divina, que as produz e as mantém no ser. Conseqüentemente, a verdade reside nas coisas, antes pela sua relação com o intelecto divino do que pela sua relação com a inteligência humana, pois com respeito ao intelecto divino as coisas criadas são efeitos, ao passo que com respeito à inteligência humana são causas, pois é delas que a inteligência humana haure o seu conhecimento. Se, por conseguinte, por verdade no sentido próprio se entende aquela à luz da qual todas as outras coisas são em sentido primário verdadeiras, conclui-se que todas as coisas que são verdadeiras são-no em virtude de uma única verdade, que é a da inteligência de Deus. É neste sentido que Anselmo fala da verdade no livro Sobre a Verdade (capítulos VIII e XII). Ao contrário, se por verdade no sentido próprio se entende aquela em virtude da qual as coisas se denominam verdadeiras em sentido secundário, existe uma pluralidade de verdades, em correspondência à pluralidade de inteligências. Se, porém, se considerar a verdade em sentido impróprio, verdade segundo a qual todas as coisas se denominam verdadeiras, neste caso existem muitas verdades, embora a cada coisa corresponda uma só verdade. Todavia, as coisas se denominam verdadeiras segundo a verdade que habita na inteligência divina ou na humana (assim como um determinado alimento se diz saudável em força da sanidade contida no ser vivente, e não em virtude de uma forma eventualmente inerente a ele). Toda coisa se denomina verdadeira segundo a verdade que reside na própria coisa (verdade esta que não é outra coisa senão a essência, a qual concorda com a inteligência ou faz esta última concordar com ela) à guisa de uma forma inerente, da mesma maneira que um alimento se denomina saudável em virtude de uma qualidade que lhe é própria e que precisamente faz com que o alimento se denomine saudável. IV — RESPOSTA AOS ARGUMENTOS DA TESE. 1. O tempo está para as coisas temporais do mesmo modo que a medida ou critério comensurante está para a coisa comensurada. Logo, é evidente que na citada passagem Anselmo fala daquela verdade que constitui apenas o critério ou medida comensurante de todas as coisas. Esta verdade, realmente, é uma só, assim como o tempo é um só, como se conclui no segundo argumento. Em contrapartida, a verdade que reside na inteligência humana ou nas próprias coisas não está para as coisas como o critério extrínseco e comum para as coisas medidas ou comensuradas, mas está para as coisas, ou como o elemento comensurado está para o critério comensurante (tal é o caso da verdade existente no intelecto humano, sendo que aqui a verdade variará necessaria- mente de acordo com a variação das coisas), ou como critério ou medida extrínseca. Tal é o caso da verdade existente nas próprias coisas. Ora, também estas medidas ou critérios comensurantes são necessariamente múltiplos, de acordo com a multiplicidade das coisas comensuradas, assim como a corpos diversos correspondem dimensões diversas. 2. Concedemos o que afirma este argumento. 3. A verdade que permanece, ao perecerem as coisas, é a verdade existente na inteligência divina. Esta verdade é numericamente uma só. Ao contrário, a verdade que reside nas coisas ou na inteligência humana varia conforme variam as coisas. 4. A afirmação de que nenhuma coisa é a sua própria verdade vale para as coisas que têm o ser completo na natureza, da mesma forma que a afirmação de que nenhuma coisa é o seu pró- prio ser. E, contudo, o ser de uma coisa é algo criado. Da mesma forma, a verdade de uma coisa é algo criado. 5. A verdade sob cuja luz a inteligência humana tudo julga é a Verdade Primeira. Pois, assim como da verdade da mente divina derivam para a inteligência dos anjos as imagens infusas das coisas, a cuja luz os anjos compreendem tudo o que compreendem, da mesma forma deriva da verdade do intelecto de Deus, à guisa de modelo, a verdade dos primeiros princípios, à luz dos quais a nossa inteligência formula os seus juízos sobre tudo. E uma vez que só podemos formular os nossos juízos a partir da verdade dos referidos princípios, na medida em que tal verdade constitui um espelho da Verdade Primeira, dizemos que julgamos tudo a partir da Verdade Primeira. 6. A verdade imutável de que fala Agostinho é a Verdade Primeira. Esta, realmente, não é perceptível aos sentidos nem constitui algo criado. 7. Deve-se dizer que mesmo a verdade criada nada encerra que se assemelhe ao falso, embora toda coisa criada carregue em seu bojo algo que se assemelha à falsidade. Com efeito, diz- se que cada coisa criada encerra algo de semelhante à falsidade, enquanto apresenta deficiências (próprias de tudo quanto é criado). Contudo, a verdade reside na coisa criada, não enquanto esta encerra deficiências, mas enquanto se liberta das mesmas e está em conformidade com a Verdade Primeira. V — RESPOSTA AOS ARGUMENTOS DA CONTRATESE. 1. No sentido próprio, a semelhança reside em cada uma das duas coisas comparadas. Ao contrário, a verdade, por constituir uma concordância entre a inteligência e a coisa, não reside, no sentido próprio, em ambas (na inteligência e na coisa), mas só no intelecto. Ora, como só existe pode compreender alguma coisa, se não compreender que a coisa é verdadeira. Logo, a verdade das proposições é eterna. 6. Além disso, Anselmo argumenta da seguinte maneira no Monológio (capítulo XVII): "Quem for capaz, reflita e diga quando esta verdade teve início ou quando deixou de ser". 7. Além disso, o que agora é futuro, sempre foi futuro, e o que foi passado, sempre será passado. Ora, se assim é, uma proposição referente ao futuro é verdadeira, visto que é algo futuro, e igualmente uma proposição referente ao passado é verdadeira, visto que é algo passado. Logo, a verdade de uma proposição referente ao futuro sempre existiu, e a verdade de uma proposição referente ao passado sempre existirá. Conseqüentemente, não só a Verdade Primeira é eterna, mas muitas outras também o são. 8. Além disso, Agostinho afirma no livro Sobre o Livre Arbítrio que não existe nada mais eterno do que estas duas verdades: a idéia do círculo, e dois mais três são cinco. Ora, estas duas verdades são verdades criadas. Logo, existem outras verdades eternas, além da Verdade Primeira. 9. Além disso, para que um enunciado seja verdadeiro, não se exige que uma coisa seja enunciada em ato, mas basta que exista realmente a coisa acerca da qual se pode fazer a enunciação. Ora, antes que o mundo fosse, houve, além de Deus, algo acerca do qual se podia fazer uma enunciação. Ora, tudo o que existiu antes do mundo é eterno. Logo, a verdade das enunciações é eterna. Demonstração da premissa média. O mundo foi feito do nada, isto é, depois da existência do nada. Logo, antes que o mundo fosse, existia o não-ser. Ora, uma enunciação verdadeira não se faz só acerca de alguma coisa que existe, mas também acerca de uma coisa que não existe, pois, assim como se pode enunciar que aquilo que é, existe, da mesma forma se pode enunciar que aquilo que não é, não existe. Por conseguinte, antes que o mundo fosse, já havia alguma coisa acerca da qual se podia fazer uma anunciação verdadeira. 10. Além disso, tudo aquilo que é conhecido, é verdadeiro enquanto é conhecido. Ora, Deus conheceu todas as proposições desde a eternidade. Logo, todas as proposições são verdadeiras desde a eternidade, e por conseguinte existem muitas verdades eternas. 11. Ao argumento acima se poderia objetar o seguinte. O argumento não demonstra que as coisas são verdadeiras em si mesmas, senão apenas na inteligência divina. A isto se pode contra-objetar: é necessário que as coisas conhecidas sejam verdadeiras conforme são conhecidas. Ora, as coisas são conhecidas por Deus desde toda a eternidade não somente conforme estão presentes na inteligência divina, mas enquanto existem na sua própria natureza. A este propósito cabe citar o livro inspirado do Eclesiástico, capítulo XXIII, versículo 29: "Ao Senhor nosso Deus são conhecidas todas as coisas antes que fossem criadas, assim como as conhece depois da criação das mesmas". Conseqüentemente, Deus conhece as coisas, depois de criadas, da mesma forma que as conheceu antes da sua criação. Logo, desde toda a eternidade existiram muitas verdades, não somente na inteligência de Deus, mas também em si mesmas. 12. Além disso, diz-se sem restrições que alguma coisa é ou existe, conforme está na sua efetivação. Ora, o conceito de verdade se efetiva na inteligência. Se, portanto, se pode dizer sem restrições que desde toda a eternidade houve muitas coisas verdadeiras no intelecto divino, deve- se admitir que há muitas verdades eternas. 