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Guias e Dicas
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joseph - ratzinger - introdução - ao - cristianismo, Notas de estudo de Teologia

joseph ratzinger - introducao ao cristianismo

Tipologia: Notas de estudo

2014

Compartilhado em 09/01/2014

h-r-ramos-6
h-r-ramos-6 🇧🇷

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Baixe joseph - ratzinger - introdução - ao - cristianismo e outras Notas de estudo em PDF para Teologia, somente na Docsity! 1 JOSEPH RATZINGER INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO Preleções sobre o Símbolo Apostólico HERDER SÃO PAULO 1970 2 Os números entre colchetes [n] indicam o início da página na edição portuguesa de Herder – São Paulo, 1970. Foram acrescentados a esta edição eletrônica para possibilitar a citação acadêmica da obra. Os títulos que precedem imediatamente ao número pertencem à página em questão. As palavras hifenizadas entre páginas diferentes foram consideradas da página anterior. A numeração das páginas do original tem início com o prefácio. Os números do índice correspondem ao original. Versão brasileira de Padres José Wisniewski Filho, S.V.D., do original alemão Einführung in das Christentum, © 1968 by Kösel-Verlag, München. Nihil obstat: P. Frei Arnaldo Vicente Belli, Ofmcap. Censor São Paulo, 26 de outubro de 1970 Imprimatur † J. Lafayette, Vigário Geral São Paulo, 27 de outubro de 1970 © EDITORA HERDER – SÃO PAULO – 1970 5 CAP II – Duas Questões Fundamentais do Artigo sobre o Espírito Santo e sobre a Igreja 291 1. "A Igreja santa, católica". 291 2. "Ressurreição da carne". 299 6 PREFÁCIO [1]* Qual é, afinal, o conteúdo e o sentido da fé cristã? Eis uma pergunta que, hoje em dia, está cercada de uma névoa de incerteza mais pesada do que em qualquer outro momento da história. O observador do movimento teológico do último século que não seja do número daqueles levianos que sempre julgam melhor o novo, sem se dar ao trabalho de analisar, poder-se-ia sentir lembrado da velha estória do "Joãozinho feliz". Era uma vez, assim reza a lenda, um Joãozinho possuidor de uma riquíssima pepita de ouro. Mas, feliz e comodista, julgou-a pesada demais, trocando-a por cavalo; o cavalo por uma vaca, a vaca foi barganhada por um ganso e o ganso por uma pedra de amolar; finalmente a pedra foi lançada ao rio, sem que o dono se achasse muito prejudicado. Pelo contrário, acreditou ter finalmente conquistado o dom mais precioso da liberdade completa: livre da sua pepita, livre do cavalo, da vaca, do ganso e da pedra de afiar. Quanto tempo teria durado o seu fascínio? Quão tenebroso lhe foi o despertar na estória de sua presumida libertação? A fábula silencia sobre isso, deixando-o por conta da fantasia de cada leitor. O cristão hodierno é avassalado, não raras vezes, por questões como: a nossa teologia dos últimos anos não teria enveredado por um caminho parecido? Não teria minimizado a exigência da fé, sentida como pesada demais, interpretando-a, gradativamente, em sentido sempre mais largo; sempre apenas o suficiente para poder arriscar o próximo passo? E o pobre Joãozinho, o cristão, que [2] se deixou levar, confiante, de interpretação em interpretação, não acabará detendo entre as mãos, em lugar da pepita de ouro, uma simples pedra de amolar, que poderá sossegadamente jogar no fundo de um rio? Certamente, tais perguntas são injustas se excessivamente generalizadas. Porquanto, para ser justo, não se poderá simplesmente afirmar que a "teologia moderna" em geral entrou por um caminho semelhante. Contudo, muito menos se poderá negar que certa mentalidade largamente espalhada apóia uma onda que, de fato, conduz do ouro à pedra de amolar. Claro que é impossível reagir contra essa tendência, por um simples agarrar-se à pepita de ouro