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Guias e Dicas
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A construção do sentido na arquitetura - J. Teixeira Coelho Netto, Manuais, Projetos, Pesquisas de Urbanismo

livro de teixeira netto sobre construção e arquietetura

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2013
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Baixe A construção do sentido na arquitetura - J. Teixeira Coelho Netto e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Urbanismo, somente na Docsity! Próximo lançamento A Gramática do Decameron Tzvetan Todorov !eEtese atese tes arquitetura Uma edificação nflOtem apenlls um sll:nificlldo formlll, estético, e outro funcional: há nela sentidos 1i1:'l<lostanto ao po<'ticoquanto ao sociológi- co, movidos por val:0s Impulsos inconscienles ou por um nítido projeto ideológico. No entanto, hOIl p"r'" dll arquitelurll contemp0rl,nea tem deixado escapar esses nexos ou, pior allulll, manlpulll-os de maneira in- consciente, criando uni n.·luírio ond." u unluilclllrn ni,o fulu nu.is. apenas balbucia coisas que niio rum Ch"I:"111110 irls,'nsato, ,,'sulllmdo dllí o pro- gressivo esmaganlcnto d('" st·u d••~Unul{.rio('"!'oM"lIt'tul, () hUI11CIl •. É da crítica desta soh",;i1O.1•••· Â ('o'''lrll,,,o do Senlido na Âr'l"ilel"ra parte para a sua procuru bJtsi4:ll: n «Ir' 1111111Ihl~lInJ.:.:nl nu unlllitt"'uru cu- ja adequada operuciOIlUlilJ"'UU pw u tnu •...ronnul'" o utuul unll.itcto-téc. nico no proposítor de (,sl"',os j{' vlslulllhrndos 1'111olllms I•.-ríodos mllis perdidos na esteira du R("volu\,uo hl4llJ~lrlnl tO no d(·t·III·~()d•. UIIIU il'0, ..a em que o produto arquih·tuntl ~III-J.:t· ,ohl(".uclo 4,'4)1I1U \'ulor dto (runl ,. nflo de uso. j. teixeira coelho netto A CONSTRUCÃO DO SENTIDO NA ARQUITETURA Coleção Debates Dirigida por J.Guinsburg j. teixeira coelho netto A CONSTRUCÃO DO SENTIDO NA ARQUITETURA Equipe de realização - Revisão: Jost: Bonifáeio Caldas; Produção: Ricardo W. Neves e Adriana Garcia. ~\\,/~ ~ ~ EDITORA PERSPECTIVA ~I\\~ segue citar mais que um Lloyd Wright aqui, um ou- tro mais além (e isto, cOm reservas). Não parece res- tar dúvidas, no entanto, que os momentos em que a arquitetura constituiu, globalmente considerada, um discurso significativo pertencem ao passado. O arqui- teto grego (o da Antigüidade, bem entendido, pois a arquitetura comum das cidades gregas atuais não pas- sa, lamentavelmente, do nível tristemente baixo de um estilo internacional bastardo de nítidas influências ame- ricanas) sabia o que falava, conhecia aquilo com que f~lava, e o mesmo se pode dizer do arquiteto do gó- tIco, da renascença - mas não, obviamente. dos arquitetos de todos os neos, o neogótico, o neodás- sico, etc. Que se pretende dizer cOm isso? Que es ses homens tinham formulado, ou formulavam, um estoque preciso de conceitos e de signos do qual reti- ravam os elementos para propor uma arquitetura onde cada elemento se define por si só e, ao mesmo tem- po, em relação aos demais, num discurso que res- ponde a determinadas necessidades do homem da épo- ca e que este compreende. :b fácil prever, aqui, uma objeção: em suma, os grandes monumentos da história da arquitetura, os grandes nomes, estes têm uma linguagem específica, estes dominam um discurso: mas em volta de cada Notre-Dame de Paris, de cada palácio dos Doges há uma centena de habitações menOs ou mais pobres que o cronista não registrou e de cuja linguagem não se fala porque simplesmente não existe. E neste caso se poderia dizer que também nos tempos modernos os arquitetos "f"lam", pois Mendelsohn tem uma lingua- gem, Loos tem uma linguagem, etc. Esta objeção, em parte, tem sua razão de ser: sem dúvida, o capital sempre favoreceu o desenvol- vimento das artes, e a arquitetura não faz exceção. Por certo é mais fácil criar um código ou falar à perfeição uma certa língua quando o "cliente" tem todo o dinheiro necessário a tais exerckios. Dinheiro e tem- po: uma catedral gótica é assunto de gerações. Tudo isto é fato. No entanto, a história da arquitetura não se limita às catedrais ou aos palácios - ou pelo me- nos nã~ deveria se limitar, embora montanhas e mon- tanhas de volumes sobre história da arquitetura repi- tam sempre, incansavelmente, os mesmos nomes, as mesmas obras, e estas são sempre Notre-Dame, São Pedro, ea' d'Oro, etc. E se de fato, quando se fala da arquitetura grega, é preciso ressaltar que se está falando da arquitetura dos templos e deixando de mencionar a grande maioria de construções inqualifi- cáveis habitadas pelo povo; que quando se elogia a casa pompeana não se diz, freqüentemente, ter sido ela privilégio de bem poucos, por outro lado não é me- nos verdade que também não se menciona uma série de fatos (de forma alguma exceções ou em minoria) não relacionados com as "grandes obras" e os "grandes arquitetos" e que não deixam de apresentar-se como exemplos de domínio perfeito de uma linguagem precisa, clara e conveniente de arquitetura e urbanismo. Pense-se no discurso produzido por um hábil jogo entre ruas e praças que marca a maioria das cidades italianas, desde uma minúscula San Gimignano que chega até hoje pra- ticamente tal como era nos séculos XIV e XV, até uma moderna Turim (que mal ou bem, e por uma série de razões das quais nem todas são a simples cla- rividência urbanística, ainda conserva, pelo menos em seu centro, essa rede antiga). Quem assinou essas obras, essas concepções? Michelângelo e Borromini se ocuparam de Roma, mas quem "planejou" San Gimig- nano? O nome não ficou. E no entanto, muitas dessas cidades não são simples proposições espontâneas: fo- ram até certo ponto planejadas. E não o foram apenns para as grandes famílias, para os doges e papas: o povo era e é seu grande usuário. E uma linguagem está presente nessas obras, uma linguagem urba- nística onde o fechado e o aberto se completam, e o previsível cOm o inesperado, o protegido e o exposto, o privado e o comum, o geométrico e o orgânico, em suma: a unidade e a variedade. Essa é uma lingua- gem completa, onde o indivíduo faz parte da cidade e a cidade, parte fundamental do indivíduo. O homem vive na cidade e da cidade, e a cidade não deixa de viver do homem. Recentemente falaram mais uma vez, absurdo risível não fosse trágico, em transformar Ve- neza numa espécie de museu a ser visitado: custou convencer tais "planejadores" que sem os habitan- tes "normais" da cidade, Veneza se transformaria num simples amontoado de pedras que morreria rapidamente como qualquer ser vivo. Onde se encontra, hoje, essa linguagem que não é essencialmente vista e apontada-como "grande obra da arquitetura ou da urbanística" mas que é sentida fisi- camente, emocionalmente, por aqueles que ainda n:'ío se deixaram entorpecer totalmente pelo vazio signifi- cativo das "cidades" modernas? Em lugar nenhum. Somente naquelas cidades o homem ainda dialoga cOm o espaço que o circunda: ao final de uma ruela som- bria, a enorme surpresa sensorial de um espaço aber- to; aqui, uma escada que separa duas paisagens intei- ramente distintas - mas identifica-se o todo como um conjunto unitário que o indivíduo nunca conhece intei- ramente mas que ele não deixa de reconhe:::er. E não um conjunto (na verdade, Um aglomerado) como os de hoje onde o espaço é inteiramente hostil ao indiví- duo (que não pertence a ele), não lhe dando nenhu- ma informação além do mínimo exigido pelo utilita- rismo (o funcionalismo, esse deus da opressão), e que o homem não conhece nem em parte nem no todo, que o homem sempre estranha porque a cidade, a intervalos cada vez menores, é constante e li~eral- mente destruída para abrigar o novo e todo-pode- roso hóspede, o automóvel, em novas e luzentes ave- nidas que levam do nada a lugar nenhum em termos de espaço humano. Uma linguagem arquitetural não é portanto privi- légio das grandes obras ou dos grandes nomes: na ver- dade mesmo, ela é ainda mais rica quando se mani- festa nas obras que passam despercebidas, naquelas para as quais os guias turísticos não apontam porque estão se servindo delas e nem pensam nisso: na ma- lha viária, no jogo dos espaços, das cores. E tam- pouco essa linguagem é privilégio dos "tempos pas- sados". Se é verdade que a con:::epção norte-america- na de arquitetura e urbanística (que deixou boquia- berto o Le Corbuster de Quand les cathédrales étaient blanches, esse selvagem suíço prostrado diante do templo ilusionista de Nova York) é um real cancro extremamente árduo de se combater, tampouco é im- possível propor uma verdadeira linguagem para as atuais "áglomerações". Na verdade, aquilo de que es- tas cidades carecem tremendamente é justamente de uma verdadeira linguagem que substitua o amontoado de frases e signos arquitetõnicos sem sentido (porque tanto quem os propõe quanto quem os recebe e utili- za não 'Sabem o que significam, embora sintam seus efeitos) a contribuir unicamente para o caos total. Uma linguagem precisa. Se a arquitetura é uma arte (e é, efetivamente), é uma arte específica que necessita não de uma linguagem mais ou menOs intui- tiva com a qual o sujeito da criação artística lida e propõe sua obra, porém cujo significado real ele só vem a descobrir freqüentem ente finda a obra, mas sim de uma linguagem definida tanto quanto possível de antemão (pelo menos num de seus elementos, o espacial como se verá a seguir) e que esteja ao al- cance simultâneo do criador e do re:::eptor (enquanto nas outras artes, a linguagem produtora é praticamen- te um segredo do criador, e a ela o receptor só tem acesso mais tarde - e eventualmente). Quais os elementos dessa linguagem? As duas grandes unidades sintagmáticas em que se pode ini- cialmente decompor a linguagem da arquitetura (e da urbanística) são o discurso primeiro do espaço em si mesmo (o discurso do arranjo espacial) e o discurso estéti:::o do espaço (o arranjo espacial sob uma forma artística) . Que se deve considerar como aquilo que cons- titui o objeto de estudo referente ao primeiro discurso? Em poucas palavras, esse campo será constituído pe- las respostas possíveis à indagação básica: afinal, que ê o espaço? De fato, o que é o espaço? Isso deve- ria ser um conceito básico, muitos dirão que se trata de noção fundamental, praticamente um postulado indefinível. Uma das respostas mais comuns que se obtém a essa indagação é: espaço é isso que nos cer- ca. Mas o que é isso? E por que esse "nos cerca"? Por que esse conceito do homem ilhado no meio de um espaço, que aliás a arquitetura só faz perpetuar? Não seria simplesmen~e porque não se dispõe ainda de uma noção adequada de espaço, o qual, neste caso, é visto como mais um mistério cuja função básica (como a de todos os mistérios) é de alguma forma oprimir o homem, isolá-Io dentro de si mesmo (como o medo do desconhecido), ilhá-Io? Efetivamente, não existe ainda um corpo de ·coahecimentos orgânicos capaz de reunir uma série de noções fragmentadas so- bre o espaço de modo a fornecer-nos um conceito operacional, manipulável. E isto é tanto mais grave para o arquiteto uma vez que _se supõe que a arqui- tetura trabalha o espaço - e grave porque o arqui- teto trabalha sobre uma coisa que ele simplesmente não sabe o que é, cujos significados (dos superfi- ciais aos mais profundos) ele desconhece inteira- mente! E se chega ao absurdo de se ter uma série de teorias altamente elaboradas sobre o modo de tra- tar algo que não se sabe definir! Aliás, é necessário mesmo frisar que durante um tempo consideravelmen- te longo a própria arquitetura não sabia nem mesmo propor-se seu verdadeiro objeto, o espaço, recalcando- o sob fórmulas vazias que partiam justamente do pressuposto de que se sabia, obviamente, o que era o espaço. Os exemplos disto são mais de um. Como Vitrúvio conceituava a arquitetura? Dizendo que ar· quitetura é ordenamento, disposição, proporção, dis- tribuição. Do quê? Do espaço, por certo - mas isto era dado como algo já estabelecido. Alberti: arquite- Itura é voluptas, jirmitas, c.omfl1QdiJas..-E-.o _.espaço? esposta-possível: Está implícito. Não: está escamo- teado. VioIlet-Le-Duc: arquitetura é a arte de cons- truir. Fórmula até poética, se se quiser, _mas nova- mente se parte do pressuposto de que já se conhece aquilo sobre o que se vai construir ou que se vai COns- truir. Já Perret propunha que a arquitetura é a arte de organizar o espaço: vê-se aqui, pelo menos, a no- ção de espaço aflorar nitidamente à superfície do pen- samento arquitetural, mas o arquiteto ainda vai con- tinuar se preocupando apenas com as noções tradi- cionais de material, forma, função e com as noções mais recentes produzidas pela sociologia e pela eco- nomia política. Naturalmente se poderia dizer que até meados do. século xx não se tinha nem mesmo com o que pensar o espaço a não ser em termos tradicio- nais de geometria, o que efetivamente é verdade, pois algumas disciplinas fundamentais para a abordagem do espaço só irão se firmar nas primeiras décadas de 1900 (como a psicanálise), enquanto outras só irão começar a. se estruturar bem mais tarde (como a pro- xêmica). Já é tempo, no entanto, de trazer a pesqui- sa do espaço em si para o primeiro plano dos estu- dos de arquitetura; este estudo não tem a pretensão, ainda que remota, de nem ao menos expor o proble- ma em toda sua extensão (quanto mais resolvê-Io), mas pelo menos tratará de levantar aqueles elemen- tos que são absolutamente indispensáveis para a práti- ca do espaço. O outro dos discursos a ser aqui abordado é o elaborado pela estéüca do espaço (de acordo cOm a fórmula de Perret, o sentido da "organização do es- paço" constitui o corpo do primeiro discurso, e o pro- blema da "arte da", o corpo deste discurso segundo). Estética: a simples menção deste termo talvez já seja suficiente para abrir um enorme claro entre os even- tuais arquitetos leitores deste trabalho. De fato, os pro- blemas de estética têm a peculiar propriedade de aglu- tinar contra si adeptos de duas correntes perfeitamente opostas em arquitetura: os tecnocratas e os huma- nistas (ou a arquitetura do status quo e a arquitetura de vanguarda em seu sentido mais amplo, formal e político). Os tecnocratas não vêem nenhuma utilida- de para a estética ou para a arte; para estes, res- ponsáveis por uma arquitetura bastarda e de pacoti- lha (os grandes edifícios, as habitações coletivas, as monstruosas avenidas, as vias expressas, etc.), arqui- tetura se resume na "arte" de equacionar adequada- mente forças, material, tempo e dinheiro, especial- mente estes dois últimos elementos. Para muitos dos que se colocam sob a bandeira da vanguarda (simples rótulo vazio, na maioria das vezes), Estética é igual- mente detestável como signo de um ensino arcaico e cIassista. Com que orgulho de "revolucionário" um estudante de arquitetura de Veneza lhe contará "as lutas que tivemos para acabar com a questão da Esté- tica em arquitetura" - sem se dar a menor conta do espaço, do ambiente e da arquitetura que o cerca em sua própria cidade, por certo um dos arquétipos ar- quiteturais do homem moderno! Por um lado, é extremamente fácil saber a causa de tanto ódio à estética por parte destes "vanguar- deiros~': para eles, os problemas de estética estão in- dissoluvelmente ligados, senão racionalmente, pelo me- nos ao nível do sentimento e da "impressão", à cul- tura clássica, especificamente à cultura renascentista à qual ainda estamos incrivelmente associados, e da qual a esmagadora maioria da arquitetura atual ainda é um exemplo. Para eles (e com razão, pois estes problemas ainda continuam a ser freqüentemente co- locados em tais termos) Estética diz respeito às ca- tegorias do belo e do feio, e às questões de forma e teiramente evitada dentro de uma prática arquitetônica efetivamente humanista. Não se trata, de fato, de "ocu- par" o espaço: Augusto Perret 6, que não é prop~ia- mente uma estrela da arquitetura como Le Corbusle~, propõe um conceito inteiramente adequado. de, arqm- tetura: "a arte de organizar o espaço (o grifo e meu) que se exprime através da construção". Organiza~ o espaço e, mesmo, mais que isso, criar? espaço: aSSim, efetivamente, se pode descrever a arqmtetura. E se for necessário ser ainda mais preciso, pode-se ressaltar que arquitetura é simplesmente traba}ho sobre o Espaç~, produção do Espaço 7 - este e o elemento esp~cl- fico da arquitetura, escamoteado em todos estes secu- los e ainda hoje. Mas por que esta ocultação, esta marginalização do Espaço? Embora toda proposição arquitetural rel~ve sempre de uma ideologia, e apesar d.e.toda a arqmte- tura em sua totalidade poder ser deflnida como resul- tante e simultaneamente alimentadora de uma ideologia repressiva (antes de mais nad~ pela sua ~rópria natu- reza econômica - mas tambem em razao de aspec- tos materiais da construção, como se verá a seguir), será talvez necessário reconhecer que esse abandono do Espaço reveste-se de ~m carát.e~ "inocente", não intencional sendo fruto nao especlficamente de uma má consciência mas apenas de uma consciência incons- ciente (claro que não por isso desculpável). Como? possivelmente sob a influência da geometria euclidiana (e o espaço arquitetural costuma aind~ ser. i?ent~fica~o com o espaço geométrico, embora t~l ldentlficaçao seja não só desnecessária como não pertmente e mesmo no- civa como se verá), o arquiteto habituou-se a consi- der;r o Espaço como um dado (no sentido primeiro do termo: oferecido) evidente por si só e portanto que não necessita ser demonstrado); um postulado, enfim. E um postulado não se discute, é posto à margem d.a discussão: é mesmo recalcado - e tanto que o arqm- teto nem mesmo se dá mais conta dele. Contudo, a noção de Espaço não é e nunca foi uma noção evi- dente por si mesma. O que é afinal o Espaço, qual o sentido do elemento sobre o qual a arqmtetura traba- lha às cegas? Até o século XX o arquiteto não tinha como, na verdade, proceder a esse estudo e pouco mais podia fazer alguém de jogar com o Espaço en- quanto noção absoluta e auto-suficiente (daí, por exemplo, os lamentáveis enganos, hoje chamados kitsch, que foram e continuam a ser as transplantações de es- tilos ou soluções arquitetônicas: o clássico grego em Washington, um barroco francês no tropical Rio de Janeiro, um vitoriano inglês no árabe Egito, etc.) . Uma série de disciplinas atuais, no entanto, da antro- pologia à semiologia, passando por pontos de inter- secção como a proxêmica, pôs em realce não ape- nas o caráter totalmente relativo da noção de Espa- ço cama a conseqüente necessidade de estudar e deli- mitar, praticamente caso por caso, os sentidos especí- ficos do Espaço, conforme o lugar e o tempo. E a ar- quitetura cOm isso tem de voltar atrás e repensar (ou mesmo pensar pela primeira vez) o elemento que até aqui foi sua base indiscutida: qual o sentido do Espaço, afinal? 6. M. ZAHAR, Auguste Perret. Paris, 1959. 7. E não "pensamento do Espaço", como sugere Boudon: arquitetura é ação, não apenas renexão. 1.2. Semiologia da arquitetura? Definido o objeto da arquitetura cama sendo a produção do Espaço, surge a questão de saber de que Espaço se trata, quais suas espécies, suas delimitações, para a seguir ser possível indagar de seus respectivos sentidos (operações estas, aliás, intimamente ligadas). Esta necessidade faz logo pensar num recurso a uma semiologla do espaço arquitetura I ou no estabelecimen- lacre tal semiologia. No entanto, embora não reste a - menor dúvida quanto ao Espaço constituir uma se- miótica (i. e., num sentido mais simples, mais amPJo possível e menos rígido: um conjunto analisável de sig- nos), não se recorrerá nem a nenhuma das "semiolo- gias" do espaço já "estabelecidas", nem se tentará aqui propor uma nova. Por que esta recusa se este mesmo trabalho será, ao final - quer queira ou não -, um trabalho de indagação semiológica? A negativa em recorrer a modelos de semiologia do Espaço reside na verificação do quão pouco de útil esses estudos trou- xeram até aqui e da previsão probabilística do quase nada que poderão oferecer num futuro imediato ou remoto - pelo menos no que diz respeito ao estabe- lecimento de uma semiologia do espaço arquitetural de caráter genérico e englobante, passível de ser utili- zada como instrumento de trabalho pela maioria dos arquitetos e não apenas como tema de infindáveis dis- cussões teóricas. Com efeito, é totalmente lícito per- guntar se existe atualmente um conjunto de regras bá- sicas e comuns capaz de fornecer, aos próprios teóricos do Espaço e aos que dela se servem no trabalho pro- fissional, um campo único de entendimento a respeito daquilo sobre o que se quer falar. Estas pesquisas "se- miológicas" constituem um verdadeiro circo onde cada um manipula um conceito p'articular que provocará "modelos" cuja utilidade consiste unicamente em exis- tir enquanto tais e mais nada. Em 1974, após um con- gresso de semiologia em Milão, a considerada revista de semiologia VS 8 publicou um número especial com uma "Bibliografia semiótica" abrangendo toda a pro- dução sobre semiologia em uma série de países, uma bibliografia que se confessa ao mesmo tempo ampla e rigorosa. Mas se os critérios de rigor tivessem sido real- mente aplicados, ao invés das duzentas e tantas pági- nas desse número, e de outras em números seguintes, se teria talvez uma meia dúzia de páginas. Os próprios organizadores se- dão conta da barafunda conceitual existente no campo - o que não impede que incluam, em sua relação, obras que se dizem "de semiologia" mas cuja semelhança com esta disciplina é realmente mera coincidência. O que se entende hoje por semiologia do espaço, semiologia da arquitetura, semiologia do espaço arqui- tetural, o que se admite, mal ou bem (mais mal que bem), como constituintes desses corpos de estudo? Sem muito esforço se consegue enquadrar os trabalhos exis- tentes em alguns poucos tipos bem definidos: a) trabalhos de inspiração nos métodos lingüísticas e que procuram mostrar as possibilidades de uma análise semiológica do espaço com (no máximo) uma tentativa de determinar as aparentemente obri- gatórias unidades mínimas significantes e suas cOm- binações em discursos mais amplos; b) trabalhos sobre sistemas de notação da lingua- gem arquitetural (na verdade só possíveis depois de se realizar o especificado no item anterior e que, no entanto, freqüentem ente tentam se propor iso- ladamente) ; c) estudos da "dimensão verbal" da arquitetura (análise do conteúdo da arquitetura através da identificação de seus análogos verbais, visando es- tabelecer "gramáticas" do espaço urbano ou ar- quitetura) ou, em termos mais gerais, estudos so- bre a "representação" do espaço arquitetural (através de fotos, esquemas, desenhos, quadros, etc) ; d) análise das relações entre espaço arquitetural e o espaço gráfico-geométrico (um tipo da espécie apontada acima); e) análise das relações entre espaço mental e espaço físko; f ) estudos sobre modificação do sentido, semantiza- ção ou dessemantização do espaço arquitetural lo- calizado (praças, ruas, aposentos, etc.); g) trabalhos sobre os modos de percepção do am- biente construído; h) estudo dos espaços físicos e sua utilização social; i ) análise da obra de arquitetos individualmente COn- siderados, em termos de morfologia e sintaxe (equi- valentes aos antigos "estudos de estilo"); j) e, mesmo, análise dos dicursos sobre a arquitetura (e não da arquitetura). De imediato se percebe que todos esses itens, me· nos um, relacionam tipos de obras que nada têm a ver com uma análise semiológica entendida segundo critérios rigorosos. A maioria se diz (ou é recebida como) semiológica simplesmente por tentar uma ma- nipulação do problema do significado em arquitetura ou por falar do espaço arquitetural enquanto signo _ o que obviamente não basta se se encara o empreendi- mento semiológico numa perspectiva rigorosa. E os trabalhos que seriam mais especificamente semiológicos são, na maioria, totalmente inexpressivos, nada trazendo que possa ser aproveitado numa real sem~ologia da arquitetura. Vejam-se por exemplo os escntos de Eco e seus discípulos 9: Eco se indaga s'o- 9. Ver, por ex., A estrutura ausente As formas do con- teúdo, Tratado àe semiótica geral, todos de u. Eco. bre o que é código em arquitetura, se arquitetura é lín- gua ou fala, se tem uma, duas ou mais articulações, e termina sugerindo que os elementos de segunda arti- culação são o ângulo, a linha reta, a curva, o ponto (!) e que os de primeira articulação são o quadrado, o re- tângulo, as figuras irregulares, etc. (!!) De que, mas "realiiiente de que, na mais remota possibilidade, adian- ta ao teórico ou ao profissional saber que um espa- ço arquitetural se formula através de combinação entre linhas e pontos formando figuras, e que uns são os famosos elementos de segunda articulação e outros, os de primeira articulação? Não serve para nada, rigorosa- mente para nada a não ser demonstrar a existência de uma doença infantil da semiologia! Isso quando não se trata de trabalhos 10 que dizem o que é uma lingua- gem, fazem um resumo das teorias de um ou dois au- tores que seriam aplicáveis a uma semioJogia da arqui- tetura, dizem que um modelo semiológico da arquitetu- ra seria possível por esta ou aquela rápida razão sem no entanto chegar, nem de longe, a propor tal mo- delo 11. E mais ainda: é perfeitamente lícito ao arqui- teto dizer que não se interessa minimamente pelas pos- sibilidades de seu discurso ser identificado com o mo- delo proposto pela lingüística, que nada lhe diz a pro- posição segundo a qual uma linha é um fonema ou que todo o discurso arquitetural é realmente um código. O que deve lhe interessar é na verdade o significado de seu modo de organizar o Espaço, a maneira pela qu'al a arquitetura é normalmente recebida e sentida (ou manipulada) pelo homem e pela sociedade. E aqui se verifica que os trabalhos encaixados nO~ itens de c a i acabam por revelar-se na verdade mais úteis para o ar- quiteto embora nada tenham a ver com os proble- mas da semiologia propriamente dita. Eqnivale isto a afirmar que para o arquiteto o problema fundamental está ainda antes em identificar as significações bási- cas de seu discurso do que em formular modelos de artkulação dessas significações. E com isto todo tra- balho de indagação do sentido em arquitetura será fun- damentalmente pluridisciplinar: a abordagem psicológi- ca, a sociológica e a histórica não podem e não devem ser evitadas. Ostentar o rótulo segregacionista de "Se- miologia" é antes ocultar-se sob um nome (ainda) prestigioso e ocultar uma inoperância. Há ainda uma outra razão para deixar de lado as pesquisas ditas semiológicas, em particular as descritas no item a acima: todo estabelecimento de um modelo semiológico tem por resultado (quase) inelutável a fi- xação do discurso analisado em moldes inelásticos. Apreende-se e imobiliza-se o objeto de estudo. E não é necessário ressaltar os inconvenientes dessa solução: --se é perfeitamente possível admiti-Ia quando se trata de ,.analisar uma produção, uma linguagem já imobilizada, . já morta (a arquitetura barroca, a gótica, a arquitetu- -ra de Le Corbusier) - quando é mesmo instrumento 10. Por exemplo, o livro de Maria Lulsa Scalvlnl sob o pomposo título L'architettura come semiotica connotativa (MI- lão, 1975) e que não propõe semiótica alguma da arquitetura. 