13. Além disso, no dizer do Livro da Sabedoria, (capítulo I, versículo 15), "a justiça é perpé- tua e imortal". Ora, a verdade constitui parte da justiça, como diz Túlio Cícero na sua Retórica (livro II Sobre a Invenção). Logo, a verdade é perpétua e imortal. 14. Além disso, os conceitos universais são perpétuos e incorruptíveis. Ora, o verdadeiro é sumamente universal, por ser conversível com o ente. Logo, a verdade é perpétua e incorruptível. 15. Ao argumento acima se poderia objetar que o conceito universal, embora não se cor- rompa por si mesmo, corrompe-se acidentalmente. A isto se pode observar o seguinte, insistindo no argumento: uma coisa deve ser designada mais pelo que ela é em si mesma do que pelo que é acidentalmente. Se, portanto, a verdade é perpétua e incorruptível em si mesma, e só se corrompe e é gerada acidentalmente, deve-se admitir sem restrições que a verdade é universalmente eterna, ou, por outra, que todas as verdades são eternas. 16. Além disso, Deus sempre foi anterior ao universo, e isto desde toda a eternidade. Logo, a relação de prioridade ou anterioridade (com respeito ao universo criado) existiu em Deus desde a eternidade. Ora, afirmando-se um dos termos da relação, deve-se necessariamente afirmar também o outro. Logo, também a posterioridade do mundo em relação a Deus (ou seja, o fato de o universo ser posterior a Deus no tempo) é eterna. Logo, de certo modo existe, fora de Deus, algo que é eterno, algo que é verdadeiro. Conseqüentemente, o fato de o universo ser posterior a Deus constitui uma verdade eterna. 17. Ao argumento acima se poderia objetar o seguinte. A mencionada relação de anteriori- dade e posterioridade não constitui algo fundado na natureza das coisas mas apenas na razão humana. A isto se responderá o seguinte, invocando Boécio no final da obra A Consolação da Filosofia (livro V, última prosa): Deus é por natureza anterior ao mundo, mesmo que este existisse desde a eternidade. Logo, a mencionada relação de prioridade é uma relação fundamentada na própria natureza, e não apenas na razão humana. 18. Além disso, a verdade da significação é a retidão da significação. Ora, desde toda a eternidade foi correto que alguma coisa é significada. Logo, a verdade da significação existiu desde toda a eternidade. 19. Além disso, foi verdadeiro desde toda a eternidade que o Pai gerou o Filho e que o Espírito Santo procedeu de ambos. Ora, as verdades contidas na frase anterior são múltiplas (no mínimo duas, a saber: que o Filho foi gerado pelo Pai, e que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho). Logo, existe mais do que uma verdade eterna. 20. Ao referido argumento se objetará: essas verdades são tais em virtude de uma única verdade. Logo, o argumento não obriga a admitir a existência de mais de uma verdade eterna. A isto se replicará: uma é a razão ou verdade, em virtude da qual o Pai é Pai e gera o Filho, outra é a razão ou verdade, em virtude da qual o Filho é Filho e produz o Espírito Santo. Logo, estas duas proposições não são verdadeiras em virtude de uma única verdade. 21. Além disso, embora o ser homem e o ter capacidade para rir sejam conversíveis, todavia não se exprime uma e mesma verdade ao enunciar as duas proposições seguintes: a) O homem é homem; b) O homem é um ser capaz de rir. Com efeito, o termo homem exprime uma realidade diferente da que é expressa pelo termo "capaz de rir" (risibile). Da mesma forma (reforçando o argumento anterior), a propriedade expressa pelo termo Pai não é a mesma que a expressa pela palavra Filho. Logo, as citadas proposições não encerram uma só verdade, mas várias. 22. Ao mencionado argumento se replicará: as proposições acima citadas não existiram desde toda a eternidade. Contra-réplica: sempre que houver uma inteligência capaz de fazer uma anunciação, a anunciação pode existir. Ora, desde toda a eternidade existiu uma inteligência divi- na que compreendeu que o Pai é Pai, e o Filho é Filho. Isto equivale a dizer que desde toda a eternidade existiu uma inteligência divina que enunciou ou pronunciou as citadas proposições, visto que, segundo Anselmo (Monológio, capítulo XXX), para a Inteligência Suprema o dizer (enunciar, pronunciar) equivale ao compreender. Logo, as mencionadas proposições existiram desde toda a eternidade. II — CONTRATESE: PARECERIA NÃO EXISTIR NENHUMA OUTRA VERDADE ETERNA, ALEM DA VERDADE PRIMEIRA INCRIADA. 1. Nenhuma coisa criada é eterna. Ora, todas as verdades, exceto a Primeira, são criadas. Logo, só a Verdade Primeira é eterna. Com efeito, o próprio objeto, em virtude da imagem que contém, concorda com a inteli- gência divina, assim como o produto da arte humana concorda com o projeto ou desenho origi- nal. Em virtude da sua imagem, o objeto é apto para fazer o nosso conhecimento concordar com ele, enquanto, mediante a sua imagem, acolhida pelo espírito, é apreendido pela inteligência. Consideremos agora aquilo que não existe fora da alma: não contém em si nada que possa fazer com que concorde com a inteligência divina, nem nada mediante o qual possa ser apreen- dido pela mente humana. Se, portanto, tal coisa pode concordar com alguma inteligência cognoscente, isto não se deve ao não-ser em si, mas ao intelecto, o qual acolhe em si a idéia do não-ser. O objeto real, que constitui algo de positivo existente fora da inteligência, este sim encerra algo em virtude do qual pode ser denominado verdadeiro. Com o não-ser da coisa não ocorre isto, pois tudo o que lhe for atribuído procede da inteligência. Quando, portanto, a inteligência fala do não-ser da verdade, isto é verdade, pois, se a verdade aqui subentendida vale do não-ser, não lhe compete nada fora da inteligência. Por isso, à destruição da verdade que se encontra na coisa segue apenas o ser da verdade que está exclusiva- mente na inteligência. Disto, por conseguinte, só se pode concluir para a verdade que está no intelecto, a qual verdade é eterna. Esta verdade reside necessariamente na inteligência divina, a qual é a verdade eterna. Por conseguinte, o argumento aduzido prova precisamente que só a Verdade Primeira é eterna. 3. A resposta segue do que acabamos de expor. 4. A resposta segue do que foi exposto no ponto 2. 5. É impossível conceber uma não-existência pura e simples da verdade. Pode-se, contudo, imaginar que não houvesse nenhuma verdade criada, da mesma forma que se poderia imaginar que não houvesse nenhuma coisa criada. Com efeito, a inteligência pode imaginar que não existe ou não conhece, embora não possa imaginar sem existir e sem conhecer. Pois o intelecto não precisa necessariamente entender tudo o que encerra em si, visto que nem sempre reflete sobre si mesmo. Conseqüentemente, não é absurdo a inteligência imaginar a não-existência da verdade criada, sem a qual não pode conhecer. 6. e 7. O que é futuro ainda não existe (é não-ente) enquanto tal, o mesmo acontecendo com o que é passado, enquanto tal. Por conseguinte, assim como da verdade do não-ser não se pode concluir a eternidade de qualquer outra verdade que não seja a Verdade Primeira (cf. supra), da mesma forma esta conclusão não se pode haurir da verdade do passado e do futuro. 8. As palavras de Agostinho devem entender-se no sentido de que as mencionadas verdades são eternas enquanto estão na inteligência divina. Ou então o termo eterno é tomado como sinônimo de perpétuo. 9. Embora se possa fazer uma anunciação verdadeira tanto acerca do ente como acerca do não-ente, a relação que o ente e o não-ente têm com a verdade não é a mesma, conforme se depreende do que já dissemos (na resposta ao argumento número 22). 10. Desde toda a eternidade Deus conheceu muitas proposições ou enunciados, mas os conheceu em virtude de uma única compreensão ou conhecimento. Em conseqüência, só existiu uma verdade, desde toda a eternidade. Em virtude dessa única verdade, foi e é verdadeiro o conhecimento que Deus teve e tem de muitas coisas que só aconteceriam no futuro. 11. Do que expusemos acima (no item ou inciso III) se conclui que a inteligência está em conformidade não só com as coisas que existem atualmente, mas também com as que não existem atualmente. Isto ocorre sobretudo no caso da inteligência divina, para a qual o passado e o futuro se identificam. Por conseguinte, embora as coisas não tenham existido em sua própria natureza desde a eternidade, o intelecto divino, este sim, esteve eternamente em conformidade com as coisas que só existiriam realmente no futuro. Conseqüentemente, Deus possui desde toda a eternidade um conhecimento verdadeiro das coisas, também na própria natureza das coisas, embora as verdades das próprias coisas não tenham existido desde toda a eternidade. 