de fórmulas consagradas do passado que, em tal caso, continuariam sendo um peso, como qualquer pedaço de metal, em vez de conferir a possibilidade de uma verdadeira liberdade, pelo dinamismo que lhes é inerente. Aqui se encaixa a intenção deste livro: ele pretende ajudar a compreender de modo novo a fé como possibilidade de um verdadeiro humanismo no mundo hodierno; deseja analisá-la, sem trocá-la por uma pura dissertação que dificilmente encobriria seu vazio espiritual completo. O livro nasceu de preleções que proferi no semestre de verão de 1967, em Tübingen, diante de ouvintes de todas as faculdades. O que Karl Adam, há quase meio século, realizara magistralmente nessa Universidade com o seu "Essência do Catolicismo", deveria novamente ser tentado agora nas circunstâncias modificadas da geração atual. O texto foi convenientemente reformulado, quanto à linguagem, com vistas a uma publicação em forma de livro. Contudo, não mudei nem a estrutura, nem a extensão, limitando-me a acrescentar as achegas científicas estritamente necessárias para indicar o instrumental de que lancei mão na preparação das preleções. * Os números entre colchetes [n] referem-se ao início das páginas da edição portuguesa (Herder – São Paulo, 1970). 7 A dedicatória do livro, aos ouvintes das diversas etapas do meu magistério acadêmico, visa já a exprimir a gratidão que sinto para com o interesse e a participação dos estudantes, elementos [3] decisivos dos quais surgiu o presente ensaio. Também não me posso furtar ao reconhecimento para com o editor, Dr. Seinrich Wild, sem cujo empenho paciente e persistente dificilmente me teria resolvido a uma aventura que um tal trabalho, sem dúvida, representa. Finalmente quero agradecer a todos os colaboradores que contribuíram não pouco para a feitura desta obra. Tübingen, verão de 1967. Joseph Ratzinger 10 é, os homens sem fé, seriam, pelo contrário, completamente ignorantes, os que devem ser instruídos sobre o que lhes é desconhecido. E ao palhaço, em si, bastar-lhe-ia mudar de roupagem, retirar a [9] maquilagem – e tudo estaria em ordem. Mas, por acaso a questão é tão simples assim? Bastar-nos-ia um simples apelo ao aggiornamento, uma mera retirada da maquilagem e uma reformulação em termos de linguagem do mundo ou de um cristianismo arreligioso para recolocar tudo nos eixos? Bastará uma mudança espiritual ou metafórica de vestes para que os homens acorram animados e ajudem a apagar o incêndio que o teólogo afirma estar lavrando com sério perigo para todos? Vejo-me compelido a afirmar que a teologia de fato desmaquilada e revestida de moderna embalagem profana, tal como hoje surge em muitos lugares, torna muito simplória essa esperança. Sem dúvida cumpre reconhecer: quem tenta explicar a fé no meio de homens mergulhados na vida moderna e imbuídos da moderna mentalidade, de fato pode ter a impressão de ser um palhaço ou alguém surgido de um antigo sarcófago, que penetrou no mundo hodierno, revestido de trajes e pensamentos da antiguidade, incapaz de compreender este mundo e de ser por ele compreendido. Todavia, se quem tentar anunciar a fé exercer bastante autocrítica, em breve notará não se tratar apenas de uma forma, de uma crise do revestimento em que a teologia se apresenta. Na estranha aventura teológica frente aos homens de hoje, quem tomar a sério a sua tarefa há de reconhecer e experimentar não só a dificuldade da interpretação, mas também a insegurança da própria fé, o poder arrasador da descrença dentro de sua própria vontade de crer. Por isso quem tentar honestamente prestar contas da fé cristã a si e a outros, aprenderá, a duras penas, não ser ele em absoluto o mascarado ao qual bastaria depor o disfarce para poder ensinar eficazmente aos outros. Compreenderá que a sua situação não se diversifica muito da situação