11. Para o leitor não especializado e não interessado nos problemas de semiologia explica-se rapidamente que o propósito de multo semiólogo (em particular os de extração da Europa Ocidental) é o de demonstrar que um determinado conjunto de signos (como os produzidos pelo espaço, ou pela estória em quadrinhos, pelo cinema, pelos gestos humanos, etc.) constltul- se numa linguagem (um repertório fortemente organizado de sig- nos que se combínam através de normas fixas, como nas lin- guas naturais: português, francês, etc.) que se estrutura essen- cialmente, conforme a teoria de HJelmslev (Prolégoménes à une tnéorie du langage, Paris, 1971), através da: a) existência de dois planos, Expressão e Conteúdo. Ex: o prefixo "229" (EXpressão) de uma estação telefônica de Londres equivale ou remete ao Conteúdo "Bayswater" (uma área lon- drina) ; b) existência de dois eixos: Sistema (o suporte, a Infra- estrutura do texto a ser lido por um receptor: as normas de combinação) e Processo (o próprio texto que é Imediatamente lido pelo receptor: uma seqüência de gestos do corpo humano, as formas e cores de uma tela, etc.); c) propriedade de comutação: relação entre duas unidades de um mesmo plano da linguagem, que está ligada a uma relação entre duas unidades do outro plano. Por exemplo, duas unidades do plano da expressão "687" e "405" (prefixos de estação telefônica) e duas unidades do plano da expressão "Museum" e, "Holborn". Entre essas unidades existe um relacionamento tal que se "687" for substituído por "405", "Museum" será substituído por "Holborn"; d) as propriedades da recção e combinação (relaçôes bem definidas entre as unidade lingüísticas). Há recção quando uma unidade Implica a outra, de modo tal que a unidade Implicada é condição necessária para que a unidade que a Implica esteja pre- sente. Por exemplo, em latim uma certa preposição Implica que o nome a seguir esteja no ablativo (e se este estiver no ablatlvo. a proposição que o precede deve ser de determinada espécie). Da mesma forma, num determinado semáforo a presença do amarelo Implica que o verde ou o vermelho o precedeu ou se lhe seguirá (assim como a presença de um verde oU um vermelho implica que um amarelo o precedeu ou se lhe seguirá). Há combinação quando duas unidades se relacionam sem que haja recção; e) a não-conformidade. Numa verdadeira linguagem, pode ocorrer que determinadas unidades de um plano não encontrem uma correspondência no outro plano; numa falsa linguagem, essa correspondência existe sempre: por exemplo, na chamada linguagem do semáforo - que não o é - toda expressão "amarelo" tem um conteúdo "atenção", bem como todo conteúdo "siga" tem uma ex- pressão "verde", etc. Diz-se ainda que uma linguagem é formada por signos (ou mo- nemas: as menOres unidades com significado próprio, como qualquer palavra das línguas naturais: "gato") e. mais especialmente, por figuras que articulam os signos (ou fonemas, unidades sem signi- ficado específico, como d, m, p), conhecidas respectivamente como unidades de primeira articulação e unidades de segunda articulação, de modo tal que os monemas se formam através da artlculaçáo dos tonemas (g,a,t,o = gato) e a articulaçáo dos monemas propõe entidades maiores como os sintagmas. Essas sucessivas articulações compõem O discurso que se oferece ao receptor. ção geométrica será mesmo essencial a todo pensamen- to analítico (e a arquitetura é uma forma desse pen- samento), mas deter-se nela e partir dela para definir o espaço arquitetural e a arquitetura é não descer às bases mesmas do pensamento sobre o Espaço que, ape- nas numa segunda operação, irá requerer ou não a es- quematização geométrica. Esta comporá me~mo um dos eixos constituintes da linguagem da arqmtetura, mas por si só é insuficiente para defini-Ia. O ponto de partida adequado será determinado pela manipulação dos dados fornecidos pela antropologia, e de imediato se constitui o primeiro eixo de oposições da demar;:.:ação do espaço arquitetural: Interior X Ex- terior. O confronto entre ambos e a passagem de um Espaço Interior para um Espaço Exterior constitui real- mente a noção e a operação de manipulação do Espa- ço mais importante para o homem, desde os primeiros tempos pré-históricos em que a sociedade n~m mes- mo existia. Quer no plano estritamente matenal (pro- teção contra o tempo, as feras e os outros homens) quanto num plano psicológico e social: analisando da- dos fornecidos pela antropologia e querendo explicar os tabus em termos de psicanálise, Freud 14 insiste jus- tamente no valor dessa consciência precisa de um Es- paço Exterior e um Espaço Interior para os povos "primitivos", mesmo aqueles que mal se constituíam num grupo so:.:ial.Há sempre, nessas "sociedades", uma· série de indivíduos que por razões variadas devem manter-se (por norma impositiva incontornável) em de- terminados Espaços interiores Ou exteriores: em certos grupos, o jovem de uma certa idade não penetra no Espaço Interior onde estão a mãe e/ou as irmãs (tabu do incesto: impõe-se o afastamento para evitar p. ten- tação da violação); a mulher menstruada, em outros grupos, é tabu e deve permanecer em determinados Espaços Interiores, a~astada dos outros, e ? mes~o acontece com o guerreiro que mata um adversano: apos o combate o vencedor ou não pode entrar em certos Espaços (às vezes não pode penetrar na área da co- munidade, ficando no mato adjacente) ou sair de cer- tos Espaços. Idem em relação à figura do próprio rei, quase sempre movend~-se em Espaços, ~nteriores!. etc; E ainda hoje se podena apontar resqmclOs (e nao so resquícios) dessa oposição Interior X Exterior: a burocracia, a religião, a divisão em classe sociais não faz mais do que manifestar-se constantemente através dessa oposição. Como se coloca a arquitetura com relação a esse eixo? Privilegia ela um ou outro desses dois terminais (i. e., define-se ela por um ou por outro deles) ou, ao contrário, só pode ser entendida como relacionando- se a ambos simultaneamente? De início, é necessário rechaçar a tendência que ,:.:onsisteem considerar essa questão como ingênua e já solucionada e, em particu- lar, a tendência para considerar o Espaço Interior como o domínio da arquitetura e o Espaço Exterior cOmo pertencendo ao urbanismo. Pelo contrário·, essa questão sempre esteve e continua em pé na Teoria da Arqui- tetura. Existe efetivamente uma tendência acentuada no sentido de atribuir à arquitetura a preocupação primeira e fundamental de lidar com o Interior (falando-se aqui não apenas do Interior e Exterior como dois elemen- tos distintos - ex.: rua = exterior; casa = interior - mas como dois aspectos de um mesmo elemento, ex.: a parte interior e a parte exterior de uma e mesma casa). Em considerar que o interior é a real substância de uma coisa, de tal modo que quando se pensa em definir a substância da arquitetura só se pode dirigir para o Interior. E essa inclinação não é exclusiva do pensamento arquitetural: está por toda parte. Bache- lard 15 analisa longamente essa espécie de valorização intuitiva e onipresente do interior e que seria, s~gundo ele, uma das características do espírito pré-científico para o qual o interior de uma coisa é sua essência, sua verdade, sua natureza e seu destino últimos. E tenta- se mesmo justificar esse ponto de vista recorrendo-se por vezes a analogias que se querem, estas, científicas: a verdade do homem não estaria em seu interior, em sua "alma", ou em seu incons:.:iente enfim, em algo que está lá dentro? Na verdade, a analogia não se susten- ta, e o pensa[ijento "interiorista" é antes um pensa- mento místico, um pensamento mágico, um pensamento do misterioso: o interior é, desde o surgimento do ho- mem, a sede de mistérios insondáveis, impenetráveis e mesmo aterrorizantes. Bachelard fala das formas sob as quais esse medo do interior (e por conseguinte sua va- lorização, ou vice-versa) continua a persistir e se ma- nifestar: a atração receosa pela gaveta, cofres, armá- rios ou, o que interessa para a arquitetura, pelos porões das ,casas (depósito de fantàsmas, alucinações e culpas - a literatura policial abunda em "mistérios de porão") e pelos cantos. :É possível mesmo encontrar na colo- cação psicológica de Bachelard a explicação das ra- zões (senão a explicação) do enfoque que consiste em considerar a arquitetura como manipulação do Espaço Interior: terior, o que não aconteceu nem no Românico, nem na arquitetura grega e tampouco na construção monu- mental egípda, nas· quais impera ou uma acentuada di- ferença entre Exterior e Interior (na primeira) ou mes- mo uma disparidade gritante (nas outras duas). Essa tendência, que vem à tona e simultaneamente atinge o auge no Gótico, ainda se verifica (em grau menor) na Renascença e no Barroco (momentos em que se coloca de maneira nítida o problema da "facha- da"), quando cOmeça a declinar para, salvo momentos isolados (alguma art l1ouveall, produções dos grandes nomes como Le Corbusier ou Lloyd Wright COm seu exemplar Museu Guggenheim de New York, mais um caso de identidade perfeita entre Exterior e Interior), ser atualmente substituída por uma arquitetura essencial- mente "de Exterior", seja o que for que pretendam di- zer os adeptos da teoria Forma X Função (ver capí- tulo seguinte), ou seja, uma arquitetura que se dedica de maneira específica à "fachada" e que coloca em se- gundo plano o pensamento do interior ou onde, de qual- quer forma, inexiste a identificação Exterior-Interior, rompida em privilégio do primeiro. Como se coloca afinal a arquitetura em relação ao eixo Espaço Exterior X Espaço Interior, qual o Espaço que efetivamente define, aqui, o pensamento arquitetu- ral? :É necessário, de início, repelir as proposições dos que se recusam a tomar conhecimento do problema afirmando que é impossível determinar-se, situar-se em relação a esses termos por se tratar de noções relativas, e duplamente relativas. Relativos um em relação ao outro (não pode haver interior sem exterior, diz Bou- don 19, e se a arquitetura é interior, como pode con- tinuar a ser arquitetura sem um exterior?) e relativos conforme o observador se coloque no plano da casa ou da cidade: aqui, com efeito, a fachada (elemento exte- rior da casa) é na verdade elemento interno (inerente) à casa, só podendo ser considerado exterior à casa aqui- lo que está afastado dela, i.e., a praça, a rua, o espaço coletivo. Essa objeção se supera através da utilização, de início, dos próprios termos de sua colocação: de fato, não há exterior sem interior e vice-versa. Quando com- parados um em relação ao outro, se deveria falar antes em complementação: são como as duas faces de uma moeda, e se faltar uma a moeda não pode existir. Mas ... todo canto numa casa, todo ç.arito num quarto, todo espa- ço reduzido onde gostamos de nos agachar, de nos voltarmos sobre nós mesmos é, para a imaginação, uma solidão, i. e., o germe de um quarto, o germe de uma casa 16 (o grifo é meu). ... o canto é um refúgio que nos assegura um primeiro valor do ser: a imobilidade 17. Conhecemos a seqüência: enquanto refúgio, imo- bilidade, tranqüilidade, o canto (i. e., a casa) é a re- produção do primeiro abrigo humano, o útero mater- no, e por conseguinte a arquitetura, expressão perfeita da imobilidade, se decidiria por uma das pontas do eixo: o Interior. E assim tem sido efetivamente através dos séculos: desde a concepção de uma casa egípcia (não de um templo egípcio) da xx dinastia (aprox. 1198 a.C.), passando pela casa pompeana (79 d.C.), até o período românico (séculos XI, XII) obedeceu-se a essa orientação de manipular por excelência um Espaço' In- terior concebido cOmo oposição ao Exterior e com o qual se procurava uma proteção necessária - quem vê o muro liso e exterior (anônimo, agressivo) de uma casa pompeana é incapaz de imaginar a tranqüilidade, a intimidade (a imobilidade) interior. Mas, o "misticismo interiorista" já foi identifica- do, combatido e superado pelo menos na filosofia, de- pois do longo período de obscurantismo platônico e escolástico: parafraseando Lenin, por exemplo (que não estava fazendo um mero jogo de palavras, embora por certo tinha em mente uma intenção jocosa) é inques- tionável que a aparência é essencial, ao mesmo tempo em que o essencial aparece 18. Fato que começa a se manifestar na arquitetura a partir do Gótico, quando o exterior de uma catedral é um reflexo fif'l de seu in- 16. BACHELARD,p. 30. 17. Idem, p. 131. 18. Em termos de arquitetura, Le Corbusler diria que "o exte- rior é sempre um outro Interior". a oposlçao mencionada· continua existindo, e só pode ser superada (quer se trate 'de uma casa, quando se fala em interior enquanto oposto à fachada, quer se trate da oposição casa = interior versus não-casa (rua, etc.) = exterior através de um jogo dialético entre esses aspectos. Não uma dialética concebida enquanto con- flito simples, mas enquanto jogo combinatório consis- tente em partir simultaneamente de uma e outra dessas duas noções para superá-Ias ao mesmo tempo. Na ver- dade, se dirá que, seja como for, a arquitetura é o domÍ- nio da imobilidade real, e que se vê mal como é possí- vel combiná-Ia com o jogo dialético, dinâmico por na- tureza e adequado aos processos humanos: este é um problema de peso, mas pode ser contornado, ou pode ter um começo de solução através de uma concepção que não mais receba esses limites (o do Interior e o do Exterior) como barreiras, marcos definitivos 20. E com isto se repele também a segunda parte da objeção levantada, referente à relatividade do ponto de vista (casa ou cidade): a oposição dialética também aqui deve ser, com toda evidência, posta em prática e aboli- das as barreiras definitivas entre a casa e a cidade. En- tenda-se bem: abolir muitas das barreiras, porém não todas elas; não há dúvida nenhuma sobre a validade da afirmação segundo a qual, psicológica e biologica- mente, o homem 21 precisa gozar de uma intimidade, de um isolamento dos outros por um certo número de horas diárias, e sob esse aspecto a casa enquanto refúgió é uma necessidade - por outro lado, igualmente não resta dúvida que o estado democrático (supondo que não haja aqui uma contradição nos próprios termos) só pode se implantar quando (não apenas nesse momento, eviden- temente: mas aí as condições para essa implantação serão amplamente favoráveis) se abolir o caráter dis- cricionário com que se reveste o uso dos Espaços Inte- riores e Exteriores, uso que continua a existir ainda sob muitas formas idênticas ou assemelhadas às postas em prática nas sociedades ditas "primitivas" antes men- cionadas. estudando-se também urbanismo; a seguir transforma- ram-se em fac~ldades de arquitetura e urbanismo, for- mando-se arqUItetos de um lado e urbanistas do outro i.e., especialistas, peritos. Ora, a especialização não s~ admite aqui, pelo que se acabou de dizer mais acima: a. s~paração d~s conhecimentos só pode conduzir à opo- slçao casa x Cidade que se tem de evitar a todo custo. A solução? Há já alguns anos Bruno Zevi fala numa nova disciplina (ou, pelo menos, num novo termo), a Urbatetura. O nome é feio, por certo (seguramente foi escolhido por exclusão: algo como "arquibanismo" seria realmente intolerável!), mas a denominação de fato pouco importa: o que interessa mesmo é percor- rer todo o caminho de volta até a Renascença e tentar contar de novo com homens que pensem a cidade sem se esquecer que ela é feita de casas, e que proponham casas integradas à malha coletiva - tal COmopropunha um nome talvez já desconhecido pelos arquitetos Mi- chelângelo. ' E a respeito da dialética casa x cidade é necessário observar ainda um ponto: até quando se suportará a distinção arquitetura e urbanismo? Conhece-se a histó- ria: no começo as faculdades eram só de arquitetura, Tão ou ainda mais importante do que ser capaz d.e_identifi~ar, formular e resolver o problema da opo- s~çao Intenor X Exterior é conhecer o significado pre- CISOdessas noções, sem o que aliás esse equacionamen- to é impossível ou inadequado. . Qual o significado que se atribui ao Espaço Inte. nor e ao Espaço Exterior ou, em outras palavras, como se percebe um Espaço Interior e um Espaço Exterior? Os primeiros ~a~os. vêm outra vez da antropologia cultural e de dISCiplInas que dela se alimentam, como .a proxêmica (definida por Hall22 como o conjunto das observações e teorias referentes ao uso que o homem faz ~o. espaço enquanto produto cultural específico) e a ek.lstl~a (termo proposto pelo arquiteto grego C. A. DoxIadls para designar o estudo dos modos de estabe- lecimento humanos). ~ primeira noção da importância fundamental que se extrai desses estudos é a que diz respeito aos diferentes usos que se faz de um certo espaço e aos diferentes senti- dos que se atribuem a esses espaços conforme a cultura (o grupo social em questão) e a época. Uma mesma dis- 20. Algumas possibilidades de execução desta alternativa são discutidas mais adiante, na análise dos demais eixos propostos. 21. Particularmente o ocidental médio. inobservância dá margem a uma série de equívocos sérios e lamentáveis: se uma ideologia como a marxista pôde ser posta em prática na China foi porque ela já encon- trou nessa cultura um conjunto de elementos de nature- za semelhante aos por ela defendidos e contra os quais ela não teve de entrar em conflito. E a maior parte desses elementos estão justamente no modo de organi- zação e utilização do Espaço, possivelmente um dos pri- meiros traços a determinar o tom geral de uma cultura. Efetivamente, na China sempre foi comum, em todos os tempos anteriores ao aparecimento de Mao, um modo de vida do tipo, em tudo e por tudo, coletivo: desde a organização do trabalho no campo, passando pelos mo- dos de usufruir o tempo livre nas representações teatrais ou nas tavernas, até o costume de dormir em conjunto, membros de uma família ou não, não só no mesmo apo- sento como sob a mesma coberta, a norma (o ".normal") é a vivência num espaço comum (não só na China, aliás, como no Japão e, de modo geral, em todo o Oriente). Não é de se estranhar portanto, pelo contrário, que as comunidades familiares de trabalho ou lazer hoje postas em prática na China tenham sido rapidamente aceitas: elas não se chocavam com a cultura tradicional do povo e, antes, encontraram na prática comunista um reflexo organizado e diretivo desse padrão de compor- tamento. Já o mesmo não parece ter-se verificado na Rússia, onde o fracasso mais ou menos profundo ôe certas diretivas comunistas iniciais (como atesta o apare- cimento, em larga escala, dos incentivos ao trabalho, com o ressurgimento de distinções econômicas e sociais entre os membros da classe social: um dirigente ganha substan- cialmente mais do que um operário qualificado e pode possuir "seu" carro; um operário que produz mais recebe mais do que outro e pode traduzir esse mais na posse de objetos cuja função é nitidamente a de individualizar seu possuidor, etc., todas elas práticas enfim do chama· do mundo ocidental e burguês) indica claramente que o papel do "comum" na sociedade russa pré-revolucioná- ria não era nem de longe o mesmo existente na China anterior à década de 40, e que essa sociedade russa inclinava-se acentuadamente na direção do "privado". Estas observações sobre o segundo eixo definidor do Espaço arquitetural coloca o arquiteto-urbanista diante de um duplo problema: primeiro, o de determinar as significações que assumem para os membros de uma cultura cada um dos terminais do eixo (Espaço Privado e Espaço Comum) e saber na direção de qual deles "tende" a prática ~ocial desse grupo. Em segundo lugar, resolver essa opOSição do mesmo modo como se resolve a primeira e todas as que se seguirão, i.e., através de um jogo dialético entre Comum e Privado. Se foi dito mais acima que a manipulação dessa oposição é funda- m~ntal para evitar-se, por exemplo, desequilíbrio psí- ~ll1?OS resultantes da falta de espaços íntimos (desequi- hbnos que parecem aumentar com a sempre maior ex- plosão demográfica e a resultante diminuição de 4rea e volume para 3S pessoas), não resta a menor dúvida, como já concluíram disciplinas como a sociologi<1e a psicologia ~ocial, de que as possibilidades de uma socie- dade melh~r residem justamente na demolição pelo menos parCial dos redutos de individualismo excessivo que ~in?a regem as relações humanas. Esta modificação ~uahtatIv~, no entanto,)amais poderá ser posta em prá- tlca atraves de concepçoes "abstratas" (como as leis) ou nunca poderá ser levada às últimas conseqüências se não for seguida por uma modificação análoga no modo de relacionamento dos homens entre si e dos homens com o espaço (na verdade, dos homens entre si através do es- paço), o que cabe a práticas como a arquitetura-urba- nística. O modo de disposição e de atribuição de signi- ficados ao espaço é na verdade um dos elementos da infra-estrutura do comportamento humano, e nenhuma modificação efetiva na superestrutura (ideologia, etc.) pode ocorrer se não contar com mudança equivalente no primeiro nível. Contraditoriamente à situação criada pela ex- I-'los~o demográf~ca, as sociedades humanas em geral contmuam a cammhar para o isolamento cada vez maior ~os h?mens entre si (continuam a aspirar ao ideal indi- v.ld~ahsta) e, por conseguinte, para uma contínua opo- slçao entre esses homens, em todos os níveis de suas atividades. O arquiteto tem uma responsabilidade enor- ~e nessa situação. P7nse-se por exemplo no que signi-fica a passagem da Vida em uma casa para a vida em apartamento. Para os ingênuos, essa modificação seria acompanhada por uma maior intensidade nas trocas humanas, pois se aboliriam os espaços entre as mora- das e se aproximariam os indivíduos. Na realidade, no e?t~nto, oc..?rre~ exatamente o contrário, e por uma sene de razoes nao todas elas determinadas: para muitos, a proximidade aparente dos vizinhos (freqüentemente nada aparente, pois o vizinho penetra no e~paço do outro com o som de seu aparelho de TV, su~ vitrola o~ mes- mo sua voz através de paredes excessivamente fmas e sem isolam~nto acústico, por indesculpáveis razões de rendimento econômico - e o canal sonoro é justamente aquele pelo qual mais se sente a }nva~ão de um estranho, pois o homem não pode controla-l~ a sua vontade como faz com a visão, por exemplo) leva Justamente a proc~rar um afastamento em relação a eles. Para outros, a Sl~- pIes visão da porta "do o~tro" já constitui. uma barreira que se estabelece automaticamente: a respeito, ~~chel~r~ observa que só um indivíduo extremamente loglco dlra que uma maçaneta serve ~an~opara fechar como para abrir, e isto porque para a malOna das pessoas uma ma- çaneta "naturalmente" abre muito mais do que fecha, do mesmo modo como uma chave fecha muito mais do que abre; que dizer, neste caso, da visão de uma. po.rt.a.com uma única maçaneta e as várias fechaduras mdlClms de medo, insegurança, vontade de proteção e afastamento? O único problema com esta observação de Bachelard (justificada sob mais de um asp~cto) é saber as culturas para as quais uma maçaneta mms abre do qu~ fecha ..E!e não se interroga especificamente sobre o sentldo da .vlsao de uma porta, de interesse particular para .0 a~qUlteto: uma porta fechada normalmente detém um mgles, que a recebe como barreira a não ser transposta salvo se expres- samente convidado a fazê-lo - mas uma porta fe~h~da (sem estar fechada à chave, obviamente) ~ã~ constltUl de modo nenhum um impedimento para um itahano. Q~an~ do um italiano deseja isolar-se (o que de resto nao e norma) ele deve girar a chave, ao passo que para um inglês, entre ingleses, basta fechar a P?rta sem ,cha.ve: ele sabe que outro inglês não se abnra sem pre-avlso. Outras comunidades e culturas ressentem ainda mais - até ao repúdio - a passagem da vida em casas para a vida em apartamentos: por exem~lo, as com~- nidades negras dos bairros pobres em mais de uma. CI- dade americana. Querendo acabar com os slums, mUltos órgãos administrativos norte-a~ericanos resolveram construir e entregar a essas comumdades enormes blocos de apartamentos, que no entanto logo se ~~ansformaram em novos slums, como em toda parte ahas, po:-qu: os novOs moradores simplesmente não tinham (e nao tem) como prover para a manutenção desses prédios, e as prefeituras não o fazem igualmente: rapidamente os re- vestimentos se deterioram, a iluminação desaparece, a sujeira toma conta de halls e escadas, e corredores e elevadores (quando funcionam) se transformam em lo- cais prediletos para crimes ou em latrinas. Os grupos atingidos por essas medidas (e "atingidos" é bem o termo) logo recusaram a vida nessas torres infernais, porém não especificamente pela ausência e impossibili- dade de manutenção e insegurança dos moradores mas por uma razão mais simples e ainda mais fundamental: recusaram-nos porque tiveram a consciência imediata de que a vida em apartamentos (i. e., em caixas ou gaiolas isoladas e muradas por todos os lados) estava simples- mente matando um modo de vida, sufocando uma cultu- ra, uma maneira de sentir o espaço e os outros, aquela que se desenrola em lugares abertos e na horizontal. Es- cadas, elevadores, paredes, portas significavam, para eles, e com razão, a destruição de um espírito comunitá- rio, de um sentimento de identificação e de pertencer a um grupo que só poderia se manifestar em espaços como os fornecidos por casas ou sucessão de casas, onde os espaços abertos se multiplicam escondendo as portas fe- chadas (quando o estão, pois normalmente as portas de entrada da casa ficam abertas, fechando-se apenas a dos cômodos, ao contrário do que se tem no apartamento). Evidentemente, trata-se aqui de um resquício cultural, da memória de uma realidade na verdade nunca sentida (plenamente, pelo menos) pelos membros dessas comu- nidades mas que ainda se impõe fortemente a eles, a memória de uma aldeia africana remota no tempo onde todos os abrigos se voltavam para uma zona central co- mum e onde não há nunca portas, fechadas ou abertas. Todos estes sentidos básicos devem ser pesquisados pelo arquiteto antes da proposição de um projeto, com base especificamente nos dados fornecidos pela antropo- logia. No entanto, é necessário que o arquiteto tenha aqui noção de um problema grave e suas conseqüências. A saber: a esmagadora maioria (para não dizer a quase totalidade) dos estudos antropológicos costuma deixar de lado em suas análises (voluntariamente ou por sim- ples desconhecimento) a dimensão sócio-econômica das culturas abordadas, o que normalmente provoca mais de uma séria distorção. Vejamos um caso em Hall: re- lacionando as culturas americana e árabe, Hall procura mostrar como a norma na cultura árabe é a participação efetiva na vida comum (na vlda "dos outros"), em opo- sição à cultura americana onde o "não é da minha (ou da sua) conta" é a regra (o que se confirma, entre outros, por inúmeros casos de estupro e/ou assassinato, prati- cados nos EUA em corredores ou halls de prédios a que todos têm acesso físico e auditivo, sem que ninguém acorra em auxílio da vítima, embora ela grite e peça aju- da por longas dezenas de minutos, como num caso cé- lebre transformado em peça de teatro). E dá como signo exterior dessa maior participação o fato de os árabes se amontoarem nas filas (que, logicamente, deixam de sê-Io) empurrando-se com o corpo e os cotovelos. Para Hnll, assim como os limites do "ego" de um europeu estão na sua pele (e na epiderme, à flor da pele literal- mente, de tal forma que tocar na pele é tocar no "eu", é confirmar - se se trata de estranhos - uma invasão indesejada do território privado), para os árabes o ego está no "interior" do corpo, de modo que tocar a pele não é invadir o eu. Assim, como a regra é a participa- ção ativa na vida em grupo, nada mais normal do que a existência de aglomerações e empurrões, que não seriam ressentidos como invasões, ao contrário do que acont~ce . com o europeu, o norte-americano e mesmo muitas cultu- ras sul-americanas para as quais essas situações são rela- tiva ou totalmente intoleráveis. No entanto, se é fato que a vida comum é mais intensa no Oriente Médio do que nos EUA, não é verdade que a aglomeração de pess·oas nas filas, a disputa por um lugar etc. sejam fatos "natu- rais" nessa cultura. Uma colocação deste tipo implica que ou HalI nunca visitou um país do Oriente Médio ou Próximo ou não soube identificar e