12. Embora o conceito de verdade se efetive na inteligência, o mesmo não acontece com o conceito da própria coisa. Portanto, embora concedamos sem restrições que a verdade de todas as coisas, pelo fato de estar na inteligência divina, existiu desde toda a eternidade, não podemos conceder sem restrições que as coisas, pelo fato de existirem na inteligência divina, foram verdadeiras desde sempre. 13. Os dizeres do Livro da Sabedoria entendem-se da justiça divina. Ou então, se se tratar da justiça humana, denomina-se perpétua na mesma acepção que as coisas naturais, assim como dizemos que o fogo sempre vai para cima, como por instinto natural, a não ser que haja um obstáculo. E já que a virtude, no dizer de Túlio Cícero (livro II Sobre a Invenção), é um hábito consentâneo à natureza da razão, a virtude, pela sua natureza, tende incessantemente ao ato que lhe é próprio, embora por vezes seja impedida de fazê-lo. Por isso se lê no início da obra intitulada Digesta (ou Pandectae) — Digesto Antigo, livro I, título I, lei número 10 — que a justiça consiste na "vontade constante e perpétua de dar a cada um o que lhe compete". Todavia, a verdade de que estamos falando não constitui parte da justiça, mas reveste sentido diferente, conforme se depreende do acima exposto (no item III). 14. Se o conceito universal é denominado perpétuo e imperecível, Avicena o explica de duas maneiras: ou porque se denomina assim no sentido dos conceitos particulares, os quais, na opinião dos que professam ser o mundo eterno, nunca começaram nem deixarão de existir; ou, então, no sentido de que não perece por si mesmo, mas acidentalmente, por perecer o indivíduo. 15. De per si, pode-se atribuir algo a alguma coisa de duas maneiras. Primeiro, positiva- mente, assim como às chamas se atribui a propriedade de subirem. Quando for este o caso, é cor- reto afirmar que uma coisa é designada mais pelo que ela é em si mesma do que pelo que é acidentalmente. Com efeito, é mais comum dizer que as chamas sobem e como tais são catalogadas com as outras coisas que sobem, do que dizer que as chamas vão para baixo, embora acidentalmente o fogo possa pingar para baixo, como no caso do ferro incandescente. Outras vezes, a atribuição se faz por via de remoção, isto é, removendo daquelas coisas o que conaturalmente tende a introduzir uma disposição contrária. Neste caso, se acidentalmente ocorrer à coisa algo disto, aquela disposição contrária se poderá enunciar da coisa sem restrição. Assim, a unidade, de per si, se atribui à matéria primeira, não porque esta possuísse alguma forma de unidade, mas por via de remoção das formas diversificantes. Daí que, quando ocorrem formas que diferenciam a matéria, dizemos com maior facilidade que as matérias são múltiplas do que unas. E o que ocorre no caso do argumento aduzido. Com efeito, o universal não se denomina imperecível no sentido de que possuísse em si mesmo uma forma de imortalidade, mas porque não possui por sua própria natureza aquelas disposições materiais que nos indivíduos constituem as causas da corrupção. Por isso se diz que o universal, existente nas coisas, perece neste ou naquele indivíduo particular. 16. Ao passo que todas as outras categorias colocam algo na natureza das coisas — assim, por exemplo, a quantidade designa um algo, precisamente por ser quantidade —, a categoria de relação é a única que não possui nada que acrescente algo à natureza das coisas, e isto porque a relação não designa um algo, mas um em-relação-a-algo. Por isto existem certas relações que não colocam nada na natureza das coisas, mas apenas na esfera lógica. Isto pode ocorrer de quatro maneiras, conforme se pode ver nos escritos do Filósofo e de Avicena. Primeiro, quando alguma coisa é posta em relação consigo mesma, por exemplo, ao declararmos a sua identidade consigo mesma. Se esta relação colocasse na natureza das coisas algo a mais, além da sua identidade, proceder-se-ia até ao infinito, visto que a própria relação, em virtude da qual uma coisa se denomina idêntica consigo mesma, seria idêntica consigo mesma através de uma outra relação, e assim até ao infinito. verdade em si mesma permanece, conforme demonstram Agostinho e Anselmo (livro Sobre a Verdade, capítulos VIII e XII). Logo, a verdade é totalmente imutável. 4. Além disso, a verdade de uma coisa constitui a causa da verdade da proposição, já que uma proposição se denomina verdadeira ou falsa pelo fato de que a coisa é ou não é. Ora, a verdade da coisa é imutável. Logo, também o é a verdade da proposição correspondente. Demonstração da premissa menor. No livro Sobre a Verdade (capítulo XIV) Anselmo demonstra que a verdade de uma proposição permanece inalterada enquanto e na medida em que cumpre o que lhe corresponde na inteligência divina. Ora, cada coisa cumpre aquilo que lhe corresponde na inteligência divina. Logo, a verdade de cada coisa é imutável. 5. Além disso, aquilo que permanece inalterado depois de operadas todas as alterações nunca se altera. Com efeito, na mudança das coisas não dizemos que a superfície se altera, pois esta permanece a mesma apesar de qualquer mudança de cor. Ora, a verdade permanece inalte- rada na coisa, qualquer que seja a mudança verificada na própria coisa, visto que o ente e o verda- deiro são conversíveis. Logo, a verdade é totalmente imutável. 6. Além disso, onde quer que a causa seja a mesma, idêntico é também o efeito. Ora, a causa da verdade destas três proposições — "Sócrates está sentado", "Sócrates estará sentado" e "Sócrates esteve sentado" — é a mesma, ou seja, o fato de Sócrates estar sentado. Logo, também a verdade destas três proposições é a mesma. Ora, se uma das três coisas mencionadas é verdadeira, necessariamente serão sempre verdadeiras também as outras duas. Com efeito, se uma vez é verdade que "Sócrates está sentado", sempre foi e sempre será verdade que "Sócrates esteve sentado" ou "Sócrates estará sentado". Logo, a mesma verdade contida nas três proposições se comporta sempre da mesma maneira, e destarte é imutável. Pela mesma razão é imutável toda e qualquer outra verdade. II — CONTRATESE: PARECERIA QUE A VERDADE CRIADA NÃO É IMUTÁVEL. Com efeito, ao alterarem-se as causas, alteram-se também os efeitos. Ora, as coisas que constituem a causa da proposição se alteram. Logo, altera-se também a verdade das proposições. III — RESPOSTA A QUESTÃO ENUNCIADA. Ao dizer-se que uma coisa muda, isto pode entender-se em dois sentidos. Primeiro, no sentido de que a dita coisa é o sujeito da mudança; assim, quando dizemos que um corpo é mutável. Neste sentido, nenhuma forma é passível de mudança, pois ela subsiste em força de sua essência imutável. Aqui não se pergunta se a verdade é imutável neste primeiro sentido. A segunda acepção. Diz-se que uma coisa muda quando em relação a ela se opera alguma alteração. Assim, falamos de uma mudança da brancura, pelo fato de que o corpo se altera em relação a ela. É neste segundo sentido que se pergunta se a verdade é mutável. Para lograr clareza, cumpre assinalar o seguinte. Uma mudança de alguma coisa em relação à qual se opera uma alteração é algo de que por vezes se fala e por vezes não. Quando esta coisa é inerente àquilo que muda em relação a ela, diz-se que esta coisa também muda, assim como se fala de uma alteração da brancura ou da qualidade, quando algo se altera em relação a ela, pelo fato de que ambas se sucedem em conseqüência desta mudança. Ao contrário, quando a coisa em relação à qual se diz que o objeto muda é algo de extrínseco, neste caso a coisa não muda, mas permanece imóvel. Assim, não se fala de um movimento do lugar ou do espaço quando uma coisa muda de lugar. Ora, as formas inerentes, das quais se diz que se alteram ao alterar-se o sujeito ao qual inerem, são passíveis de um duplo tipo de mudança, conforme se trate de formas gerais ou de formas especiais. A forma especial não permanece a mesma (depois da mudança do sujeito): nem no seu ser nem no seu conteúdo. Assim, a brancura. uma vez ocorrida a alteração, de maneira alguma permanece. Diversamente acontece com a forma geral, que, uma vez ocorrida a alteração, permanece em seu conteúdo, mas não em seu ser. Exemplo: ao se operar uma mudança do branco para o preto, permanece uma cor enquanto cor, desaparecendo, todavia, a cor enquanto a cor branca. Ora, conforme acima explanamos (artigo 5.