dos outros, como talvez inicialmente tivesse pensado. Terá consciência de que de ambos os lados estão presentes as mesmas forças, muito embora de maneiras diversas. [10] Para começar, no crente existe a ameaça da incerteza capaz de revelar dura e subitamente, em momentos de tentação, a fragilidade de tudo o que, em geral, lhe parece tão evidente. Esclareçamo-lo com alguns exemplos. Teresa de Lisieux, a amável santinha, aparentemente tão isenta de complexidades e de problemas, cresceu em uma vida de completa segurança religiosa. Sua vida, do começo ao fim, foi tão perfeitamente e minuciosamente marcada pela fé na Igreja, que o mundo invisível se tornara parcela do seu cotidiano; ou antes, o próprio cotidiano seu, parecendo quase tangível e impossível de ser eliminado de sua vida. Para Teresinha, "religião" era, de fato, um dado prévio e natural de sua existência diária; ela manipulava a religião como nós somos capazes de manejar as trivialidades concretas da vida. Mas justamente ela, aparentemente tão resguardada numa segurança sem risco, deixou-nos comovedoras manifestações do que foram as últimas semanas do seu Calvário, manifestações que, mais tarde, suas irmãs, assustadas, atenuariam em seu legado literário e que só agora vieram à tona nas novas edições autênticas e literais de sua obra. Assim, por exemplo, quando ela afirma: "Acossam-me as reflexões dos piores materialistas." Sente a inteligência torturada por todos os argumentos possíveis contra a fé; o sentimento da fé parece desaparecido; ela sente-se transportada para dentro da 11 "pele dos pecadores"2. Isto é, em [11] um mundo que parece completamente sólido e sem brechas, torna-se visível a alguém o abismo que espreita a todos – também a ele – sob a crosta firme das convenções que sustentam a fé. Em tal situação não está mais em jogo apenas isto ou aquilo – assunção de Maria ou não; confissão desse ou daquele modo –, tudo coisas que se tornam completamente irrelevantes, porquanto trata-se realmente do todo, do conjunto, tudo ou nada. É a única alternativa que parece restar, e em parte alguma surge um pedaço de chão firme ao qual se agarrar nessa queda vertiginosa para o abismo. Somente o báratro hiante e sem fundo do nada é o que se percebe, onde quer que se dirijam os olhares. Paulo Claudel evoca em um quadro grandioso e convincente essa situação do crente, na abertura do seu "Soulier de Satin". Um missionário jesuíta, irmão do herói Rodrigo, o homem mundano, aventureiro errante e incerto entre Deus e o mundo, é representado como náufrago. Sua nau foi afundada por piratas. Ele mesmo, amarrado a uma trave do barco afundado, vaga nesse pedaço de madeira, pelas águas tormentosas do oceano3. O drama principia com o seu derradeiro monólogo: "Senhor, agradeço-te por me teres amarrado assim. Por vezes sucedeu-me achar difíceis os teus mandamentos; senti desnorteada, fracassada a vontade diante dos teus mandamentos. Mas hoje não poderia estar mais fortemente atado a ti, do que o estou; e muito embora meus membros se movam um sobre o outro, nenhum deles é capaz de afastar- se um pouco de ti. E assim realmente estou preso à cruz; e a cruz, à qual me vejo atado, não está presa a nada mais. Ela voga pelo mar"4. [12] Atado à cruz – e a cruz ligada a nada, vogando sobre o abismo. Dificilmente se poderia descrever mais acurada e exatamente a situação do crente hodierno. Apenas um madeiro oscilante sobre o nada, um madeiro desatado parece sustê-lo e tem-se a impressão de ser possível adivinhar o instante em que tudo irá submergir. Um simples madeiro solitário liga-o a Deus; mas, sem dúvida, liga-o inevitavelmente e, no final de tudo, ele tem a certeza de que esse madeiro é mais forte do que o nada que fervilha debaixo dele, esse nada que, apesar dos pesares, continua sendo a força ameaçadora propriamente dita do seu presente. O quadro apresenta, além disso, uma dimensão mais vasta que, aliás, me parece a mais importante. Pois esse náufrago jesuíta não está sozinho; nele se encontra como que evocada a sorte do seu irmão; nele está presente o destino do irmão, daquele irmão que se considera descrente, que deu as costas a Deus, por não considerar tarefa sua a espera, mas "a posse do atingível... como se este pudesse estar em parte outra do que onde tu, ó Deus, estás". 