interpretar ade- quadamente, pela falta de uma análise de natureza so- ciológica, os fatos presenciados - e a primeira alterna- tiva não é verdadeira. De fato, vejamos um caso concreto: o Egito. Real- mente, desembarcar no Egito e passar pela alfândega ou trocar dinheiro num banco central do Cairo é uma proeza na qual sucumbe mais de um ingênuo europeu ou indivíduo de cultura assemelhada. As filas realmente nunca chegam a se formar, substituídas por aglomerações onde todos se espremem poderosamente (sem reclama- ções por parte dos árabes, é certo) para chegar ao gui- chê ou à "autoridade" em questão. Mas antes das "aglo- merações" há duas outras realidades: a burocracia e os privilégios (pode a primeira existir sem os segundos, e vice-versa?). E a burocracia é, ali, qualquer coisa de es~antosa: desembarcando de um navio, não é possível SaIr do porto sem passar por uma média de 7 "autorida- des", num espaço de tempo não inferior a três horas' para se trocar dinheiro, um estrangeiro não pode dispen~ sar a passagem por outras tantas sete ou oito pessoas, enquanto se desespera numa agência bancária que é uma ver~ad;ir~ antevisão ~o. caos, com centenas de pes- soas (nao e fIgura de retonca) aglomeradas diante de todos os guichês, enquanto outras se sentam em banc0s com~ num hospital ou consultório médico (os ban;;os funcIOnam ~rês horas diárias, em média, para o público). A burocraCIa em parte se explica: ainda em 1975 o Egi- to era um país praticamente em estado de guerra, e toda forn:a. de controle nos portos de desembarque era ne- cessana; por outro lado, as operações de câmbio são for~alment~, controladas de modo rígido pelo governo: a fl.m de eVItar as evasões. Mas a burocracia se estende mUito além desses limites e faz surgir um outro fenôme- no que a revolução de Nasser (talvez já em vias de es- qU:~I.m~,nto?) nã~ co.nseguiu ~ufocar: os privilégios. A fila. para a vIstona na aIfandega é continuamente desrespeItada por alguma "autoridade" que acintosa- mente. apresenta ao encarregado alguém que deve ser atendIdo na hora - e tudo é feito às vistas de todos o qu~ é pio.r ainda pois aparentemente não se teme ev~n- tuaIs queIxas dos interessados. Da mesma forma no câmbi<:, há sempre um passaporte extra trazido pelo ;hcfe da seçao e que deve ser anotado e atendido na hora antes dos demais. Nestas circunstâncias, não é de s~ est!anhar que os ~gípcios se aglomerem diante dos gui- c~es tentando pedIr (não raro aos berros) ao funcioná- no que atenda seu caso em particular, seja qual for sua eventual posição. numa fila que, de fato, não serve para nada. E para eVItar que o vizinho seja atendido antes o outro igual~ente disputa o lugar COm todo o peso 'de seu corpo, literalmente. Donde, as aglomerações e C('- toveladas mencionadas por HalI. Estes fat~s não sign"ifi~am, no entanto, um compor- tamento e~pacIal e p~oxemIco (o suposto "gosto" pelas aglom.eraç.oes) mas SIm o reflexo de uma situação social onele mexIste o respeito pelo direito alheio - o que se cumprova da observação de uma série de outros fatos. Por exemplo, o absoluto desrespeito dos pedestres por parte dos automobilistas, que investem sobre eles decidi- tido - e embora esse ato tenha seus aspectos positivos (proteção, recolhimento, etC.), sua conotação é essen- cialmente a de privação de outros. E como a ocupação pode ser feita por todos e não apenas por um, o "cons- truído" é, assim, um conceito que supera o "ocupado", ao mesmo tempo em que é mais genérico do que este e o abrange. Por outro lado, a insistência na utilização de expressões como "Espaço Livre" pode continuar a reforçar a intuição (amplamente difundida hoje, e com razão) de que o resultado da ação arquitetural apre- senta sempre aspectos preponderantemente negativos para o homem - intuição aliás que está longe, e muito, de ser infundada. De fato, por que certos espaços são percebidos como "livres", o que equivale a dizer que outros, os construídos, são recebidos como "espaços presos" ou espaços de prisão? Antes de mais nada, é óbvio que quando se fala num "espaço livre", o objeto real desse "livre" é o próprio sujeito falante e não o declarado "espaço". Não há a menor necessidade de demonstrar a validade dessa colocação, ela é visível no comportamento das pessoas que se mostram satisfei- tas, despreocupadas (alegres?) quando se movimen- tam por espaços abertos, alvo primeiro dos momen- tos de lazer, dos fins de semana. Não há como negar: o "espaço livre" é o lugar da libertação do homem, um espaço de festa. Por certo há um sentimento de qúe o espaço ocupado, construído, é um lugar onde tam- bém o próprio espaço é aprisionado, mas com o apri- sionamento deste continente o que é efetivamente atin- gido é seu conteúdo, o homem. A arquitetura como prisão, o espaço construído como universo concentracionário? .É indubitável que ele é assim percebido atualmente (mais que em outras épo- cas?) e, mesmo, que ele é praticado com esse obje- tivo, freqüentemente. O conceito de "prisão" inere~- te à noção de espaço construído é de fato um dos pro- prios conceitos institucionais do espaço, o lado oposto, a oposição ao conceito de "proteção, abrigo". O útero materno é um abrigo - mas é ao mesmo tempo uma cerca a impedir a autonomia, a livre movimentação .(o livre arbítrio, se se quiser) do indivíduo em for- mação, que dele tem necessariamente de fugir. Diz-se normalmente que o parto é a primeira violência come- tida contra o indivíduo, b que pode não ser discu- tível, mas ao mesmo tempo se deveria ressaltar que o parto é igualmente a necessária libertação desse indiví- duo. Como todo ato de libertação - física ou psí- quica - o parto é necessariamente doloroso e trau- mático para o próprio indivíduo, e se ele pudesse ter plena consciência dessa sua "saída" ou "emergência" poderia por certo oscilar diante do caminho a tomar, como sugere a psicologia: permanecer - mudar, abri- gar-se - expor-se. O conflito dialético é manifesto e se reflete inteiramente na concepção da casa, da construção do espaço construído: proteção - prisão. Aliás, o isolamento dos que não se submetem às nor- mas da sociedade não é justificado exatamente nesses mesmos termos? A prisão do indivíduo num espaço construído (e reduzido: nunca se manteve presos os indivíduos em espaços amplos ou abertos) é apresen- tada não apenas como medida necessária à proteção da sociedade mas igualmente como medida de proteção do próprio criminoso, protegido de si próprio e do mundo que o chama para o crime! A prisão como pro- teção: slogan hipócrita que custa a morrer. Resta o fato de que todo espaço construído, quer o indivíduo se coloque nele contra sua vontade ou pela sua "livre escolha" é recebido como prisão, opressão. É de estranhar, com as áreas permitidas aos indivíduos pelas "soluções" arquitetõnicas de hoje? De forma al- guma. E não se pode aceitar, para essas "soluções", as atenuantes da chamada explosão demográfica, que existe mas ocupa uma posição totalmente secundária diante da especulação imobiliária e da ignorância "sim- pIes", por parte dos arquitetos, das necessidades espa- ciais do homem. Com conseqüências desastrosas. Diz-se, por exemplo, que o francês médio (especialmente o pa- risiense) conduz sua vida social nos "cafés": ele "re- cebe" no café. O espaço de que dispõe em sua "casa", mínimo, deve ser compartilhado com os membros da família e praticamente não mode ser estendido a ter- ceiros. Atualmente, 1975, um apartamento de apro- ximadamente 50 m2 (um deux-pieces: cozinha, banhei- ro, quarto e sala) é considerado moradia de classe mé- dia relativamente folgada (aluguel entre 2.000 e 2.500 cruzeiros, fora água, luz, telefone) e deve normalmen- te abrigar uma família de quatro membros, numa área média por indivíduo claramente insatisfatória (ainda mais se se considerar que as áreas do banheiro, da cozinha e de um eventual corredor não podem ser con- sideradas como áreas de vivência). Por conseguinte, o francês sai para a rua e o apartamento é tido como uma espécie de último recurso, como uma necessi- dade imperiosa à qual é forçoso submeter-se, e não como um centro de abrigo, proteção e aconchego onde é possível sentir-se bem. Se se diz normalmente que o francês "recebe" no café é porque de certa forma ele tem a "sorte" de, na França, a prática do café ser uma instituição soli- damente firmada. E se de outros povos não se diz que também "recebem" nos cafés é simplesmente por- que não existem esses lugares onde é possível conver- sar sentado, com uma xícara de café apenas, por um par de horas - mas nem por isso deixam de sen- tir suas "casas" como gaiolas sufocantes 24. Como superar esta situação? A observância do jogo constante entre espaços construídos e espaços não- construídos é sem dúvida fundamental. Ao nível do Espaço Interior Privado, por exemplo, é fácil consta- tar, através da história da arquitetura, que essa opo- sição é um dos valores mais constantes: a casa egíp- cia da história pré-cristã, mas também a casa pompea- na e a renascentista etc. assim se organizam. Ao invés da concepção do apartamento (um espaço inteiramente cercado, totalmente construído), um confronto entre o aberto e o fechado, não porém no sentido de casa + quintal (casa na frente e o quintal no espaço poste- rior, como unidades separadas uma da outra), mas no sentido de um espaço construído envolvendo um espaço não-construído (que por conseguinte penetra no espaço construído do qual não se isola e é antes uma continuação) como na casa pompeana ou nas mo- radas renascentistas de Veneza - ou mesmo um es- paço não-construído envolvendo um espaço construí- do que por sua vez envolve outro espaço não-cons- truído. Nestas condições, não há prisão: o corpo e a imaginação do homem se expandem elasticamente. À objeção habitual: "é necessano ser realista e a.dmitir que nas condições atuais (densidade demográ- fica, custo etc.) essas estruturas propostas são impos- síveis", responde-se rejeitando, primeiramente, a no- ção de realista enquanto sinônimo de conformista (como é normalmente entendido) e, em segundo lugar, dizen- do que a construção em andares, onde ela se revela realmente inevitável, não é absolutamente incompatí- vel com essa oposição, como já começam a demonstrar alguns projetos da vanguarda arquitetural européia 25, infeli~me~te ainda tímidos e destinados a uma peque- na mmona: a construção na forma de pirâmide em degraus ou patamares abertos (formando enormes bal- cões suspensos) não é realmente o sistema que mais lucros oferece ao construtor, pois o espaço é efetiva- mente "desperdiçado" - mas aceita inteiramente a coexistência de espaços construídos e não-construídos numa escala admissível para as necessidades humanas. E assim como se fala num eixo Espaço Cons- truído-Espaço Não-Construído ao nível do Espaço Interior Privado (observando-se que as mesmas colo- cações acima valem para um Espaço Interior Comum: edifícios públicos, industriais, escolares etc.), é pos- sível discorrer sobre a importância dessa oposição para o próprio Espaço Exterior, o Espaço Comum e, num segundo momento, para o Espaço Exterior Comum. E aqui se verificará que o modelo de estrutura do espaço segundo o eixo Espaço Construído-Espaço Não- Construído varia acentuadamente através dos momen- tos históricos, ao contrário do que aconteceu durante longo tempo com o nível do Espaço Interior Privado: é que neste a orientação é dada essencialmente pelas necessidades biológicas e psíquicas fundamentais do ho- mem, enquanto que em relação ao Espaço Comum o que se segue são antes diretrizes de ordem sociológica (distinções em virtude do conflito de classes etc.), por conseguinte mais sujeitas a modificações. Por exemplo, nas sociedades egípcias arcaicas e na Grécia antiga, o lugar do povo, do coletivo, é sempre do lado de fora, o exterior. No interior de um templo egípcio só se admitiam os membros da corte (ministros, oficiais), os sacerdotes e o faraó, e dentro dos templos há mesmo zonas nas quais os nobres não penetram e outras nas 24. Se é possível afirmar que a situação criada por essa práti- ca arqultetural (ou. na verdade. arquiteto-financeira) não visa especificamente aprisionar e Isolar os indlviduos, o mesmo não se pode dizer a respeito de certas soluções arquitetõnicas de massa, praticadas em escala Internacional, através das quals se extermi- nam slums, bidonvilles, favelas e se propõem aos interessados (que outra escolha não têm) "conjuntos habltacionals" a se constituir em óbvios universos concentraclonárlos de afastamento e Isolamento desses grupos das áreas que antes ocupavam e dos nÚGleossociais em que estavam Installldos. . 25. Ver, mais adiante, a seção reservada às proposições deH;undertwl'Isser (cap. 3). quais nem mesmo os sacerdotes, reservadas estas ao faraó (representante do deus' na terra) e eventualmente ao sumo-sacerdote. De igual modo, o povo grego per- manecia fora dos ofícios religiosos, praticados den- tro dos templos. a lugar do coletivo era assim o ex- terior não-construído. Já em Roma ocorre uma inversão significativa: o lugar do coletivo passa a ser um lu- gar construído. A basílicia era um edifício onde se reuniam os cidadãos romanos (por certo, nem todos os habitantes da cidade eram cidadãos do império) para discutir, conversar, encontrar-se. Mais tarde a religião cristã irá oficiar seus cultos dentro dessas ba- sílicas, cujo nome adota para designar seus templos, e o povo é (ou permanece) admitido dentro do "construído", numa passagem que irá persistir através das épocas seguintes: a catedral românica (por vol- ta do primeiro milênio d.C.) é por excelência o lugar de reunião pública, e o mesmo se dá na catedral gó- tica, a partir de 1100 d.C. aproximadamente. E as ágoras gregas e praças romanas só irão, a rigor, rea- parecer com a Renascença: a Idade Média l essenci~l- mente o domínio do fechado, do cercado, do estreIto (o estado de insegurança constante das populações, ex- postas a sucessivas invasões, explica essa disposição), numa situação onde espaços como os ocupados pelas feiras (espaços relativamente amplos dentro da escala dessas cidades-fortalezas) não podem ser considerados, rigorosamente, como abertos: vejam-se ,as cid.a~~s ~e estrutura medieval que ainda se mantem utllIzavels, como San Gimignano na Itália. Só a partir da Renas- cença o espaço aberto será novamente proposto em toda sua extensão, sendo agora ocupado por um su- jeito coletivo, por um povo que não mais é obrigado a ficar de fora (pelo menos os templos lhe são abertos) nem constrangido a se fechar atrás de muros. Estas constatações interessam na medida em que se indaga da validade, por exemplo, das afirmações de um Giedeon em seu Space, Time and Architecture ( 1947), segundo o qual a arquitetura grega era uma arquitetura concebida a partir do exterior, enquanto a romana o era a partir do interior e a do nosso tempo procuraria um compromisso entre uma e outra. Suas proposições parecem partir de uma ilusão, a mesma que a classe dirigente grega impunha ao povo grego: este de fato ficava do lado de fora do templo, contemplando- o, mas o verdadeiro objetivo dessa arquitetura era a proteção do interior, do templo, sua ocultação dos olhos do povo e, por conseguinte, a preservação desse espaço, onde Sy refletia o centro decisório da cidade (o mito da democracia grega já foi suficientemente demolido para se insistir nesse ponto). Só se pode falar de uma arquitetura grega feita a partir do exterior (e do es- paço comum, por conseguinte) se se adota o ponto de vista dessa ilusão: o exterior de templos, palácios, era apenas a casca, a isca que se entregava ao povo. a mesmo acontecia com o templo e a arquitetura egíp- cia em geral: o faraó se recolhia à parte central do templo e emergia para o povo dizendo que o deus o havia confirmado em seus poderes terrestres e que tais eram as palavras de ordem: mais uma vez o que pre- valece é uma arquitetura de exclusão; o espaço co- mum, o espaço do sujeito coletivo é o do lado de fora, o espaço não-construído. Por outro lado, se se pode aceitar sem maiores ob- jeções a tese de que a arquitetura é efetivamente uma arquitetura elaborada a partir do interior, que se volta para o interior tanto porém quanto para o exterior (como a gótica, que sob este aspecto atinge realmente um grau de plena identidade entre os dois planos, Ex- terior e Interior - pelo menos na catedral) e que visa proporcionar não só uma experiência do Espaço Privado Construído como também do Espaço Comum Construído, não é tão tranqüila a afirmação de que a arquitetura de hoje procura um equilíbrio entre inte- rior e exterior, particularmente no que diz respeito ao eixo construído-n&o-construído e ao Espaço Co- mum. De modo cada vez mais acentuado, o que se constata é uma proposição maciça de Espaços Comuns Construídos, especialmente sob a forma de estádios ou clubes esportivos. A praça como experiência de livres encontros humanos é de uma inexistência praticamente total, especialmente nas cidades "modernas". Ela não existe pelo menos no sentido de praça enquanto lugar aberto ao homem para um momento de tranqüilidade, como a Praça São Marcos em Veneza ou a ágora gre- ga. E mesmo nas cidades menos modernas a praça está em desaparecimento. A razão desse procedimento es- tará sem dúvida não apenas na destruição das cidades para abrir-se caminho ao carro mas, especialmente, na tendência cada vez mais acentuada para o confinamento, Jor outro é preciso reconhece~, por exemplo, que um es- Jaço simples e totalmente artificial po?e ser de todo sa- ~isfatório, na dependência de determmados fatores .. :B ) que acontece com a Praça São Marcos, reconhecida :le modo praticamente unânime como ~odelo de p~aça 'perfeita", i.e., humana. Impossível deixar de sentir-~e Jem em São Marcos, conclusão comum. E emb~ra haJa ~ertos aspectos não levados em c~mta pelos anah~tas (o Eato de a Praça São Marcos ser um lugar excepclOnal e quase fantástico na medida em qu~, tomada por bandos je turistas e despreocupados praticamente o ano todo (numa realidade com seus aspectos inconvenientes, por certo), se volta ela quase totalment.e para ,0 lazer, numa atividade e num clima realmente Imposslvel de se en- contrar em outro lugar: o trabalho q~e se desenrola ~a praça, por parte dos moradores da cldad~, passa facil- mente despercebido, prevalecendo um ~hma ge~al de lazer e ociosidade acentuado pelas correnas de cnanças e pombos, pela presença da água e pelas músicas (deca- dentes e mal executadas mas, enfim, músicas .. ,) dos conjuntos que se revezam o dia todo nos bares da praça. Tudo isso e mais a própria disposição dos elementos ar- quiteturais da praça realmente proporciona esse inusita- do prazer de convivência com a construção: o espaço é amplo sem o ser demasiado, a visã? do céu é .aberta mas a praça é fechada - não hermeticamente, po~suma grande saída se abre para a água e para_u~a paisagem mais além. E, importante, o homem nao e esmagado pela verticilidade das construções, quer por parte do grande bloco quase quadrilátero" quer por parte ?a c~- tedral (não mais alta que o PalaclO do~ Doges? Isto e, sem as proporções "normais" das ~atedrais), ou amda pOr parte do campanário, de altura afmal relativamente mo- desta e que, de qualquer forma, se integra totalm~nte no cenário por sua situação ~ conformação. E a PalS!- gem é uniforme sem ser monotona: a grande construçao lateral é por certo rítmica, mas a catedral rompe sua.ve porém decididamente o tédio possível. ~ esta 'perfeita oposição dialética entre os ex~remos (hon~ontahda?e X verticalidade, abertura X abngo, harmoma X vaneda- de), e levando-se em consideração que a ~ra~a -: c~mo toda Veneza - pertence ao homem e nao a maquma, ao carro (materialização moderna da mítica ágora?), ela efetivamente se propõe como espaço notavelmente agradável. Quando estas circunstâncias não se reúnem, no entanto, os espaços não-construídos artificiais' são geralmente uma catástrofe: que se pense numa Place de Ia Concorde em ,Paris, a não passar mais quase de uma imensidão esmagadora e de uma pista de velocidade para os automóveis, ou numa Trafalgar Square londrina onde, se o espaço é menor que o de Paris, não é menor a exposição aos carros acumulados em toda sua volta num congestionamento contínuo.- Ou na Praça da Li- bertação, no Cairo, antevisão do caos automobilístico. Ou na ridiculamente pequena Times Square (pequena em relação a seu trânsito humano) . Nestas circunstâncias, o Espaço Não-Construído Natural apresenta-se normalmente como de mais fácil realização quando se visa oferecer ao indivíduo um lugar agradável: Hyde Park, Palermo em Buenos Aires, Cen- tral Park em New York (não fosse, claro, o problema da criminalidade incontrolável) - mas não, por exem- plo, o Bois de Boulogne, transformado nos fins de sema- na, com suas ruas asfaltadas que o cortam em todos os sentidos e a pouca distância uma das outras, em cópia do inferno citadino parisiense com seus milhares de veículos. "Mais fácil", esse Espaço Não-Construído Na- tural, na medida em que se oferece como síntese imediata e pronta do caos urbanístico e arquitetural que esmaga o indivíduo na maior parte do dia, da semana, do mês, do ano, de sua vida. Contudo, a solução mais adequada ainda seria aquela onde esse espaço exterior não-cons- truído (artificial ou natural) seja tal que se integre no tecido urbano, como acontece com São Marcos, e não se destaque dele acentuadamente (como acontece com a esmagadora maioria dos parques atuais), tal como se propunha nas ideais cidades-jardim derivadas das teo- rias de Owen e Fourier, no século XIX, ou nas reais experiências da vanguardeira Lyon do século XX; esses projetos de integração artificial-natural não são, de fato, de todo irrealizáveis: na China Continental, após a revo- lução comunista, a população, num trabalho lento mas- contínuo, plantou milhões e milhões de árvores nas gran- des cidades, obtendo por resultado prático a diminuição de dois graus na temperatura média no verão e uma estabilização dessa mesma temperatura durante o inver- no - resultado sem dúvida notável, ao alcance de qual- quer municipalidade realmente interessada no bem-estar de seus cidadãos. A cidade-jardim não é um ideal risí- vel: é imperiosa necessidade. 26. BACHELARD,Poétique ... , p. 23. No original, os versos são estes: A Ia porte de Ia malson qui vlendra frapper? / Une porte ouvert on entre / Une porte fermée un antre / Le monde bat de l'autre cõté de ma porte. de outra parte, ao mundo aberto, ao mundo exterior - ou, simplesmente, ao mundo. E a questão colocada por esses versos, e que deve ser colocada quando se aborda este eixo, é: até que ponio se pode identificar a experiên- cia do Espaço Restrito (especialmente em relação ao Espaço Interior, mas também em relação ao Exterior) como o espaço da intimidade, da proteção (do bem-es- tar) e, inversamente, a do Espaço Amplo com a do espaço comum não protetor e, mesmo, hostil, E: até que ponto o Espaço Restrito é necessário? A determi- nação do modo de sentir essa oposição é tão mais im- prescindível quanto hoje a área e o volume atribuídos à esmagadora maioria das populações são extremamente reduzidos e tendem a sê-lo cada vez mais - ao mesmo tempo em que se apresenta esses espaços, em todos os tipos de publicações, como traduções de "aconchego" de "praticidade", etc. A respeito da área/volume de que goza (se é que este termo cabe) cada indivíduo, é possível mesmo constatar que em muitos lugares a pro- porção se mantém estacionária há já bem uns dois séculos (pelo menos) enquanto que em outros ela dimi- nui nitidamente. Veneza, por exemplo, considerada por Le Corbusier a única cidade moderna (e que o é, de fato, sob mais de um aspecto): nenhuma modificação mais acentuada nos últimos quatro séculos. Paris: se a área particular de que dispõe cada habitante é, em geral e em média, a mesma de há 200 anos, o volume diminuiu consideravelmente (rebaixamento do pé-direito nas cons- truções modernas, em relação ao Espaço Interior) e com ele todo o espaço em que se move o indivíduo (em Paris diminuíram ainda, nitidamente, as áreas verdes e as áreas livres: praças, etc.) Mesmo nas regiões subde- senvolvidas, um suposto avanço nas condições de higiene habitacional (substituição de casebres de pau-a-pique, madeira ou restos vários de materiais por moradias de tijolo) é via de regra acompanhado por uma diminuição sensível da área/volume real de que dispunham os in- divíduos. Que significação adquire enfim para o homem a oposição Amplo X Restrito, que valores atribuir a um em relação ao outro, ou a um em oposição ao outro? Discorrendo livremente sobre a poética da casa, Bachelard oferece uma pista para essa decifração - porém, uma pista embaralhada, contraditória. Bachelard torna quase materialmente verificável uma constatação 1.3.5. 5.