°), a Verdade Primeira constitui a medida extrínseca em virtude da qual as coisas se denominam verdadeiras, ao passo que a medida intrínseca é a inerente às próprias coisas. Conseqüentemente, as coisas criadas apresentam variação (imutabilidade) em sua participação da Verdade Primeira, ao passo que a própria Verdade Primeira, em virtude da qual as coisas se denominam verdadeiras, de modo algum se altera. É o que diz Agostinho na obra Sobre o Livre Arbítrio (livro III, capítulo VIII): "A nossa inteligência enxerga por vezes mais e por vezes menos da própria Verdade. Esta, porém, permanece inalterada em si mesma, sem aumentar nem diminuir". Todavia, se por verdade entendermos a que é inerente às coisas, neste caso se pode e deve dizer que a verdade é mutável: não no sentido de que a própria verdade mude. mas no sentido de que algo muda em relação a ela (o conhecimento subjetivo). Com efeito, segundo dissemos acima (artigo 2º), a verdade se encontra nos seres criados de dois modos: nas próprias coisas e na inteli- gência. Ora, a verdade do operar (conhecimento) está compreendida na verdade da coisa, assim como a verdade da enunciação está compreendida na verdade do conhecimento por ela expressa. Ora, as coisas denominam-se verdadeiras em relação ao intelecto divino e em relação ao intelecto humano. Se a verdade de uma coisa se entender com respeito à inteligência divina, deve-se dizer que a verdade desta coisa mutável se transforma em uma outra verdade, mas não em falsidade, visto que a verdade é a forma mais geral que existe, uma vez que o verdadeiro e o ser são conversíveis. Por conseguinte, assim como depois de qualquer alteração o objeto permanece em seu ser, embora assumindo outra forma, do mesmo modo permanece sempre verdadeiro, porém em virtude de uma outra verdade. Com efeito, qualquer que seja a forma ou a privação que esta alteração produz no dito objeto, é segundo esta nova forma ou privação que o objeto estará conforme à inteligência divina, a qual o conhece como é em cada instante. Todavia, se a verdade do objeto se entender em relação ao intelecto humano, ou vice- versa, neste caso o que se verifica é por vezes mudança da verdade para a falsidade, outras vezes, ao invés, mudança da verdade para uma outra verdade. Com efeito, a verdade é a concordância entre o intelecto e a coisa conhecida. Ora, se de duas coisas entre si concordantes se tira coisa igual de ambas, ambas devem continuar a concordar, embora não segundo a mesma quantidade. Da mesma forma, se tanto o conhecimento como a coisa conhecida se alteram correspondentemente, permanece a verdade, porém surge uma outra verdade (em outros termos: permanece a verdade, mas altera-se uma verdade). Exemplo: quando Sócrates está sentado, a nossa inteligência conhece que ele está sentado; ao depois, quando Sócrates não está sentado, a nossa inteligência conhece que não está sentado. Se, porém, no caso de duas coisas entre si concordantes se tira algo de uma sem nada tirar da outra, ou se de uma se tira mais do que da outra, forçosamente nascerá uma desigualdade ou discordância, a qual estará para a falsidade como a concordância está para a verdade. Em conse- qüência, forçosamente se verificará falsidade se, sendo o conhecimento verdadeiro, a coisa se alterar, permanecendo o conhecimento inalterado. O mesmo acontecerá se o processo for inverso, ou no caso de tanto a coisa como o conhecimento da inteligência se alterarem, mas não de maneira semelhante. Em todos esses três casos verifica-se uma mudança de uma verdade para a falsidade. Exemplo: enquanto a cor de Sócrates for realmente branca, o conhecimento da minha inteligência é verdadeiro se afirmar que Sócrates é branco. Se, porém, Sócrates continuar a ter cor branca e o meu conhecimento intelectual passar a dizer que a sua cor é preta, haverá III — RESPOSTA A QUESTÃO ENUNCIADA. Predicada de Deus, a verdade pode revestir duas acepções: uma própria, a outra como que metafórica. Predicada de Deus no sentido próprio, a verdade designa a concordância da inteligência divina com a coisa. Como, porém, a inteligência divina conhece primeiro a sua essência, sendo através dela que conhece todo o restante, depreende-se que a verdade, em Deus, significa primariamente a conformidade da sua inteligência (conhecimento) com a sua própria essência, e só derivadamente a conformidade da sua inteligência com a coisa criada. Acontece, todavia, que o intelecto e a essência de Deus não concordam entre si à guisa de elemento comensurante e elemento comensurado — pois um não pode ser o princípio do outro —, mas identificam-se totalmente um com outro. Em conseqüência, a verdade resultante desta conformidade-concordância não implica nenhuma razão de princípio originante, nem da parte da essência de Deus nem da parte da sua inteligência cognoscente, que constituem uma e mesma coisa. Por conseguinte, assim como em Deus o ato do intelecto cognoscente e o objeto conhecido constituem uma e mesma coisa, da mesma forma identificam-se totalmente a verdade do objeto conhecido e a verdade do intelecto que o conhece, sem qualquer conotação de princípio originante e efeito originado. Ao contrário, se a verdade da inteligência divina se entender no sentido da sua conformidade com as coisas criadas, também nesta acepção permanecerá ainda a mesma verdade, assim como é através de uma e mesma coisa que Deus compreende tanto a si mesmo como as coisas criadas. Neste caso, porém, o conceito de verdade em Deus adquire uma nova conotação, ou seja, a idéia de um princípio originante em relação às criaturas originadas, sendo que a inteligência divina constitui, com respeito às criaturas, a medida comensurante e a causa. Ora, todos os termos que, dentro da Santíssima Trindade, não designem princípio ou derivação de princípio, ou designem em Deus principialidade em relação às criaturas, predicam-se da essência divina (e não das pessoas divinas). Conseqüentemente, se a verdade, em Deus, for entendida no sentido próprio, conclui-se que ela é predicada da essência divina (e não das pessoas), ainda que se predique de maneira especial da Pessoa do Filho, como ocorre com as criações do espírito e com tudo o que concerne à inteligência. Metaforicamente, e em sentido análogo, fala-se da verdade em Deus, quando a compreen- demos no sentido em que reside nas coisas criadas, caso em que falamos de verdade no sentido de que estas imitam o seu princípio originante, ou seja, a inteligência divina. Em conseqüência, semelhantemente a verdade em Deus se denomina, neste sentido, a imagem ou imitação do princípio originante, o que compete à Pessoa do Filho. Nesta acepção, a verdade se predica no sentido próprio da pessoa (e não da essência): no caso, do Filho. Assim se exprime Agostinho na obra Sobre a Verdadeira Religião (conforme supra). IV — RESPOSTA AOS ARGUMENTOS DA TESE. 1. A resposta segue do que acabamos de expor. 2. A igualdade, quando predicada de Deus, por vezes designa uma diferença entre as pessoas; assim é, por exemplo, quando dizemos que o Pai e o Filho são iguais. Entendida neste sentido, a concordância ou igualdade implica uma diferença real entre os dois termos da relação. Em outros casos, porém, os termos conformidade e igualdade não implicam nenhuma diferença real, mas apenas uma distinção racional. Assim, por exemplo, quando afirmamos que a sabedoria e a bondade de Deus se identificam. Por conseguinte, a concordância ou identidade não implica necessariamente uma diferença entre as pessoas. Ora, tal é a diferença expressa pelo termo verda- de, quando a definimos como a conformidade-concordância-igualdade entre a inteligência cognoscente e a essência de Deus. 3. Se bem que a verdade seja concebida pela inteligência, todavia o termo verdade não exprime o conceito de concepção, como acontece com o termo palavra. Por conseguinte, não existe a semelhança invocada pelo argumento. ARTIGO OITAVO Todas as verdades derivam da Verdade Primeira? I - TESE: NÃO PARECERIA QUE TODAS AS VERDADES DERIVAM DA VERDADE PRIMEIRA. 1. E verdadeiro que este homem comete fornicação. Ora, isto não procede da Verdade Primeira. Logo, nem toda verdade deriva da Verdade Primeira. 