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John Flanagan - Rangers - Ordem dos Arqueiros 1 - Ru¡nas de Gorlan, Notas de estudo de Direito

John Flanagan - Rangers - Ordem dos Arqueiros 1 - Ru¡nas de Gorlan

Tipologia: Notas de estudo

2011
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Compartilhado em 27/05/2011

carina-alves-pinto-8
carina-alves-pinto-8 🇧🇷

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Baixe John Flanagan - Rangers - Ordem dos Arqueiros 1 - Ru¡nas de Gorlan e outras Notas de estudo em PDF para Direito, somente na Docsity! MAIS DE 1 MILHÃO DE CÓPIAS VENDIDAS E Aclamada pela crítica do mundo todo. Da lista dos livros mais vendidos do New York Times. Publicada em mais de 14 países. Rangers — Ordem dos Arqueiros, a série: uma lei- tura imperdível e emocionante do começo ao fim. Durante a vida inteira, o pequeno e frágil Will so- nhou em ser um forte e bravo guerreiro, como o pai, que ele nunca conheceu. Por isso, ficou arrasado quando não conseguiu entrar para a Escola de Guerra. A partir daí, sua vida tomou um rumo inesperado: ele se tornou o aprendiz de Halt, o misterioso arqueiro, que muitos acreditam ter habilidades que só podem ser resultado de alguma feitiçaria. Relutante, Will aprendeu a usar as armas secretas dos arqueiros: o arco, a flecha, uma capa manchada e... um pequeno pônei muito teimoso. Podem não ser a espada e o cavalo que ele desejava, mas foi com eles que Will e Halt partiram em uma peri- gosa missão: impedir o assassinato do rei. Essa será uma viagem de descobertas e aventuras fantásticas, na qual Will aprenderá que as armas dos arqueiros são muito mais va- liosas do que ele imaginava. Morgarath, senhor das Montanhas da Chuva e da Noite, ex-barão de Gorlan no Reino de Araluen, observou, talvez pela milésima vez, o seu domínio árido varrido pela chuva e amaldiçoado. Aquilo era tudo o que lhe restava no momento: uma mistura de penhascos irregulares de granito de pedras arredondadas caídas e de montanhas geladas com desfila- deiros e gargantas íngremes e estreitas de cascalho e pe- dras, sem nenhuma planta para quebrar a monotonia. Embora já tivessem se passado quinze anos desde que fora trazido de volta a esse reino proibido que se tor- nou sua prisão, ele ainda se lembrava das clareiras verdes e agradáveis, das colinas cobertas de bosques de seu antigo feudo, dos córregos cheios de peixes e dos campos com plantações e caça abundante. Gorlan tinha sido um lugar maravilhoso e animado. As Montanhas da Chuva e da Noite agora estavam mortas e desertas. Um pelotão de Wargals treinava no pátio do castelo abaixo dele. Morgarath os observou por alguns segundos e escutou a cantilena gutural e ritmada que acompanhava todos os movimentos. Eles eram seres entroncados e de- formados, com feições meio humanas, mas com focinhos de bicho e dentes parecidos com os de um urso ou um cachorro grande. Longe do contato humano, os Wargals viveram e se reproduziram naquelas montanhas remotas desde tempos antigos. Ninguém se lembrava de ter visto um deles, mas boatos e lendas falavam de uma tribo selvagem de bestas semi-inteligentes nas montanhas. Morgarath, ao planejar uma revolta contra o Reino de Araluen, deixou o feudo de Gorlan para procurá-los. Se tais criaturas existissem, elas lhe dariam uma vantagem na guerra que se aproximava. Passaram-se meses, mas ele os encontrou. Além da cantilena, os Wargals não usavam palavras para se comu- nicar e eram seres de pouco cérebro. Como resultado, fo- ram facilmente dominados pela inteligência e força de vontade superiores de Morgarath, que os transformou no exército ideal: mais feios do que um pesadelo, extrema- mente impiedosos e totalmente escravizados por suas or- dens mentais. Agora, olhando para eles, lembrou-se dos cavaleiros bem vestidos com armaduras brilhantes que costumavam competir em torneios no Castelo de Gorlan, enquanto as damas os estimulavam e aplaudiam suas habilidades u- sando luvas de seda. Ao compará-los mentalmente com essas criaturas deformadas e cobertas por pêlos escuros, ele praguejou novamente. Os Wargals, sintonizados com o pensamento dele, perceberam a sua perturbação, mexeram-se inquietos e pararam o que estavam fazendo. Zangado, Morgarath os fez voltar ao treinamento, e a cantilena recomeçou. Morgarath se afastou da janela sem vidros e se a- proximou do fogo, que parecia totalmente incapaz de a- cabar com a umidade e o frio do castelo sombrio. Quinze anos tinham se passado desde que se rebelara contra o re- cém coroado rei Duncan, um jovem de 20 e poucos anos. Confiando na indecisão e na confusão que dividiriam os outros barões logo após a morte do velho rei, Morgarath, para não perder a oportunidade de se apoderar do trono, tinha planejado tudo com muito cuidado, enquanto a do- ença do soberano avançava. Secretamente, treinou o exército de Wargals e os reuniu nas montanhas, prontos para atacar no momento certo. Nos dias de confusão e sofrimento que se seguiram à morte do rei, quando os barões viajaram até o Castelo de Araluen para a cerimônia do funeral, deixando os seus e- xércitos sem líder, ele tinha atacado e invadido, em ques- tão de dias, a parte sudeste do reino, derrotando as forças confusas e sem controle que tentaram resistir. Duncan, jovem e inexperiente, nunca poderia en- frentá-lo. O reino estava lá para ser tomado. O trono era seu. Então, lorde Northolt, chefe do exército do velho rei, reuniu alguns dos barões mais jovens numa aliança leal que apoiou Duncan e aumentou a vacilante coragem dos — Tente comer alguma coisa, Will. Afinal, amanhã é um grande dia. Jenny, loira, bonita e alegre, fez um gesto na dire- ção do prato quase intocado de Will e sorriu para ele, en- corajando-o. Will tentou retribuir o sorriso, mas não con- seguiu. Ele remexeu o prato que tinha à sua frente, cheio de suas comidas favoritas. Naquela noite, por causa da tensão e da expectativa, Will quase não conseguia engolir uma garfada. Ele sabia bem demais que o dia seguinte seria mui- to especial, o mais importante da sua vida, pois era o Dia da Escolha, que iria determinar como passaria o resto dos seus dias. — Acho que é o nervosismo — disse George, a- baixando o garfo cheio e ajeitando a lapela do casaco com ar de quem sabia o que estava falando. Ele era um garoto magro, desengonçado e estudio- so, fascinado por regras e regulamentações e com inclina- ção a examinar e discutir os dois lados de qualquer ques- tão, às vezes durante horas. — O nervosismo é uma coisa assustadora. Ele po- de deixar você paralisado e impedi-lo de pensar, comer e falar. — Não estou nervoso — Will retrucou depressa, notando que Horace tinha levantado a cabeça, pronto pa- ra deixar escapar um comentário sarcástico. George balançou a cabeça várias vezes, pensando na declaração de Will. — Por outro lado — ele acrescentou —, um pouco de nervosismo pode até melhorar o desempenho. Ele po- de aumentar as suas percepções e aguçar suas reações. As- sim, pode-se dizer que o fato de você estar preocupado, se é que realmente está, não é, necessariamente, algo com que se preocupar. Mesmo sem querer, um sorriso irônico surgiu nos lábios de Will. George seria um ótimo advogado. Ele cer- tamente seria escolhido pelo escriba na manhã seguinte. Talvez esse fosse o problema de Will. Ele era o único dos protegidos que tinha receios quanto à Escolha que iria ocorrer dali a doze horas. — Ele deveria estar nervoso — Horace zombou. — Afinal, que mestre iria querê-lo como aprendiz? — Tenho certeza de que todos estamos nervosos — Alyss disse, dirigindo um de seus raros sorrisos para Will. — Seria tolice não estar. — Pois bem, eu não estou — Horace retrucou, co- rando quando Alyss o olhou com desconfiança e Jenny riu. “Alyss sempre age assim”, Will pensou. Ele sabia que lady Pauline, chefe do Serviço Diplomático do Caste- lo Redmont, tinha prometido a posição de aprendiz à ga- rota graciosa e alta. O fato de fingir nervosismo por causa do dia seguinte e o tato para não chamar atenção para a gafe de Horace mostravam que ela já tinha algumas habi- lidades como diplomata. Jenny, é claro, iria imediatamente para a cozinha, domínio de mestre Chubb, cozinheiro chefe. Ele era um homem famoso em todo o reino pelos banquetes servidos na imensa sala de jantar do castelo, Jenny adorava cozi- nhar e tudo o que se referia à comida. Sua natureza calma e seu inesgotável bom humor fariam dela um membro va- lioso para a equipe na agitação das cozinhas do castelo. A escolha de Horace