° eixo: Espaço Amplo X Espaço Restrito Não será demais repetir a todo instante que o ne- cessário, para esta análise, é superar os simples proble- mas da descrição (como sugere Bachelard) no qual se atolam a maioria dos estudos sobre a arquitetura, sejam historiográficos ou outros. E esta superação é particular- mente requerida quando se tenta uma abordagem das significações possíveis obtidas através do espaço enten- dido como área ou volume. Antes de mais nada, uma colocação: é certo não ser pacífico que se possa falar do espaço indiferentemente ou simultaneamente como área e/ou volume. Cada um desses aspectos apresenta caracteres próprios a exigir apreciações e soluções es- pecíficas. Mas aqui se postulará que não só o pensa- mento que está na base da colocação desses problemas é o mesmo para ambos (do lado do manipulador do es- paço) como se confundem os dois, essencialmente, num mesmo aspecto, para aquele que os recebe, que os vive enquanto usuário. E isto se pode intuir facilmente quan- do se percebe que uma área restrita é compensada por um volume acentuado ou vice-versa - sem se falar nas relações entre a percepção de áreas e volumes em rela- ção a formas diferentes. Para a análise aqui desenvol- vida, portanto (que deixa inteiramente de lado os aspec- tos da descrição), não só se justifica essa fusão entre esses dois aspectos do espaço como ela é, mesmo, fun- damental. De início, a constatação primeira que vem à mente é a de que o Espaço Amplo está intimamente associado com o Espaço Exterior (o espaço amplo conduz para o exterior) e que o Espaço Restrito relaciona-se de modo particular com o Espaço Interior (e igualmente com o Espaço Privado e o Comum). Uns versos de Pierre Al- bert-Birot, citados por Bachelard 26, resumem essa e outras sensações do espaço: À porta de casa quem virá bater? Uma porta aberta: entro Uma porta fechada: antro O mundo bate do outro lado de minha porta. Aqui, de um lado, a noção do espaço fechado como um espaço íntimo e um espaço de mistério, a se opor, da psicanálise: a imaginação constrói muros - com as ilusões, os sonhos, as sombras. Isto é, a imagina~ão protege o indivíduo, seu foro interno ou sua última ligação consigo mesmo. Por outro lado, nenhum muro verdadeiro, nenhuma sólida muralha, por mais grossa e dura que seja, impede a imaginação de tremer de medo, de suspeitar, de sentir-se ao aberto, exposta, insegura. Neste caso, o canto e a casa são não só o primeiro e grande útero a envolver o homem despois do par~o mas também seu universo. Um cosmo. E na acepçao integral do termo, insiste Bachelard - o que in~lu~ .0 desconhecido, o incerto e o temor. Uma dessas slgmb- cações predomina sobre a outra? Como já foi mencio- nado aqui mesmo, existe toda uma mitologia do fechado, do estreito do escuro a conduzir às categorias do ínti- mo, do se~reto e do mistério, e que é possivelmente bem mais extensa do que uma mitologia do amplo, do vasto, da imensidão. E talvez essa mitologia do restrito seja de qualquer modo bem mais praticada ao nível do real do que a da imensidão. Como vai reconhecer o mesmo Bachelard, a imensidão é uma categoria filosófica da atividade onírica. Sonha-se com a imensidão, mas pra- tica-se o restrito. E nem sempre por impossibilidades econômicas ou materiais. É o homem, e especialmente o homem ocidental, que receia a imensidão 27 e se refugia no pequeno: a grandeza parece destinada a ser apenas contemplada e não vivida. Realidade que se pode cons- tatar em toda a história da arquitetura. PO( exemplo, a residência vêneta do Papa Clemente XIII, Ca' Rezonni- co. Passando-se um pequeno átrio de entrada, sobe-se uma escada portentosa que conduz a um considerável 27. Esta condição se reflete de modo claro na maneira de acupação dos espaços Internos atravé3 da acumulação de objetos. O ocidental tem horror às paredes vazias e lisas, reflexos do vazio maior e universal: por isso ele as ocupa não s6 com quadros como procura ocultá-Ias sob um acúmulo de m6vels. Por essa razão Jamais haverá um canto vazio numa casa-tipo ocidental: um canto deve ser sempre ocupado por um objeto, e proliferam as meslnhas, vasos, espelhos, "cantoneiras", etc. E, de modo geral, todo o espaço disponível, seja qual for, deve ser sempre ocupado, o que provoca uma densidade "objétlca" incrivelmente alta, reduzmdo acentuadamente o espaço destinado Inicialmente ao Indlvíd~o (re- dução a 1/3, 1/4 ou ainda menos). Inversamente~ no Japao, por exemplo o que se prlvllegla é justamente a noçao de mtervalo, de vazl~ entre dois pontos, duas referências esp.acial~ - e Isto ~e verifica desde no famoso "arranjo floral" japones ate a dlsposlçao dos elementos num Jardim, passado pela mobilia dos aposentos. Uma "sala" não terá mais que uma pequena mesa e um ou outro objeto (ficando os demais ocultos em armãrlos embutidos) assim como um Jardim se faz com uma ou duas pedras espaçadas e rela- cionadas com não maior número de plantas. Pode-se objeta.r que esta casa-tipo japonesa não é mais encontrada hoje, e que as habi- tações coletivas à amerIcana com Interiores povoados de objetos ~alão do qual. saem salões menores mas ainda grandes: e a parte "social", a parte da casa para ser exibida vista contemplada, para impressionar. Mas há uma parte ínti~ ma da ~asa, os aposentos pessoais do cavaleiro e papa Rezonmco, e todos eles evoluem em torno da dimensão do pequ~no, do fechado. Desde seu quarto de dormir, c0':l o leIto enc~str.ado numa concavidade apenas pouco maIOr que a propna cama, até os outros aposentos se- .cundários, saletas com não mais que 6 m2, às vezes nem ISSO.O mesmo acontece, para ficar em Veneza no Palá- ci~ dos Doges, uma construção "pública" e, p~r conse- gumte, com salas monumentais, de vão livres imensos. Ou Versalhes e sua galeria dos espelhos - a aumentar ainda mais a sensação de enormidade do espaço e a atrair de preferência o turista (o ccntemplador por ex- celência). Ou ~s templos e pirâmides no Egito, que fez da monumentabdade esmagadora um princípio auxiliar do governo político. Ou, vindo para os tempos atuais, uma Praça Vermelha de Moscou, lugar de demonstra- ções, de exibições - e portanto de contemplações mas não de existência. ' . A amplidão exibe o poder de seu possuidor. E ate- morIZa. É o mesmo terror que o homem sente diante ~o Vazi~ -:- do Universo, do Infinito. Algo que escapa a sua medIa: que ele não domina porque não pode pre- encher. <?u que el:, encara como algo preenchido por um conteudo que nao entende, não conhece, não mani- pula -: por .co~s~guinte, ~ue ele receia (é um espaço de exclusao: ,o mdIvlduo esta realmente por fora). Na ver- dade.' aSSIm; ~ imensidão é tão misteriosa quanto o restnto (o mtlmo, o fechado); tão habitada por fan- tasmas quanto espaço reduzido ("O mundo bate do outro lado de minha porta"). E sob esse aspecto, não é so- são urp.a realidade lá também. Isto não Impede todavia ue a experlencla d.o mtervalo no Japão (mesmo ainda ne<te s& I sempre foi, !a, uma experiência histórica, enquanto q~e no ~~~ dente a tendencla sempre foi, desde que material e economicamente possível, na dIreção do acúmulo. Superada a Idade Médl d objetos de qualquer tipo eram absolutamente raridade a~ o~u~~; ocidental ou praticará o acúmulo de objetos _ oc'upa ão do espaço (pelas classes economicamente fortes) _ ou terá e'~a prá- tIc~ como alvo e valor Inquestlonávels (pelas classes não -privlle- gla as), enquanto no Oriente (embora em determinados períOdos a esca.ssez matenal coínclda com ou provoque uma determinada preferencla espaclal) tem sido um valor e uma prática constantes o espaço vazio. Deixar de ver nesse preenchimento frenético do espaço (de qUe o Barroco e a art nouveau foram momentos par- tiCular.mente prívllegla~os) uma verdadeira fobia do vazio para at.rlbUl-lo apenas a razoes de ordem social (ostentação, etc.) é sem dUVld~slmpllficar e descaracterizar esse aspecto do comportamento do oCldental, ficando-se na superfície do fenômeno sem descer às prOfundIdades de suas motIvações psicológIcas. ~nto sonoro, pode ser atualmente de todo resol~ido m os materiais que combinam a leveza c,om a capaclda- . de isolação acústica. Mais uma vez, e uma fa~ha da aginação arquitetural (ou a ausên~ia. p,ura e sImples ssa imaginação) que submete os mdlvlduos a exp~- :ncias desnecessárias e nocivas. Se sempre s.econstruIU n termos do fixo (fixa-se o espaço amplo, flxa-~e :' e~- .ço restrito, estabelecendo-se entre eles uma distancia transponível) por que mudar? indaga o bu':.ocr~ta da quitetura. O que é bom p~r~ ~ Europa nao e bom Ira o Brasil, ou para a Nlg~na? . O ~ue val~u no culo XVIII por que não valena hOJe, amda maiS que modelo vem glorificado pelo peso do tempo?! E co.m ;;0 a arquitetura se revela como. ~ma _das pou,ca~ dIS- plinas que não registram modlfIcaçoes .senslvAelsao .ngo dos tempos - e isto quando p~d~na faz~-lo le- timamente, sem se entregar ao fascmlO gratUlto do )vo pelo novo. Todas as disciplinas h~manas mudam arque muda o homem .-:- m~nos a ~r9Ultetura: os con- ~itos de proposição, utlhzaçao e frUlçao do e~paço ~on- nuam essencialmente os mesmos 30. O arqUIteto aInda uma espécie de ditador ao qual o usuário se submete fi termos absolutos e definitivos: ele nada pode contra o projeto". No entanto, o espaç~ vive, respira - e i~so uer dizer que eXige mudanças ~l:e., ~ homem as eXIge -ara ele e através dele)! A modlflcaçao do espaço deve er uma necessidade; ela é uma possibilidade e segurá- llente não é um luxo. 30 Através dos séculos a.crescentam-se aposentos novos (como o banheiro) ou modificam-se outros, mas a estrutura central da construção permanece inalterada. 31. BACHELARD, Poétique ...• p. 34. é uma casa na horizontal, e uma casa com dOISou maIS andares é uma casa com existência na vertical. Como funcionam as noções de horizontal e vertical para o homem, que significam? Bachelard analisa a questão de um ponto de vista bastante particular, talvez demasiado subjetivo. Para ele, a vertical idade da casa é uma realidade assegurada pela polaridade entre o porão e o sótão, a propor uma oposição (que ele diz "imediata" e "sem comentários") entre a racional idade do teto e a irracionalidade do porão. O teto diria de imediato sua razão de ser: co- brir, proteger o homem (é, portanto, racional). Quanto ao porão, seria possível descobrir para ele uma série de utilidades, mas para Bachelard ele é fundamentalmente o "ser obscuro" da casa, um ser que participa dos poderes, da irracionalidade das profundezas. Para ele, o que interessa assim é considerar a casa como um jogo entre racionalidade e misticismo que se desenrola na vertical (e na vertical apenas) entre uma parte superior e outra inferior. Não faltariam elementos para compro- var essa colocação, segundo Bachelard. As construções para o alto, para a parte superior, são "edificadas", i.e., construídas racionalmente, pensadas, elaboradas, en- quanto a parte inferior é simplesmente cavada, sem plano prévio, de modo apaixonado, e conforme as inclinações do cavador (do coveiro?). Além do mais, no sótão tudo é claro, nítido, simples, enquanto no porão tudo é mis- terioso, tenebroso: o mal é seu habitante, lá onde nunca há luz, de noite ou de dia. Onde prevalecem as sombras. Onde se cometem os atos proibidos na infância ou os crimes dos adultos: os dramas, as alucinações. A litera- tura policial e fantástica confirmaria isso: os crimes são sempre cometidos nos porões, os monstros (como o de Frankenstein) lá surgem. Bachelard foi mesmo capaz de encontrar em Jung uma passagem que o confirma em suas colocações (ou que as motivou?), segundo a qual o consciente está para o inconsciente assim como o porão para o sótão, na medida em que o consciente se com- porta como o homem que, ouvindo um barulho suspeito vindo do porão, corre para o sótão onde, nada encon- trando, se tranqüiliza - sem ter-se aventurado a descer ao porão. Quer dizer, no sótão mesmo quando há medo este se racionaliza facilmente, enquanto isso ou não ocorre no porão ou quando ocorre não é definitivo ou convincente. :.3.6. 6.° eixo: Espaço Vertical X Espaço Horizontal Nada de mais natural que a arquitetura evolu~ ao edor da noção de horizontal e seu oposto, o vertIcal. Mas o espanto inicial pode ser grande quando Bache- ard 31 afirma que "a casa é imaginad.a como u.m ser rertical". Que ela se eleva; se diferenCIa no sentIdo de ma verticalidade. A questão que surge desde logo é: e a horizontali- dade da casa? Diante da proposição de Bachelard nos jamos conta de que: 1) ou não pensamos em termos :ie horizontal e vertical quando pensamos numa casa; ou 2) pensamos que uma casa com um só andar, o térreo, Desta proposição inicial, Bachelard parte para uma análise da existência nos prédios de apartamentos, onde a vida é sem encantos porque sem mistérios, já que não há porão e a polaridade básica instauradora do homem (e que se reflete na casa) foi rompida. A "casa" assim proposta não tem mais raízes, é um simples buraco con- vencional no meio de caixas superpostas onde a altura é só exterior - onde, enfim, a casa se tornou uma simples horizontal idade. Antes de ver a que podem conduzir estas coloca- ções, há um fato interessante a observar: embora vi- vendo em Paris, Bachelard parece não se dar conta de um aspecto da vida em edifícios que ele poderia ter ex- plicado facilmente, chegando onde chegou, e de modo inteiramente original: o fato é que os edifícios em Paris têm porões, cada apartamento tem sua cave! Numa área comum, situada normalmente no subsolo, se sucedem, num espaço da mais completa escuridão, uma série de minicaves particulares. Estes porões de apartamentos poderiam ser facilmente explicados por um tecnocrata como simples medida de economia (de rendimento do capital): ao invés de "desperdiçar" espaço nos andares com a destinação de uma área em cada apartamento para servir de "despensa", "quarto de despejo", co- locam-se todas elas juntas no subsolo, "racionalizando- -se" a construção, economizando espaço e material. Pouco importa se não é muito prático morar num quinto andar e ter de descer e subir (às vezes sem elevador) para apanhar um objeto qualquer. De resto, os parisien- ses na verdade pouco se importam com isso; pelo contrá- rio, fazem questão de sua cave, de sua cave "lá embai- xo". Por que, se não é prático, nem serve para muita coisa? Bachelard poderia ter explicado, de modo origi- nal e inédito, que a c~ve é colocada nos edifícios não por uma prosaica questão de economia de capital mas porque se trata de um resquício da cave, do porão verda- deiro, aquele das casas, que o parisiense ainda exige, de modo mais ou menos consciente, e que continua a lhe ser dado, de modo mais ou menos consciente. Se o porão é, como Bachelard afirma, um elemento funda- mental na vida do francês, seria normal encontrar (como se encontra) uma forma de sobrevivência nas caves dos edifícios. Bachelard nada diz a respeito - e ele não pode desconhecer, pelo menos, que essas caves existem: por que silencia? Por que o fato é tão comum que não ascende à sua própria consciência? ou por que não se sente seguro de suas explicações? Seja como for suas observações são interessantes, particularmente o conceito de que a vida em apartamen- to é uma existência só exteriormente vertical e essen- cialmente horizontal. ' Mas e as outras teorias a respeito da verticalidade? Na história da arquitetura, o conceito de vertica- lidade leva de imediato, e de início, ao Gótico. Gótico não é só verticalidade, por certo, mas não se exagera em demasia ao propor um termo como equivalente do outro. Como é vista essa verticalidade típica do Gótico inspiradora de outras em outras épocas? Ela é encarad~ freqüentemente como racionalidade, tal justamente como propõe Bachelard, embora por outros motivos. De fato, essa racional idade da arquitetura gótica está diretamente ligada ao conceito de clareza arquitetõnica, tal como este se impôs aos espíritos racionalistas (ou "racionalistas") do século XIX, VioIlet-le-Duc em particular, e deve ser enten~ida ?e modo muito específico como "equivalência entre mtenor e exterior". No Gótico, esta é a tese, se teria finalmente uma forma de composição onde o ex- terior deixa transparecer o interior (donde o conceito de "transparência arquitetônica"); onde o interior não é ocultado pelo exterior; onde o indivíduo, contemplan- do a obra do exterior, não é enganado quanto ao que o espera no interior e vice-versa. Em outras palavras, um estilo (conceito escorregadio, mas enfim ... ) onde de certa forma não existe uma fachada, algo que separa uma coisa da outra (interior do exterior), que fecha, que desune. A arquitetura gótica seria antes um conjunto orgânico entre interior e exterior, ao contrário do que se teve na arquitetura grega ou romântica onde, a rigor, se tratava de dois modos diferentes de plasmar o mate- rial e dispor o espaço. Mesmo depois do Gótico dificil- mente se pode constatar a prática dessa transparência: se a arquitetura renascentista não chega a romper sempre e totalmente com essa identificação, não é menos certo que nela o problema da fachada se impõe sobremaneira. E de lá aos tempos atuais essa identidade, encarada sob o aspecto particular aqui em discussão, só se verificará na produção (e em alguma produção) de alguns nomes isolados: se a Sagrada Família de Gaudí estivesse termi- nada, ela seguramente seria "de transparência" (de fato, o que é esse monumento único e alucinante senão uma )roposição baseada no gótico?); a~gumas propostas ~a Clrtnouveau também se enquadranam nessa colocaçao (e el~também se liga ao Gó.tico) e outr~s de escolas ou lomes isolados do Modernismo (especialmente as da "Iinha geométrica", como a de Le Corbusier, ou o 'pró- prio Gropius, Mies, etc.). Mas em termos. ger~ls, o Gótico teria sido o grande momento dessa raclOnahdade entendida como transparência interior X exterior. Contudo, se se disse em que consiste essa racio- nalidade específica, não se disse como ela se propõe, a partir de que ponto de vista ela é assim conside~ada. Esse conceito de racionalidade ou de clareza arqUitetu- ral do Gótico se deve em sua maior parte' às teorias de Panofsky expressas em seu A arquitetura gótica e o pen- samento escolástico, título que já revela o conteúdo da análise. Segundo Panofsky, não só existiria um parale- lismo entre a arquitetura gótica e o modo de pensamento escolástico como inclusive a primeira seria a expressão material do segundo, na plena acepção desse termo. As- sim como o pensamento escolástico é um mod~ de ex- posição e de argumentação, rigidamente orgamzado, a .arquitetura gótica não só seria também fortemente estru- turada como se organizaria segundo essas mesmas regras. E Panofsky encontra na arquitetura todos esses elemen- tos de equivalência: os mesmos tipos de relações entre as mesmas partes (no discurso escolástico e no discurso arquitetônico), um tipo de "argumentação" arquitetural baseado nos mesmos princípios desse pensamento, a mes- ma divisão do discurso num certo número de partes .("videtur quod; sed contra; respondeo dicendum" ou "tese, antítese, síntese"). E por seguir todas essas re- gras de uma forma de pensamento estabele~ido, a arq'!i- tetura gótica se manifestaria como arqUItetura raclO- nalista. Ora, até que ponto essa colocação é válida? Uma crítica que normalmente se faz a Panofsky 32 .é qu~ a arquitetura gótica só é racionalista (e tão raclOnabsta quanto ele deseja) na medida em que se submete à explicação, ao modelo, este sim. racionalista, do pró- prio Panofsky, isto é, a arquitetura ,g~tica , explicada como expressão do pensamento escolastlco e uma ar- quitetura racionalizada e ~ão raci~~alis~a. A questão_ é que para Panofsky a arqUitetura gotlca e uma expressao perfeita do pensamento que a fez - mas sob este as- 32 Ver Ph. BOUDON, 011.cit. pecto, qual arquitetura ou outra forma de arte não o é igualmente? A arquitetura neoclássica é expressão do modo de pensamento da sociedade (entenda-se: das classes de onde emanavam as ordens para construir, das classes dominantes enfim), tal como o Barroco é ex- pressão do pensamento da Contra-Reforma. O que Panofsky não leva em consideração é que toda forma de arte (e, mais genericamente, toda produção) é ne- cessariamente expressão dos valores da ideologia das classes sociais que Ihes deram origem - e não podem deixar de sê-Io. E o fato de uma del;ls ser essa expres- são de modo mais rigidamente organizado que outra, eventualmente (ou que pelo menos assim parece dadas as excelências do modelo utilizado na análise, da perspi- cácia do analista) não significa que ela será racionalista e a outra não. Repita-se: todas são manifestações de um modo de pensar, de uma razão. Por outro lado, se se encara o termo "racionalista" sob uma perspectiva mais rígida, nem a arquitetura gótica e tampouco o pensamento escolástico pode ser considerado "raciona- lista" uma vez que estão ambos eivados de elementos místicos (os problemas da fé, a argumentação pela per- suasão emocional - que é aquilo a que especificamente se propõe uma catedral gótica) a impedi-Ios totalmente se serem como tais considerados. Mesmo que se deixasse de lado o problema de uma arquitetura racionalista como expressão de uma forma de pensamento para se considerá-Ia racionalista em razão de sua "clareza" (transparência exterior-interior, como em VioIlet-le-Duc), a designação não se justifica dado que, como já foi visto aqui, o aspecto interior X exte- rior é apenas um dos vários envolvidos no problema arquitetural, e sobre ele apenas não pode repousar a possibilidade de considerar uma arquitetura como racio- nalista ou não. Há outros modos de se encarar a verticalidade, e esta mesma verticalidade do Gótico? Sim, e parecem bem mais adequados: um deles baseia-se numa con- cepção (defendida por Hauser) segundo a qual o verti- calismo gótico é, pelo contrário, manifestação do mis- ticismo humano. Numa catedral gótica se teria de tudo, menos racionalismo: nessa "nave iluminada a caminho do paraíso" se misturam a pretensão irracional de ele- var-se aos céus, de reverenciar entes irracionais e de afirmar-se um poder irracional (poder que transparece Qual o papel real da geometria no pensamento e na prática da arquitetura? Até que ponto a geometria é inerente ou mesmo essencial para a arquitetura? Esta questão ainda é freqüentemente recebida com um ar de espanto por muitos, aqueles para os quais a ligação entre uma e outra coisa é tão estreita que a pergunta é mesmo impensável e soa ingênua. No en- tanto, esse é justamente o problema: o fato de não se pensar néle. Vejamos primeiro uma parte da questão: o rela- cionamento entre a geometria e o pensamento arquite- tural - que exige a análise, inicialmente, da relação entre geometria e pensamento, simplesmente. Aqui é possível perceber um certo acordo geral entre os ana- listas quanto ao fato de ser a geometria um dos ins- trumentos fundamentais do pensamento científico - e mesmo do pensamento filosófico, se se pretender uma distinção entre um e outro. Para Bachelard, por exem- plo, a geometrização da análise, isto é, um ordenamen- to seriado dos fatos estudados e mesmo o desenho deles, é a primeira tarefa exigida do espírito científico e aquela na qual ele se afirma como tal. A lógica as- sume esse procedimento, e a química, e a semiologia, etc., etc. A razão é óbvia: a esquematização geométri- ca favorece um esclarecimento dos aspectos visados, um tornar mais claro, mais imediato uma determina- da realidade. Sob esse aspecto, na condição em que estamos em termos de pensamento científico é im- possível negar esse papel à geometria. Mas esta mesma colocação necessária já torna evi- dente o primeiro transtorno que a geometria ineluta- velmente trás ao pensamento científico em geral e a ~lguns de seus tipos em particular: a geometrização normalmente só é capaz de dar contas dos aspectos mais superficiais dos fenôlÍlenos - e tanto que em al- guns casos ela não só transfigura o objeto de estudo como é mesmo de todo impossível de ser aplicada dada a complexidade do fenômeno. Assim, por exemplo, vê- se mal como pode a representação geométrica dar con- tas de uma realidade dialética. Em suas próprias es- sência!, diaiética e geometria são duas entidades que se opoem e se excluem mutuamente: é possível repre- sentar geometricamente que "A é A e não é B, ao mes- mo tempo e sob o mesmo aspecto". Mas não é pos- sível a geometrização de· "A é A mas também é B na tendência para C, ao mesmo tempo e sob o mes- mo aspecto". A representação geométrica está ligada es- sencialmente ao pensamento que se estrutura segundo as ~o~mas da lógica aristotélica (isto é, a esmagadora maiOna dos pensamentos em operação - mas quan- tidade não é sinal de validade) e para este pensa- mento a geometrização é mesmo necessária. ~estes termo~ seria mais adequado propor um ou- tro tIpo de relaCiOnamento entre geometria e pensa- mento que fosse em princípio aceitável não só enquanto esse mesmo simples relacionamento e enquanto relacio- namento com o pensamento dito científico como tam- ~neziano (canal aterrado) obriga a uma eurva aqui conduz a um campo, cujo acesso se faz atravessando ma PQnte de degrau e subindo uma plataforma - que Jnduz :-Uma miríade de calles, ramos, croseras. Numa rea global minúscula, as possibilidades de combinação io praticamente ilimitadas: é preciso tempo para co- hecer a cidade, enquanto New York se oferece intei- nha ao menor toque de botão num painel luminoso. or ter tempo, Veneza vive ainda - e não morrerá. few York é uma ficção e um inferno: já se começou abandoná-Ia há muito tempo. Temporalizar o espaço: propor um espaço que se lOdifica pela possibilidade de vivê-Io realmente, de ercorrê-Io. Quando Zevi fala dessa questão 34, ele ublinha o valor do aspecto dinâmico e estático dos es- ,aços. Diz, adequadamente aliás, que quem concebe fi corredor com paredes paralelas, tal um prisma es- ítico, não entende o abc da arquitetura. Mas não llostra extensivamente como se pode praticar essa tempo- alização, embora cite exemplos corretos como o Gug- :enheim Museum e a Casa da Cascata, ambos de Lloyd ~right. E não fala nada sobre a temporalização do spaço urbano, imperdoável para um italiano que tem /eneza exatamente ao lado. A ação sobre o eixo ver- ical-horizontal, com uma proposta de ambos os planos ,imultaneamente, na casa e na cidade, é um dos instru- nentos básicos contra o tédio e a opressão arquitetôni- :os. Do outro se falará a seguir. [ . 3 .7 . 7.o eixo: Espaço Geométrico X Espaço Não-Geométrico m enquanto relacionamento ~om o pensamento. dito :ético. Seria possível dizer que, aceitando uma prá- a evidente, a geometria pode ser um intermediário ão necessário) entre o concreto e o abstrato. Ou ~ um dado pode ser assimilado pelo pensamento 'avés de uma geometrização (para ser a seguir even- almente devolvido ao concreto). Mas obviamente nem pensamento (o abstrato) é geométrico e tampouco o o concreto, o objeto: geométrico é apenas o modo : análise, seja qual for o caso e a hipótese, e nada ais. E ainda assim com as restrições do parágrafo Iterior. Sob esse aspecto, o pensamento arquitetural >de manter relações com a esquematização geométri- I, criando assim uma representação de seu objeto, que o Espaço Real. Agora, a segunda parte da questão: o papel da :ometria .na prática da arquitetura. E desde logo se )de fazer uma colocação que elucida amplamente o 'Oblema: a prática da arquitetura e da urbanística tem do tal (não só hoje, porém hoje mais que nunca) Ie os arquitetos confundem o concreto com o abs- ato, confundem o pensamento sobre o espaço com o róprio espaço e acabam por impor um espaço de 'presentação (o resultante da geometria possível do ;paço, do pensamento sobre o espaço) ao invés de rapo r um espaço real. Esta é a grande falha (que não de todo ingênua, como se verá) da prática arquite'- lral e que se revela especialmente nesta disciplina pela rópria especificidade de sua matéria: um alfaiate (mas 1mbém um químico, um antropólogo) pode esquema- zar geometricamente seu objeto (o plano desse obje- )) mas não imporá essa representação ao objeto final. 1m psicólogo pode representar geometricamente um stado mental mas não esperará que a vida psíquica de ~us pacientes se produza na prática com o rigor e forma de seu modelo. Ao contrário, o arquiteto re- ,resenta um espaço (pensa um espaço) e acha a coisa lais natural do mundo que seu modelo, sua repre- entação, se comporte e seja aceita na prática tal orno ele a representou. Lamentável e trágico engano. O próprio Bachelard enuncia de modo claro: "é lecessário que nos livremos de toda intuição definitiva - e o geometrismo registra intuições definitivas - se : que queremos seguir. .. as audácias dos poetas que 10S chamam para ... 'escapadas' da imaginação". Ele está falando de literatura e menciona mesmo um es- tado de "cancerização geométrica" do tecido lingüístico - mas podemos falar de arquitetura, da mesma ne- cessidade de nos livrarmos dessas intuições definitivas e do mesmo fenômeno de cancerização geométrica do tecido espacial. Alguma dúvida de que as casas e as cidades d~ hoje sofrem de geometrice crônica e aguda? Não. O ângulo reto, as paralelas e perpendiculares, as formas "regulares" predominam em toda parte - são mesmo sinônimos, tidos por pacíficos, de modernidade; pro- gresso, avanço, desenvolvimento, tudo isso se mede com e se equivale ao ângulo reto. Qual o verdadeiro sig- nificado dessa situação, no entanto? A Teoria da Informação 35 pode respondê-lo de imediato: resumindo, toda forma regular (as figuras geométricas, mas também a reta, paralelas, ângulos, etc.) são facilmente previsíveis, por conseguinte contêm menos informação, não mudam comportamentos. Nada modificam, não instauram mudanças, servem para manter apenas, para segurar - como informação, va- lem pouco e mesmo nada. É o que diz Zevi com outras palavras, que mere- cem ser citadas: Por centenas de milênios, a comunidade paleolítica ignora a geometria. Mas assim que se estabilizam as bases do neolítiro, e os caçadores-criadores são sujeitados a um chefe de tribo, surge o tabuleiro de xadrez. Todos os absolutismos políticos geometrizam, organizam o cenário urbano com eixos e depois outros eixos paralelos e ortogonais. Todas as casernas, as pri- sões, llS instalações militares são rigidamente geométricas. Não é permitido a um cidad&o virar à direita ou à esquerda com um movimento orgânico, seguindo uma curva: deve girar a 90 graus, como uma marionete (os grifos são meus). Este curto trecho resume praticamente toda a pro- blemática que a geometrização do espaço trás consigo e a visão dos que se opõem a ela: o geométrico (a mario- nete) se impõe à vida (o orgânico), o artificial ao natu- ral, o condicionamento à liberdade. Ilustra também, por exemplo, a divergência estabelecida entre Frank Lloyd Wright e Le Corbusier: o arquiteto americano propug- nava uma arquitetura "orgânica" em oposição declarada 35. J. Telxelra Coelho Netto. Introdução à teoria da informa- ção estética. Petrópolls. Vozes. 