2. Ao argumento acima pode-se objetar, porém, que a verdade do sinal ou da inteligência, em virtude da qual isto se denomina verdadeiro, procede de Deus, não porém a verdade em virtude da qual se refere à coisa. A isto se responde: além da Verdade Primeira não existe apenas a verdade do sinal ou do intelecto, mas também a verdade da coisa. Portanto, se a verdade acima (este homem comete fornicação) não procede de Deus no que se refere à coisa, esta verdade da coisa não derivará de Deus, e assim segue a mesma conclusão, isto é, que nem todas as verdades derivam de Deus. 3. Além disso, segue: Este homem comete fornicação. Logo, é verdade que este homem comete fornicação, para que se opere a descida da verdade da proposição para a verdade do afirmado, a qual exprime a verdade da coisa. Conseqüentemente, a mencionada verdade consiste no fato de que este determinado ato se combina com este determinado sujeito. Ora, a verdade do afirmado não derivará da combinação do citado ato com o sujeito, a não ser que se entenda a combinação do ato feito imoralmente. Logo, a verdade da coisa se verifica não só em relação à própria essência do ato, mas também quanto à imoralidade. Ora, o mencionado ato (fornicação), considerado do ponto de vista da imoralidade, de forma alguma procede de Deus. Logo, nem todas as verdades derivam de Deus. 4. Além disso, Anselmo (Sobre a Verdade, capítulo IV) afirma que uma coisa se denomina verdadeira enquanto é tal como deve ser. Entre os modos segundo os quais se pode dizer que a coisa deve ser, Anselmo cita um modo, segundo o qual se diz que a coisa deve ser, pelo fato de que aconteceu com a permissão de Deus. Ora, a permissão de Deus se estende também à imorali- dade do ato. Logo, a verdade da coisa engloba a mencionada imoralidade. Ora, a referida imorali- dade de modo algum procede de Deus. Logo, nem todas as verdades derivam de Deus. 5. Ao argumento acima pode-se objetar: assim como a imoralidade ou a privação de alguma coisa não se denominam entes no sentido adequado, mas apenas no sentido analógico, da mesma forma se diz que o mencionado ato contém a verdade em sentido adequado, mas apenas com restrições. Ora, tal verdade tomada em sentido analógico não deriva de Deus. A isto se pode responder: O conceito de verdadeiro acrescenta ao de ente a relação com a inteligência. Ora, a privação ou a imoralidade, embora não sejam em si entes pura e simples- mente, todavia são apreendidas pelo intelecto, pura e simplesmente. Por conseguinte, ainda que não sejam entes no sentido adequado do termo, constituem verdade em sentido próprio. 6. Além disso, tudo aquilo que é ente apenas em sentido analógico pode ser reduzido a algo que é ente pura e simplesmente, em sentido próprio. Assim, por exemplo, o afirmar que este cidadão etíope é branco por causa dos dentes brancos se reduz a afirmar que os dentes deste cidadão etíope são brancos. Conseqüentemente, se uma verdade, pelo fato de ser tal em sentido analógico, não derivasse de Deus, dever-se-ia concluir também que nem todas as verdades denominadas tais pura e simplesmente procedem de Deus. O que seria absurdo. 7. Além disso, aquilo que não é causa de uma causa, tampouco é causa do efeito, assim como Deus não é a causa da imoralidade, por não ser a causa da deficiência no livre arbítrio, da qual provém a imoralidade. Vra. assim como o ser é a causa da verdade coapa nas proposições afirmativas, da mesma forma o não-ser é a causa das proposições negativas. Logo, já que Deus não é a causa do que é não-ente, conforme afirma Agostinho no livro LXXXIII das Questões IV — RESPOSTA AOS ARGUMENTOS DA TESE. 1. Ao argumentar-se assim — Tudo o que é verdadeiro procede de Deus; ora, é verdadeiro que este homem comete fornicação — ocorre uma falácia, conforme se deduz do que acabamos de expor (ponto III). Com efeito, ao dizermos que a fornicação é verdadeira, não afirmamos isto no sentido de que a imoralidade presente no ato da fornicação estaria incluída no conceito da verdade. O verdadeiro, no caso, designa apenas a conformidade deste ato com a inteligência. Por conseguinte, a conclusão que segue do argumento não é "A fornicação deste homem procede de Deus", mas "A verdade deste ato procede de Deus". 2. Conforme se evidencia da nossa exposição precedente, a imoralidade e outras deficiências não encerram a verdade do mesmo modo que as outras coisas. Por isso, embora a verdade das deficiências proceda de Deus, disto não se infere que as deficiências em si mesmas derivem de Deus. 3. Segundo o Filósofo no livro VI da Metafísica (comentário 8.°) a verdade não consiste na composição ou combinação que reside nas coisas, mas na combinação operada pela inteligência. Aplicando ao presente caso: a verdade não consiste no fato de este ato (fornicação), conjunta- mente com a sua qualificação imoral, inerir ao sujeito que o pratica, visto que tal diz respeito à Moral, que trata do bem e do mal. A verdade, no caso, consiste no fato de o ato praticado pelo sujeito estar em conformidade com o conhecimento da inteligência que o apreende. 4. O bom, o devido, o reto e todas as outras noções congêneres não têm a mesma relação em se tratando da permissão divina e de outros sinais da vontade de Deus. Neste último caso as mencionadas noções referem-se tanto àquilo que recai sob o ato da vontade como ao próprio ato da vontade. Assim, quando se diz que Deus ordena honrar os pais, a qualificação de "bom" cabe tanto à honra prestada aos pais como ao próprio Deus prescrever este dever de honrar os pais. Ao contrário, quando se trata de permissão, a qualificação de "bom" refere-se apenas ao ato de Deus permitir, e não ao que recai sob a permissão, isto é, o ato que é permitido por Deus. Logo, é bom o fato de Deus permitir ao homem cometer atos imorais. Disto não segue, todavia, que a imoralidade como tal encerre qualquer retidão ou bondade. 5. A resposta se deduz do ponto IV. 6. A verdade existente nas negações e nas deficiências reduz-se à verdade pura e simples- mente, verdade que reside na inteligência e que deriva de Deus. Conseqüentemente, o que procede de Deus é a verdade da existência dessas deficiências, e não as deficiências em si mesmas. 7. O não-ser não constitui a causa da verdade das proposições negativas, como se as produzisse no intelecto. É a própria inteligência que faz isto, pondo-se em conformidade com o não-ente que está fora da inteligência. Portanto, o não-ser existente fora da inteligência não é causa eficiente da verdade, mas antes causa exemplar. Ora, o argumento aduzido supõe haver causalidade exemplar eficiente. 8. Embora o mal em si mesmo não proceda de Deus, provém de Deus, sim, o fato de a ação má ser julgada tal qual de fato é. Por conseguinte, a verdade em virtude da qual é verdadeiro que a citada ação é má deriva de Deus. ARTIGO NONO A verdade existirá nos sentidos? I — TESE: PARECERIA NÃO EXISTIR VERDADE NOS SENTIDOS. 1. Anselmo afirma no livro Sobre a Verdade (capítulo XII) que a verdade consiste na reti- dão, perceptível exclusivamente à inteligência. Ora, os sentidos não pertencem à natureza da inteligência. Logo, a verdade não reside nos sentidos. 2. Além disso, no livro LXXXIII das Questões (questão 5.a), Agostinho demonstrou que a verdade do corpo não é conhecida pelos sentidos, sendo que as razões por ele invocadas foram expostas mais acima. Logo, a verdade não reside nos sentidos. II — CONTRATESE: PARECERIA QUE EXISTE VERDADE NOS SENTIDOS. Efetivamente, no livro Sobre a Verdadeira Religião (capítulo XXXVI), Agostinho afirma que a verdade é aquilo mediante o qual se revela aquilo que é. Ora, aquilo que é aparece não só à inteligência mas também aos sentidos. Logo, a verdade reside também nos sentidos. III — RESPOSTA A QUESTÃO ENUNCIADA. A verdade está tanto na inteligência como nos sentidos, ainda que de maneira diversa. Na inteligência, a verdade reside como alguma coisa que resulta da atividade do intelecto, e como algo que é conhecido através da inteligência. Com efeito, a verdade resulta da atividade do intelecto, enquanto o juízo da inteligência diz respeito à coisa conforme o seu ser. A verdade é conhecida pelo intelecto, enquanto este reflete sobre o seu próprio ato. Isto, não apenas enquanto a inteligência conhece o seu próprio ato, mas também enquanto conhece a relação do ato com a coisa. Ora, isto só pode ser conhecido se se conhece a própria natureza do ato, e isto, por sua vez, só pode ser conhecido se se conhece a natureza do princípio ativo, que é a própria inteligência, a qual por natureza está inclinada a colocar-se em conformidade com as coisas. É por isto que a inteligência apreende a verdade enquanto reflete sobre si mesma. Outra é a maneira segundo a qual a verdade reside nos sentidos. Neles a verdade se encontra como algo que resulta da atividade dos mesmos, pois a verdade está nos sentidos, na medida em que o juízo dos mesmos diz respeito às coisas. Contudo, a verdade não se encontra nos sentidos como algo que foi conhecido por eles. Pois, quando o conhecimento sensitivo emite um juízo