seria a Escola de Guerra. Will olhou para o colega, que atacava avidamente a pilha de peru assado, presunto e batatas que estava amontoada no prato. Horace era grande para a idade e um atleta nato. As chances de ele ser recusado quase não existiam. Horace era exatamente o tipo de recruta que sir Rodney procurava para aprendiz de guerra: forte, atlético, em boa forma. “E não muito inteligente”, Will pensou com certa amargura. A Escola de Guerra era a melhor maneira de se tornar um cavaleiro para garotos como Horace nascidos no povo, mas com habilidades físicas para servir como cavaleiros do Reino. sem lhe permitido desferir um chute ou soco surpresa e então escapar antes que Horace pudesse alcançá-lo. Mas, embora Horace geralmente se saísse melhor nos confrontos físicos, raramente vencia algum de seus embates verbais. A mente de Will era tão ágil quanto o seu corpo, e ele quase sempre conseguia dar a última palavra. Na verdade, era essa tendência que muitas vezes causava problemas entre os dois: Will ainda tinha que aprender que dar a última palavra nem sempre era uma boa idéia. Horace decidiu então se aproveitar da vantagem ganha. — Você precisa de músculos para entrar na Escola de Guerra, Will. Músculos de verdade — ele afirmou, o- lhando para os colegas ao redor da mesa para ver se al- guém discordava. Os demais protegidos, pouco à vontade diante da crescente tensão entre os dois, concentraram-se em seus pratos. — Principalmente entre as orelhas — Will retrucou e, infelizmente, Jenny não conseguiu deixar de rir. Horace corou e começou a levantar da mesa. Mas Will foi mais rápido e já estava na porta antes que o colega pudesse se livrar da cadeira e soltar um último insulto. — Isso mesmo! Fuja, Will Sem-nome! Você e um sem-nome e ninguém vai querer você como aprendiz! Da ante-sala, Will escutou os risos e sentiu o sangue subir ao rosto. Ele detestava esse tipo de zombaria, mas, para não dar mais uma arma para Horace, evitava deixar que o colega percebesse isso. A verdade era que ninguém sabia o sobrenome de Will nem sabia quem tinham sido seus pais. Ao contrário dos colegas, que tinham vivido no feudo antes da morte dos pais e cuja história familiar era conhecida, Will tinha aparecido ainda recém-nascido, aparentemente do nada. Ele fora encontrado embrulhado em um pequeno cober- tor, dentro de um cesto, nas escadas do prédio dos prote- gidos há quinze anos. Um bilhete estava preso ao cobertor e dizia apenas: A sua mãe morreu no parto. O pai morreu como herói. Por favor, cuidem dele. Seu nome é Will. Naquele ano, tinha havido somente mais uma pro- tegida. O pai de Alyss era um tenente da cavalaria que morreu na batalha de Hackman Heath, quando o exército de Wargals de Morgarath foi derrotado e expulso para as montanhas. A mãe de Alyss, arrasada pela dor, morreu devido a uma febre algumas semanas depois de dar à luz. Assim, havia bastante espaço para a criança desconhecida, e o barão Arald era, no fundo, um homem generoso. Mesmo que as circunstâncias fossem incomuns, ele tinha dado permissão para que Will fosse aceito como protegido no Castelo Redmont. Parecia lógico pressupor que, se o bilhete era verdadeiro, o pai de Will tinha morrido na guerra contra Morgarath. Como o barão Arald tinha to- mado parte importante nessa batalha, sentiu-se no dever de honrar o sacrifício do pai desconhecido. Assim, Will se tornou um protegido de Redmont e foi criado e educado devido à generosidade do barão. À medida que o tempo passou, outros além de Alyss se jun- taram a ele, até que havia cinco crianças da mesma idade. Mas, ao passo que os outros tinham lembranças dos pais ou, no caso de Alyss, havia pessoas que os tinham conhe- cido e que podiam falar sobre eles, Will nada sabia de seu passado. Foi por esse motivo que inventou a história que o tinha sustentado durante toda a infância naquela divisão do castelo. E, quando os anos passaram e acrescentou de- talhes e cores à história, até ele começou a acreditar nela. Will sabia que o pai tinha morrido como herói, portanto tinha sentido criar para ele uma imagem de ídolo — um guerreiro dentro de uma armadura brilhante que lutou contra as hordas de Wargals, combatendo-as de to- das as formas possíveis até ser derrotado pelo peso da maioria. Tinha imaginado a figura alta do pai várias vezes, visto cada detalhe da armadura e de suas armas, mas sem nunca poder ver o seu rosto. Como guerreiro, o pai iria querer que ele seguisse os seus passos. Por esse motivo, a seleção para a Escola de Guerra era tão importante para Will e, quanto mais improvável se tornava a sua escolha, mais ele se agarrava à esperança de que seria selecionado. castelo estava adormecido, exceto pelos guardas junto das paredes, que mantinham vigília constante. Will se deu conta de que em menos de nove horas enfrentaria a Escolha. Silenciosamente, sofrendo, temendo o pior, desceu da árvore e dirigiu-se para a sua cama no dormitório escuro dos garotos. — Vamos, candidatos! Por aqui! Onde está a animação? O orientador, Martin, secretário do barão Arald, mais gritava que falava. Quando a sua voz ecoou na an- te-sala, os cinco protegidos se ergueram hesitantes dos longos bancos de madeira onde estavam sentados. Repen- tinamente nervosos agora que o dia tinha finalmente che- gado, começaram a andar devagar, relutantes em ser o primeiro a passar pela grande porta de ferro que Martin abria para eles. — Venham, venham! — ele convocava impaciente, quando Alyss finalmente decidiu ser a primeira, como Will imaginara que faria. Os outros acompanharam a graciosa garota loira. Agora que alguém tinha resolvido dar o primeiro passo, os demais se contentaram em segui-lo. Ao entrar no gabinete do barão, Will olhou ao re- dor curioso. Ele nunca tinha estado naquela parte do cas- telo antes. Aquela torre, que abrigava o setor administra- tivo e os aposentos particulares do barão, raramente era visitada pelos subordinados, como os protegidos do cas- telo. O aposento era imenso. O teto parecia dominá-lo, e as paredes eram feitas de blocos de pedra maciça unidos apenas por uma fina camada de argamassa. Na parede les- te, havia uma janela enorme com grossas venezianas de madeira que podiam ser fechadas em caso de mau tempo. Will se deu conta de que era a mesma janela que ele tinha visto na noite passada. Naquele dia, o sol entrava por ela e caía na grande mesa de carvalho que o barão Arald usava como escrivaninha. — Agora, venham! Fiquem em fila! Fiquem em fila! Martin parecia estar gostando desse momento de autoridade. O grupo andou lentamente para formar fila, e ele os observou com ar reprovador e a boca retorcida: — Por ordem de tamanho! O mais alto no começo — ele disse, mostrando onde queria que o mais alto ficas- se. Aos poucos, o grupo se organizou. Horace, é claro, era o mais alto. Depois dele, Alyss tomou sua posição. Em seguida George, meia cabeça mais baixo do que ela e muito magro. Will e Jenny hesitaram. Jenny sorriu para o colega e, com um gesto, pediu que tomasse o lugar antes dela, mesmo que talvez fosse um centímetro mais alta. Aquela era uma atitude típica da Jenny. Ela sabia como Will sofria por ser o menor de todos os protegidos. Quando ele entrou na fila, a voz de Martin o interrompeu. — Você, não! A menina primeiro. se admiravam e respeitavam e raramente participavam de um procedimento tão formal. Sir Rodney, chefe da Escola de Guerra, entrou primeiro. Alto e de ombros largos co- mo o barão, estava vestido a caráter, com malha de ferro por baixo de um manto branco adornado com a mesma figura do escudo: a cabeça vermelha de um lobo. Ele tinha ganho esse escudo quando jovem, lutando no mar da Es- candinávia contra navios piratas que constantemente sa- queavam a costa leste do Reino. Usava um cinturão e uma espada. Nenhum cavaleiro podia ser visto em público sem sua espada. Ele tinha mais ou menos a idade do barão, olhos azuis e um rosto que seria extremamente bonito não fosse pelo nariz quebrado. Ostentava um bigode imenso, mas, ao contrário do barão, não usava barba. Em seguida veio Ulf, o mestre da Cavalaria, res- ponsável pelo cuidado e treinamento dos fortes cavalos de batalha do castelo. Tinha olhos castanhos cheios de es- perteza, braços fortes e musculosos e punhos grossos. Usava um simples colete de couro sobre uma camisa de lã e calças coladas ao corpo. Altas botas de equitação feitas de couro macio cobriam os seus joelhos. Lady Pauline seguiu-se a Ulf. Magra, elegante e de cabelos grisalhos, ela tinha sido