1974. geometrismo do suíço, acusado de artificialismo com- to (embora, é necessário frisar, Lloyd Wright não h1 sido tão informal ou não-geométrico assim). 'Ê o interessante aqui é que justamente Le Corbu- . foi um dos grandes defensores manifestos e con- ,os do geometrismo, ele tão freqüentemente acusado ser contra a ordem, isto é, acusado de subversão. ja-se por exemplo seu catecismo de arquitetura (que ) tem estrutura e dimensões para ser mesmo mais ~ isso) Quand les cathédrales étaint blanches 36. Sua ologia dessa época é bem clara cl,~sdeo título do ca- ulo que ele consagra a essa questão: "As ruas são ogonais e o espírito vê-se liberto" 37 (falando de New Irk). Sua crença no ortogonal, no geometrismo mais ido, é expressa em termos definitivos: "Este signo +, ) é, uma reta cortando outra reta formando quatro gulos retos, este signo que é o próprio gesto da cons- ncia humana, este signo que traçamos instintivamen- gráfico simbólico do espírito humano: um ordena- r" 38. Para quem foi taxado de materialista ímpio, mpreendente o misticismo que transcende dessas li- as: a alusão ao sinal da cruz cristão, ao gesto da nção (que "põe ordem") não pode ser mera coin- lência. Mas deixando este aspecto de lado, bem como o aprofundando a discussão desse traçar "instinti- " (nada menos instintivo, na realidade, do que as ncepções geométricas - e toda a história do conhe- nento humano está aí para confirmá-lo), vejamos 1 que consiste as supostas excelências, para Le Cor- lsier, do traçado ortogonal. Para Jeanneret, que se mporta nessa sua primeira viagem aos EUA como n verdadeiro índio maravilhado e deslumbrado que sembarca na Metrópole Absoluta (deixando de do uma série de aspectos no mínimo discutíveis e ~fendendo absurdos de caráter sociológico - como lando elogia a servilidade, a submissão forçada po- m assumida e a falta de consciência social e de coos- ência dos próprios direitos dos empregados negros dos ~ns americanos, e que ele confunde escandalosamen- com bonomia, para não citar outros exemplos - lma linguagem ufanista que cansa desde a segunda li- Ia, porque a primeira já começa com um "I AM AN AMERICAN", assim mesmo em inglês, numa demons- tração inequívoca de, no mínimo, mau gosto) o fun- damental da concepção ortogonal é que a movimen- tação nesse espaço torna-se simples, direta, fácil. Quer ir a tal lugar? Basta virar três quarteirões à esquerda e depois dois à direita - ao que Le Corbusier contra- põe aquilo que ele chama de caos sufocante, de ro- mântico e inadequado reino da "desordem" e que são os traçados das cidades européias em sua quase tota- lidade. Para Le Corbusier, o ortogonal é exemplar por- que nele ninguém se perde, e o estrangeiro se sente des- de logo tão em casa quanto o morador antigo. Além do mais, o traçado geométrico organizado deixa a ci- dade livre: nada de igreja numa das portas da ci- dade e um castelo na outra, você atravessa a cidade livremente de uma ponta à outra, sem obstáculos: você é livre e a cidade também. E se lança numa diatribe contra as cidades "torcidas" antigas e as que foram propositalmente asssim construídas na modernidade, crucificando Camillo Sitte pela propagação dessa idéia (por ter Sitte concluído que "o tumulto é o belo, e a retidão, a infâmia") quando ele pouco ou nada teve a ver com isso. 36. Paris, Médiat1ons, 1971. 37. Quand les cathédrales ... , p. 57. 38. Idem, p. 61. É possível deixar passar sua afirmação de que a orientação num tabuleiro ortogonal é mais fácil (e com efeito um erro num traçado tortuoso tende em prin- cípio a se agravar cada vez mais), pode-se mesmo deixar de mostrar que a Teoria da Informação con- firma que se o tortuoso, a desordem não são em si todo o belo, são altamente importantes para sua obten- ção. O que não se deve aceitar é sua tese, freqüente- mente retomada, mesmo atualmente (ou em particular atualmente) de que o ortogonal é o espírito da liber- dade, que com o ortogonal a cidade é livre, e o indi- víduo também. Enorme absurdo, pois é justamente () contrário! Le Corbusier parece desconhecer ou deixar de lado um fato da história da arquitetura e da urba- nística francesas (que no entanto ele deveria conhecer perfeitamente) que foi as reformas produzidas por Haussmann no tecido e na fisionomia parisiense. A mo- dificação fundamental por ele introduzida em Paris foi justamente a de rasgar a cidade de uma extremidade à outra com uma série de eixos geometricamente proje- tados que se ligavam ou cruzavam. Finalidade especí- fica: acabar" pelo menos em parte, com as ruas e vie- Jrováveis, mas a leitura de todos é tarefa que este es- :udo intencionalmente não se coloca. E isto resulta do próprio objetivo d,e início declarado: proceder a uma leitura do discurso arquitetural, o que implica de ime- jiato uma semiologia da arquitetura - mas ao in- vés de se seguir o caminho até aqui trilhado por essa semiologia (e que se tem revelado absolutamente in- frutífera, mero exercício - muitas vezes inadequado - de lógica, mas não de arquitetura) se propunha or- ganizar o discurso arquitetural num sistema (os eixos) e investigar as referências (os significados, se se qui- ser - mas, melhor, os interpretantes) livremente, a partir do ponto de vista exigido mais imediatamente pela natureza de cada eixo. F: a esse aspecto, que constitui uma dificuldade (&e não uma impossibilida- de) para todo trabalho que se pretenda exaustivo deve ser acrescentado que se partiu igualmente, para a leitura desses interpretantes, da distinção estabelecida por 15 a,C" Leon Battista Alberti publica seu De re aedificatoria, espécie de seleção comentada dos textos do grande mestre, Foi o começo da "corrida", da nova moda, Em 1486, pouco mais de 40 anos depois da invenção da imprensa, surge a primeira edi- ção dos textos do próprio Vitrúvio, a cargo de Sulpicio de Veroli, e nos anos seguintes (a atestar a fome que se sentia por esses escritos) há pelo menos mais uma edição impor- tante de Vitrúvio a citar, a de 1513, por Fra Giocondo. A partir dai vem uma verdadeira enxurrada de tratados sobre arquitetura, perspectiva e geometria, e essas três coisas se vêem intimamente relacionadas (a Fundação Cini, em Veneza, é um verdadeiro ar- senal deles), Os titu10s são os mais variados possíveis, mas a preocupação uma só, Há mesmo coisas extremamente saborosas, num claro indicio da importãncia e interesse do assunto, como o livro de Giulio Troill (por apelido "U Paradosso") publicado em 1672 sob o título Paradossi per praticare la prospettiva senza sa- perla! E no entanto, é obra séria, onde o autor apenas dava mo- delos, regras já prontas para "perspectivar" sem a necessidade de elaborar-se todo o processo, Mas o que efetivamente interessa aqui é mencionar uma obra (já importante na época) que !lustra com seu próprio título a situação em que se tinha metido a arquitetura e da qual ela ainda não saiu: trata-se de um llvro de l"erdinando Galll- Bibiena (particularmente importante cenógrafo da época) publicado em 1711, A arquitetura civil elaborada a partir da geometria e reduzida à perspectiva. O título é claro, preciso e eloqüente: nada mais precisa ser dito, Resta esperar que assim como a filosofia foi posta a andar novamente sobre seus pés por um certo sr. Marx, ela que an- dava plantando bananeira, também a arquitetura deixe bre- vemente essa posição tão pouco cõmoda em que se mantém, no minimo, desde o século XVI. Já não é sem tempo: só em relação à filosofia ela já. está. com mais de um século de atraso, 43. A reação ao traçado geométrico não se llmita apenas ao projeto urbanístico. Mesmo no sentido mais tradicional da prá- tica arquitetural (a proposição da "casa") ela é igualmente uma necessidade, uma possibilidade e uma realldade - tanto em rela- ção ao Espaço Interior quanto Exterior, Um projeto de Frederick John Kiesler é, sob esse aspecto, exemplar. Kiesler propõe um "ar- ranha-céu" abrigando escritórios, salões, etc, e uma série de pe- quenos teatros de capacidade variada (120 a 330 lugares) cuja peculiaridade reside em dois pontos: a) de modo particular, num corpo anexo ao edifício centrat, Kiesler propõe algumas Peirce 44 entre sentido, significado e significação. Signi- ficado: aquilo que é inicialmente pretendido com um signo. Sentido: a impressão feita ou que normalmente deve ser feita por esse signo. Significação: o resultado real produzido pelo signo 45. Fica claro agora porque esta análise (e análise alguma) não pode pretender a exaustividade. É possí- vel, eventualmente, analisar de modo exaustivo os significados desses eixos, é mesmo viável traçar um qua- dro geral, e bastante indicativo dos sentidos,' mas será absolutamente impraticável levantar um plano de todas as significações, particularmente num trabalho que se pretende teórico, isto é, geral, abrangente. É viável ainda, por exemplo, analisar perfeitamente os signifi- cados, sentidos e significações produzidos por um dado discurso arquitetural sobre uma determinada população, grupo de indivíduos delimitado ou um indivíduo (um pequeno bairro operário, ou um parque residencial mé- dio-burguês ou um único indivíduo, isolado). A análise geral, no entanto, não pode nem pensar em considerar a proposição de objeto semelhante. O que ela pode, e este foi o objetivo aqui, é exemplificar as leituras pos- síveis (para outros trabalhos de reflexão sobre ar- quitetura) e possíveis linhas de ação (para a prática de: arquitetura). salas. que são encerradas numa construção absolutamente não- g!l0metnca e que se assemelha a uma pera deitada, com super- ficie desigual e irregular; b) todos os corpos do conjunto deve- riam ser construídos de tal modo que o material da construção e o revestimento deveriam ser praticamente jogados sobre a es- trutura e não modelados de forma linear. Este caso não é único: basta pensar nos projetos dos ex- pressionistas. A Torre Einstein (Mendelsohn, 1920-1924)em Potsdam é igualmente um exercício em a-geometrismo, tal como sua "Arqui- tetura das dunas" 1920), um titulo de todo eloqüente: movimento variação. (Ver ilustração n.o I, 2 e 3). ' 44. Ch. S. PEIRCE, Collected Papers of Ch. S. Peirce, Cam- bridge, 1962. 45. Sentido foi aqui também consíderado sob uma outra perspectiva (da qual resultou o título da obra), a partir de um co~celto mais genérico" mais extenso (e que não confllta pro- pnamente ~om o de PelrCe) tomado à teoria de Hjelmslev, para quem sent'do designa aquele fator comum existente sob todos os sistemas lIngüístlcos. O sentido é aqui o "pensamento mes- mo" subjacente a várias formas de éxpres~ão, por mais diferen- tes que s,!"jam, Por exemplo, I do not know, te ne sais pas e 1eg véd sao algumas das formas diferentes que pode assumir o sentido (Isto é. o fator comum) "eu não sei"; é ele que está. por baixo dessas variadas expressões. I!ustraçüo n'! f: Projeto de teatro de Frederick John Kiesler, exemplo de reação ao traçado geométrico. Trata-se de um arranha-céu que se ergue sobre um teatro principal, abrigando uma série de outras pequenas salas com capacIdade entre 120 e 330 lugares. Ao lado do corpo principal, uma estrutura irre- gular em forma de pêra comporta uma outra sala. Sendo pre- visto um revestimento em cimento aparente, o arquiteto propõe que o material seja quase livremente jogado sobre as formas, dando por resultado uma superfície irregular e não modelada de acordo com configurações lineares e geométricas. Ilustração n<! 2: "Arquitetura das dunas", esboços de Erich Mendelsohn. feit?s em 1920: expressionista, o arquiteto procura observar e msprrar-se nas formas constantemente refeitas pelo vento. É nítida a influência da "Arquitetura das dunas" sobre o projeto da Torre de Einstein, do mesmo Mendelsohn. I Ilustração n9 3: Torre Eios\ J em Postdam (1920-1924). B'I' j é exemplo de recusa elo geoml'~~/ outros, por Gaudí. '~~i i ~:j JMm~elsohn, construída \~!~JqU1tetura das dunas", 1'l'1ltticadaigualmente, entre \1 '/ acresclmo específico: banalidade, coisa desprezível e mesmo perniciosa. E o mais grave é que esse con- ceito totalmente inadequado de imaginário acaba des- lizando e infiltrando-se mesmo no campo da teoria da arte e da arquitetura (onde adquire condição seme- lhante à desfrutada pelas sempre presentes e absurdas teorias da "inutilidade" da arte), sendo aqui usado para emascular a prática artística do homem, ceifan- do aquilo que ela tem talvez de mais importante. De fato, se é verdade que pelo menos em estética o con- ceito de imaginário começa atualmente a ser, pelo menos em parte, reivindicado (embora confundido e distor- cido, de modo extremo até), da arquitetura ele foi (e está) inteiramente afastado - se é que alguma vez foi, nela, devidamente considerado. A perspectiva que prevalece aqui é a de que a arquitetura é urna disciplina que lida com o real e o útil, e nada tem ô ver com o imaginário. Monumental engano, e nem sempre ino- cente. E que se procurou desfazer aqui através da aná- lise dos sete eixos em torno dos quais se organiza a atividade arquitetural: os componentes desses eixos fo- ram quase sempre vistos, corno se procurou mostrar mais acima, na qualidade de pertencentes à dimensão do imaginário na arquitetura. ú?ico p~nto de vista para a análise de seu objeto) não so permite (e mes~? torna obrigatória) sua presença em todo est.udo teoflCO sobre arte e arquitetura, recu- perando assim toda urna parte vital da experiência es- tética humana, corno possibilita um entendimento da ?bra de .a~te (entre as quais a arquitetura) em seu Justo pOslclOnamento de topos real onde esse universo ima~i~ário se constrói através de elementos reais' (a matena), formando com este universo um objeto novo diferente ao mesmo tempo daquele mundo de rela~ cionamentos não organizados e subjetivos e do mun- do "objetivo" que se mostra ou opaco ao olhar da c~nsc~ência ?u que se revela de modo ordenado (mas fno, lmpasslvel) segundo a apreensão cinetífica. Este conceito de imaginário assim descrito, no en- tanto, chama atenção para um outro conceito, e uma outra atividade, sem a' qual o imaginário, a obra de arte e mesmo toda atividade não-artística do homem' é inviável: o conceito de ideologia e a prática ideoló- g~c~. Inviável porque não há significado, sentido e sig- nIficação, na obra de arte ou na vida "comum", sem a presença de ambas essas atividades, simultaneamente. Mas o que se deve entender por ideologia? Seria possível utilizar um conceito vulgar e muito empregado, segundo o qual uma ideologia é um sistema ou mero conjunto (conforme seja rígida ou frouxa- mente organizado, respectivamente) de valores dos mais ~ariados tipos (políticos, religiosos, estéticos, etc.) uti- lIzados para a explicação de uma realidade. Não se pode dizer que est~ descrição da ideologia seja equí- ~oca, mas outras eXIstem que são mais adequadas. par- ticularmente a um trabalho àesta natureza. Pode-se di- ::er, assim, 9ue a ideologia é uma representação (isto e, um relaclOnament~ consciência-objeto) produzida pelos homens a respeito das relações por eles mantidas com suas condições reais de existência. Este conceito está mui~o próxi~o do conceito de imaginário, já que ambos vem descntos como modos de relacionamento entre a ~onsciência e seu objeto. Qual a diferença? P~r~ mUltas, ~enhuma. Estes (que entendem o imagi- nar~o_como ~a~ sendo nada mais que alucinação, su- poslçao. f~ntastlca) ~ons~deram simplesmente que a l?~ologla. ~ uma expllcaçao destorcida (por razões po- htlco-soclals, normalmente) da realidade que se opõe Mas, como pode ser então descrito o imaginário de um modo adequado à recuperação que aqui se tenta fazer desse conceito, libertando-o de uma série de detritos intelectuais de suspeita inspiração? Não como fantasia, alucinação, mas como o universo de um modo de relacionamento da consciência individual com obje- tos reais ou virtuais. Este conceito, que partiu da no- ção sartreana de imagem (modo que a consciência tem de se dar um objeto) tem sua especificidade no fato de ser um modo não organizado, não ordenado, não ra- cionalizado de relacionamento entre essa consciência e um objeto qualquer que lhe é interior ou exterior - pelo que o imaginário se distingue, por exemplo, do modo de relacionamento científico de uma consciência com esse objeto (modo ordenado, organizado). Esta descrição do imaginário (que pode e deve ser com- plementada dizendo-se que outra característica funda- mental desse modo de relacionamento é o fato de que ele é feito a partir de múltiplos pontos de vista utili- zados simultaneamente, enquanto o modo de relacio- namento científico deve usar, a cada vez, apenas um aos dados "indiscutíveis" forneGidos pelo entendimen- to "científico". Quando assim formulam sua posição, estão querendo que se aceite a idéia de que a reali- dade humana é constituída por uma única verdade natural que tem de ser descoberta e com a qual não se pode discutir. Por exemplo, seria da ordem "natural" das coisas o fato de existir uma entidade supra-hu- mana a que se denomina "deus", tal como se deveria atribuir a existência, por exemplo, de uma rígida dis- tinção entre as classes sociais a essa mesma ordem "natural" - contra a qual nada se poderia. Ora, não cabe aqui mostrar que não existe nenhuma explica- ção única da realidade (humana ou material) que se- ria "natural" (isto é, irretorquível) e que geraria o conhecimento de tipo "científico": vários trabalhos de valor indiscutível já o demonstraram. As teorias de Einstein, por exemplo, comprovaram que não existe uma verdade única e imutável, mas que toda noção tem um valor variável e relativo. Duzentos e cinqüen- ta anos antes de Einstein, Newton formulou uma teo- ria da mecânica celeste que foi contrariada pela teoria da relatividade geral proposta pelo irrequieto e pouco convencional cientista moderno. Isto significa que a teoria de Newton é, portanto, falsa ou equívoca? Como afirmá-Ia, se continua a ser utilizada pelos astrôno- mos e se delas se servem, sob todos os aspectos, os atualíssimos astronautas? Mas se as idéias de Newton são usadas ainda, neste caso os trabalhos de Einstein é que são enganosos. Proposição igualmente falsa. O fato é que sob um -determinado ponto de vista a teo- ria de Newton é inadequada: ela não é adequada quando se trata de analisar objetos cuja velocidade se aproxima da velocidade da luz. Isto significa que também no campo da chama- da "ciência" tudo está na dependência de um determi- nado relacionamento, de um modo de posicionamento entre a consciência investigadora e seu objeto. Em ou- tras palavras, tudo depende de um ponto de vista. Tal como no imaginário. Com a diferença, no entanto, de que a representação que a ideologia fornece aos ho- mens das relações que estes mantêm com suas condi- ções de existência é uma representação de alguma for- ma organizada e não é subjetiva, mas, quase necessaria- mente, transubjetiva, isto é, partilhada por um grupo ou grupos. Ao lado dessa primeira concepção de ideologia aqui combatida (a de que a ideologia difere do co- nhecimento científico por ser uma explicação alu::ina- da, falsa, antinatural) existe uma outra que também deve ser posta de lado: aquela segundo a qual a ideologia é uma argumentação que, enquanto escolhe uma das possíveis seleções circunstanciais de explica- ções possíveis, oculta o fato de que existem outras pre- missas contraditórias ou complementares que levam a uma conclusão diferente ou mesmo contraditória da- quela por ela sugerida. Assim, se alguém afirmar que a teoria de Newton explica a mecânica celeste segun- do tais e tais princípios, sem revelar que existe ou- tras teorias (como a de Einstein) que sob determi- nados pontos de vista permitem conclusões contraditó- rias às de N ewton, esse alguém estará utilizando uma argumentação ideológica e não científica. Esta concep- ção também deve ser corrigida: não é pelo fato de expor sua parcialidade (isto é, de mostrar que existem premissas contraditórias àquelas que se escolheu) que um discurso qualquer deixará de ser ideológico. Ele continua a ser ideológico na medida em que é uma representação da realidade, e uma representação das re· lações entre os homens e essa realidade, que foi esco- lhida pelos homens, por uma série de razões, como sendo a mais adequada e conveniente. Eu afirmo tal coisa, não escondo que existem posições contrárias mas defendo a validade de minha posição: estou executan- do uma atividade ideológica. Se a esta altura for perguntado como pode ser situado o conhecimento científico em relação ao co- nhecimento ideológico, e em que um se distingue do outro, é possível responder que os pontos comuns a ambos são muitos, que não existe oposição absoluta entre um e outro e que o conhecimento chamado cien- tífico é mesmo uma espécie do conhecimento ideoló- gico, não podendo ser entendido de outra forma. Com efeito, basta lembrar que ciência só existe enquanto pode ser negada: a única coisa que não pode ser ne- gada é o dogma, e o dogma não é assunto de ciên- cia nem conduz ao conhecimento científico. A grande diferença existente entre a ideologia e o conhecimento científico (se é que chega a ser diferença) é que uma ideologia é feita também por conhecimentos científicos (neste caso o conhecimento científico é uma parte do todo que é a ideologia) e, pOl: esta razão, o conhe- cimento científico é um corpo de noções rigidamente organizadas em torno de um único ponto de vista, enquanto a ideologia será composta necessariamente por uma apreensão da realidade baseada numa multipli- cidade de pontos de vista (o aspecto político, o aspec- to religioso, o aspecto estético, etc.) - diferenciando- se do imaginário já que o modo de relacionamento consciência/objeto é aqui inteiramente não-organizado, enquanto na ideologia alguma organização há. Além do mais, deve-se entender que a ideologia é uma prá- tica normativa da atividade entre os homens (segun- do critérios de justiça, adequação aos objetivos so- ciais, etc.) que se preocupa com o dever-ser do uni- verso humano, enquanto o chamado conhecimento cien- tífico, voltado para o estudo do ser, daquilo que efeti- vamente é, agora, é um instrumento para essa atuação. Não há, portanto, como separar o imaginário do ideológico - embora não se deva confundir um com o outro. Fez-se aqui esta resumida introdução a uma teoria do imaginário e do ideológico para melhor situar o leitor quanto a alguns aspectos dos eixos pro- postos e discutidos. E se por alguma razão deu-se a . impressão de que o nível mais presente nas discussões do primeiro capítulo foi o do imaginário (embora a dimensão do ideológico sempre estivesse presente, ain- da que de forma menos evidente) procede-se a seguir a uma análise específica da presença da ideologia na arquitetura (isto é, da representação que certos ho- mens se fazem - e tentam impor aos outros - das relações por eles mantidas com a realidade arquitetu- ral, por razões de variado interesse político-social) em três casos particulares. Esta análise deve mostrar como atua a ideologia na arquitetura, de que modo a arqui- tetura é ideologizada e ideologizante, qual o significa- do' ideológico de certas proposições arquiteturais - e isto em três aspectos da teoria da arquitetura, e da teoria da linguagem e da significação na arquitetura particularmente, passíveis de verificação em alguns ou mesmo todos os sete eixos propostos. Por certo, trata- se aqui de análises exemplificativas que se contentam com serem tais e que não ostentam a mesma ambição e generalidade de que se reveste a primeira parte deste trabalho. 2. TMS CASOS PARTICULARES DO IDEOLÓGICO NA ARQUITETURA A partir da segunda metade do século XIX a arqui- tetura tinha uma nova palavra de ordem: funcionalismo. Que acabou se tornando uma panacéia e uma etiqueta . em nome da qual se procura desculpar verdadeiros cri- mes contra a arquitetura - 'se não fossem, antes, contra o homem. A fórmula mágica Forma, Estrutura e Fun- ção, tal como é proposta por Nervi, surgia para resol- ver os problemas da arquitetura, definindo-a e atribuin- do-lhe um domínio específico para, ao final, justificá-Ia. As razões para esta nova concepção pareciam múltiplas aos olhos dos teóricos do século XIX: a torre proposta 3. BOUDON, op. cit., p. 30. 4. Não é argumento declarar que diminuindo os custos de produção se diminuem os custos para o comprador. pois é quo- tidiana a constatação de que uma coisa nada tem a ver com a outra. A tendência é uma s6: reduzir o custo e aumentar (ou p 10 menos manter) o preço para o comprador. Não há, pois, nonhuma. real função econômica para o consumidor. 