2 Confira-se a síntese informativa da Herderkorrespondenz 7 (1962/3, 561-565 sob o título "Die echten Texte der kleinen heiligen Thérese" (Textos autênticos de Sta. Teresinha). As nossas citações encontram-se à pág. 564. Sua fonte principal é o artigo de M. MORÉE, "La table des pécheurs," em Dieu vivant No. 24,13-104. MORÉE refere-se sobretudo às pesquisas e edições de A. COMBES, principalmente Le probleme de I' "Histoire d'une âme et des oeuvres completes de Ste. Thérese de Lisieux, Paris, 1950. Outras fontes: A. COMBES, "Theresia von Lisieux", em Lexikon für Theologie und Kirche (LthK) X,102-104. – De A. COMBES foi traduzido por mim Sainte Thérese de Lisieux et sa Mission, publicado pela editora "Lar Católico" sob o título "Uma Santa na era atômica" (1961), onde se podem conferir os conceitos aqui abordados, sobretudo à pág. 125; 138 e seguintes e 174 (Nota do tradutor). 3 O que evoca impressionantemente o texto de Sab 10,4 tão importante para a teologia da cruz da Igreja antiga: "à terra inundada, salvou-a a Sabedoria, dirigindo o justo num lenho desprezível". Sobre este texto na teologia patrística confira-se H. RAHNER, Symbole der Kirche, Salzburgo, 1964, 502-547. 4 Conforme o texto alemão de H. U. VON BALTHASAR, Salzburgo, 1953, 16. 12 É dispensável acompanharmos a trama da concepção claudeliana: a mestria com que conserva como fio condutor o jogo dos dois destinos aparentemente contraditórios até ao ponto em que a sorte de Rodrigo finalmente se toca com a do irmão, quando o conquistador termina como escravo em um navio, devendo dar-se por muito feliz, ao ser levado por uma velha freira que, de contrapeso, leva uma caçarola e alguns trapos. Aliás, deixando de lado o símile, podemos voltar à nossa própria situação e dizer: o crente é capaz de realizar-se em sua fé somente sobre o oceano do nada; e o oceano da incerteza foi-lhe destinado como único lugar possível de sua fé. Apesar disso, não se pode considerar o descrente, numa falha evidente de dialética, apenas como um incréu. Assim como até agora reconhecemos que o crente não vive sem problemática, mas sempre ameaçado pela queda no nada, assim é forçoso admitir [13] que também o incréu não representa absolutamente uma existência fechada e coesa em si mesma. Por brutal que seja o seu comportamento de ferrenho positivista que já de há muito deixou para trás as tentativas e os embates supranaturais, vivendo apenas no âmbito do que é diretamente certo – jamais o abandonará a secreta insegurança de se o positivismo está realmente com a última palavra. O crente vê-se sufocado pela água salgada da dúvida que o oceano lhe lança, sem cessar, à boca; do mesmo modo existe a dúvida do incrédulo quanto à sua descrença, quanto à totalidade do mundo que ele se resolveu a declarar como o todo. Jamais conseguirá certeza plena sobre a globalidade do que viu e declarou como o todo, mas continuará sob a ameaça de que – quem sabe? – a fé venha a representar e a afirmar a realidade. Portanto, como o crente se sabe ameaçado sem cessar pela descrença, obrigado a ver nela a sua perene provação, assim a fé representa a ameaça e a tentação do incréu, dentro do seu universo aparentemente fechado e completo. Em uma palavra, não existe escapatória ao dilema da existência humana. Quem deseja fugir à incerteza da fé, há de experimentar a