muito bonita na juventude e ainda mostrava graça e estilo capazes de virar a cabeça dos homens. Lady Pauline, que tinha conquistado esse tí- tulo por seu trabalho na política externa do Reino, era chefe do Serviço Diplomático em Redmont. O barão A- rald tinha suas habilidades em alta conta, e ela era uma de suas mais íntimas conselheiras e confidentes. Arald dizia com frequência que meninas eram as melhores recrutas para o serviço diplomático. Elas costumavam ser mais su- tis do que os rapazes, que gravitavam naturalmente para a Escola de Guerra. E, enquanto os garotos quase sempre usavam a força física para resolver problemas, as meninas sabiam usar a inteligência. Talvez fosse apenas uma coincidência que Nigel, o mestre escriba, acompanhasse lady Pauline de perto. Eles discutiam assuntos de interesse mútuo enquanto espera- vam o chamado de Martin. Além de colegas de profissão, Nigel e Pauline eram bons amigos. Eram os escribas trei- nados de Nigel que preparavam os documentos e comu- nicados oficiais que tantas vezes eram entregues pelos di- plomatas de Pauline. Ele também dava conselhos sobre as palavras exatas a serem usadas nesses documentos e tinha profundos conhecimentos em assuntos legais. Nigel era um homem pequeno e magro, com um rosto inteligente e curioso que fazia Will se lembrar de um furão. Seus cabe- los eram pretos e brilhantes, suas feições eram finas, e os olhos escuros nunca paravam de observar o aposento. Mestre Chubb, o cozinheiro chefe, entrou por úl- timo. Como não poderia deixar de ser, ele era um homem gordo e barrigudo que usava uma jaqueta branca de cozi- nheiro e um chapéu alto. Dizia-se que tinha um gênio ter- rível e que podia se inflamar tão depressa quanto óleo derramado no fogo, portanto a maioria dos protegidos o tratava com muito cuidado. Com o rosto corado e cabelos ruivos que rareavam rapidamente, o mestre Chubb levava uma colher de pau para onde quer que fosse. Era um membro extra-oficial da equipe e também era usada mui- tas vezes como arma de ataque, aterrissando com um ba- rulho forte na cabeça dos aprendizes mais descuidados, esquecidos e lentos. Entre os protegidos, Jennifer era a única que via Chubb como um tipo de herói. Ela já tinha declarado sua intenção de trabalhar para ele e aprender suas técnicas, com ou sem colher de pau. Naturalmente, havia outros mestres. O armeiro e o ferreiro eram dois deles, mas somente os mestres de ofício que tinham vagas no momento para novos aprendizes se apresentariam naquele dia. — Os mestres de ofício estão reunidos, senhor! — Martin anunciou elevando a voz, como se falar alto desse mais importância à ocasião. Mais uma vez, o barão levantou os olhos para o céu. — Como se eu não estivesse vendo — ele disse em voz baixa. — Bom-dia, lady Pauline. Bom-dia, senhores — ele acrescentou num tom mais formal. Os presentes responderam, e o barão se virou mais uma vez para Martin. — Será que podemos começar? Martin balançou várias vezes a cabeça, consultou um maço de notas que segurava nas mãos e marchou até a fileira de candidatos. ele se aproximava de Horace. Olhou o rapaz da cabeça aos pés e então passou por trás dele. A cabeça do garoto começou a acompanhar seu movimento. — Quieto — sir Rodney ordenou, o menino ficou imóvel e olhou direto para a frente. — Parece forte o suficiente, meu senhor, e sempre posso usar novos alunos — ele esfregou o queixo com a mão. — Você sabe cavalgar, Horace? Por um instante, quando percebeu que esse poderia ser um obstáculo para a sua escolha, Horace ficou sem saber o que dizer. — Não, senhor, eu... Ele estava para acrescentar que os protegidos do castelo tinham poucas oportunidades de aprender a ca- valgar, mas sir Rodney o interrompeu. — Não importa, você pode aprender. O grande cavaleiro olhou para o barão e acenou. — Muito bem, meu senhor, vou levar o garoto para a Escola de Guerra, onde ficará pelo período de três me- ses de experiência. O barão escreveu algo numa folha de papel que se encontrava diante dele e sorriu levemente para o alegre e muito aliviado jovem à sua frente. — Parabéns, Horace. Apresente-se à Escola de Guerra amanhã cedo, às 8 horas em ponto. — Sim, senhor! — Horace respondeu com um largo sorriso. Ele se virou para sir Rodney e fez uma pe- quena reverência. — Obrigado, senhor. — Não me agradeça ainda — o cavaleiro respon- deu com ar de mistério. — Você não sabe o que o espera. — Quem é o próximo? — Martin perguntou enquanto Horace, com um grande sorriso, voltava para a fila. Alyss se adiantou com graça, aborrecendo Martin, que queria indicá-la como a próxima candidata. — Alyss Mainwaring, meu senhor — ela disse com a voz baixa e uniforme. Então, antes que lhe perguntas- sem qualquer coisa, continuou: — Por favor, solicito uma indicação para o Serviço Diplomático, meu senhor. Arald sorriu para a garota de aspecto solene. Ela tinha um ar de autoconfiança e dignidade que a ajudaria muito no Serviço. Ele olhou para lady Pauline. — Senhora? Ela concordou com um gesto de cabeça. — Já falei com Alyss, meu senhor. Acredito que ela seja uma excelente candidata. Aprovada e aceita. Alyss curvou levemente a cabeça na direção da mulher que seria a sua mentora. Will pensou em como eram parecidas — as duas eram altas e tinham movimen- tos elegantes e maneiras reservadas. Ele sentiu uma leve — Exatamente, meu senhor. Nós vamos ajudar George a superar a sua timidez. Nada como a agitação da Escola de Escribas. Sem dúvida. O barão não conseguiu evitar um sorriso. A Escola de Escribas era um lugar dedicado aos estudos onde ra- ramente as vozes se erguiam e onde o debate lógico e ra- cional reinava supremo. Pessoalmente, em suas visitas, ti- nha considerado o local extremamente monótono e não conseguia imaginar nada menos agitado. — Acredito em você — ele retrucou. — Bem, Ge- orge, pedido aceito. Apresente-se à Escola de Escribas amanhã. George arrastou os pés desajeitado, resmungou al- gumas palavras, e o barão se inclinou outra vez, franzindo a testa ao tentar entender o que o rapaz tinha dito. — O que você disse? George finalmente olhou para cima. — Obrigado, meu senhor. E então voltou rapidamente para a fila. — Ah! Não foi nada — o barão disse um tanto surpreso. — Agora, o próximo é... Jenny já se adiantava. Loira e bonita, ela também era, para falar a verdade, um pouco gordinha. Mas os qui- los a mais lhe caíam bem e, em qualquer reunião social, a moça era muito solicitada para dançar com os garotos, tanto os colegas dos protegidos, quanto os filhos dos fun- cionários do castelo. — Mestre Chubb, senhor! — ela disse, aproxi- mando-se da beira da escrivaninha. O barão olhou para o rosto redondo da menina, viu a ansiedade brilhando naqueles olhos azuis e não conse- guiu evitar sorrir para ela. — O que tem ele? — o barão perguntou delicada- mente e a moça hesitou, percebendo que, em seu entusi- asmo, tinha atropelado o protocolo da Escolha. — Oh! Perdão, senhor... meu... barão... — ela im- provisou rapidamente, gaguejando enquanto tentava cor- rigir o modo de falar. — Meu senhor! — Martin interrompeu. O barão Arald olhou para ele surpreso. — Sim, Martin, o que foi? Martin ficou constrangido, pois percebeu que seu mestre estava entendendo mal o propósito de sua inter- rupção. — Eu... simplesmente queria informar que o nome da candidata é Jennifer Dalby, senhor — ele respondeu em tom de desculpas. O barão assentiu, e Martin, um servo dedicado, viu o olhar de aprovação no rosto de seu patrão. — Obrigado, Martin. Agora, Jennifer Dalby... — Jenny, senhor — informou a garota. — Jenny, então — o barão respondeu, dando de ombros resignado. — Suponho que você esteja se candi- datando para ser aprendiz de mestre Chubb. — Ah, sim, por favor, senhor! — Jenny respondeu sem fôlego, virando os olhos cheios de adoração para o cozinheiro corpulento e ruivo. Chubb a olhou pensativo e de cara feia. — Hum... pode ser, pode ser — ele balbuciou, an- dando de um lado a outro na frente dela. A garota sorriu para ele simpática, mas Chubb era imune a esses artifícios femininos. — Vou trabalhar duro, senhor — ela garantiu com seriedade. — Sei disso! — ele retrucou um tanto divertido. — Eu vou garantir que sim, menina. Ninguém fica à toa conversando na minha cozinha, pode ter certeza. Temendo que sua oportunidade pudesse estar es- corregando por entre os dedos, Jenny usou o seu maior trunfo. — Eu tenho o corpo ideal para isso — ela afirmou. Chubb tinha que concordar que ela era bem nutrida. A- rald, não pela primeira vez naquela