5. Num certo sentido, Isto poderia ser até elogio: aqueles '111! recusam o abc, a cartllha comum e primária., pelo tratado. M~t1 nll.o: trata-se realmente daqueles que nunca chegaram nem 11I"tIIHO a manipular o abc. Seja como for, o que se constata é efetivamente a impossibilidade prática atual de unir realmente forma e função - pelo menos a partir de um ponto de vista uni- tário e específico, que deveria ser o obrigatório, o do consumidor. Não se pode considerar como união aquilo que resulta de um elemento bicomposto que volta cada uma de suas partes para um ponto de fuga diferente. A conexão é impossível, efetivamente, embora não pelas razões talvez demasiado "ideologizantes" de Baudrillard - e embora de qualquer forma a prática da função aqui apontada seja, como ele coloca, uma prática do rendi- mento, da produtividade econômica. Mas há uma outra ressalva a ser feita a respeito de sua tese: para Baudril- lard, forma e função são eternamente irreconciliáveis porque o são igualmente as duas classes sociais corres- pondentes. Baudrillard não diz portanto qual a solução do problema - embora se pudesse esperar que ele o fizesse, pois para o conflito aristocracia X burguesia existe uma solução. De acordo com a própria ideologia de que parte Baudrillard, o conflito aristocracia X bur- guesia se transforma historicamente em oposição aris- tocracia/burguesia X proletariado, e depois simplesmen- te em burguesia X proletariado, o qual deveria ser sure- rado com a afirmação do segundo oponente que a seguir deveria igualmente desaparecer para restar apenas uma ausência de conflitos ou, se se preferir, um estado de concordânCia geral. De acordo com a base implícita de seu ponto de partida, o:ue deveríamos ter para o pro- blema. da forma X funçCo? Qual é o terceiro elemento que corresponderia, no esquema anterior, ao proletaria- do? Um formofuncionalismo? Um funcioformalismo, ou qualquer outro - mas· qual? E se a forma está presente de algum modo nesse terceiro elemento (niio pode deixar de estar), que forma pode produzir o pro- letariado pois, como foi visto por Trotsky, o pro- letariado não tem condições para propor essa for- ma nova e nem deveria ter tempo para fazê-Io pois de- veria desaparecer rapidamente como classe? Qual a solução, neste caso? Melhor realmente abandonar sua proposição (reti- da apenas como mola de outras, como feito aqui) nos termos em que está colocada, para sugerir que se essa união é atualmente impossível, ela pode deixar de sê-Io eventualmente quando as posições do produtor e do consumidor forem a mesma, partirem de um mesmo sumidor, é na verdade um funcionalismo pensado para o produtor, um funcionalismo que sé encaixa naquela polí- tica de rendimento máximo do capital. A linha reta e simples é adotada porque é mais barata de produzir, as grades de ferro são retiradas (e depois a sacada) porque se barateia o custo e aumentam os lucros; os elementos de construção tomam-se "mais leves, mais "funcionais" pela mesma razão e assim até o infinito. Não pode haver a menor sombra de dúvidas de que o funcionalis- mo é voltado para o produtor, dando-se a forma para o consumidor como legítima e verdadeira isca. É extre- mamente significativo que um arquiteto e professor de arquitetura como Boudon, ao elencar o tipo de função que se relaciona com uma forma qualquer, tenha dito que a função será "construtiva, econômica, de programa ou outra" 3. Trata-se inquestionavelmente de um lapso. Ele não precisava exemplificar (confessar) quais funções se propõe o funcionalismo (de resto, não dá nenhum exemplo referente às possíveis formas) mas o faz e só cita funções de produção: nada no gênero função habi- tar, função lazer, função trabalho, etc.4• Para o consu- midor, só a forma. Digamos então que a teoria pende mesmo para o lado do funcionalismo - mas funcionalismo do e para o produtor. Ou melho, a teoria deveria chamar-se "Teo- ria do funcionalismo para o produtor e do formalismo para o consumidor" - que é a única coisa realmente que ele consome. E que nem vale o preço que se paga: formas exteriores de péssimo gosto (resultante da inexis- tente formação artística de arquitetos e designers), manipulação claudicante da forma espacial (pelo des- conhecimento das necessidades do corpo humano), de tudo isso resultando um universo sufocante (pelo des- conhecimento do abc da Sociologia, Psicologia, Antro- pologia: são os arquitetos antibecedários 5). Isto quando o arquiteto, embora "desconfie" de tudo isso, mesmo assim se dobra ao funcionalismo do produtor. ponto para chegar a um objetivQ comum: propor uma arquitetura capaz de oferecer a melhor existência huma- na possível. O que nos leva ao esclarecimento de uma questão levantada mais acima, referente a uma possível ilusão de união entre forma e função, mesmo nas obras dos grandes nomes. E se verifica que nesses casos isola- dos a comunhão entre ambas é realmente possível, espe- cialmente (e infelizmente, se deveria dizer) quando do projeto de casas particulares: não há, aqui, nenhuma oposição entre produtor e consumidor: aquele que soli- cita o projeto tem os meios para a construção e reúne em si mesmo produtor e consumidor: neste caso é possível encontrar uma forma exprimindo uma função, uma adaptando-se à outra (o que no entanto recoloca o pro- blema da arquitetura, pelo menos a arquitetura-optimum, como uma prática de classe ... ) Aliás, essa identidade por um momento parece surgir em outros casos históricos embora amputada de uma parte: ao invés de forma e função ótimas para pro- dutor e consumidor ao mesmo tempo, forma e função voltadas ambas para o mesmo ponto, o do produtor. Que se pense na arquitetura barroca, especialmente na arquitetura religiosa barroca. Produto da Contra-Refor- ma na luta contra o protestantismo, surge quando a Igreja Católica encomenda especificamente uma arqui- tetura com uma forma determinada para uma função específica, ambas destinadas a ela mesma, Igreja: tra- tava-se de dar formas de encantamento, de sufocação sinestésica calculadas para fazer retomar à sede católica os antigos adeptos desviados pela nova adversária e ao mesmo tempo conquistar novos simpatizantes. E sob o ponto de vista da Igreja, do produtor, a combinação existiu pois deu resultados. Todavia, não é possível acei- tar esse exemplo como demonstração de união perfeita de forma e função uma vez que não foram levadas em consideração as necessidades e os desejos reais e pro- fundos do consumidor dessa arquitetura, que se portou diante dela de modo passivo, guiado. Não foi ele que solicitou do arquiteto um lugar deste ou daquele tipo para a prática da religião, e mesmo que se tenha verifi- cado a hipótese de um verdadeiro contrato de adesão (ao contrato já feito ele adere com sua aquiescência) não é possível considerar a arquitetura religiosa barroca um caso de união forma-função. Um contrato de ade- são é visceralmente distinto de outro em que cada ele- mento ou é proposto pelo próprio interessado ou pelo menos por ele discutido ponto por ponto. f: necessário insisitir que para a arquitetura o que deve interessar é o usuário (para não repetir consumidor, termo carregado de conotações negativas), e só a partir dele pode ela ser definida. O mito da forma X função em arquitetura (pois é exatamente nisso que ele se transformou ou que sempre foi) surge assim na verdade como mais um rebento do pensamento tecnocrata que não se sustenta e não se jus- tifica. Não seria mesmo demais propor seu afastamento do campo da arquitetura e substituiçao por noções que a definam melhor; qualquer rápido pasticho das defini- ções históricas da arquitetura é capaz de propor pontos mais sólidos, como espaço/homem, ou mesmo belo/co- modidade/humanidade, etc. etc. Produzir um espaço, particularmente na arquitetura "pública" e em urbanística, não é apenas determinar formas, dispor elementos numa representação desse es- paço para a seguir executá-Ia numa prática efetiva. Esse é um dos aspectos da produção do espaço, m% está longe de defini-Ia inteiramente, e para conhecer a extensão desse conceito é necessário indagar de início - coisa que não se costuma fazer na prática da arquitetura _ o que vem a ser efetivamente um sistema de produção. Essa determinação só pode partir de uma disciplina fundamental para a arquitetura mas que é, no entanto, desprezada - por razões óbvias - na formação do ar- quiteto: a Economia Política 6. Dentro da estrutura proposta por esta disciplina, um sistema de produção apresenta quatro fases necessárias das quais a primeira, chamada de Produção propriamente dita, é aquela que normalmente o define embora seja apenas parte dele e não possa ser levada em consideração sem as três restan- tes sob pena de distorcer-se a visão do sistema em sua globalidade. . Produção propriamente dita significa apropriar-se dos produtos da natureza e dar-Ihes urna forma adequa- da às necessidades humanas. E a produção arquitetura I 6. E as noções a.qul propostas devem servir para a constl- tulçáo de outra disciplina particularmente Importante, uma Eco- nomia. Politlca do Espaço. é a apropriação do espaço e sua. enformação adequado às necessidades do homem; os formuladores desses con- ceitos, em particular Marx, obviamente não tinham em mente a arquitetura quando os propuseram e no entanto nada melhor para uma definição inteiramente aceitável da prática arquitetura!. A segunda fase do sistema é a distribuição, onde se determina a proporção em que os indivíduos participam dos resultados dessa produção inicial, de acordo com as leis sociais, sejam quais forem. A troca, terceira fase, configura uma distribuição ulterior ~aquilo. qu.e.já ~oi distribuído de acordo com as necessidades mdlVlduals; é a troca que traz aos indivíduos os produtos particula- res de que carecem. E a quarta e última ~ ~ consumo: os produtos tornam-se objetos de uso e frUlçao, de apro- priação individual; nesta fase, .os pr~dutos saem fo~a do movimento social (donde a aflrmaçao de que a socieda- de de consumo, aquela em que o único valor é justa- mente esse, é eminentemente anti-social). Para ver como a teoria da produção funciona em arquitetura analisemos uma prática específica, a arquite- tura teatral (e dentro dela um caso particular) que per- mita conclusões mais amplas sobre a formulação de uma arquitetura realmente humana. A análise se concentrará assim num tipo de espaço teatral (entenda-se por isso a configuração e organização interna do edifício teatral em sua relação Cena-Pú- blico, e não apenas do palco) configurado numa série de salas-padrão através dos séculos. É o espaço do Teatro San Samuele de Veneza (século XVII), Drury Lane de Londres (século XVII), Scala de Milão (século XVIII), La Fenice de Veneza (século XVIII), Covent Garden de Londres (século XIX), Opéra de Paris (século XIX), Madison Square de New York (século XIX) ou mesmo os mais recentes Municipais do Rio e São Paulo. Enfim, trata-se de um tipo de espaço teatral que subsistiu e subsiste ainda em vários lugares e que se mantém com a mesma estrutura (por razões que se tor- narão evidentes mais além). Esta estrutura obedece ao seguinte esquema: um palco no fundo de uma sala de- frontando uma cavea dividida numa seção horizontal (normalmente designada platéia: filas de cadeiras indivi- duais) e numa seção vertical (de dois a seis "andares") comportando "camarotes", filas de cadeiras ou simples . arquibancadas (cabendo aos primeiros os andares mais baixos e aos outros os demais, nessa ordem) dispostos ao longo da cavea sob forma de U, ferradura ou sino. O que interessa aqui é: por que essa organização, esse tipo de divisão do espaço reservado ao público e como se verifica aí a teoria da redução do espaço? 7 O tipo de teatro aqui analisado, denominado tam- bém teatro à loges (teatro de camarotes) vai surgir quando, com a Renascença, o teatro passa a ser espe- táculo senão de massa pelo menos espetáculo público, saindo dos palácios e casas senhoriais - momento em que aparece, como os próprios arquitetos da época de- claram expressamente em suas obras, a necessidade de dispor a sala de tal modo que as "pessoas de classe elevada não se vejam obrigadas a se misturar com os de baixa extração social". Para aqueles que podem pagar reservam-se camarotes (lugares mais íntimos, com pol- tronas); para outros, cadeiras comuns em boa posição (platéia), ou lugares menos convenientes (nos andares inferiores) ou de todo inconvenientes (hoje denomina- dos "galerias" ou "anfiteatros") colocados na parte mais alta da sala, junto ao teto, e onde· nem a visão, nem a audição podem ser exercidas plenamente. Esta é a razão histórica, específica e declarada do nascimento do tipo de teatro em análise. Como fica, nele, a teoria da produção do espaço? Em princípio, parece não existir nesse tipo d'~ teatro, no Scala, no Madison Square, no Municipal, uma pro- dução do .espaço. Por quê? Porque aí não parecem existir pelo menos duas das fases de um processo de produção, a troca e o consumo. Vejamos: temos um produto já acabado, o espetáculo teatral, e tem-se um problema de produção (intimamente associado ao ante- rior) que consiste em organizar o espaço de modo a que o primeiro produto chegue ao consumidor, ao especta- 7. Esse modo de organização do espaço teatral não fOI por certo o único na história dO teatro. Antes dele existiram pelo menos três grandes tipos, em resumo: a) O teatro de tipo grego clássico, onde os espectadores se dispunham numa arquibancada em forma de semicírculo, composta por fileiras de assentos unidos e sem diferenciação; b) o teatro de tipo "informal" da Idade Média, onde não há edifício teatral propriamente dito (servindo, para a ação, uma igreja, um átrio, uma praça públlca) e onde os especta- dores se misturam livremente à ação dos atores (no máxímo, e eventualmente, um ou outro palanque servia para abríg·ar nobres e "autoridades"); c) o teatro privado e senhorial da Renascença, onde numa sala sem divisões colocavam-se atores e espectadores, sem palco, e na qual os espectadores se espalhavam llvremente, sentando-se em cadeiras esparsas ou flcando em pé. Esta descrição e esta tlpologla foram enormemente slmpllflcadas, por certo, mas são o suficiente para o que interessa aquI. Em princlplO é possível encarar a questão da se- mantização / dessemantização do espaço sob dois ângu- los distintos e fundamentais: o discurso sobre o espaço e a prática do espaço. De início, um espaço é semantizado, recebe refe- rências através e a partir do corpo humano. f:, inques- tionavelmente, a partir do corpo que se vive um espaço, que se produz um espaço - isto é, que um espaço rece- be uma carga semântica qualquer. Esta é a operação mínima, necessária e indispensável para a investidura de um léxico sobre um tecido espacial. A primeira atribuição semântica a um espaço se faz assim a partir de uma prática do espaço. Mas em conseqüência do que já foi dito sobre os modos de significação do espa- ço é necessário bipartir o conceito de prática do espaço em dois ramos bem precisos e delimitados que no entan- to freqüentem ente (senão sempre) se apresentam indis- soluvelmente ligados na quotidianeidade: uma prática física do espaço e uma prática imaginária. Todo texto sobre o espaço ou sobre arquitetura se detém na análise (quando chegam a fazê-Ia) dessa prática física, muito embora quase nunca igualmente se preocupem com de- terminar essa prática a partir da unidade mínima impres- cindível que é o corpo humano Il. Isso não basta, contu- do, pois se o espaço mantém um relacionamento direto com o corpo do indivíduo adquirindo em conseqüência uma significação precisa, ele alimenta igualmente uma relação não menos direta com o imaginário desse indi- víduo, através do qual esse espaço se semantiza de modo freqüentem ente de todo diverso do que ocorre no pri- meiro caso, e de modo nem sempre definido, distinto (já que neste caso a semantização se opera particularmente ao nível do subconsciente ou mesmo do inconsciente) porém não menos certo e determinável. Como no exem- plo de Bachelard, um "porão" se relacionará de modo imediato com o corpo do indivíduo num nível que se pode dizer utilitarista ou funcionalista (a pessoa o per- ceberá como "frio", "escuro", "prático" ou mesmo "se- guro") e ao mesmo tempo assumirá para esse indivíduo uma carga semântica que releva do imaginário (a sen- sação, nem sempre clara, de um "mundo fantástico" ou mesmo de um mundus immundus). Saindl) da poética de Bachelard, seria possível simplesmente lembrar a carga afetiva "simples" inerente a toda convivência com um espaço - uma carga inerente a toda vivência. São os dois modos iniciais de semantização do espaço, e por certo dependem de uma ideologia e/ou produzem uma ideologia: sua significação dependerá das relações sociais nele examinadas 12 (das quais se pode secreta r uma ideologia), de um lado e, do outro, da pro- dução do indivíduo elaborada por ele isoladamente e a partir de sua relação com os demais. Obviamente essa semantização - e suas relações com essa ideologia - só pode ser isolada através da análise específica de cada momento histórico. A partir desta primeira semantização do espaço pode ele experimentar mudanças ou acréscimos semânti- cos - e às vezes se colocam camadas sobre camadas de significados sobre a carga inicial. Se as simples mo- dificações semânticas são fáceis de detectar e analisar quando se opera a partir da prática física do espaço (quando por exemplo se transforma um centenário moi- nho industrial em centro coletivo de lazer), as transfor- mações ao nível da prática do imaginário e as sobressig- nificações atribuídas e a um espaço (a proposição de espaços sobressignificantes) são de detecção e compre- ensão (portanto revelação) mais trabalhosa, particular- mente para o usuário-tipo do espaço. E os espaços sobressignificantes, que interessam aqui de modo parti- cular, normalmente se revestem de um cunho especial- mente ideológico ao adCl~lrirem essas dotações semân- ticas extras através de um discurso sobre o espaço. f: o que se pode verificar, por exemplo, na simples leitura das publicidades das companhias construtoras e correto- ras de imóveis, topos privilegiados desses espaços sobres- significantes. Um apartamento (e com ele o edifício) não se esgota na semântica de um tradicional "morar" "abrigar", nem mesmo num "habitar com conforto" ~ que já seria uma significação segunda. Os espaços que ali se têm, ou melhor, as conotações sucessivamente em- pilhadas sobre a denotação inicial, tal como se empi- lham miseravelmente as "caixas de morar" umas sobre as outras, variam conforme a fantasia do redator e a condição do imóvel - mas se encaixam todas na mes- Il. Renri Lefebvre, no entanto (que não é um arqult, t.o) tem noção dessa.lmperlosidade, embora não se detenha em sua' nálise. Ver PToduct~on l'espace, op. cito 12. Um espaço não s6 pode como deve ser analisado a partir das relações sociais que nele se desenvolvem, assim como estas podem ser apreendidas através de suas projeções sobre o espaço. anterior, o processo de dessemantização pode-se verificar tanto ao nível da prática efetiva do espaço (física ou imaginária) como em conseqüência de um discurso sobre ele. O "porão" de Bachelard foi dessemantizado na concepção das "casas" empilhadas propostas pelos edifícios modernos: tornou-se irrealizável no campo prático e perdeu sua significação para o imaginário. Um espaço pode ser igualmente dessemantizado não por "im- possibilidade" (seja qual for a razão, econômica ou outra) de construção mas pelo desaparecimento da fun- ção: a partir do momento em que os fumantes (e os fa- bricantes de tabaco) conseguiram convencer a humani- dade de que os direitos estão todos do lado deles, fumantes, e que os não-fumantes devem conformar-se com um consumo passivo e obrigatório do fumo dos outros através da fumaça (ou que se mudem), o "salão de fumar" foi dessemantizado: alguns sobraram, com novas funções, a maioria simplesmente desapareceu, principalmente dos edifícios públicos, meios de trans- porte, restaurantes, etc. - o que é sem dúvida uma la- mentável perda para as sociedades. Mesmo a cave dos modernos edifícios franceses não deixa de ser, co- mo resquício do porão (mas não com todas suas dimensões e funções), um exemplo de espaço desseman- tizado. Esse processo pode também ser desencadeado por um discurso sobre o espaço. Mas raramente ocorre que proponham, os discursos, diretamente essa dessemanti- zação. Esta ocorre mais como conseqüência da supras- semantização de outros espaços (da qual é operação inseparável) e igualmente da suprassemantização inicial do próprio espaço agora dessemantizado. Que se pense por exemplo no fenômeno típico das grandes cidades americanas: o abandono de certas zonas da cidade por parte de seus moradores brancos ante a constatação de que os pretos estão para lá se mudando (não impor- tando se a condição econômica dos· novos moradores é igual à dos antigos). Dessemantização social e ideológi- ca: os negros, através de um lento processo, conseguem reunir as condições econômicas para uma mudança para zonas outrora valorizadas, e quando o fazem os antigos habitantes desaparecem. Seria possível dizer: neste caso há suprassemantização para uns (os negros) e desse- mantização para os outros. O que no entanto não cor- responde à inteira verdade porque muitas dessas novas ma ideologia do consumo e do. supérfluo com que se fascinam as massas. Assim, sobre um espaço do morar tem-se um espaço do "todo conforto", do "moderno" (ou do "clássico" - enfim, um espaço do "estilo"), do "luxo" e assim sucessivamente até os espaços mais "atmosféricos" como o da "felicidade", do "poder", etc. tudo claramente exposto e corroborado por descrições minuciosas da organização do espaço, da localização, dos materiais empregados e da parafernália de gadgets que se tornaram aparentemente imprescindíveis à vida modema -- e que num edifício francês recentemente inaugurado num hameau exclusivo do exclusivíssimo 16 eme. arrondissement parisiense vai desde um mecanismo que trava e destrava automaticamente as entradas do apartamento até um sofisticado sistema de iluminação do parque do prédio, que acende suas luzes com uma ~nten- sidade gradativa correspondente à diminuição da luz na·· tural de tal forma que não se sente o cair da noite nem se é "chocado" com a "brutal" irrupção instantânea da luz elétrica! 13 Os exemplos dessa operação de supras- semantização do espaço (ou de conotatividade sucessi- va) não são poucos e não se restringem às "casas" par- ticulares: estendem-se às ruas (Fifth Ave., New York; Via Veneto, Roma; Rue du Faubourg Saint-Honoré, Paris), às praças, a cidades inteiras e ilhas e países (vi- sando especialmente o turismo: Saint Tropez, Majorca, os "trópicos" - assim indeterminado é ainda mais sig- nificativo - ou o "Oriente"). É óbvio, por outro lado, que a suprassemantização de um espaço iniciada por um discurso sobre esse espaço pode ser eventualmente acompanhada por um compor- tamento prático no mesmo sentido. É possível inclusive que todo o processo se inicie originalmente ao nível da prática de um espaço, por exemplo, quando determinada classe social passa a abandonar certos bairros e ins- talar-se num outro, que é a seguir suprassemantizado por um discurso sobre ele. Seja como for, a operação que efetivamente ancora essas duas semantizações e a põem em funcionamento efetivo parece ser sempre a realizada por um discurso sobre o espaço. E assim como um espaço é semantizado e superse- mantizado, pode ser dessemantizado. Na prática efetiva do espaço ou no discurso sobre ele? Tal como no caso comunidades ressentem o processo efetivamente como de dessemantização (a valorização daquele espaço em que eles também inicialmente acreditaram não pode dei- xar de levar à constatação da desvalorização que os brancos impõem agora, razão pela qual muitos radicais negros acabam por sugerir não só a criação de zonas es- pecificamente negras desde o início como a própria se·· paração completa entre as raças). De igual modo, a invasão de uma zona pela indústria, pelo comércio ou por um aumento da circulação viária pode dar origem a um processo de dessemantização que pode de início não ser especificamente e intencionalmente promovido - mas dificilmente deixará de estar ligado a uma an- terior ou simultânea valorização de outros espaços. Surge aqui uma questão interessante: se o processo de semantização e de suprassemantização de um espaço parece indeterminado e amplo, sendo sempre possível acrescentar um novo significado a um certo espaço de tal modo que não se pode legitimamente prever seu ponto culminante, o processo de dessemantização tem um ponto máximo possível além do qual não pode pros- seguir e que é o ponto onde esse espaço perde todo sig- nificado, sentido ou significação, propondo-se como um espaço vazio, não-significante. Uma situação possível - é, porém, provável e real? Numa conferência publicada pela revista italiana Op. cito n. 10, Roland Barthes sugere que a cidade não' é composta por elementos iguais mas por elementos fortes e elementos neutros, isto é, elementos sígnicos e elementos não-sígnicos. E que se atribui uma importân- cia cada vez maior ao significado vazio, ao lugar carente de significado - dizendo de passagem que o centro das cidades atuais é uma espécie de núcleos não-duros, de "foco" vazio da imagem que a coletividade faz do centro e que é necessária para a organização do resto da cidade 14. Que a cidade (como toda manipulação do espaço) tem elementos com variado valor de significado e signi- 14. Do que lança mão Zevl, em seu Linguaggio moderno dell'architettura para concluir apressadamente que os elementos não-signlcos são aqueles que definem a atividade arqultetural, Isto é, os elementos vazios que ele identifica aluclnantemente com o espaço, numa concepção absurda a mostrar que ele na verdade ignora totalmente o significado e a significação real de espaço. A noção de espaço como ausência, como buraco, ausência de constru- ção, não pode ser própria à mente do teórico da arquitetura; insis- te-se, espaço é não apenas o não-construido como igualmente o construido. ficação, é absolutamente certo: esta é uma realidade praticamente inelutável. Mas a afirmação de que a ci- dade tem elementos neutros que devem ser entendidos como elementos de significado vazio, carentes de signifi- cado, configura uma proposição não só de todo discutí- vel como, parece, de todo impossível (e a força deste argumento deveria fazer mesmo com que a discutibili- dade da proposição não fosse sequer mencionada). Esta colocação é fruto sem dúvida de uma mente habituada à análise lingüística, como a de Barthes, e acostumada a tentar analisar todo aspecto da atividade humana a partir do modelo lingüístico rigorosamente entendido. Se na linguagem propriamente dita é possível constatar a presença de elementos "fortes" e de elementos "neu- tros" (no caso destes: de, por, e, etc., além de cada um dos fonemas a, b, c, d ... x, v, z) não existe na lingua- gem arquitetural nenhum elemento que se possa dizer assemelhado a esses seja sob que aspecto for. O dis- curso arquitetural não é um discurso meramente formal (ou meramente artístico), o que significa que está vio- lentamente carregado com uma pesada trama de signifi- cados vividos que torna praticamente impossível a cons- tatação de um elemento sequer que seja "vazio". Vazio para quem, afinal? Partículas como de, por, e, são neu- tras para todos os manipuladores desse código - mas o código da arquitetura está longe de se apresentar comu uma entidade entendida, recebida e praticada por todos da mesma forma. Em segundo lugar, o caráter de vivido é enormemente mais acentuado em códigos como o da arquitetura do que possivelmente em qualquer outro que se possa imaginar, e ao nível do vivido na cidade será sempre possível encontrar não só indivíduos como gru- pos a atribuir significados a eleIP~ntos do tecido urbano que aparecem para outros como destituídos de qualquer significado ou sentido (outros grupos de outras partes da cidade, turistas, grupos de gerações diferentes, etc.). Não é possível supor assim sob que aspecto se possa declarar um elemento urbano como vazio ou neutro: esta proposição parece, ela sim, vazia. O que se pode dizer é que esses elementos, eventualmente e no máximo, se poderiam declarar como dessemantizados (e ainda assim relativamente dessemantizados, isto é, desseman- tizados em relação a algum significado mas não em relação a outro) ou, melhor ainda, em processo de desse- mantização. Mas não inteiramente dessemantizados: os II. o DISCURSO ESTf:TICO DA ARQUITETURA Em princípio se diria que esses dois termos são absolutamente incompatíveis um com o outro: se se trata de um discurso, não é estético, e se é esté- tico, não é discurso. Uma certa tradição ainda quer que o domínio do estético seja o do emocional e o do sensorial. De fato, o "choque" que sinto ao pe- netrar em Santa Sofia é uma experiência de início pun~mente ao nível dos sentidos e da emoção: está- tico, aquele espaço no entanto me transporta e a pe- rambulação vagabunda por aquele lugar, sem nenhum objetivo "científico" de cOJlhecer as coisas e regis- trá-Ias na câmera ou no caderno, é fundamentalmente uma viagem ao prazer indizível. Mesmo depois, sain- do de lá, o pensamento racional não encontra com muita facilidade (ou com facilidade nenhuma) as ra- zões daquelas sensações, o motivo de eu ter percebi- do de imediato (ao menos para minha particular ex- periência) que Santa Sofia era realmente não só única como se impunha sobre todas as outras construções do gênero existentes no Ocidente. Tudo isto é correto e ocorre a todo momento diante de um quadro, de um filme: a recepção das formas de arte dispensa a inte- lecção racional e é mesmo grande a tentação de de- clarar que o juízo é mesmo prejudicial à percepção estética. Mas - e embora não caiba aqui discutir ex- tensamente ou demonstrar a validade deste ponto - a recepção racional da obra de arte não só é possível e existe como será mesmo fundamental para a plena percepção dessa obra, intervindo num segundo mo- mento após os sentidos terem sido saciados. E esta abordagem racional cabe e é necessária mesmo por- que é ela um instrumento fundamental do artista: o pintor renascentista joga de maneira particular com a perspectiva, proposição racional que deve ser racio- nalmente colocada e resolvida sob pena de pereci- mento da obra. O impressionista parte de uma pro- posição de todo racional sobre a composição da luz e da cor. Por outro lado, quantas proposições estéti- cas existem que são mais racionais que a do cubismo? Ou que a do concretismo de Mondrian? Seria talvez possível discutir, e longamente, sobre a irracionalida- de de Pollock, mas se ele parte de uma proposição dara (fazer arte) e se domina com toda evidência uma determinada técnica, não cabe propor uma irra- cionalidade absoluta para sua produção. Existe as- sim de fato um discurso da obra de arte, existem mesmo vários discursos estéticos, entendendo-se o discurso como um enunciado (e uma enunciação) or- ganizado de acordo com normas claramente fixadas e manipuladas tanto quanto possível conscientemente. E sob esse aspecto, quando se fala da arquite- tura a expressão "discurso estético" é ainda mais cabível do que nas outras artes uma vez que esse discurso é muito mais rígido, formal e racional do que o da pintura, escultura, etc. As normas de como fazer arquitetura e, especialmente, de como fazer o belo em arquitetura, perfazem um código rígido ou, no máximo, vários códigos rígidos que se manifestam totalmente formalizados desde as descrições de Vitrú- via até os dias de hoje, passando por todos os varia- dos movimentos e e!