incerteza da descrença que, por sua vez, jamais conseguirá resolver sem sombra de dúvida a questão de se, por acaso, a fé não se cobre com a verdade. Somente na recusa revela-se a irrecusabilidade da fé. Talvez venha a propósito aduzir neste lugar uma estória judaica escrita por Martin Buber; nela aparece com clareza o citado dilema da existência humana. "Um dos sequazes do iluminismo, homem estudado, ouvira falar de Berditschewer. Foi-lhe à procura com o fito de comprar uma discussão, como era do seu feitio, e arrasar suas provas ultrapassadas da verdade da fé. Ao entrar no quarto do Zaddik viu-o, de livro à mão, indo e vindo, mergulhado em entusiásticas reflexões. Nem pareceu dar pela chegada do visitante. Finalmente deteve-se, olhou para ele superficialmente e disse: "E contudo, talvez seja verdade." O sábio debalde tentou fincar pé, defendendo sua dignidade [14] própria. Não o conseguiu. Sentiu os joelhos chocalharem, tão terrível era o aspeto do Zaddik, tão horrível de se ouvir a sua singela frase. Mas o rabi Levi Jizchak voltou-se completamente para ele e lhe disse, sereno: "Meu filho, os grandes da Torá com os quais disputaste, desperdiçaram palavras; tu te riste deles, ao te afastares. Não foram capazes de colocar Deus e o seu reino sobre a mesa, diante de ti; eu também sou incapaz. Mas, meu filho, reflete: talvez seja verdade." O iluminista concentrou todas as forças para revidar; mas aquele terrível "talvez" a ecoar sem 15 espaço da vida parece demarcado pelo espaço de sua visão e percepção. Mas Deus jamais aparece e nunca pode aparecer nesse espaço de sua visão e percepção, determinantes da localização existencial do homem, por mais que tal espaço seja sempre ampliado. Acredito, [18] o que é importante, que, em princípio, essa declaração se encontra no Antigo Testamento: Deus não é apenas aquele que, agora e de fato, se acha fora do campo visual, podendo, contudo, ser percebido, se fosse possível avançar; não, ele é aquele que se encontra essencialmente fora deste campo, por mais que nossa área visual se alargue. Com isso, porém, só se revela um primeiro esboço da atitude expressa pela palavrinha "creio". Ela conota um homem que não considera como o máximo a totalidade de suas capacidades, o ver, o ouvir e o perceber; que não considera o espaço do seu universo balizado pelo que se encerra no seu campo visual, auditivo, perceptivo, mas procura uma segunda forma de acesso à realidade, forma essa que chega a encontrar aí a abertura essencial de sua concepção do mundo. Sendo assim, a palavrinha "credo" encerra uma opção fundamental face à realidade como tal, não conotando apenas a constatação disso ou daquilo, mas apresentando-se como uma forma fundamental de comportamento para com o ser, para com a existência, para com o que é próprio da realidade, para com a sua globalidade. Trata-se de uma opção que considera o invisível, o absolutamente incapaz de alcançar o campo visual, não como o irreal, mas, pelo contrário, como o real propriamente dito, que representa o fundamento e a possibilidade da restante realidade. É a opção de aceitar esse algo que possibilite a realidade restante a proporcionar ao homem uma existência verdadeiramente humana, a torná-lo possível como homem e como ser humano. Dito ainda em outros termos: fé significa o decidir-se por um ponto no âmago da existência humana, o qual é incapaz de ser alimentado e sustentado pelo que é visível e tangível, mas que toca a orla do invisível de modo a torná-lo tangível e a revelar-se como uma necessidade para a existência humana. Tal atitude certamente só se conseguirá através daquilo que a linguagem bíblica chama de "volta" ou "conversão". [19] A tendência natural do homem leva-o ao visível, ao que se pode pegar e reter como propriedade. Cumpre-lhe voltar-se, internamente, para