manhã, escondeu um sorriso. — Ela tem razão nesse ponto, Chubb — ele co- mentou, e o cozinheiro virou-se para o barão, mostrando estar de acordo. — O corpo é importante, senhor. Todos os gran- des cozinheiros costumam ser... um pouco cheios. Ele se virou para a moça ainda pensativo. Se os ou- tros queriam aceitar seus alunos num piscar de olhos era problema deles, mas cozinhar era uma coisa especial. — Will? Will de quê? — Martin perguntou exasperado, examinando as folhas de papel que continham os detalhes sobre os candidatos. Ele era secretário do barão há apenas cinco anos e por isso não conhecia a história de Will. Per- cebeu então que não havia um sobrenome nos documen- tos do garoto e ficou aborrecido por achar que tinha dei- xado passar esse erro. — Qual é o seu sobrenome, menino? — ele per- guntou com severidade. Will olhou para ele hesitante, odiando aquele mo- mento. — Eu... não tenho... — ele começou, mas feliz- mente o barão intercedeu. — Will é um caso especial, Martin — ele informou com calma e com um olhar que ordenava que o secretário esquecesse o assunto. Em seguida, virou-se para Will com um sorriso en- corajador. — A que escola quer se candidatar, Will? — ele perguntou. — Para a Escola de Guerra, por favor, meu senhor. — Will respondeu, tentando parecer confiante em sua escolha. O barão franziu a testa, e Will sentiu as esperanças desaparecerem. — Escola de Guerra, Will? Você não acha que é... um pouco pequeno para isso? — o barão perguntou com delicadeza. Will mordeu o lábio. Ele tinha se convencido de que, se desejasse muito, se acreditasse bastante em si mesmo, seria aceito, mesmo com suas falhas evidentes. — Eu ainda não passei pela “arrancada no cresci- mento”, senhor. — ele disse desesperado. — Todos di- zem isso. O barão esfregou a barba com o polegar e o indi- cador ao analisar o garoto parado diante dele e olhou para o mestre de guerra. — Rodney? — ele chamou. O alto cavaleiro se adiantou, examinou Will por al- guns instantes e lentamente balançou a cabeça. — Sinto dizer que ele é muito pequeno, meu se- nhor. — ele disse. Will sentiu um aperto no coração. — Sou mais forte do que pareço, senhor. — ele garantiu. Mas o mestre de guerra não se deixou convencer pela afirmação. Ele olhou para o barão, deixando claro que a situa- ção o desagradava, e balançou a cabeça. — Alguma outra opção, Will? — o barão pergun- tou com gentileza e preocupação. Will hesitou por um longo momento. Ele nunca tinha considerado outra escolha. — Escola de Cavalaria, senhor? — ele perguntou finalmente. A Escola de Cavalaria treinava e cuidava dos pode- rosos cavalos de batalha usados pelos cavaleiros do caste- lo. Will pensou que, pelo menos, seria uma ligação com a Escola de Guerra. Mas Ulf, o mestre da cavalaria, já estava balançando a cabeça antes mesmo de o barão pedir sua opinião. — Preciso de aprendizes, meu senhor, mas este é pequeno demais. Ele nunca vai conseguir controlar um de meus cavalos. Vão pisoteá-lo assim que olharem para ele. Naquele momento, Will só conseguia enxergar o barão através de uma névoa esfumaçada. Ele lutava de- sesperadamente para evitar que as lágrimas escorressem pelo rosto. Ser rejeitado pela Escola de Guerra, perder o controle e chorar como um bebê na frente do barão, dos mestres de ofício e de seus colegas seria muito humilhan- te. — Quais são as suas qualidades, Will? — o barão perguntou. Ele pôs a cabeça para funcionar. Não era bom nas aulas e em línguas como Alysson, não conseguia for- mar letras bonitas e perfeitas como George nem se inte- ressava por culinária como Jenny. — Você tem certeza disso, Halt? — Absoluta, meu senhor. O barão dobrou o papel com cuidado e o colocou na mesa. Ele tamborilou os dedos no tampo da mesa e disse: — Vou ter que pensar nisso durante a noite. Halt concordou e deu um passo para trás, pare- cendo desaparecer no fundo. Will o olhou com ansiedade, perguntando-se que informação a figura misteriosa tinha passado ao barão. Como a maioria das pessoas, Will tinha crescido acreditando que era melhor evitar os arqueiros. Eles faziam parte de um grupo secreto e místico, envolto em mistério e incerteza, o que, por sua vez, levava ao medo. Will não gostou da idéia de que Halt sabia algo a seu respeito — algo que era importante o bastante para chamar a atenção do barão naquele dia. A folha de papel continuava ali, torturantemente perto, no entanto impos- sível de ser alcançada. O garoto percebeu um movimento ao seu redor. O barão estava falando com outras pessoas na sala. — Felicitações aos que foram escolhidos hoje. Este é um grande dia para todos, portanto vocês têm o resto dele livre. Aproveitem. As cozinhas prepararão um ban- quete no seu alojamento e durante o resto da tarde vocês estão livres para visitar o castelo e a vila. Amanhã cedo, apresentem-se aos seus novos mestres de ofício. E, se quiserem aceitar um conselho, sejam pontuais — ele sor- riu para os quatro e então se dirigiu para Will com uma ponta de simpatia na voz. — Will, amanhã vou dizer o que decidi a seu res- peito — ele se virou para Martin e fez um gesto para que conduzisse os aprendizes para fora. — Obrigado a todos — ele disse, saindo do aposento pela porta atrás da mesa. Os mestres de ofício deixaram a sala e Martin con- duziu os protegidos até a saída. Eles conversavam entusi- asmados, aliviados e satisfeitos por terem sido aceitos pe- los mestres de sua escolha. Will ficou para trás, hesitando diante da folha de papel ainda na mesa. Ele olhou para ela por um instante como se pudesse, de alguma forma, enxergar as palavras escritas do outro lado. Teve a mesma impressão de que alguém o observava, como antes. E então se defrontou com os olhos escuros do arqueiro, que tinha ficado atrás da cadeira de encosto alto do barão, quase invisível em- baixo de seu estranho manto. Will estremeceu num repentino momento de medo e saiu apressado da sala. Já tinha passado muito da meia-noite. As tochas trêmu- las ao redor do pátio do castelo, já substituídas uma vez, estavam enfraquecendo novamente. Will tinha observado pacientemente o passar das horas, esperando o momento em que a luz estaria fraca e os guardas estariam bocejando na última hora de seu turno. O dia tinha sido um dos piores de que podia se lembrar. Enquanto os colegas comemoravam, aproveita- vam o banquete e se divertiam barulhentamente pelo cas- telo e pela vila, Will tinha se escondido no silêncio da flo- resta a cerca de 1 quilômetro dos muros do castelo. Ali, na sombra verde e fresca das árvores, ele tinha passado a tarde refletindo tristemente sobre o que tinha acontecido na Escolha, sofrendo com o desapontamento e imagi- nando o que o papel do arqueiro dizia. À medida que o longo dia se arrastava e as sombras começavam a ficar mais compridas nos campos abertos ao lado da floresta, ele tomou uma decisão. Tinha que saber o que estava escrito no papel. E seria naquela noite. Mas havia uma dúvida que o perturbava: ele não tinha certeza absoluta de que estava condenado a essa vi- da. Uma leve centelha de esperança ainda permanecia a- cesa. Talvez o barão cedesse. Se Will lhe explicasse sobre o pai e dissesse o quanto era importante ser aceito na Es- cola de Guerra, talvez houvesse uma pequena chance de que seu desejo fosse atendido. E então, depois de aceito, poderia mostrar como seu entusiasmo e dedicação fariam dele um aluno valioso até que se desenvolvesse fisicamen- te. Por outro lado, se fosse apanhado nos próximos minutos, não sobraria nem essa pequena chance. Ele não tinha idéia do que lhe fariam se fosse pego, mas estava certo de que não teria nada a ver com sua aceitação na Escola de Guerra. Ele hesitou, pois precisava apenas de mais uma pequena desculpa para agir. E foi o sargento que a ofere- ceu. Will escutou o guarda respirar fundo e bater as botas de encontro às pedras enquanto reunia seu equipamento. “Ele vai sair para fazer uma de suas rondas”, o garoto pensou. Normalmente, isso significava andar alguns me- tros ao redor da torre e na entrada e então voltar à posição original. A ronda servia mais para mantê-lo acordado do que outra coisa, mas Will percebeu que eles ficariam cara a cara nos próximos segundos se não fizesse alguma coisa. Rápida e facilmente, começou a escalar a parede. Ele subiu os primeiros 5 metros em questão de segundos, com braços e pernas estendidos como uma aranha gigan- te. Então, ao ouvir os passos pesados diretamente abaixo dele, Will ficou paralisado, colado à parede para que ne- nhum