correto sobre as coisas, é importante notar que este conhecimento sensitivo — ao contrário do conhecimento intelectivo — não conhece a verdade através da qual julga corretamente. Pois, embora a faculdade sensitiva conheça e saiba que está agindo, não conhece a sua própria natureza, e conseqüentemente também não a natureza do seu agir e as relações deste último com as coisas, e por conseguinte também não a sua verdade. A razão disto está no seguinte: o que é mais perfeito dentro da esfera dos seres, como as substâncias espirituais, volta à sua própria essência com um regresso completo. Com efeito, para que alguma coisa possa conhecer algo que está fora dela, necessita de certa forma sair de si mesma; no momento, porém, em que toma consciência de que está conhecendo, já começa a voltar para si mesma, visto que o ato de conhecer está a meio caminho entre o elemento cognoscente e o elemento conhecido. A mencionada volta se completa enquanto o elemento cognoscente conhece a sua própria essência. Por isso se lê no livro Sobre as Causas (proposição 15) que aquele que conhece a sua própria essência volta à sua própria essência em um regresso completo. O conhecimento sensitivo, por ser o que mais do que todos se aproxima do conhecimento próprio das substâncias espirituais, começa, sim, a voltar à sua própria essência, pois não conhece apenas o que cai sob o domínio dos sentidos, mas também o fato de estar em ação. Todavia, a sua volta à própria essência não chega a completar-se, porquanto o conhecimento sensitivo não conhece a sua própria essência. Para Avicena, a razão disto está no fato de o conhecimento sensitivo só se poder efetuar através de um órgão corporal. Ora, é impossível que um órgão se interponha entre a capacidade cognoscitiva dos sentidos e ela mesma. Com efeito, as potências naturais destituídas de sensibilidade de forma alguma podem voltar a si mesmas, pois não são capazes de tomar consciência de estarem agindo. Assim, por exemplo, o fogo não sabe que aquece. As respostas aos argumentos da tese e da contratese seguem do que acabamos de expor. positivamente das coisas ou ao que nelas se encontra. Pois todas estas coisas procedem do plano criador do espírito de Deus. A coisa é também comparada com a inteligência divina como o elemento conhecido com o elemento cognoscente. Nesse sentido, as próprias negações e defeitos estão em conformidade com a inteligência de Deus, visto que Ele conhece todas essas deficiências, embora não sendo Ele a causa das mesmas. Neste sentido é evidente que tudo está em conformidade com a inteligência divina, desde que permaneça na existência, sob qualquer forma que seja, mesmo sob o aspecto de privação ou de defeito. Em resultância disto, é também patente que toda e qualquer coisa é sempre verdadeira, se comparada com a inteligência divina, no dizer de Anselmo no livro Sobre a Verdade (capítulos VII, VIII, XI e XVI). Por conseguinte, existe verdade em todos os entes, pois aqui estão as coisas que se encontram na Verdade Suprema. Em conseqüência, nenhuma coisa pode ser falsa, se comparada com a inteligência de Deus. Quando, porém, as coisas são comparadas com a inteligência humana, então, sim, verifica-se por vezes uma desconformidade entre a coisa e o conhecimento, discordância que de certo modo é causada pela própria coisa. Com efeito, a coisa provoca na inteligência um conhecimento de si mesma, através daquilo que dela aparece externamente, visto que o nosso conhecimento começa pelos sentidos, cujo objeto natural são as qualidades sensíveis. Por isso se lê no primeiro livro Sobre a Alma (comentário 2.°) que os acidentes contribuem muito para o conhecimento daquilo que constitui uma determinada coisa. Por conseguinte, quando em uma certa coisa aparecem externamente qualidades sensíveis as quais denotam uma natureza que não lhes corresponde, neste caso dizemos que esta coisa é falsa. Nesta linha, o Filósofo afirma (Metafísica, livro VI, capítulo V, comentário 34; livro IV, comentário 27) que falso é aquilo que, conaturalmente, ou aparece diversamente do que é na realidade, ou parece ser uma coisa que na realidade não é. Por exemplo, ouro falso é aquele cuja cor e outros acidentes congêneres aparecem externamente como sendo de ouro, porém a sua natureza interna não lhes corresponde. Todavia, se é verdade que a própria coisa é causa da falsidade gerada na alma humana, não é verdade que o seja por necessidade, como se a coisa gerasse necessariamente o juízo falso da nossa inteligência. Com efeito, tanto a verdade como a falsidade têm a sua sede antes de tudo no julgamento dado pela inteligência. Ora, a inteligência, ao emitir um juízo sobre as coisas, não é passiva, mas antes ativa, ao menos de certo modo. Por isso, a coisa não se denomina falsa pelo fato de sempre provocar um juízo falso, mas pelo fato de que conaturalmente tende a provocar um tal juízo através do que dela aparece externamente. Uma vez que, como já dissemos (neste artigo, e nos artigos V e VIII), o essencial é a comparação da coisa com a inteligência divina, deve-se afirmar que, com respeito ao intelecto de Deus, toda coisa é em si verdadeira. Ao contrário, a comparação (da coisa) com a inteligência humana é acidental: em relação a ela, a coisa não se pode denominar sempre absolutamente verdadeira. Em conseqüência, em si (simpliciter loquendo) toda coisa é verdadeira e nenhuma é falsa. Conforme as circunstâncias, porém (secundum quid), isto é, com referência ao nosso intelecto, certas coisas se denominam falsas. Em razão disso, impõe-se responder aos argumentos de ambas as partes. IV — RESPOSTA AOS ARGUMENTOS DA TESE. 1. A definição "Verdadeiro é aquilo que é" não exprime com perfeição o conceito de verdade, mas apenas de maneira, digamos assim, material, enquanto o ser significa a afirmação da proposição, ou seja: verdadeiro é aquilo que se denomina e se conhece tal como realmente é. Analogamente se diz que falso é aquilo que não é, no sentido de que não é na realidade tal como se diz e se entende ser. Ora, isto pode acontecer nas coisas. 2. O verdadeiro, em se falando com propriedade de termos, não pode ser uma diferença específica do ente, pois este não possui diferença específica, como está demonstrado no livro III da Metafísica (comentário 10). Todavia, uma coisa verdadeira é, em relação ao ente, como uma diferença específica, como o bom, isto é, enquanto exprime acerca do ente algo que não está expresso neste termo. Sob este aspecto o conceito de ente é indeterminado com respeito ao verdadeiro. Assim sendo, o conceito de verdadeiro está para o ente como a diferença específica para o gênero. 3. É necessário admitir a razão invocada, pois afirma a conformidade da coisa em ordem ao intelecto divino (e neste sentido nenhuma coisa pode ser falsa). 4. Se bem que toda coisa possua alguma forma, todavia nem todos possuem aquele tipo de forma cujos indícios aparecem externamente através de qualidades sensíveis; e neste sentido a coisa se denomina falsa, enquanto de per si é capaz de, ou mesmo tende a produzir um juízo falso na inteligência humana. 5. Uma coisa existente fora da inteligência denomina-se falsa — conforme acima demons- tramos (ponto III) — pelo fato de tender a produzir um juízo falso ao ser apreendida pela inteli- gência. Por conseguinte, o que se denomina falso, necessariamente é um ente. Conseqüentemente, já que todo ente, enquanto tal, é verdadeiro, necessariamente a falsidade existente nas coisas funda-se na verdade. Por isso Agostinho diz no livro dos Solilóquios (capítulo X) que o ator que em uma tragédia representa pessoas verdadeiras no palco não seria falso se não fosse um verdadeiro ator. Analogamente, um cavalo pintado num quadro não seria um cavalo falso se não fosse mera pintura. Disto não segue que os contraditórios sejam verdadeiros, pois a afirmação e a negação, enquanto expressa o verdadeiro e o falso, não se referem à mesma coisa. 6. Uma coisa se denomina falsa na medida em que tende a enganar. Quando digo enganar, tenciono expressar alguma ação que inclui deficiência. Ora, nada tende a agir senão enquanto é um ente, e toda deficiência é um não-ente. Ora, toda coisa, enquanto é um ente, encerra semelhança de verdade, ao passo que, enquanto não o é, carece de semelhança com a verdade. Por isso, quando digo enganar, se isto se referir à ação, tem a sua origem da semelhança; se, porém, se referir à deficiência, na qual consiste formalmente o conceito de falsidade, provém da dessemelhança. É por esta razão que, no livro Sobre a Verdadeira Religião (livro II dos Solilóquios, capítulo XV), Agostinho afirma que a falsidade se origina da dessemelhança. V — RESPOSTA AOS ARGUMENTOS DA CONTRATESE. 