>colas. E são tão formalizados que não é difícil atribuir à arquitetura a etiqueta da arte mais conservadora e mesmo mais retrógrada e reacionári~ (no sentido específico daquilo que se opõe a uma açao) dentre todas as outras. Sem muito exa- gero, seria mesmo possível dizer que no chamado mundo ocidental europeu a arquitetura não mudou na~a desd~ as matrizes gregas. Zevi, por exemplo, não he~lta mUlto em dizer que quase toda a arquitetura OCidental. depois do século XVI é uma arquitetura renascentIsta - e, sendo justo, não é exagero algum defender tal proposição. Em parte, é correto atribuir essa rigidez do dis- curso arquitetural a um aspecto que deve estar ne- c~ssari.amente presente na arquitetura e que é a fun- c:onalLdade. ~or outro lado, é óbvio que essa ques- tao opera mais cama des-culpa para o imobilismo do discurso estético, e uma desculpa que não é tanto fru- to da culpa exclusiva, da incompetência ou da falta de criatividade dos arquitetos como da vontade de facilitar a construção, diminuindo-se os custos e au- ~entando-se os lucros. Seja como for, é fácil apontar (Justamente por sua forte formalização) os eixos em torno dos quais tem-se organizado o discurso esté- tico arquitetural: ritmo, harmonia, medida, composi- ção. ~ão há a~quiteto. ou teórico da arquitetura que conscl.ente ou mconSClentemente deixe de organizar seu discurso em torno desses eixos e os reconheça como absolutamente "naturais" à arquitetura. Mas muito poucos são os que, reconhecendo e defendendo esses eixos, reconhecem neles a própria definição da Renascença. Que é Renascença? É ritmo. Ou harmo- nia. E harmonia. E/ou medida. E/ou composição. Quer dizer então que a Renascença é o mal ab- sol to, o inimigo a combater e destruir, o pecado ori- ginal do qual a arquitetura moderna tem de livrar-se a todo custo? Essa tese, defendida mais ou menos com as mesmas palavras por muito arquiteto "revo- lucionário", está evidentemente mal colocada. Uma herança cultural não só não se renega impunemente como simplesmente não pode .ser renegada, pon!o fi- nal. A questão está em. identif~car uma d~t~rnl1nada prática com uma determmada epoca, localIza-Ias, sa- ber qual a relação que se estabeleceu entre ambas e indagar se tal modelo de prática é válido p~ra outra época ou não. É necessário ressaltar que nao se tra- ta nem mesmo de defender a Renascença (ou qual- quer outro período ou movimento) como manifesta- ção adequada a sua época, e tampouco. de propor .a necessidade de modificações pela necessIdade de on- ginalidade: é preciso ter sempre em mente que a bu~- ca desesperada do nOvo está longe ~e ser u~~ J?atnz imperiosa, absoluta e constante, seja na histona do mundo ocidental, seja na história de todos os povos. Se é verdade que na China, por exemplo, se deu valor àqueles pintores que de alguma forma romperam com determinados modos de expressão, propondo "estilos" novos, não é menos verdade que se atribuía idêntico valor (e às vezes mesmo maior valor) àquele que era "simplesmente" capaz de pintar tão bem quanto pi~- tavam todos os demais. O valor de uma obra nao estava na personalidade (no personalismo) e menos ainda na originalidade: residia na capacidade de enun- ciar uma certa mensagem. Se esta era bem dita pou- co importava que o modo, a maneira de fazê-Io fos- se idêntica à de tantos outros. ~smo nas ~ocieda@s ocidentais a febre da originalidade só VaI atacar o homem bem recentemente, a partir do século XVIII - e, a rigor, no começo do século XX: o Tinto!-"ettod.a -- Escola de S. Rocco em Veneza não faz mUlto mais que se colocar nos moldes de Michelângelo, e muito pintor romântico ou barr~o. é igual ~ tantos o~tros pintores barrocos ou romantlcOs. Se~a? n:aus pmto- res apenas por essa razão? Não; a ongmalIdade abso- luta não era para eles um absoluto valor. Na verdade, a originalidade como meta última é freqüenteme.nte tão lamentável quanto a cópia fiel. Trata-se aSSIm, para a arquitetura, de ser adequada a um momento _e não de renegar por princípio esta ou aquela soluçao histórica ou praticar tais soluções ,como norma impe- rativa seja de maneira consciente ou, pior - e é o que acontece na arquitetura atual. onde l?revalecem as noções clássicas de ritmo, harmoma, medIda e com- posição - de modo inconsciente. A análise se voltará assim para esses elementos fundamentais do discurso estético da arquitetura a fim de detectar as armadilhas que estendem à prática ar- quitetural e as brechas que se pode produzir na ideo- logia de que se revestem, com a possibilidade ulterior dl', propor, também para o discurso estético da arqui- tetura, alguns eixos de oposições passíveis de orien- tar essa prática na direção de metas mais adequadas ao homem atual e sua prática arquitetônica. II .2 . O ritmo Que se pode entender por ritmo? Um conceito primeiro de ritmo, bastante difundido, é aquele que o identifica com a noção de ordem 1. Ordem como? A Teoria da Informação propõe que a noção de ritmo deva ser entendida como baseada na repetição de um mesmo. elemento a iguais intervalos de tempo, e é sob esse aspecto que ele é entendido e praticado em arquitetura. Com que finalidade se procede a tal re- petição, além de pôr uma ordem no objeto de traba- lho? (Ou: que tipo de ordem se pretende obter com essa repetição?) Com a finalidade de pôr em prá- tica ,três princípios muito caros ao pensamento renas- centista (do qual, aliás, a própria definição de ritmo já é claro indício): princípio do equilíbrio, princípio da continuidade e priooípio da passagem do todo para as partes. Com que efeito prático para o recep- tor da obra? P. A. Michelis faz, a respeito, uma colo- cação exemplar sem, no entanto, perceber o alcance e a verdadeira significação dela: O ritmo permite-nos adivinhar que vai seguir-se um golpe rítmico ou urna certa série de golpes, assim corno mais ou menos o efeito segue a causa. Antes portanto que o golpe se produza nós já o esperamos, e quando ele acontece segue-se em nós urna sensação muito rápida de satisfação. O que leva Spencer a referir-se ao ritmo como sc.1do a "economia da atenção". Como se pode ler essas concepções tradicionais e qual a reorientação que se pode dar à prática arqui- tetural a partir delas? 1. Ver P. A. MICHELIS, L'esthétique de l'aTchitectuTe. Paris, 1974,p. 71. Para Mlchells, trata-se Inclusive de descobrir a. "ordem existente objetivamente" numa coisa. Ora, não existe uma ordem objetiva, como se procurou demonstrar na. discussão sobre o pensa- mento clentiflco e o ideológico. Por que ser contra o módulo, contra o ritmo? Porque ele cria no homem a neurose da certeza e da tranqüilidade, de que o homem tanto necessita e que ao mesmo tempo aniquila toda sua vida intelectual, de início, e posteriormente toda sua vida, em todos os sentidos. Como pode ser isso? Voltemos à concep- ção intuitiva de Michelis (intuitiva porque não basea- da na Teoria da Informação); o ritmo permite prever o que se vai oferecer aos olhos, a esta previsão de sensação satisfaz. O.ritmo portanto agrada ao homem. Mas a Teoria da Informação mostra que a previsibi- lidade é apenas uma das facetas de qualquer tipo de comuniçação, estética ou não. A outra, necessária, é a imprevisibilidade. E o processo de comunicação se desenvolve a par~ir de um jogo contínuo com esses dois elementos. E por que a imprevisibilidade é im- prescindível? Porque se efetivamente a sensação do conhecido (do previsível) reconforta o homem, asse- gura-o em suas certezas não o submetendo ao inédi- to (as crianças só tiram prazer de histórias que já co- nhecem e reclamam quando se lhes tenta contar uma história nova: já sabem o que vai acontecer, querem receber novamente aquele mesmo esquema, já gozam por antecipação o eventual castigo do malvado e a boa fortuna do herói - esse é o esquema, de resto, das histórias em quadrinhos ou das novelas, e a ra- zão mesma de seus sucessos) a partir de um deter- minado momento o receptor fugírá dessa mensagem porque já a conhece - fugirá consciente ou incons- cientemente. No primeiro caso, em razão, por exem- plo, do desenvolvimento de suas exigências estéticas; no segundo, em virtude simplesmente da acumulação daquela mensagem em sua mente, da repetição a que ela esteve submetida e que a partir de um determi- nado momento "fecha" sua receptividade para aque- le tipo de mensagem. Ilustração n9 7: Casa-ate\ier do pintor Ozenfant em Paris, pro- jeto por Le Corbusier (1922): au~ên.cia de módulos. repetidos, de preocupação com as regras classlcas da harmoma e com- posição. Por esta razão se joga simultaneamente cOm pre- visibilidade e imprevisibilidade: o conhecido é dado para não afasta~ (assustar) o receptor desde o iní- cio, ao mesmo tempo em que se o tempera com o desconhecido para evitar o afastamento do receptor para longe da mensagem 8. É duplamente inadequado a6sim continuar a pro- por o ritmo como um dos pilares da estética arqui- [dural: primeiro, por se tratar essa noção de um elemento que sobreviveu a um sistema estético não mais necessariamente em vigor (o sistema renascen- tista); segundo, por ser inadequada a construção de uma mensagem estética baseada tão fortemente nessa noção de ritmo, de módulo, de repetição, pois a úni- ca coisa que se tem nesse caso é uma mensagem sui- cida, uma mensagem que se constrói apenas para ser posta de lado tão logo completada. É isso aliás o que se tem no cenário arquitetural de hoje: uma série de nadas que se sobrepõem num magrna indiferençado. A estética da arquitetura não pode, com toda evidência, abandonar pura e simplesmente a noção de ritmo como alguns (Zevi, entre eles) insistem que se faça, 'pois ritmo é uma das faces da moeda: se se ti- rar essa face, a moeda não existe mais. Essa estética, no entanto, vai apoiar-se aqui também num eixo de opostos onde o ritmo é contrabalançado por uma no- ção como a de elenco (a outra face), proposta pelo mesmo Zevi. Que se deve entender por elenco? Pen- se-se na elaboração de uma fachada: o arquiteto re- nascentista (quer tenha vivido no século ~VI ou atualmente) determinará uma forma-padrão de janela e a repetirá sem alterações em todos os andares dá construção, visando conseguir o "obrigatório" efeito unitário. Se se adotar o procedimento do elenco, o trabalho do arquiteto não apenas será inteiramente diferente como bem mais árduo (assim como tomará mais complexa a construção efetiva do prédio - mas não necessariamente mais custosa) porém os resulta- dos estarão não só à altura da época como à altura do homem (o homem deve ser o padrão das coisas, e não as coisas se colocarem como padrão para o ho- mem): lista-se as formas possíveis e adequadas que as janelas podem eventualmente assumir nas variadas posições que ocuparão no prédio, e a seguir reúne-se essas formas numa espécie de assemblage. Assim, ao invés de uma sucessão de janelas retangulares que se empilham umas sobre as outras na vertical e que se sucedem monotonamente na horizontal, tem-se uma sucessão de formas diferenciadas que, quase literal- mente, movimentam-se pela superfície considerada. Uma janela pode ser redonda, ou ovalada, ou trian- gular, ou retangular, e nada impede que uma janela redonda seja colocada ao lado de outra que compõe um retângulo na horizontal (nada a não ser a com- binação estética desses elementos). O canto esquerdo do andar térreo da construção necessita de uma janela redonda: que seja redonda. O andar de cima necessita de uma janela que permita à luz entrar no aposento em toda sua extensão, mas não é necessária uma gran- de vidraça que se estenda de uma parede à outra: pois então se rasga uma abertura retangular de lado a lado. Que conviverá com a abertura redonda de bai- xo e com uma outra quadrada que, em cima da se- gunda, está disposta ao final de uma saliência na su- perfície da fachada, saliência que permite ao observa- dor uma visão para o lado do edifício (sem ter de debruçar-se para fora de uma janela e virar o pesco- ço) 9. Enfim, lista-se, elabora-se o elenco das formas utilizáveis e das funções exigidas e combinam-se es- ses elementos sejam quais forem. Não se trata de pro- por o caos total (a entropia máxima, ou desorganização máxima da mensagem, afasta o receptor tanto quanto a ordem total - previsibilidade total) pois alguma ordem sempre haverá: simplesmente não se escolhe a alternativa mais cômoda: a repetição de um módulo (que não apenas cansará o receptor, em termos de percepção de formas, como não será obviamente ade- quada às variadas necessidades que surgem dentro de uma construção). A técnica do elenco não será aplicada por certo apenas à elaboração da fachada: todo o corp(l Oll construção pode ser determinado por esse processo - e nesse caso nem mesmo se falará mais no corpo da construção mas sim nos corpos dessa construção). As- sim, ao invés de determinar como módulo de mora- dia as "caixas de sapato" superpostas monotonamente em sua retangularidade, determina-se para este canto um corpo na forma de um pentágono que se combina com uma semi-esfera deitada no chão à qual se super- põe uma baixa caixa retangular encimada por sua vez por um cilindrv deitado 10, etc. O procedimento de listagem-combinação é inclusive, como se percebe, um dos métodos para a obtenção da temporalização do espaço: os espaços diferem, o modo de se passar do primeiro para o segundo não é o mesmo que se em- prega para ir do terceiro ao quarto, etc. Exemplos de procedimento por elenco são, até certo ponto, o Habitat de Montreal (1977) e o mesmo Mummers Theater de Oklahoma City (1971) 11. O primeiro eixo do discurso estético da arquite- tura não deve ser assim, ao lado da harmonia, me- dida e composição, o eixo do ritmo isoladamente con- siderado mas sim o eixo Ritmo X Elenco. As noções de harmonia, medida e composlçao não podem ser abordadas isoladamente da noção de ritmo da qual são, na verdade, um desdobramento - de fato, a análise começou aqui com a consideração do ritmo mas podia perfeitamente ter principiado com o estudo da harmonia, por exemplo, da qual se diria que comanda as· noções de ritmo e composição que dela derivam, ou então começar pela medida, etc. : todas estão intimamente relacionadas e não se pode dizer que uma pre~ede a outra, assim como na verda- de não se pode dizer, a não ser talvez por razões me- todológicas, que uma difere da outra. Diz-se por exem- plo que o ritmo comanda os momentos de thesis e arsis, isto é, intensidade e relaxamento da atenção. Mas onde é que esses momentos ocorrem de fato a não ser na composição, ou na harmonia, ou na me- dida? Como podem ser avaliados se não for através dessas outras três noções? Quando Michelis 12 reafir- ma a doutrina segundo a qual os três princípios do ritmo são o princípio da continuidade, o princípio da passagem do todo às partes e o princípio do eq Jilí- brio na verdade ele não está dizendo outra coisa se não que os princípios do ritmo são a harmonia, a com- posição e a medida. Como é que do todo eu passo às partes a não ser através da composição e da harmo- nia? Por outro lado, "equilíbrio" não é "composição", que por sua vez não é "harmonia"? A continuidade também não se mede pela harmonia, etc.? O próprio , t?í\\\\\\\\\\\\\\",~ ~ ~~ ~ 1-· .- -- llus/ração n{J 8: Exe,mp!o dado por Bruno Zevi para a ar ui- t~tura de elenco:. ao mves de repetir um mesmo elemento qre- ~~~~e~:~eá~rmm~dtO, (01arquiteto pes<I,.uisaas necessidadesP de . proJe ° UZ, ar) e propoe as formas adequadas :~ n~~:tarslmdaenhtaodas. funlçõ~s. requeridas, sem manter-se presormoma c aSSlclsta. que realmente se devia ratificar a estética do número de ouro, pois não apenas as' pessoas demonstravam gostar das formas geométricas como preferiam, acima de todas, uma determinada forma geométrica, a do retângulo, e um tipo de retângulo, justamente aquele cujos lados mantinham entre si a relação do número de ouro. a "pequeno" detalhe de que Fechner, ina- creditavelmente, não se deu conta era que a humani- dade, no momento de suas experiências, estava há 300 anos (pelo menos) sob o império de uma lei estéti- ca, consagrada no Quinhentismo, que justamente man- dava gostar de formas geométricas desta ou daquela maneira formadas, e que nesse caso suas entrevistas nada mais faziam que recolher aquilo inculcado por todo um sistema de educação na mente das pessoas. Dizia que sua estética era a estética "por baixo", em oposição ao que chamava de estética "do alto", a emanada da teorização dos artistas: não sabia que a sua era ainda muito mais "do alto" do que as que julgava combater. a próprio Michelis, é fato, rejeita as conclusões de Fechner, em parte, ao lembrar que basta o re- tângulo de ouro, por exemplo, apresentar-se desenha- do não apoiado sobre um de seus lados menores ("as- sentado" sobre um plano horizontal imaginário) mas sim sobre um de seus vértices (permanecendo assim num "equilíbrio instável" 17 para que deixe de cons- tituir-se em forma preferida. Do mesmo modo como em determinadas ocasiões se prefere o quadrado ou o triângulo, etc. Mas argumenta, para repudiar as noções de Fechner, de um lado com a existência de elementos subjetivos da harmonia (nunca definidos) e do outro com proposições inteiramente vagas segundo as quais o belo, a empatia estética, o prazer estético se atuali- zam porque o "ritmo diferencia e conduz à quantidade, à extensão, e a harmonia integra e conduz à intensida- de, ao estilo de alta qualidade que predomina em cada sistema" 18. Antes de mais nada, o ritmo não diferen- cia, pelo contrário: torna tudo equivalente. Mas isto já foi comentado: o que interessa é saber como a harmo- nia "integra" e conduz à intensidade, que é essa in- tegração e em que consiste essa intensidade, que é esse estilo de alta qualidade, como é obtido e porque pre- 18. PARIS, Les Belles Lettres, 1969, p. 62. 19. A respeito, ver, como o próprio Mlchells Indica, a obra de M. GHYKA, L'esthétique des proportiolls dans Ia nature et dans les arts, Paris, Ga1l1mard, 1927. 20. MICHELIS, op. cit., p. 109. timento puro (a subjetividade) como o único regula- dor do valor estético, propondo e admitindo como guias do juízo estético as relações numéricas e o traçado geo- métrico 21. :f: exatamente disso que se trata: uma de- terminada época resolve aceitar como guia tais e tais padrões, nada mais que isso. Trata-se de um fato cul- tural (como tal, passível de ser circunscrito, datado e localizado) e não de uma tendência inata ao homem que precise ser corroborada pela análise matemática. E que nunca foi absoluta nem mesmo na Renascença. :f: o mesmo Choisy quem reconhece que essa época não se ateve de modo único a essas relações numéricas e geométricas, continuamente retificadas, em sua própria expressão (a prática corrigindo a teoria). Por que fa- zer, nesse caso, desse e de outros conceitos de harmo- nia a regra para a prática da arquitetura (digo da ar- quitetura porque as artes plásticas já a abandonaram há muito tempo, há pelos menos 70 anos) e, mais, por que falar mesmo de harmonia já que parece impossível desvincular seu conceito do conceito de equilíbrio, in- tegração entre as partes, passagem suave do todo às partes e vice-versa? Michelis teria uma resposta a esta última indagação: continua-se a falar em harmo- nia porque não se pode deixar a arte repousar intei- ramente sobre o valor subjetivo do artista 22. Insiste na existência de "leis" da harmonia, leis formais que o artista, "pela graça da inspiração" (!) concretiza na prá- tica. Por que tanto medo da liberdade de criação, por que o desespero no sentido de impor normas, estabele- cer quadros fixos de onde não se pode sair? Já se sabe porquê: com a conformidade geométrica se ma- nipula melhor o gosto das pessoas e por conseguinte, simplesmente, as pessoas. Armadilha em que o artista e o arquiteto não devem cair. O mesmo tipo de argumentação e de objeções vale numa análise dos outros dois elementos agora funda- mentais da estética da arquitetura, a medida e a com- posição. E como eles não são, como já ressaltado, es- sencialmente diferentes da harmonia e do ritmo não há muita razão para nos estendermos em sua apreciação. Fala-se na medida estética porque há necessidade de se julgar, avaliar - o que só pode ser feito atra- domina em cada sistema. Isso. não é dito, nem em seu estudo nem em todos os demais que se propõem essa mesma linha de abordagem. O fato é que para Mi- chelis, seja como for, todos os elementos de apreciação do valor estético acabam sendo mesmo dominados pe- los elementos objetivos identificados fundamentalmente com a proporção áurea (sectio aurea para da Vinci ou mesmo proportio divina, para Paccioli) cujo exis- tência encontra amparo na noção de analogia formu- lada por Aristóteles e exposta em sua Poética 18: "En- tendo por relação de analogia todos os casos em que o segundo termo está para o primeiro assim como o quar- to está para o terceiro ... " e que encontra sua forma a b ótima na expressão - = -- (a/b = c/b daria apenas b a+b similitude de formas, enquanto o máximo de unidade se tem quando a+b = c, ocasião em que se tem a "síntese ideal dos contrastes" 19). Para Michelis - e este é o grande mal dessa esté- tica tradicional, sua grande mistificação - tal demons- tração matemática, "essa estrita lógica das matemáticas coincide com a exigência psicológica do sentimento subjetivo de harmonia" e "nos persuade (os grifos são meus) que a harmonia não pode resultar apenas de dois elementos" sendo necessário um terceiro, "e este terceiro elemento é o todo - a unidade dos dois - do qual estes se isolam" 20. É necessário insistir: a ló- gica das matemáticas não coincide com a exigência psi- cológica (como se, coincidindo, ela viesse provar a jus- teza da apreciação geométrica do fato estético) e não pode nos persuadir de nada. Essa proporção (e ou- tras mais), esse raciocínio são meras construções, pro- posições do homem, datadas e localizadas e que po- dem inclusive ser aceitas como inteiramente válidas - mas tanto e apenas tanto quanto qualquer outra. Não se pode fazer dela a norma única da prática da arte ou da arquitetura. Choisy (que Michelis cita e cita mal pois não avalia o alcance de sua proposição) reconhe- ce que a Renascença (não mais, segundo ele, do que a Antiguidade ou a Idade Média) nunca aceitou o sen- 21. CHOISY, Histoire de l'architecture, n, p. 64. 22. MICHELIS, op. cit., p. 149. vés de uma comparação que, por s).lavez, necessita de uma medida. E mais uma vez comparece o número de ouro como medida suprema, ou ainda a proposição do corpo humano como medida. Se discorresse sobre a medida com a finalidade única de transcrever as ex- periências já feitas pelo homem, não haveria nada a censurar; mas se pretende impor uma ou algumas no- ções imperativas de medida, caímos no mesmo proble- ma de mistificação do gosto estético já abordado. Nes- ta última hipótese, a reflexão sobre o estético em arte ou arquitetura pode perfeitamente dispensar essa no- ção de medida, como de resto pode dispensar também as noções de composição, tais como vêm sendo repe- tidas, por redundantes e inadequadas. Redundantes por- que "composição" é apenas outro modo de se dizer "har- monia" (ver Michelis: a composição se obtém através das "leis da classificação e da subordinação tendo em vista realizar a unidade na dliversidade" 23; quando não é isto, se diz que a composição se define por: "a) uma dialética de seus elementos com uma idéia central e desta com o resto; b) a definição de uma idéia clara; c) a originalidade da definição", o que constitui uma colocação que não especifica absolutamente nada: o que é uma idéia clara. () que é uma originalidade? etc.). Ina- dequada porque seus princípios são os propostos por uma época passada que não deve ser encarada como a única e obrigatória porta de saída para a humani- dade. Essa época sem dúvida representou muito para todo o mundo ocidental, e sua força é inegável: basta que se olhe a nossa volta. Mas não se pode permitir que ela seja igualmente nosso túmulo, a tumba de nos- sa criatividade. Deve-se então, pura e simplesmente, jogar pela amurada todas essas noções de harmonia, medida, com- posição? Não propriamente: continuam figurando den- tro do pensamento estético, mas apenas como pólos de oposição. A elas se pode (e se deve) opor a dissonân- cia (assimetria) e a decomposição, como lembra Zevi. Ao invés de proceder de acordo com o padrão simé- trico, eu desloco os elementos elencados de suas po- sições habituais (dissonância). Ao invés de procurar in- tegrar todos os corpos da construção numa unidade ín- tegra e perfeita (composição) eu decomponho a cons- trução numa série de corpos que se ligam, por certo, mas que não procuram formar um bloco monolítico e fechado (a decomposição). Exemplo de ambas as no- vas práticas se tem, mais uma vez, na Casa da Cas- cata 24 (Fallingwaters) de Lloyd Wright (1936-1939) e no projeto de Gropius para a Bauhaus em Dessau 25 (especialmente em relação à decomposição). O eixo que poderia agrupar essas oposições (e esse agrupamento se justifica na medida em que, como ob- servado, ritmo, harmonia, medida e composição não são quatro conceitos distintos mas apenas um único conceito do qual não constituem nem verdadeiras eta- pas) poderia se apresentar sob a denominação Harmo- nia versus Série. Série como, em que sentido? Série no sentido proposto por Pierre Boulez 26, um modo de pensar polivalente, uma reação ao conceito segundo o qual a forma é sempre algo que preexiste e, ainda, para o qual uma forma sempre preexiste (a forma renas- centista, na acepção ampla do termo, ainda hoje é dada COmo algo preexistente à atividade artística). A obra harmônica é uma obra fechada, terminada, acabada, que não se pode questionar, enquanto a obra serial é uma obra aberta, um "universo em perpétua expansão" como diz Boulez. Fundamental na obra serial é o fato de propor-se ela como uma constelação (conjunto de elementos frouxamente relacionados, conforme propõe a lingüística de Hjelmslev), COmo uma assemblage li- vre, e não como uma ordenação absoluta de constan- tes (isto é, de elementos que têm necessariamente de aparecer, e de um determinado modo, a fim que apa- reçam igualmente outros elementos determinados: na constelação, a existência de um elemento não implica a. ~xi.stência de outro e assim se um dado plano é dlVldido em dois por um eixo imaginário, o fato de ter- se tais figuras ou conformações num lado não impli- ca que se terá as mesmas figuras no outro). E mais im- portante ainda é o fato de que a ideologia e a prá- tica serial não pretendem regredir ao código gerativo primeiro (como acontece com o pensamento harmônico renascentista, para o qual trata-se sempre, ainda hoje, de retomar ao modelo original proposto no século XV e que remonta à Antiguidade) mas sim produzir novos códigos. Função particularmente importante pois se é fato que o artista e o arquiteto não deve preocupar- 34. Ilustração n.o 11. 25. Ilustração n.o 12. 