barulho alertasse o guarda. De fato, parecia que o sargento tinha ouvido algo. Ele parou bem embaixo de Will, espiou para dentro da noite, tentando ver além das sombras criadas pela Lua e das árvores que balançavam. Mas, como Will tinha perce- bido na noite anterior, as pessoas raramente olham para cima. O sargento, finalmente certo de que não tinha ou- vido nada importante, continuou a marchar lentamente ao redor da torre. Aquela era a oportunidade de que Will precisava. Ela também lhe permitia passar ao outro lado da torre e ficar exatamente embaixo da janela que queria. Ele encon- trou apoio para os pés e as mãos com facilidade e se mo- vimentou quase tão depressa quanto se estivesse andando, a cada instante atingindo um ponto mais alto da parede. Em certo momento, cometeu o erro de olhar para baixo. Apesar de se sentir à vontade em lugares altos, a sua visão oscilou levemente quando viu até onde tinha chegado e o quanto as pedras que revestiam o pátio esta- vam longe. O sargento, que ele conseguia ver outra vez, era somente uma figura minúscula lá embaixo. Will esfor- çou-se para dominar a leve tontura e continuou a escalada, talvez agora um pouco mais devagar e com mais cuidado do que antes. Will ficou um pouco nervoso quando, ao esticar o pé direito em busca de um novo apoio, o pé esquerdo es- corregou na borda arredondada dos enormes blocos de pedra e ele ficou pendurado apenas pelas mãos, procu- rando desesperadamente um local para apoiar os pés. Mas logo em seguida se recuperou e continuou a escalada. O garoto foi invadido por uma onda de alívio quando as mãos finalmente chegaram ao peitoril da janela e ele impulsionou o corpo para cima, pulando para dentro da sala. Como era de se esperar, o gabinete do barão estava deserto. A Lua jogava a sua luz pela janela imensa. E ali, na escrivaninha onde o barão a tinha deixado, estava a folha de papel que continha a resposta sobre o futuro de Will. Inquieto, ele olhou ao redor. A enorme cadeira de encosto alto do barão parecia uma sentinela a- trás da mesa. Os outros poucos móveis se erguiam escu- ros e inertes. Em uma das paredes, o retrato de um dos ancestrais do barão olhava acusador para o menino. Ele afastou esses pensamentos cheios de imagina- ção e foi rapidamente até a mesa, os pés se movimentando em silêncio dentro das botas de couro macio. A folha de papel, muito branca sob a luz da Lua, estava a seu alcance. “Olhe, leia e vá embora”, ele disse a si mesmo. Aquilo era tudo o que tinha a fazer. Will estendeu a mão em sua di- reção. Os seus dedos a tocaram. E uma mão disparou do nada, segurando seu pu- nho. O barão colocou o relatório numa mesa de canto e se inclinou para a frente. — Você está me dizendo que ele escalou a torre? — ele perguntou quase sem acreditar. — Sem cordas nem escadas, meu senhor. Escalou com a mesma facilidade com que o senhor monta seu ca- valo pela manhã. Com mais facilidade, eu diria — Halt completou com um leve sorriso. O barão franziu a testa. Ele estava um pouco acima do peso e, às vezes, precisava de ajuda para montar no cavalo depois uma noite maldormida. Estava claro que não tinha achado graça do comentário de Halt. — Ora, então — ele disse, olhando sério para Will — esse é um assunto grave. Will não disse nada. Não sabia se deveria ou não concordar. Qualquer uma das alternativas apresentava desvantagens, mas desejou que Halt não tivesse deixado o barão de mau humor ao lembrá-lo de seu excesso de peso. Isso certamente não facilitaria as coisas. — Então, o que devemos fazer com você, meu jo- vem Will? — o barão continuou. Ele levantou da cadeira e começou a andar pelo quarto. Will olhou para ele e tentou avaliar o seu humor. O rosto forte e barbado nada demonstrava. O barão pa- rou de andar e deslizou o dedo pela barba pensativo. — Diga-me, meu jovem Will, o que você faria no meu lugar? — ele perguntou sem olhar para o garoto an- gustiado. — O que você faria com um garoto que invade seu gabinete no meio da noite e tenta roubar um docu- mento importante? — Eu não estava roubando, meu senhor! A frase escapou da boca de Will antes que pudesse impedir. O barão se virou para ele com uma das sobran- celhas erguidas, parecendo não acreditar no que ouvia. — Eu só queria... ver o papel, só isso. — Talvez — o barão replicou ainda com a sobran- celha levantada. Mas você não respondeu minha pergunta. O que faria no meu lugar? Will abaixou a cabeça outra vez. Ele podia pedir misericórdia, pedir desculpas ou tentar explicar. Mas então endireitou os ombros e tomou uma decisão. Sabia quais seriam as consequências de ser apanhado e tinha escolhi- do correr o risco. Não tinha o direito de pedir perdão. — Meu senhor... — ele começou hesitante, saben- do que aquele era um momento decisivo em sua vida. O barão olhou para ele, ainda um pouco virado pa- ra a janela. — Sim? — ele perguntou e, de algum modo, Will encontrou forças para continuar. — Meu senhor, não sei o que faria em seu lugar. Sei que não há desculpas para minha atitude e vou aceitar qualquer castigo que decidir me dar. Enquanto falava, ele ergueu o rosto para olhar nos olhos do barão. E, ao fazer isso, notou quando o nobre olhou rapidamente para Halt. Era estranho: esse olhar pa- recia ser de aprovação e concordância, mas logo desapa- receu. — Alguma sugestão, Halt? — o barão perguntou num tom cuidadosamente neutro. Will olhou para o arqueiro. Como sempre, o rosto dele estava sério. A barba grisalha e os cabelos curtos fa- ziam que parecesse ainda mais descontente, mais ameaça- dor. — Talvez devêssemos mostrar o papel que ele es- tava tão ansioso para ver, meu senhor — ele sugeriu, ti- rando a folha de dentro da manga. O barão permitiu que um sorriso surgisse em seu rosto. — Não é má idéia — concordou. — Acho que, de certa forma, ele mostra o seu castigo, não é mesmo? Will olhou para os dois homens. Estava aconte- cendo alguma coisa que ele não entendia. O barão parecia pensar que o que ele tinha dito era um tanto divertido. Halt, por outro lado, não estava se divertindo nem um pouco. — Se essa é a sua opinião, meu senhor... — ele respondeu sem demonstrar emoções. O barão acenou para ele impaciente. — Não fique tão sério, Halt! Vamos lá, mostre-lhe o papel. O arqueiro atravessou o aposento e entregou a Will a folha pela qual ele tinha se arriscado tanto. A mão do — Bem, o que me diz, Will? — ele perguntou num tom encorajador. — Obrigado, barão... meu senhor — ele disse hesi- tante, respirando fundo. E se a brincadeira que o barão tinha feito antes, so- bre o bilhete conter o seu castigo, fosse mais séria do que tinha imaginado? Talvez ser indicado como aprendiz de Halt fosse o pior castigo que ele pudesse receber. Mas o barão não dava essa impressão. Parecia muito satisfeito com a idéia, e Will sabia que ele não era um homem cruel. O barão soltou um leve suspiro de prazer quando se sen- tou na poltrona, olhou para o arqueiro e fez um gesto na direção da porta. — Talvez você possa nos dar alguns minutos a sós, Halt? Eu gostaria de trocar uma palavrinha com Will em particular — ele solicitou. O arqueiro curvou-se sério. — Certamente, meu senhor — o arqueiro retrucou com a voz que saía do fundo do capuz. Ele passou por Will silenciosamente, como sempre, saiu da sala e foi até o corredor. A porta se fechou atrás dele quase sem nenhum barulho e Will estremeceu. Aque- le homem era sinistro! — Sente-se, Will — o barão convidou, indicando uma das poltronas baixas em frente à dele. Nervoso, Will sentou-se na beirada do móvel como que preparado para fugir. O barão notou a linguagem corporal e suspirou. — Você não parece muito satisfeito com minha decisão — ele falou parecendo decepcionado. A reação confundiu Will, pois jamais imaginou que uma figura poderosa como o barão iria se importar com o que um simples protegido pensasse de suas decisões. Ele não soube o que responder e, assim, ficou sentado em si- lêncio, até que finalmente o barão continuou. — Você preferiria trabalhar numa fazenda? — perguntou. Ele não conseguia acreditar que um garoto cheio de entusiasmo e energia como esse iria querer levar uma vida monótona e tranquila como aquela, mas talvez estivesse enganado. Will rapidamente mostrou que não era esse o caso. — Não, senhor! — ele disse depressa. — Bem, então teria preferido que eu encontrasse algum castigo pelo que fez? — o barão retrucou com um leve gesto interrogativo das mãos. Will começou a falar, mas percebeu que suas pala- vras talvez fossem ofensivas e parou. Com um