ver até que ponto abre mão do que lhe é próprio, ao deixar-se arrastar assim para fora da sua gravidade natural. Deve converter-se, voltar-se para conhecer quão cego está ao confiar apenas no que os olhos enxergam. A fé é impossível sem essa conversão da existência, sem essa ruptura com a tendência natural. Sim, a fé é a conversão, na qual o homem descobre estar seguindo uma ilusão ao se comprometer apenas com o palpável e sensível. E aqui está a razão mais profunda por que a fé não é demonstrável: é uma volta, uma reviravolta do ser, e somente quem se volta, recebe-a. E, porque nossa tendência não cessa de arrastar-nos para outro rumo, a fé permanece sempre nova em seu aspecto de conversão ou volta, e somente através de uma conversão longa como a vida é que podemos ter consciência do que vem a ser "eu creio". A partir daí é compreensível que a fé representa algo de quase impossível e problemático não apenas hoje e nas condições específicas da nossa situação moderna, mas, quiçá, de modo um tanto menos claro e identificável, já representou, sempre, o salto por cima de um abismo infinito, a saber, da contingência que esmaga o homem: 16 a fé sempre teve algo de ruptura arriscada e de salto, por representar o desafio de aceitar o invisível como realidade e fundamento incondicional. Jamais a fé foi uma atitude conatural conseqüente do declive da existência humana; ela foi sempre uma decisão desafiadora da mesma raiz da existência, postulando sempre uma volta, uma conversão do homem, só possível na escolha. 3. O dilema da Fé no mundo de hoje Tomada clara a aventura encerrada no seio da fé, é inevitável uma nova consideração, na qual se revela a agudeza [20] especial da dificuldade de crer em relação ao homem de hoje. Ao abismo do "visível" e do "invisível" acrescenta-se, aumentando a dificuldade, o báratro do "outrora" e do "hoje". O paradoxo fundamental, já por si inerente à fé, aguça-se pelo fato de apresentar-se a fé em roupagem de outrora, e até de identificar-se com o passado, com a forma de vida e de existência de outrora. Todas as atualizações, chamem-se "desmitização" intelectual- acadêmica ou aggiornamento eclesial-pragmático, em nada mudam a situação. Pelo contrário: tais esforços reforçam a suspeita de apresentar-se aqui, nervosamente, como hodierno, o que, na verdade, é o passado. Essas tentativas de atualização trazem bem à tona da consciência até que ponto é "de ontem" aquilo que nos é apresentado; e a fé, deixando de parecer um salto temerário, semelha-se a um salto desafiador da generosidade do homem, do trampolim da aparente totalidade do mundo visível para o aparente nada do invisível e incompreensível. Parece, antes, uma pretensão, um atrevimento, querer comprometer o hoje com o ontem, evocando-o como perpetuamente válido. E quem desejará fazê-lo em uma época na qual, em lugar da idéia de "tradição" se colocou o conceito de "progresso"? De passagem, topamos aqui uma característica da moderna conjuntura, não sem importância para o nosso problema. Em passadas constelações espirituais o conceito de "tradição" conotava determinado programa; surgia como elemento protetor em que o homem podia confiar; podendo apelar para a tradição, havia certeza de encontrar-se no lugar certo. Hoje predomina o sentimento diametralmente oposto: tradição é o abandonado, o meramente de ontem; progresso é a promessa explícita do ser, de modo que o homem não se sente em casa dentro da tradição, do passado, mas dentro do progresso e do futuro6. E também sob este ponto de vista há de parecer-lhe [21] ultrapassada uma fé que lhe vem ao encontro com a etiqueta de "tradição", incapaz de abrir-lhe um lugar para existir, a ele que vê no futuro a sua possibilidade e obrigação propriamente ditas. O que quer dizer que o primário escândalo da fé, a distância