26. P. BOULEZ, Relévés d'apprenti, ParIs, seul!, 1966. .. quitetura (mata-a) como impede que as formas do ha- bitat evoluam (ou, pelo menos, se modifiquem), com isso fixando o homem num ambiente arquitetural e, con- seqüentemente, fixando-o numa determinada condição social, psicológica, filosófica enfim I. Seria possível demonstrar a validade (ainda que relativa) dessa tese em alguns dos setores da prática ar- quitetural; vamos ficar com um deles, o da arquitetu- ra teatral (onde esse confronto entre durabilidade e perecibilidade pode ser amplamente verificado e onde exerceu influências consideráveis e fáceis de constatar) a fim de avaliar as possíveis excelências de uma arqui- tetura perecível para, a seguir, considerar suas pos- sibilidades na arquitetura comum do quotidiano. (e para isso bastavam as praças das cidades e as companhias itinerantes de atores com suas carroças) ou se tratava de um teatro "de elite" (usando telões pin- tados, maquinaria sofisticada) sustentado pelas cortes ou casas nobres locais às quais se agregava - e neste caso bastavam as imensas e múltiplas salas se- nhorias. Há um momento, no entanto, em que mesmo sem ser aberto ao "grande público" (é sempre uma pequena elite que o consome) começam a aparecer as salas ditas públicas, levantadas como edifícios separa- dos. e próprios. Mas não se explica bem por que es- s~s construções, embora ainda lugar de nobres e prín- CIpes e contando com "apo:o oficial" (como a de Pal- ladio) ainda sejam feitas em madeira: a cena do Olímpico apresentava uma cena fixa em mármore, a mesma para todas as encenações, e a madeira tinha de ser pintada para imitar essa pedra. No caso dos tea- tros surgidos através dos esforços de pequenas com- panhias, sem recursos, se entende que a madeira fosse praticamente a única solução possível. Mas nos ou- tros. .. Não reconhecimento de uma utilidade maior para o teatro, ainda encarado como mera diversão e que de fato assim se apresentava? Não merecendo por- tanto o empenho de fortes somas? Nem mesmo o peri- go das catástrofes levava à construção em pedra: fre- qüentemente se empregavam em cena engenhos incen- diários de razoáveis proporções (dragões vomitando fo- go real) ou se mostravam casas incendiando-se (real- mente) em seguida a batalhas. Mas nada: tudo era recebido na dimensão do fantástico, e o espectador não costumava pensar que aquele fogo (visto mas conside- rado eventualmente de fantasia, pois fazia parte da fábula) pudesse atingi-Ia. ;Uma sala excepcional para a história do teatro é se nenhuma dúvida o Teatro Olímpico de Vincenza, projetado por um nome particularmente importante na arquitetura renascentista, Andrea Palladio. Construído entre 1580 e 1585 (terminado quando seu autor já ha- via morrido, mas rigorosamente de acordo com seus planos) o teatro chegou à atualidade -embora in- teiramente construído em madeira. Na época de sua construção a madeira já tinha sido abandonada há muito tempo, pelo menOs para as grandes edificações como igrejas, palácios, edifícios públicos: há pelo me- nos quatro séculos a norma já era a pedra, no todo ou em parte. Os teatros no entanto, via de regra, con- tinuavam a ser feitos em madeira. A razão desse pro- cedimento não é de fácil determinação. Em toda a Idade Média os espetáculos teatrais nunca tiveram um lugar que se pudesse chamar de específico e próprio. Ou se desenrolavam no interior das igrejas e a sua vol- ta (os "mistérios" litúrgicos iniciais) ou mesmo nas praças públicas - ou então nas salas privadas dos pa- lácios. A transição para uni lugar próprio foi gradati- va, bem lenta, mesmo porque não se sentia essa ne- cessidade: ou o espetáculo era para o grande público 1. o que vem primeiro, um sistema de valores, do qual decorre um sistema de organização espa.clal, ou uma forma espacial que possibilita determinados valores, Impedindo outros? Não Importa muito: na situação atual, é preferivel - e necessário - partir da fórmula dos construtlvistas soviéticos (1920-1930),segundo os quais novas relações sociais eXigem um espaço novo, devendo-se portanto propor esse espaço novo para ajudar a permitir aquelas relações. Seja qual tenha sido a razão específica desse pro- ceder, a construção de madeira foi particularmente útil para o desenvolvimento de novas concepções no tea- tro, foi mesmo uma de suas especiais alavancas. Isto porque uma armação em madeira, naturalmente, se des- faz e refaz senão à vontade pelo menos com muito maior liberdade de ação do que num edifício em pe- dra. A cena se revela pouco profunda num dado mo- mento histórico? Aumenta-se-a, facilmente. As arqui- bancadas do público são muito extensas, atrapalham um espetáculo que tem de vir para a frente do palco? É fácil reduzi-Ias. A boca de cena é muito alta ou baixa? Isso não constitui granqe problema. Embora es- sas alterações não sejam freqüentes (podendo-se passar mais de uma dezena de anos sem. a ocorrência de quaisquer modificações) são inúmeros os teatros que acabam passando por profundas reformas, ao longo de um período razoável de tempo. Algumas delas motiva- das por "simples" razões técnicas decorrentes das exi- gências dramatúrgicas, outras em seguida a incêndios, desabamentos ou degradação do material. O Teatro Schouwburg, de Amsterdã, assim se apresentava quan- do de sua inauguração, em 1638: sala para o público em forma de U, com dois lances de camarotes encima- dos por uma galeria em forma de arquibancada; cavea 2 livre e uma cena situada numa extremidade da sala, so- bre um elevado e com sua estrutura visível chegando até o teto (sem arco cênico, portanto). Em 1774, o nOvo Schouwburg é inteiramente diferente, não só na ar- quitetura quanto no conceito de teatro: a relação cena- espectador, que era bem mais livre no anterior (pois os espectadores da platéia não tinham onde sentar, ficando em pé e movimentando-se livremente de um lado para outro durante a encenação), agora se caracteriza pela separação, pela distância absoluta determinada par- ticularmente por um arco cênico (outra mudança) que rebaixa o teto visível da cena; e embora os camarotes continuem, a cavea é agora ocupada por fileiras con- tínuas de madeira à guisa de "cadeiras", como numa arquibancada. O The Royal Theatre of Drury Lane 3, Londres tam- bém tem uma história verificável. Quando de sua constru- ção, em 1764, todo o pavimento do palco é ligeiramen- te inclinado, e o próprio palco se projeta sobre a pla- téia por uns cinco metros. Em 1696, ColJey Ciber, seu diretor, amputa o palco dessa plataforma para au- mentar os espaços do público, empurrando a cena para o fundo da sala e rompendo a ligação mais imediata entre cena e espectador, possível no espaço antericr. No Drury Lane de 1775, o palco volta a ser maior, porém em largura e altura especificamente, e outra mu- dança em 1808 vai de novo aumentar a sala: de 3, as galerias passam para 5. Em cada mudança, é todo um 2. Aquilo que hoje se chama platéia, embora o sentido deste termo fosse de Início bem diferente, pois designava um lugar diante da cena, um lugar plano (playne) a ser ocupado, também ele, pelos atores, colocando-se os espectadores apenas além dessa platéia. 3. Ver ALLARDYCENICOLL, Lo spazio "scenico, Roma, 1971. conceito de prática teatral que se abandona e outra que se adota: o teatro vivo. A partir do século XIX, no entanto, as questões de segu~an~a ~om~çam a se impor: as preocupações com os lllcendlOS e constante (afinal Londres já tinha sido atacada gravemente pelo fogo p:lo menos em duas ocasiões). Para o teatro, chega-se a impor o uso de uma cortina metálica que separaria o palco da sala. Mas como sustentar uma cortina dessa espécie sem um ar~o cênico sólido? E o arco cênico, que tinha apareCido e desaparecido várias vezes, e de vários mo- dos, vem para ficar. Por longo tempo. A separação en- tre cena e sala é então definitiva e como mostra A. Ni- colJ, o teatro entra numa fase de estabilidade em mais de um sentido: fixa-se, e vai começar a se Úbertar de novo praticamente apenas a partir da terceira década do século XX. O exemplo da arquitetura do teatro é como se vê particularmente eloqüente: uma função, a função teatro' se modificou e modificou seu espaço - porque est~ espaço e;a modificável facilmente, ela se modificou; fato posslvel talvez em virtude de uma certa anomia na história da arquitetura, isto é, a construção em madeira quando a regra já era a pedra, o definitivo. . ~ ~ácil perceber onde se quer chegar com esse raClOcmlO: que se poderia fazer com a função habitar se seu eSJ:aço fosse tão maleável assim? A idéia é que essa funçao, como todas as outras, não só muda como deve mudar através da história do homem. E para tan- to ,0 material neJ? precisaria ser necessariamente pe- reclvel: o forneCimento de "paredes" internas facil- mente removíveis e modificáveis seria um começo _ mas para a antiarquitetura isso não basta os limites exteriores sempre permaneceriam fixos. E ~omo o ho- me~ .não v~ .necessidade de mudar algo que ainda esta firme, so1Jdo, sem uma perecibilidade total do es- p.aço a tendência para a ausência de mutações tende- na a manter-se. O sólido, o pesado, o eterno, argumenta-se eram comp.r~ensíveis numa época em que a tecnologia não pe~mltla outra solução: as construções em pedra, de- pOISem ferro e concreto armado foram ao mesmo tem- po. a melhor e praticamente as únicas possíveis e viá- veis sob o aspecto segurança, abrigo, economia. Atual- mente, no entanto, uma variedade de novos materiais poderiam perfeitamente substituir os antigos: são tão resistentes quanto eles - e são perecíveis, quer por- que se acabam mais rapidamente, quer porque podem ser "jogados fora" sem muito prejuízo (ou sem pre- juízo algum, se se pensasse nas despesas de conservação . necessária para as construções tradicionais a partir de um dado tempo). A casa descartável? Por que não? Muitos projetos já existem a respeito, essa idéia não seria em absoluto uma archit-fiction! De fato, muitas das objeções à arquitetura perecí- vel são de ordem econômica não defensável. O espaço durável em arquitetura é, ainda, privilegiado na ver- dade não por seus méritos eventuais intrínsecos mas pelo fato de que se transformou em objeto de proprie- dade e de propriedade lucrativa: "investir em pe- dra", sonho (até hoje) sem idade histórica e sem fon- teiras. E que deixaria de ser possível (ou seria bem diminuído em suas proporções e conseqüências) quan- do a "';asa" só tiver seu real valor de uso, e não um valor de troca e de perpetuação freqüentemente man- tido de modo artificial. A casa descartável ao contrá- rio do que acontece hoje com a casa durável, não se- ria a única coisa a se valorizar continuamente enquanto se desvaloriza sempre todo o resto, a começar do pa- pel-moeda e d~ força de trabalho, limitada pela idade e sufocada pelo maquinismo e pela acentuada repro- dução da espécie. Uma outra objeção que se poderia levantar a esse tipo de antiarquitetura não seria, de fato, difícil de su- perar: a de que a prática do espaço perecível é prática consumista a querer se propor justamente quando a humanidade está atenta para os excessos do consu- mo e quando os indivíduos começam a reagir contra a ordem quase irretorquÍvel de consumir cada vez mais. Na verdade, tudo dependeria do sistema sócio-econô- mico em que essa prática se inserisse. No sistema atual, dificilmente ela deixaria de fato de constituir em real alavanca do consumo; mas num sistema que deixasse de lado a corrida à acumulação de bens, a ostentação, a troca entre quantidades desiguais de trabalho e di- nheiro, a sede do supérfluo, o espaço descartável se- ria uma simples necessidade como outra qualquer. Nin- guém precisa de um guarda-roupa com 100 vestidos, 20 pares de sapatos. Mas tampouco pode alguém vi- ver sempre com um único jogo de roupa, não só por- que esta acaba chegando ao fim como porque a mu- dança pela mudança é necessária - pelo menos ao fim de um certo tempo, quando a anterior já tiver sido devidamente utilizada. Poderiam dizer também, contra essa "antiarquite- tura", que talvez fosse mais simples mudar de casa - mas seria necessário mudar todo mundo de casa, e essas verdadeiras transmigrações humanas parecem pouco fac- tÍveis. Em princípio, mais fácil seria realmente trocar a casa, substitUÍ-Ia por outra quando a primeira se consumiu. E este consumo da casa por certo evitaria outro aspecto sórdido do habitat moderno: a "degrada- ção social" da casa. Um edifício começa abrigando de- terminada classe social; dez anos mais tarde, em mé- dia, já se degradou o suficiente para afastar os antigos moradores e se oferecer a uma classe mais baixa; ou- tro tanto, no máximo, e já se ~hega quase ao fim da escala social. Mas nesta altura a construção é um ver- dadeiro monturo (embora ainda em pé) indigno para a vida humana mas pelo qual ainda se cobram quan- tias injustificavelmente altas sejam quais forem seus montantes. Uma casa que realmente pereça não poderia ser recuperada. Por certo se dirá que uma modificação social que acabe com as diferenças de classe acabaria com esse problema. Sem dúvida. Mas, novamente, o que vem primeiro: novas relações sociais ou nOvos espa- ços? Na dúvida, caberia realmente a indagação "anti- arql1itetural": por que não fazer uma coisa e outra ou, se impossível, pelo menos uma delas, a mais fácil - e a casa perecível seria a mais fácil. Sob o ponto de vista psicológico, o espaço pere- cível também poderia ser defensável. Se parece inad- missível, atualmente, que alguém mude constantemente de espaço ambiental a ponto de desenraizar-se tanto que seu equilíbrio psíquico seja rompido (e a necessidade de algum enraizamento parece evidente) por outro lado não se pode justificar que alguém passe toda uma vida num único espaço, ou em dois ou três apenas (e é enorme o número de pessoas que não chegam realmen- te a ultrapassar esse Índice): a monotonia, a repetição fecha-lhe não só os horizontes físicos como, e isto é mais grave, seus horizontes "espirituais". Se se quisesse levar a sério a temporalização do espaço, a hipótese do espaço perecível não poderia realmente ser des- cartada. úlceras, çâncer e mortes estranhas. A reconvalescença é im- possível nessas construções. Apesar da psíquiatria e da pre- vidência social. Nas cidades-dormitórios 5 registra-se um nú- mero cada vez maior de suicídios e um número infinito de ten- tativas de suicídio. São as mulheres que não podem sair de casa durante o dia, como os homens. Podemos ficar falando durante horas e horas sobre a miséria que começou com Loos. daquele que promove as transformações não devem oCr r tr n - formações. Mas, para isso existem os técnicos que oll rn calcular tudo tão bem. Não apenas o proprietário do opor la- mento MAS TAMBÉM O LOCATÁRIO DEVE TER A P SIBILIDADE DE MUDAR TODA A ARQUITETURA. O estado anterior da casa não deve ser restabelecido a menos que o locatário seguinte não esteja de acordo com as transforma- ções da habitação. Mas é quase certo que as mudanças arqui- tetônicas, que de todo modo tendem para o humano, serí:o ben- vindas ao próximo locatário.o nii1ismo dos internados exprime-se no declínio da von- tade de trabalhar, no dec1ínio da produtividade. Tenho certeza que os psiquiatras e a estatística me d1io razão. Pois também a aflição pode ser expressa em cifras em dinheiro. O prejuizo que a construção racional causa é incomparavelmente mais elevado que sua aparente economia. Essa é a prova de que os edifícios racionais tornam-se criminosos se os deixarmos em seu estado atual. Não sou tão contrário assim à produção em série. INFELIZMENTE AINDA PRECISAMOS DELA. Mas deixar as coisas fabricadas em série no estado em que as recebemos é demonstrar a própria captividade e aceitar ser escravo. SE A LEI SOBRE A MODIFICAÇÃO INDIVIDUAL DAS CONSTRUÇÕES não for retificada, a psicose de prisão dos internados {nesses prédios) irá aumentando até um final horrível. Para isso há diversas soluções: Sua lucidez é perfeita, não há em seus propósitos traços de um romantismo desesperado ou de um revo- lucionismo infantil. Recusamos utilizar essas jaulas de escravos. Recusamos entrar nelas. Se formos convidados à casa de amigos ou a ir à polícia e essas casas forem uma .caixa estéril, corremos ao telefone mais próximo e rogamos a essas pessoas que venham para fora. Ajudem-me a anular as leis criminosas que oprimem a li- berdade de construir criativamente. Os homens nem mesmo sa- bem que têm todo o direito de modelar suas roupas e suas ha- bitações, interna e externamente, conforme seus gostos. Um arquiteto único ou único mandante não pode carregar a respon- sabilidade por todo um bloco de casas, nem mesmo por um único prédio onde habitam várias famílias. Esta responsabili- dade deve ser reconhecida a cada habitant~, quer seja arquiteto' ou não. 2. A TRANSFORMAÇÃO ARQUITETÕNICA PELO VISITANTE A seguir, um pouco de anarquismo, sem dúvida. Mas não muito: TODAS AS LEIS DE SERVIÇOS URBANOS, QUE PROIBEM OU IMPEDEM AS TRANSFORMAÇõES INDI- VIDUAIS DA CASA DEVEM SER ANULADAS. CONSTI- TUI MESMO UM DEVER DO ESTADO APOIAR E AJU- DAR FINANCEIRAMENTE CADA CIDADÃO QUE DESE- JA PROMOVER MUDANÇAS INDIVIDUAIS NO EXTERIOR OU INTERIOR DE SEU APARTAMENTO. Mas esse problema ideal é logo trazido à terra, para reconforto dos que pensam nas normas de segu- rança social. O homem tem direito à própria pele arquitetural 6. Com uma única condiç1io: as vizinhanças e a estabilidade da casa Demonstrei isso pessoalmente, pela primeira vez, num alo- jamento para estudantes. Entremos numa jaula de escravos apenas se pudermos mo- dificar sua arquitetura. Quem é o responsável por esse estado de coisas? OS ARQUITETOS COVARDES, MARIONETES NAS MÃOS DE PROMOTORES DE VENDA INESCRUPULOSOS. Em todo caso, aqueles que fogem, se revoltam ou se sui- cidam são privilegiados. Todos os que não têm esses meios de escapar perdem suas almas, sua humanidade, seus bens mais preciosos e, do mesmo modo, todas as outras coisas 7. 5. Justamente, esses HLM e seus centros pré-fabricados. 6. McLuhan já nâo demonstrou que a casa é uma extensâo da pele? Neste caso, este direito deve alinhar-se realmente entre os mais sagrad06 do homem. Trata-se, aqui, de um dos manifestos mais lúcidos e mais apaixonados da história da arquitetura. Outros já discorreram sobre os males da arquitetura contempo- rânea: Hundertwasser nos faz viver essa situação; mui- tos já insinuaram reformas sensatas: Hundertwasser nos grita as soluções óbvias, possíveis e imediatas. Sua 7. Extraído do catálogo da exposiçlío de Hundertwasser no Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris, maio-julho de 1975. declaração deveria ser entregue a todo estudante de ar- quitetura que entra na universidade. E no momento de graduar-se deveria lê-Io novamente, pois possivelmente o ensinamento recebido nesse tempo teria apagado es- ses princípios de sua mente. E em todo momento de sua atividade profissional essa declaração deveria impor- se constantemente em seus projetos. Idealismo? Romantismo? Coisa de artista? Nada disso: Hundertwasser é nada mais que lúcido, e nada visionário. Não prega revoluções impossíveis (leia-se: economicamente impossíveis). Apenas mudar aqui e ali essas caixas estéreis a que chamam "apartamento" já seria um começo, um bom começo. Em 1973, Hundert- wasser planta uma série de árvores grandes nas jane- las de um edifício de apartamentos na Via Manzoni, em Milão: loucura, impossível? Por quê? Que critérios nos oràC'nam a respeitar a fachada agressiva e morta, de concreto ou de ignóbeis pastilhas anônimas? Só o me- do. O medo à criatividade. Um medo que o espírito neo-renascentista nos incutiu (isso quando a Renas- cença foi, ela, um movimento e um momento de inten- sa criação). Um medo que temos de nos libertar e que não atinge a Hundertwasser enquanto mostra que também na arquitetura a imaginação deve ter vôo absolutamente livre. Se as condições econômicas penni- tem, Hundertwasser tem projetos mais completos, mais radicais: uma casa cujo teto está inteiramente coberto por um gramado, de fácil acesso a homens e animais que sobre ele andam livremente (construída na Aus- trália). Ou a casa "fenda de olho": implantada numa elevação, é praticamente uma casa subterrânea, enci- mada por árvores - a natureza não é ferida. Ou a "casa-fosso": à semelhança de antigas habitações orien- tais construídas nas paredes de grandes fossos cavados no chão, a casa-fosso é construída num enorme bura- co ajardinado. Não atraem? Ele tem outros projetos: a casa dos prados elevados, um edifício piramidal com patamares que se estreitam à medida que se apro- ximam do "cume" e que formam tetos (para os apar- tamentos inferiores) cobertos com grama, árvores e mesmo mato onde se pode até soltar animais. Mas não só as casas se modificam: os postos de gasolina ficam ocultos em bosques, as próprias auto-estradas não rasgam (no sentido pleno da palavra) mais os cam- pos, assolando-os com suas faixas estéreis, mas ficam completamente camufladas pela terra e pelas árvores. Por toda parte, nos projetos de Hundertwasser, os te- tos, paredes e superfícies se transformam em florestas: para o artista, uma boa arquitetura é a que se vê o menos possível. Existe outro princípio mais revolucio- nário na história da arquitetura ocidental, onde desde a Renascença (passando pelo Barroco, art nouveau, etc.) o problema fundamental é o de ser vista (o problema da fachada) e não o de ser vivida (uma enorme contra- dição para a prática arquitetural, transformada em mo- numental exercício de pintura, de comunicação visual ao ar livre)? Nem mesmo o Gótico escapa do rótulo "arquitetura de fachada", e nem os romanos, tampou- co os gregos. Por certo alguns poucos nomes, em al- guns poucos de seus projetos, praticaram algo do gê- nero proposto por Hundertwasser: mais uma vez, por exemplo, que se pense em Lloyd Wright, COm suas casas que são traços horizontais quase a se confundirem com o meio ambinete (mas não o Lloyd Wright do Gugge- nheim Museum). Mas nenhum tem talvez a força cria- tiva e a audácia libertária de Hundertwasser, um artista que passou para a arquitetura, mas que não esqueceu sua própria origem ao encarar a arquitetura como sen- do essencialmente uma arte (não esquecendo, ao mes- mo tempo, que a arquitetura êm suas origens sempre esteve ligada à arte e que os primeiros arquitetos sem- pre foram, inicialmente e acima de tudo, artistas). Diante da teoria e da prática de Hundertwasser, as demais "antiarquiteturas" que grassam por aí não passam realmente de brincadeiras inconseqüenteS' que freqüentemente não provocam nem mesmo o riso e que são quase sempre inadmissíveis porque socialmen- te prejudiciais ou, no mínimo, inúteis. Que faz por exem- plo a chamada "arquitetura irracional", com seus edifí- cios de fachada que descola (Richmond, EUA) ou suas fachadas que desabam numa cascata imóvel de tijo- los (em Houston, EUA)? Nada mais são que proposi- ções kitsch que se inserem totalmente na chamada ar- quitetura de fachada, uma arquitetura para ser vista unicamente e nada mais, uma falsa arquitetura, um grande painel visual, uma arquitetura publicitária - e mentirosa, gratuita. Chamar isso de antiarquitetura é por certo excesso de pretensão: não chega nem mes- mo a ser arquitetura! .... Como também nada são os movimentos de "arquitetura radical" que proliferam na Europa e EUA (sob nomes d~ ficção científica leva- dos a sério por seus adeptos, o que piora ainda mais a situação: Ufo, Libidarch, Archizoom, 9999, etc.) e que se propõem projetos de uma arquitetura cultural- mente impossível onde não interessaria mais o produto acabado mas sim as relações com as pessoas. Que o produto acabado deixe de ser o objetivo supremo do ar- quiteto, muito bem: mas qual a alternativa proposta? A que esses grupos propõem não tem sentido algum, são verdadeiras e monstruosas brincadeiras de criança. Em Milão, recentemente, desenvolveu-se um desses pro- jetos da arquitetura radical: um grupo de pessoas pro- movem ações insólitas. Um se amarra fortemente a uma cadeira, um outro enfia braços e pernas numa espécie de comprida meia furada, um terceiro cobre o rosto com uma máscara: ação de uma suposta vanguarda artísti- ca numa bienal de arte qualquer? Não, dizem eles, ar- quitetura radical em processo estudando o uso do cor- po. Em New York, na mostra "New Domestic Lands- cape" 8, um grupo de radicais italianos (eles gostam de intitular a si mesmos em inglês) montaram seu stand: uma sala inteiramente vazia preenchida apenas pela gra- ,'ação de uma voz de menina repetindo, numa cantile- na: "bonito, este ambiente, a gente se sente muito bem aqui, que bonita sala grande", etc. etc. Numa ou- tra mostra haverá, numa sala, apenas uma porta que marcará o limite entre luz e sombra num ambiente· neutro. mente com o maXlmo de lucros possível - sem ne- nhuma consideração pelo ocupante da construção. Até aí, tudo bem; e opondo-se a essa arquitetura técnica querem lembrar que a base da arquitetura é a arte. Ótimo. Mas em seu movimento de revolta (e não de revolução) vão longe demais e esquecem-se que arqui- tetura não é apenas arte e não pode seguir os cami- desta de modo absoluto. A arte pode eventualmente tornar-se apenas uma arte conceitual, isto é, uma arte que alguém imagina em sua mente, sem concretizá-Ia e ãando-se por satisfeito com isso, numa atitude inteira- mente legítima que ninguém contestará. Mas a arquite- tura só existe enquanto construção efetiva, não como conceito. As pessoas precisam de um lugar para ha- bitar, onde se proteger, onde se esconder se for o caso. Deixar de considerar esta finalidade última da arquite- . tura (que em absoluto visa destruir uma cultura, mas apenas ajl,ldá-Ia a corrigir-se, a encaminhar-se a seus fins mais elevados) é praticar um desrespeito em rela- ção aos grupos sociais, à cidade, à sociedade, àqueles homens, mais particularmente, que por suas condições educacionais e econômicas necessitam absolutamente do arquiteto. Assim como é um desrespeito à sociedade participar do Projeto de Reforma do Moinho Stucky de Veneza com propostas desse tipo de "vanguarda": em 1975, no quadro da Bienal de Veneza, pensou-se em abrir uma espécie de concurso para o reaproveita- mento da' enorme estrutura do. moinho Stucky, cons- trução feita à beira do canal da Giudecca em 1895 (projeto final) agora desocupada e inativa .e que a municipalidade pensou 'em reaproveitar para entregar aos cidadãos como área de lazer e cultura. Chamam- se os arquitetos e os artistas - que se revelam um bando de marginais da arquitetura e da cult1Jra que nada mais fizeram do que desacreditar ainda mais tan- to a arte como a arquitetura modernas aos olhos do lei- go. Que lhes pediu um lugar humano. Quais foram suas respostas? Deixar o lugar ser tomado pela vegetação (a participação desse "arquiteto" resumia-se na apre- sentação de um desenho do enorme edifício tomado pelo mato). Uma estrutura vacilante em equilíbrio pre- cário colocada em cima da antena do moinho, e que ficaria oscilando conforme o número de pessoas que estivessem em seu bojo (desenhos e fotomontagens). _ Um terceiro sugere cortar toda a fachada do moinho Arquitetura? Antiarquitetura? Não, andaram se enganando de exposição. Ou inconseqüência. Outros adeptos da "arquitetura radical" são mais "sérios": não expõem nada porque nada constroem, o que lhes interessa é apenas estabelecer um proj~to - que fica como simples idéia, não concretizada. Tudo isso envol- to numa suposta capa teórica que se pretende revolu- nária: "O fim último da arquitetura é a eliminação da própria arquitetura". Ou: "A vanguarda (a arquitetu- ra entre elas) tem por função a destruição técnica da cultura". Frases vazias e inconseqüentes, mostrando enorme confusão de idéias: obviamente, os "radicais" querem opor-se à arquitetura tradicional, essa arquite- tura supostamente racional, manipulada por técnicos da construção peritos no método de construir mais rapida-
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