1. A inteligência não costuma ser enganada por toda e qualquer semelhança, mas apenas por uma grande semelhança, na qual a dessemelhança é dificilmente identificável. Conforme a semelhança for maior ou menor, a inteligência se equivoca segundo a capacidade maior ou menor que tem de discernimento para descobrir a semelhança. Tampouco se deve considerar falsa uma coisa que pode induzir a um erro insignificante, mas apenas uma coisa que tende a induzir ao erro muitas pessoas, e pessoas sábias. Ora, as coisas criadas, embora tragam em si mesmas uma certa semelhança de Deus, todavia apresentam também dessemelhanças muito grandes em relação a Deus, de modo que a semelhança só pode induzir ao erro pessoas muito tolas. Conseqüentemente, a invocada semelhança e dessemelhança das coisas criadas em relação a Deus não autoriza a concluir que todas as coisas criadas devam denominar-se falsas. 2. Existia, no tempo de Agostinho, quem acreditasse que Deus tem corpo. E, já que Deus é a unidade mediante a qual todas as coisas são unas, acreditavam que o corpo é a própria unidade, devido à própria semelhança da unidade. Portanto, Agostinho denomina uma falsa unidade enquanto induziu ou pode ainda induzir alguns ao erro de pensar que ele constitui uma unidade. 3. Existe uma dupla perfeição: a assim chamada perfeição primária e a perfeição secundária. A perfeição primária é aquela forma de toda e qualquer coisa, em virtude da qual ela é um ente. Esta perfeição, nenhuma coisa a perde, enquanto subsistir. A perfeição secundária consiste na operação, a qual constitui a finalidade da coisa, ou seja, aquilo em força do qual se atinge o XXXVIII, pelo meio) que os sentidos não podem transmitir outra coisa senão a reação que lhes provocam as coisas. Se, porém, os sentidos forem comparados à inteligência, enquanto constituem algo que remete a outra coisa, neste caso por vezes representam as coisas de maneira diferente do que na realidade estas são, denominam-se falsos, enquanto conaturalmente tendem a provocar um juízo falso na inteligência, embora não o façam necessariamente, como dissemos, aliás, também das coisas. Com efeito, o juízo que a inteligência emite acerca das coisas, emite-o também sobre aquilo que lhe é oferecido pelos sentidos. Destarte, os sentidos, quando comparados com a inteligência sempre provocam um juízo correto em relação à sua própria disposição, não, porém, em relação à disposição das coisas. Por conseguinte, se os sentidos se consideram enquanto comparados com as coisas, deve- se dizer que neles há falsidade e verdade da mesma maneira que na inteligência. Ora. na inteligência a verdade e a falsidade se encontram primária e originariamente no juízo da atividade de síntese e de análise do intelecto; na formação das qüididades, porém, só através da relação com o juízo que resulta da mencionada formação. Por isso se fala, nos sentidos, de verdade e de falsidade como algo que lhes é próprio, enquanto emitem juízos sobre o que pertence à esfera do sensível. Todavia, enquanto os sentidos apreendem coisas sensíveis, não se fala de verdade e falsidade no sentido próprio, mas só segundo a relação com o juízo que deriva da mencionada formação; ou seja, enquanto de tal apreensão é natural que siga tal juízo. O juízo de um determinado sentido sobre certas coisas se verifica naturalmente: por exemplo, o juízo sobre os dados sensitivos que lhes são próprios. Ao contrário, o juízo de um determinado sentido acerca de outras coisas se faz mediante uma certa comparação que no homem é feita pela força cognoscitiva, a qual é a potência da parte sensitiva, em lugar da qual, nos animais, está o juízo instintivo. Conseqüentemente, os sentidos emitem juízos sobre dados sensitivos comuns e sobre dados sensitivos acidentais. O agir natural de cada coisa, porém, se realiza sempre da mesma maneira, se não for impedido por algo de acidental, por exemplo, alguma deficiência interna ou algum obstáculo externo. Por conseqüência, o juízo que um determinado sentido formula sobre os dados sensitivos que lhe são próprios é sempre verdadeiro, a não ser que haja um obstáculo no órgão ou no meio de transmissão. Em se tratando, porém, dos dados sensitivos comuns e dos acidentais, os sentidos por vezes se enganam. Destarte, torna-se evidente em que sentido pode ocorrer falsidade no julgamento formulado pelos sentidos. No que concerne à apreensão por parte dos sentidos, importa saber que existe uma certa força apreensiva, que apreende a imagem sensível das coisas como um sentido criado especial- mente para isto, quando a coisa sensível está presente. Existe também uma outra força, que apreende a imagem sensível das coisas, quando estas estão ausentes: tal é a imaginação. Por isso, os sentidos apreendem sempre a coisa como é na realidade, a não ser que haja algum impedi- mento no órgão ou na transmissão. Ao contrário, a imaginação via de regra apreende a coisa dife- rente do que é, porquanto apreende a coisa como presente, estando ela ausente. Nesta linha o Filósofo afirma no livro IV da sua Metafísica (comentário 34) que a responsabilidade pela falsidade não cabe aos sentidos, mas à fantasia. IV — RESPOSTA AOS ARGUMENTOS DA TESE. 1. No mundo dos seres superiores, estes nada recebem dos inferiores, mas é o inverso que ocorre. Ao contrário, em se tratando do homem, o intelecto, que é superior, recebe dos sentidos. Por conseguinte, a paridade invocada pelo argumento não existe. A resposta aos outros argumentos se deduz facilmente do que expusemos no ponto III deste artigo. ARTIGO DOZE Existirá falsidade na inteligência? I — TESE: NÃO PARECERIA HAVER FALSIDADE NA INTELIGÊNCIA. 1. O intelecto tem dois modos de operar: um é aquele mediante o qual forma as qüididades das coisas, e nesta operação não há falsidade, como diz o Filósofo no livro III Sobre a Alma (comentário 21); o outro é aquele mediante o qual opera a síntese e a análise, sendo que também aqui não há falsidade, segundo se demonstra por Agostinho no livro Sobre a Verdadeira Religião (capítulo XXXVI), onde se lê: "Ninguém compreende coisas falsas". Logo, não existe falsidade no intelecto. 2. Lê-se em Agostinho, no livro LXXXIII das Questões (questão 31, subquestão 22): "Se alguém se engana, é porque não entende aquilo em que se engana". Logo, a inteligência é sempre verdadeira, e conseqüentemente não pode haver falsidade nela. 3. Al Gazali (teólogo árabe) afirma: "De duas. uma: ou compreendemos uma coisa como ela é, ou não compreendemos". Ora. todo aquele que compreende uma coisa como ela é, com- preende de modo verdadeiro. Logo. o intelecto é sempre verdadeiro, e portanto não existe falsi- dade nele. II — CONTRATESE: PARECERIA EXISTIR FALSIDADE NA INTELIGÊNCIA. Pois o Filósofo afirma, no livro III Sobre a Alma (comentário 21). que. onde existe combinação ou síntese das coisas apreendidas (no intelecto sintetizante). ali já existem mesclados o verdadeiro e o falso. Logo. existe falsidade na inteligência. III — RESPOSTA A QUESTÃO ENUNCIADA. O termo intelecto ou inteligência, pela sua própria etimologia, significa que ele conhece o íntimo das coisas, pois o latim intelligere equivale a intus legere, ou seja, "ler dentro". Os sentidos e a imaginação apreendem apenas os acidentes externos, ao passo que a inteligência, e só ela, penetra até à essência das coisas. Todavia, para além disso, a inteligência, partindo das essências das coisas apreendidas, opera de muitas maneiras através do raciocínio e da pesquisa. O termo intelecto ou inteligência pode revestir duas acepções. A) No primeiro sentido, a inteligência se entende apenas em relação àquilo de que provém originariamente a designação. Nesta acepção falamos de "inteligência" e de "compreender" no sentido próprio, quando apreendemos as qüididades das coisas, ou então, quando conhecemos o que é imediatamente conhecido em uma coisa, ao conhecermos a sua qüididade. Tais são os primeiros princípios que compreendemos tão logo apreendemos os termos. Por isso denomina-se a inteligência o hábito dos princípios. A qüididade de uma coisa constitui o objeto próprio da inteligência. Por conseguinte, assim como a apreensão sensitiva dos dados sensitivos específicos é sempre verdadeira, da mesma forma é sempre verdadeiro o conhecimento intelectual na apreensão daquilo que alguma coisa é (Sobre a Alma, livro III, comentário 26). Todavia, acidentalmente pode ocorrer falsidade também aqui, isto é, enquanto a inteligência opera uma síntese ou uma