gesto, o barão pediu que continuasse. — É que... Não sei bem se não foi isso o que fez, senhor — ele disse. Então, notando a expressão séria no rosto do ba- rão, se apressou em continuar. — Não sei muito sobre os arqueiros, senhor. E as pessoas dizem... Lentamente, ele parou de falar. Era óbvio que o barão tinha grande consideração por Halt, e Will achou que não seria muito educado revelar que as pessoas co- muns temiam os arqueiros e pensavam que eles eram fei- ticeiros. Ele percebeu que o barão acenava com a cabeça, e um olhar de compreensão substituiu a expressão confu- sa. — Entendo. As pessoas dizem que eles praticam magia negra, não é mesmo? — ele comentou e Will assen- tiu sem mesmo perceber que o fazia. — Diga-me, Will, você acha Halt uma pessoa as- sustadora? — Não, senhor! — Will respondeu depressa e en- tão, quando o barão o olhou com firmeza, acrescentou relutante: — Bem, talvez um pouquinho. O barão se recostou na poltrona e juntou os dedos das mãos. Agora que entendia o motivo da relutância do garoto, repreendeu-se mentalmente por não ter previsto essa reação. Afinal, o seu conhecimento sobre o grupo dos arqueiros era melhor do que se poderia esperar de um jovem rapaz que tinha acabado de completar 15 anos e ouvia os comentários supersticiosos habituais dos empre- gados do castelo. — Os arqueiros são um grupo de pessoas misteri- osas — ele afirmou. — Mas não há motivo para ter medo deles, a menos que você seja inimigo do reino. leve aceno, e então se virou para sair. A voz do barão o interrompeu. — Will, desta vez use as escadas. — Sim, meu senhor — ele replicou sério e um pouco confuso pelo jeito como o barão revirou os olhos para o céu e resmungou algo novamente. Desta vez, Will conseguiu entender algumas pala- vras. E teve a impressão de que era algo sobre piadas. Will saiu pela porta. As sentinelas ainda estavam posicionadas no alto das escadas, mas Halt tinha ido em- bora. Ou, pelo menos, parecia que sim. Com o arqueiro, nunca se podia ter certeza. Parecia estranho deixar o castelo depois de todos aque- les anos. Will se virou ao pé do morro com a pequena trouxa de pertences jogada por cima do ombro e olhou para os muros imensos. O Castelo Redmont dominava a paisagem. Cons- truído no alto de uma pequena colina, voltado para o oes- te, ele tinha uma estrutura triangular maciça e uma torre em cada um dos três cantos. No centro, protegido pelos muros altos, estavam o pátio do castelo e a fortaleza, uma quarta torre que se elevava acima das outras e que conti- nha a residência oficial do barão, seus aposentos particu- lares e os de seus oficiais superiores. O castelo tinha sido construído com minério de ferro — uma pedra quase in- destrutível — e, sob o sol fraco da manhã ou da tarde, parecia emitir um brilho interno vermelho. Era essa ca- racterística que lhe dava nome: Redmont — Red Moun- tain (Montanha Vermelha). Ao pé da colina e do outro lado do Rio Tarbus es- tava a vila de Wensley, um grupo confuso e alegre de ca- sas, uma pousada e as lojas dos artesãos — uma tonelaria, uma oficina de conserto de rodas, uma ferraria e uma sela- ria. Parte das terras ao redor tinha sido desmatada para proporcionar áreas de cultivo para os moradores da vila e evitar que os inimigos pudessem se aproximar sem ser vistos. Em épocas de perigo, os moradores conduziam seus rebanhos para o outro lado da ponte de madeira que cruzava o Tarbus e buscavam abrigo atrás dos muros ma- ciços do castelo, protegidos pelos soldados do barão e pelos cavaleiros treinados na Escola de Guerra de Red- mont. Escondido no bosque, o chalé de Halt ficava a certa distância do castelo e da vila. O sol acabava de se levantar acima das árvores quando Will se aproximou da cabana de madeira. Uma fina espiral de fumaça saía pela chaminé, e Will calculou que Halt já tinha acordado. Ele subiu na va- randa que havia num dos lados da casa, hesitou um mo- mento e então, respirando fundo, bateu com firmeza na porta. — Entre — respondeu uma voz vinda de dentro. Will abriu a porta e entrou no chalé. A cabana era pequena, mas surpreendentemente arrumada e confortável. Ele se viu na sala principal, uma combinação de sala de visitas e de jantar que tinha uma pequena cozinha numa das pontas, separada da área prin- cipal por um banco de pinho. Havia poltronas confortá- veis dispostas ao redor da lareira, uma mesa de madeira bem limpa e potes e panelas tão polidos que chegavam a brilhar. Havia até um vaso com flores silvestres coloridas Ele não tinha entendido e, apesar de perceber que não era o momento certo para fazer mais perguntas, não conseguiu evitar repetir, numa atitude um pouco rebelde: — É que eu fiquei imaginando o que os arqueiros faziam, só isso. Halt percebeu o tom em sua voz e se virou para ele com um brilho estranho no olhar. — Bom, então acho melhor eu lhe dizer. Os ar- queiros, ou melhor, os aprendizes fazem trabalho domés- tico. Will repetiu desajeitado. — Trabalho doméstico? Halt concordou com um gesto, parecendo muito satisfeito consigo mesmo. — Isso mesmo. Dê uma olhada por aí — ele disse mostrando o interior da cabana. — Está vendo algum empregado? — Não, senhor — Will respondeu devagar. — Pois é isso mesmo! Porque este não é um caste- lo enorme com uma equipe de empregados. Esta é uma cabana modesta, e precisamos buscar água, rachar lenha, varrer o chão e bater os tapetes. E quem você acha que vai fazer tudo isso, garoto? Will tentou pensar numa resposta diferente da que parecia óbvia. — Seria eu, senhor? — ele perguntou finalmente. — Acho que sim! — o arqueiro respondeu, des- crevendo em seguida uma lista de tarefas rispidamente. — O balde está aqui; o barril, lá fora, do lado da porta; a á- gua, no rio; a enxada, na varanda; a lenha, atrás da cabana. A vassoura está atrás da porta, e acho que você consegue ver onde está o chão. — Sim, senhor — Will respondeu, começando a arregaçar as mangas. Quando chegou, ele tinha visto o barril de água grande o bastante para as necessidades do dia. Calculou que precisaria de uns 20 baldes menores para enchê-lo. Com um suspiro, percebeu que teria uma manhã cheia. — Eu tinha esquecido como é divertido ter um a- prendiz — Will ouviu o arqueiro dizer satisfeito enquanto se servia de uma caneca de café e se sentava de novo. Will não conseguia acreditar que uma cabana tão pequena e aparentemente bem organizada iria exigir tanta limpeza e trabalho. Depois de encher o barril com 30 bal- des de água fresca do rio, ele rachou alguns troncos de madeira atrás da cabana e guardou a lenha numa pilha bem-arrumada. Varreu o chão e, quando Halt decidiu que o tapete da sala devia ser sacudido, ele o enrolou, levou para fora, pendurou sobre uma corda presa entre duas ár- vores e bateu nele com tanta força que levantou nuvens de poeira. De tempos em tempos, Halt olhava pela janela para animá-lo com comentários como “você esqueceu o lado esquerdo” ou “bata com mais força, garoto”. Depois de colocar o tapete no lugar, Halt resolveu que várias panelas não brilhavam o bastante. — Vamos ter que esfregar essas panelas um pouco mais — ele murmurou quase que para si mesmo. Will já tinha entendido que isso queria dizer que era ele quem ia ter que esfregar as panelas um pouco mais. Então, sem dizer nada, levou as panelas para a beira do rio, colocou água e areia nelas e esfregou o metal até ele brilhar. Enquanto isso, Halt se sentou numa cadeira de lona na varanda e leu uma pilha de comunicados oficiais. Will conseguia ver alguns e notou que vários exibiam timbres e brasões, mas a maioria tinha somente a marca de uma fo- lha de carvalho. Quando voltou da margem do rio, Will mostrou as panelas para Halt inspecionar. O arqueiro fez uma careta para o reflexo distorcido que viu na superfície brilhante. — Hum, nada mal. Posso ver o meu rosto nelas — ele disse. — Talvez isso não seja tão bom — acrescentou sem sorrir. Will não respondeu. Se o comentário tivesse vindo de outra pessoa, diria que tinha sido uma piada, mas com Halt era impossível saber. O arqueiro o analisou por al- guns segundos e então deu de ombros, fazendo um gesto para que Will guardasse as panelas na cozinha. Will estava atravessando a porta quando ouviu Halt falar atrás dele. — Hum, isso é esquisito. Will parou, achando que Halt estava falando com ele. era um caçador experiente demais para perseguir um urso sozinho — ele deu de ombros, como se quisesse afastar o pensamento. — Mas, por outro lado, a vida é cheia de surpresas e as pessoas cometem erros. Ele