análise falsa. Isto pode acontecer de duas maneiras. A primeira, quando a inteligência aplica a definição de uma coisa à outra: por exemplo, tomando a definição de "ser vivente racional e mortal" e aplicando-a ao asno. Ou, então, quando a inteligência combina partes de uma definição que não se podem combinar; por exemplo, defi- nindo o asno como um ser irracional e imortal. que constitui ao mesmo tempo o princípio de tudo. É neste sentido que, para o Filósofo, o ofício do sábio é o estudo das causas mais altas (I Metafísica, I. 12). Ora, o fim último de cada coisa é o que é visado pelo seu primeiro Autor e causa motora. E o primeiro Autor e causa motora do universo é uma inteligência, como veremos mais adiante. Por conseguinte, o fim supremo do universo é o bem da inteligência. Este bem consiste na verdade. Conseqüentemente, a verdade será o fim último de todo o universo, e a grande preocupação primária da sabedoria consistirá no estudo desta verdade. Aliás, foi para manifestar a verdade que a divina Sabedoria, depois de ter revestido a nossa carne humana, declara ter vindo a este mundo: "Nasci e vim ao mundo para dar testemunho da verdade" (Evangelho de São João, capítulo 18, versículo 37). A seu turno, o Filósofo declara que a Primeira Filosofia é a ciência da verdade: não de qualquer verdade, mas daquela verdade que constitui a fonte de toda verdade e propriedade do princípio primário do ser de todas as coisas que existem. Esta verdade é o princípio de toda verdade, já que o estabelecimento dos seres na verdade vai de par em par com o seu estabelecimento no ser (primeiro livro da Metafísica, I. 4. 5). Ora, é próprio de um e mesmo sujeito cultivar um dos elementos contrários e refutar ou rejeitar o outro. Assim, por exemplo, a medicina, que é a arte de restaurar a saúde, é também a arte de combater as enfermidades. Por conseguinte, assim como o oficio do sábio é meditar sobre a verdade, sobretudo a partir do primeiro princípio, e dissertar sobre as outras coisas, da mesma forma compete-lhe combater contra os erros contrários à verdade. Este duplo ofício do sábio está exposto com perfeição pela Sabedoria, nas palavras que citamos ao início deste capítulo: o sentido do mencionado versículo é dizer a verdade divina, que é a verdade por excelência e por antonomásia: "Minha boca meditará sobre a verdade". E o sentido do outro versículo ("Meus lábios maldirão o ímpio") é: combater contra o erro que se opõe à verdade. Este último versículo designa o erro que se opõe à verdade divina, erro que é contrário à religião, sendo que esta última recebe também o nome de piedade, o que explica por que o erro contrário recebe o nome de impiedade. CAPITULO SEGUNDO O plano do autor Dentre todos os estudos aos quais se dedicam os homens, o estudo da sabedoria supera a todos em perfeição, em sublimidade, em utilidade e em alegria que proporciona. Supera em perfeição, pois, quanto mais o homem se dedica à sabedoria, tanto mais participa da verdadeira felicidade. Com efeito, o Sábio afirma: "Feliz o homem que se aplicar ao estudo da sabedoria" (Livro do Eclesiástico, capítulo 14, versículo 22). Em sublimidade, pois é sobretudo em virtude do estudo da sabedoria que o homem se aproxima da semelhança com Deus, o qual "tudo fez com sabedoria" (Salmo 103, versículo 24); e, uma vez que a semelhança com alguém causa o amor, o estudo da sabedoria une de maneira especial a Deus na amizade, o que faz com que o livro da Sabedoria diga que a sabedoria constitui para todos os homens "um tesouro inesgotável, um tesouro tal, que os que dele hauriram participaram da amizade de Deus" (Livro da Sabedoria, capítulo 7, versículo 14). O estudo da sabedoria ultrapassa todos os outros também em utilidade, pois a própria sabedoria conduz ao reino da imortalidade, como declara o Livro da Sabedoria: "O desejo da sabedoria conduzirá ao reino eterno" (capítulo 6. versículo 21). Supera, finalmente, em alegria que proporciona, pois "o contato e a comunhão com a sabedoria não comportam nem amargura nem tristeza, mas só prazer e alegria" (Livro da Sabedoria, capítulo 8. versículo 16). Haurindo. portanto, da misericórdia de Deus a audácia de assumir o ofício de sábio, ofício que ultrapassa as nossas forças, propusemo-nos, na medida de nossas possibilidades, expor a verdade professada pela fé católica e refutar os erros contrários. Para retomar as palavras de Santo Hilário, "o ofício primário da minha vida, ofício ao qual me sinto vinculado em consciência diante de Deus, é que todas as minhas palavras e todos os meus sentimentos falem d'Ele (Sobre a Trindade, I, 37). E difícil refutar todos os erros, e isto por duas razões. A primeira está em que as afirmações sacrílegas de cada um daqueles que caíram no erro não nos são conhecidas a tal ponto que possamos extrair delas argumentos para confundi-los. Aliás, era assim que procediam os antigos doutores para destruir os erros dos pagãos, cujas posições podiam conhecer, ou porque eles mesmos haviam sido pagãos, ou porque pelo menos viviam entre os pagãos e conheciam os seus ensinamentos. A segunda razão que nos impede de refutar todos os erros contrários à fé católica é que alguns dos autores desses erros, como os maometanos e os pagãos. não concordam conosco no reconhecimento da autoridade das Sagradas Escrituras, mediante as quais poderíamos convencê- los, ao passo que, com respeito aos judeus, podemos discutir à base do Antigo Testamento, e, com respeito aos cristãos heréticos, podemos discutir com base nos escritos do Novo Testamento. Assim sendo, somos obrigados a recorrer à razão natural, à qual todos devem necessariamente aderir. Acontece, porém, que a razão natural pode enganar-se nas coisas de Deus. No estudo atento que faremos de uma determinada verdade particular, mostraremos quais são os erros que esta verdade exclui, e ao mesmo tempo exporemos como esta verdade, estabelecida pela via demonstrativa, concorda com a fé da religião cristã. CAPÍTULO TERCEIRO A possibilidade de descobrir a verdade divina Existem muitas maneiras de descobrir a verdade. Como diz muito bem o Filósofo (Aristóteles), citado por Boécio, "é próprio do homem culto exigir, em cada assunto, o rigor que comporta a natureza da matéria" (Sobre a Ética, livro III, capitulo IV). Conseqüentemente, cumpre-nos começar por mostrar de que maneira se pode descobrir a verdade proposta. As verdades que professamos acerca de Deus revestem uma dupla modalidade. Com efeito, existem a respeito de Deus verdades que ultrapassam totalmente as capacidades da razão humana. Uma delas é. por exemplo, que Deus é trino e uno. Ao contrário, existem verdades que podem ser atingidas pela razão: por exemplo, que Deus existe, que há um só Deus, etc. Estas últimas verdades, os próprios filósofos as provaram por via demonstrativa, guiados que eram pelo lume da razão natural. Que existe em Deus um domínio ininteligível, o qual ultrapassa totalmente as capacidades da razão humana, é evidente. O princípio de todo conhecimento que a inteligência pode conseguir acerca de uma coisa é o conhecimento da substância desta coisa, visto que, segundo o ensinamento do Filósofo, o princípio de demonstração é '"aquilo que uma coisa é" (livro II dos Analíticos Segundos, III, 9). Por conseguinte, a maneira pela qual a substância da coisa é apreendida pela inteligência comandará necessariamente a maneira pela qual se conhecerá tudo quanto diz respeito a esta coisa. Se. portanto, a inteligência humana apreende a substância de uma determi- nada coisa, por exemplo, da pedra ou do triângulo, nada do que está dentro do domínio inteligível desta coisa ultrapassará a capacidade da razão humana. Tal não é o nosso caso com referência a Deus. A inteligência humana é incapaz, pelas suas próprias forças, de apreender a substância ou a essência íntima de Deus. Com efeito, o nosso conhecimento intelectual, conforme o modo próprio da vida presente, tem seu ponto de partida nos sentidos corporais, de tal modo que tudo o que não cai sob o domínio dos sentidos não pode ser apreendido pela inteligência humana, a não ser na medida em que os objetos sensíveis (acessí- veis aos sentidos) permitem deduzir a existência de tais coisas. Ora, os objetos sensíveis não podem conduzir a nossa inteligência a enxergar neles aquilo que constitui a substância ou essência divina, pois se verifica uma diferença de nível entre os efeitos e o poder da coisa. E, todavia, os objetos sensíveis conduzem a nossa inteligência a um certo conhecimento de Deus, até ao ponto
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