fez outro gesto na direção da cozinha para mostrar que a conversa tinha chegado ao fim. — Depois de guardar essas panelas, talvez você queira limpar a lareira — ele sugeriu. Will obedeceu, mas alguns minutos depois, quando passou na frente de uma das janelas perto da grande larei- ra, que ocupava quase toda a parede, olhou para fora e viu o arqueiro distraído batendo o relatório no queixo, com o pensamento muito longe dali. No final daquela tarde, Halt finalmente ficou sem tarefas para passar para Will. Ele viu as panelas brilhantes, a la- reira muito limpa, o chão bem varrido e o tapete sem po- eira. Ao lado da lareira havia uma pilha de lenha, e outra pilha enchia um cesto de vime ao lado do fogão. — Hum. Nada mal — ele elogiou. — Nada mal mesmo. Uma onda de prazer encheu Will ao ouvir o elogio moderado. — Sabe cozinhar, garoto? — Halt perguntou antes que Will pudesse se sentir muito satisfeito. — Cozinhar, senhor? — Will perguntou hesitante. Impaciente, Halt ergueu os olhos para o teto. — Por que os jovens sempre respondem uma per- gunta com outra pergunta? — ele quis saber. — Sim, co- zinhar. Preparar comida para que se possa comer, fazer refeições. Acho que você sabe o que é comida, não é? — ele acrescentou quando Will não disse nada. — S-sim — Will respondeu com cuidado. — Bem, como eu disse hoje de manhã, este não é um grande castelo. Se quisermos comer, nós temos que cozinhar — ele explicou. Lá estava a palavra “nós” de novo. Sempre que Halt dizia “nós precisamos”, parecia que a frase podia ser traduzida para “você precisa”. — Não sei cozinhar — Will confessou, e Halt es- fregou as mãos. — Claro que não. A maioria dos garotos não sabe. Vou ter que lhe ensinar. Venha. Ele seguiu na frente para a cozinha e apresentou Will aos mistérios da culinária: descascar e picar cebolas, escolher uma peça de carne, limpá-la e cortá-la em peda- ços iguais, cortar legumes, refogar a carne na panela quente e finalmente acrescentar uma boa dose de vinho tinto e alguns dos “ingredientes secretos” de Halt. O re- sultado foi um cozido cheiroso. Enquanto esperavam o jantar ficar pronto, eles se sentaram na varanda para conversar. Era o começo da noite. — O Grupo dos Arqueiros foi criado há mais de cento e cinquenta anos, durante o reinado do rei Herbert. Você sabe alguma coisa sobre ele? — Halt olhou para o menino sentado ao seu lado e esperou a resposta. Will hesitou. Ele se lembrava vagamente desse no- me, que ouvia nas aulas de História, na ala dos protegidos, mas tinha se esquecido dos detalhes. Mesmo assim, deci- — Acho que agora estou lembrando — Will co- mentou, tentando criar uma boa impressão. Halt olhou para ele com a sobrancelha erguida e continuou. — Naquela época, o rei Herbert achou que, para ficar seguro, o reino precisava de uma força de inteligência eficiente. — Uma força inteligente? — Will perguntou. — Não, de inteligência, embora seja útil que ela também seja inteligente. Inteligência é saber o que nossos inimigos, ou possíveis inimigos, estão pretendendo. Quando se sabe esse tipo de coisa com antecedência, te- mos condições de planejar o que fazer para impedi-los. Foi por esse motivo que ele criou os arqueiros, para serem os olhos e os ouvidos do reino e mantê-lo informado. — E como vocês fazem isso? — Will perguntou agora mais interessado. Halt notou a mudança de tom, e um rápido brilho de aprovação passou por seus olhos. — Nós mantemos olhos e ouvidos abertos. Patru- lhamos o reino e as fronteiras. Escutamos, observamos, informamos o rei. Will assentiu pensativo e perguntou: — É por esse motivo que vocês podem se tornar invisíveis? Novamente, Halt teve aquele sentimento de apro- vação e satisfação, mas garantiu que o menino não perce- besse. — Não podemos ficar invisíveis. As pessoas apenas pensam que podemos, pois fazemos de tudo para que não nos vejam. Para isso precisamos de muitos anos de apren- dizado e treinamento para que o resultado seja perfeito, mas você já tem algumas das habilidades necessárias. — Tenho? — Will perguntou surpreso. — Quando você atravessou o pátio do castelo na noite passada, usou as sombras e o movimento do vento para se esconder, não foi? — Sim. Nunca antes Will tinha encontrado alguém que re- almente entendesse sua capacidade de se mover sem ser visto. — Nós usamos os mesmos princípios: nos mistu- ramos ao cenário, nos escondemos nele, nos tornamos parte dele — Halt continuou. — Entendi — Will disse devagar. — O segredo está em garantir que ninguém mais faça isso. Por um momento, Will pensou que o arqueiro es- tivesse brincando, mas quando olhou para ele viu que es- tava sério como sempre. — Quantos arqueiros existem? Halt e o barão tinham falado mais de uma vez so- bre o Grupo dos Arqueiros, mas Will só tinha visto um, que era o próprio Halt. — O rei Herbert criou um grupo de 50, um para cada feudo. Eu fico aqui. Os meus colegas estão nos ou- tros 49 castelos em todo o reino. Além de oferecer o ser- viço de inteligência para proteção contra possíveis inimi- gos, os arqueiros ajudam a cumprir a lei. Nós patrulhamos o feudo e garantimos que as leis sejam obedecidas. — Pensei que o barão Arald fizesse isso — Will comentou. — O barão é um juiz. As pessoas levam suas quei- xas para ele para que ele as resolva. Os arqueiros fazem que a lei seja cumprida. Nós levamos as leis às pessoas. Se um crime foi cometido, procuramos provas. Somos as pessoas ideais para essa tarefa, pois geralmente passamos despercebidos. Investigamos para descobrir quem é o responsável. — E o que acontece depois? — Will quis saber. — Às vezes, comunicamos o que aconteceu ao ba- rão do feudo e ele manda prender e processar o culpado — Halt contou, dando de ombros. — Outras, se é um assunto urgente, nós... precisamos cuidar do assunto. — O que fazemos? — Will perguntou, e Halt o- lhou para ele demoradamente. — Pouca coisa quando somos aprendizes apenas há algumas horas — ele respondeu. — Os que são ar- queiros há vinte anos ou mais sabem o que fazer sem perguntar. — Oh! — Will murmurou, devidamente colocado em seu lugar. — Então, em tempos de guerra, formamos grupos especiais e orientamos os exércitos, reconhecemos o ter- Halt concordou com a cabeça outra vez, mas não disse nada. — E vocês dois dizem que tenho outras qualidades que fazem de mim a pessoa certa para ser um arqueiro... — É verdade. — Halt confirmou. — Bom, e quais são essas qualidades? Halt reclinou-se para trás e juntou as mãos atrás da cabeça. — Você é ágil, isso é bom para um arqueiro — ele começou. — E, como já comentamos, sabe se movimen- tar em silêncio. Isso é muito importante. Você é rápido e curioso... — Curioso? O que você quer dizer? — Está sempre fazendo perguntas e querendo sa- ber as respostas. Foi por isso que pedi ao barão para tes- tá-lo com aquela folha de papel. — Mas quando notou minha existência pela pri- meira vez? Quer dizer, quando pensou em me escolher? — Will quis saber. — Ah, acho que foi quando eu o vi roubar aqueles bolos da cozinha do mestre Chubb. Will olhou para ele surpreso. — Você me viu? Mas isso foi há séculos! — e en- tão uma idéia lhe ocorreu de repente. — Onde você esta- va? — Na cozinha. Você estava ocupado demais para me ver quando entrou. Will balançou a cabeça pensativo. Ele estava certo de que não tinha ninguém na cozinha, mas então se lem- brou de como Halt, envolto na capa, podia ficar quase in- visível. Agora ele percebia que a função de um arqueiro não era só cozinhar e limpar. — Fiquei impressionado com sua habilidade. Mas teve uma coisa que me impressionou ainda mais. — E o que foi? — Mais tarde, quando o mestre Chubb o interro- gou, vi que hesitou. Você ia negar que tinha pegado os bolos, mas então admitiu o roubo. Lembra? E ele bateu na sua cabeça com a colher de pau. Will sorriu e coçou a cabeça pensativo. Ainda con- seguia ouvir o barulho da colher em sua cabeça. — Eu me perguntei se devia ter mentido — ele admitiu, e Halt balançou a cabeça devagar. — Ah, não, Will. Se você tivesse mentido, nunca teria se tornado meu aprendiz. Ele se levantou, espreguiçou-se e se virou para a cozinha, onde o cozido fervia no fogão. — Agora vamos comer. Horace soltou a mochila no chão do dormitório e se jo- gou na cama, gemendo aliviado. Todos os músculos de seu corpo doíam. O garoto não tinha idéia de que podia se sentir tão dolorido, tão esgotado, e de que existiam tantos músculos que podiam ficar daquele jeito. Ele se perguntou, não pela primeira vez, se conseguiria atravessar os três anos de treinamento da Escola de Guerra. Era cadete há menos de uma semana e já estava se sentindo um trapo. Quando se candidatou para a Escola de Guerra, Horace tinha uma imagem vaga de cavaleiros de armadu- ras brilhantes lutando, enquanto pessoas comuns olhavam admiradas. Várias dessas pessoas eram garotas bonitas; Jenny, sua companheira no prédio dos protegidos, se des- tacava entre elas. Para ele, a Escola de Guerra era um lu- gar de aventuras e magia, e os cadetes que dela participa- vam eram pessoas que os outros respeitavam e invejavam. A realidade era bem diferente. Até aquele momen- to, os cadetes da Escola de Guerra se levantavam antes do amanhecer e passavam uma hora antes do café-da-manhã nha sido visto passando um bilhete na aula de tática. Infe- lizmente, a nota era uma caricatura desrespeitosa do ins- trutor de nariz comprido. Infelizmente também, o garoto era um desenhista habilidoso e o retrato foi reconhecido imediatamente. Como resultado, Horace e a classe tinham sido convidados a encher as mochilas e começar a correr. Lentamente, ele começou a se afastar dos outros garotos enquanto eles subiam a primeira colina com es- forço. Depois de alguns dias, o regime rígido da Escola de Guerra estava começando a mostrar resultados em Hora- ce. Além de suas habilidades naturais de atleta, seu prepa- ro físico estava melhor do que nunca. Apesar de não per- ceber, ele corria com equilíbrio e elegância em ocasiões em que os outros mostravam dificuldades. Pouco tempo depois, Horace já estava bem adiantado e continuava a subir de cabeça erguida, respirando tranquilamente. Até aquele momento não havia tido muitas chances de co- nhecer os colegas. Ele os tinha visto pelo castelo ou na vila nos anos passados, mas crescer no prédio dos prote- gidos o havia isolado da vida diária normal do castelo e da vila. As crianças da ala dos protegidos sentiam-se diferen- tes das outras, e os meninos e meninas que ainda tinham seus pais pensavam da mesma forma. A cerimônia da Escolha acontecia somente para os protegidos. Horace era um dos 20 novos recrutas daquele ano, e os demais tinham sido escolhidos pelo processo normal, isto é, influência dos pais, apoio ou recomendação de professores. Como resultado, ele era considerado uma curiosidade, e os outros meninos não tinham dado sinais de amizade nem feito nenhuma tentativa de conhecê-lo. “Mesmo assim”, ele pensou sorrindo com uma satisfação um pouco triste, “venci todos na corrida”. Nenhum dos outros tinha voltado ainda. Tinha mesmo superado todos eles. A porta no fim do dormitório se abriu com violên- cia e botas pesadas fizeram barulho no piso de madeira. Horace apoiou o corpo num cotovelo e gemeu em silên- cio. Bryn, Alda e Jerome marcharam em sua direção entre as fileiras de camas arrumadas com perfeição. Eles eram cadetes do 2° ano e pareciam ter decidido que sua principal função na vida era atormentar Horace. Depressa, ele girou as pernas para um dos lados da cama e se levan- tou, mas não foi rápido o bastante. — O que você está fazendo deitado na cama? — Alda gritou. — Quem disse que é hora de dormir? Bryn e Jerome sorriram, pois gostavam do jeito de falar do colega. Eles não tinham muita imaginação, mas compensavam a falta de criatividade com uma grande confiança na sua força física. — Vinte flexões! — Bryn ordenou. — Agora! Horace hesitou um momento. Ele era bem maior do que qualquer um dos garotos. Se houvesse um con- fronto, tinha certeza de que poderia vencê-los. Mas eles eram três e, além disso, tinham a autoridade da tradição que os apoiava. Até onde sabia, tratar os cadetes do 1° ano dessa forma era prática normal, e ele podia imaginar a zombaria dos colegas se reclamasse para algum superior. “Ninguém gosta de chorões”, disse a si mesmo enquanto se abaixava. Mas Bryn percebeu a hesitação e talvez até um brilho passageiro de revolta em seu olhar. — Trinta flexões! — ele disparou. — Já! Com os músculos doloridos, Horace se esticou no chão e começou os exercícios. Imediatamente, sentiu um pé nas costas empurrando-o para baixo quando tentava se erguer. — Vamos, nenê! — Jerome zombou. — Um pou- co mais de força! Horace conseguiu levantar o corpo, pois Jerome sabia como manter exatamente a quantidade de pressão ideal. Um pouco mais de força, e Horace nunca seria ca- paz de completar o exercício. Mas o cadete do 2° ano também o empurrou para baixo quando Horace ia reinici- ar, o que tornou o exercício ainda mais difícil. Ele teve que fazer força para o alto ao mesmo tempo em que abai- xava o corpo, pois do contrário seria jogado no chão. Gemendo, terminou a primeira flexão e começou outra. — Pare de chorar, bebê! — Alda gritou para ele antes de se aproximar da cama de Horace. — Você fez a cama hoje? — ele gritou. Horace, lutando contra a pressão do pé de Jerome, só conseguiu grunhir uma resposta. — Está na hora de você conhecer as armas de que vai precisar — Halt informou. Eles tinham tomado o café-da-manhã muito antes do nascer do sol, e Will acompanhou Halt até a floresta. Andaram por mais ou menos meia hora, e Halt aproveitou para mostrar a Will como deslizar de uma sombra até ou- tra fazendo o menor barulho possível. Will era um bom aluno na arte de se mover sem ser visto, como Halt já ti- nha observado, mas tinha muito a aprender até reunir to- das as habilidades de um arqueiro. Mesmo assim, Halt es- tava satisfeito com o progresso do garoto, que tinha von- tade de aprender, especialmente quando se tratava de au- las em campo como aquelas. O assunto era um pouco diferente quando se trata- va de tarefas menos interessantes, como leitura de mapas e desenho de gráficos, pois Will costumava passar por ci- ma de detalhes que considerava sem importância. — Você daria mais importância a essas habilidades se estivesse planejando o caminho a ser seguido por um exército e se esquecesse de falar da existência de um cór- rego no trajeto. — Halt comentou com seriedade. Eles pararam numa clareira e Halt deixou cair no chão uma pequena sacola que estava escondida debaixo de sua capa. Will olhou a bolsa desconfiado. Quando falaram em armas, o garoto pensou em espadas e lanças, as armas usadas pelos cavaleiros. Aquele pequeno pacote não tinha nada a ver com o que ele imaginara. — Que tipos de armas nós usamos? Espadas? — Will perguntou com os olhos grudados na sacola. — As principais armas de um arqueiro são o se- gredo, o silêncio e a habilidade de agir sem ser visto. Mas, se elas falharem, talvez você tenha que lutar. — E então usamos uma espada? — Will perguntou esperançoso. Halt se ajoelhou e abriu a trouxa. — Não, nós usamos um arco — ele disse, colo- cando o objeto aos pés do menino. A primeira reação de Will foi de desapontamento. As pessoas usavam arcos para caçar. Todo mundo tinha um arco. Era mais um instrumento do que uma arma. Quando criança, ele mesmo construíra vários curvando galhos de árvore verdes. Então, como Halt não disse nada, ele olhou o objeto com mais atenção. Aquele não era um galho curvado. A arma era diferente de tudo o que Will já tinha visto. Quase todo o arco formava uma curva comprida, como todos os outros, mas suas pontas eram viradas na direção contrária. Will, como a maioria das pessoas do reino, estava acostumado aos arcos normais, que se cur- vavam numa linha contínua, mas esse era bem mais curto. — Ele se chama arco recurvo — Halt informou, percebendo a curiosidade do garoto. — Você ainda não tem força suficiente para lidar com um arco comum, por- tanto este vai lhe dar a velocidade e o impulso necessários. Aprendi a fazê-los com os temujais. — Quem são os temujais? — Will quis saber, des- viando o olhar do arco estranho. — São guerreiros corajosos do leste e também os melhores arqueiros do mundo — Halt contou. — Você lutou contra eles? — Contra... e com eles durante algum tempo — Halt disse. — E pare de fazer tantas perguntas. Outra vez, Will olhou para o arco, que estava na sua mão. Agora que estava se acostumando com seu for- mato diferente, viu que era uma arma muito bem-feita. Muitas tiras de madeira de grossuras diferentes tinham si- do coladas umas às outras, e seus veios corriam em várias direções. Era isso que formava a curva dupla do arco, como se diferentes forças empurrassem uma às outras, dando aos pedaços do objeto uma forma cuidadosamente planejada. Talvez aquela fosse mesmo uma arma, afinal. — Posso usá-lo? — Se você acha que é uma boa idéia — Halt con- cordou com um gesto de cabeça.
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