entre visível e invisível, entre Deus e não-Deus, se acha encoberto e bloqueado pelo escândalo secundário do "outrora" e do "hoje", pela antítese de tradição e progresso, pelo compromisso com o passado que parece estar incluído na fé. O fato de nem o profundo intelectualismo da desmitização, nem o pragmatismo 6 Típica ilustração para essa mentalidade encontra-se, ao meu ver, em um anúncio visto há pouco: "Você não quer comprar tradição mas progresso racional". No mesmo contexto cumpre apontar para a realidade característica de a teologia católica, em sua reflexão sobre a tradição, nos últimos cem anos, tender sempre mais a equiparar tradição e progresso, de reinterpretar a idéia de tradição pelo conceito de progresso, não entendendo mais tradição como o cabedal fixo transmitido desde a origem, mas como a força propulsora do sentido da fé; Cfr. J. RATZINGER, "Tradition", em: LThK X, 293-299; IDEM, "Kommentar zur Offenbarungskonstitution" em: L ThK supl. II, 498 ss e 515-528. 17 do aggiornamento serem capazes de convencer, sem mais, torna evidente que também a absorção do escândalo fundamental da fé cristã representa algo de muito profundo que não se pode abordar, sem mais nem menos, nem por meio de teorias, nem pela ação. Aliás, em certo sentido, justamente aqui se patenteia o específico do escândalo cristão, a saber, aquilo que se poderia denominar positivismo cristão, a inamovível positividade do crístico. Eis o que tenho em mente: a fé cristã não se ocupa somente com o eterno, como à primeira vista poderia supor-se, com o eterno que se conservasse como algo totalmente diverso, fora do mundo humano e do tempo; ela ocupa-se muito mais com o Deus na história, com Deus como homem. A fé apresenta-se como revelação, ao parecer vencer o abismo entre eterno e temporal, entre visível e invisível, fazendo-nos encontrar Deus como homem, o Eterno como temporal, Deus como um de nós. Aliás, a sua pretensão de ser revelação [22] funda- se no fato de ela ter trazido o eterno, por assim dizer, para dentro do nosso mundo: "O que ninguém jamais viu – Ele no-lo explicou, aquele que descansa no peito do Pai" (Jo 1,18) – Cristo tornou-se "exegese" de Deus para os homens, quase estaria eu tentado a afirmar com base no texto bíblico7. Mas contentemo-nos com o vocábulo português; o original autoriza-nos a tomá-lo bem ao pé da letra: Jesus realmente ex- plicou (ou seja, desdobrou, abriu) a Deus, conduzindo-o para fora de si, ou, mais drasticamente, na primeira carta de João: liberou-o à nossa contemplação e palpação, de modo tal que o jamais avistado por alguém agora está ao alcance do nosso tacto histórico8. À primeira vista parece tratar-se realmente do máximo em revelação, do limite extremo de Deus patentear-se. O salto que até agora conduzia ao infinito parece abreviado a uma ordem de grandeza humana possível, bastando-nos, para tanto, dar uns poucos passos até àquele homem na Palestina, no qual o mesmo Deus se nos revela. Mas estamos aí diante de uma estranha duplicidade, como que dois rostos de Jano: o que parece ser, de entrada, a mais radical revelação e, em certa medida, permanece para sempre sendo não só uma revelação, como a revelação por excelência, no mesmo instante se trai como a treva mais pesada e o mais estranho disfarce. O que Deus parece trazer, em primeira mão, para bem perto de nós, a ponto de podermos palpá-lo como nosso semelhante, seguir-lhe as pegadas e até avaliá-las e medi-las, tudo isto torna-se, em sentido muito profundo, base para a "morte de Deus", que, a partir dali, há de imprimir o seu [23] cunho irrevogável ao desenvolvimento da história e às relações humanas com Deus: Deus ficou tão perto de nós, que o pudemos matar e assim, ao que parece, ele cessa de ser Deus. Por isso, vemo-nos hoje um tanto desconcertados diante dessa "revelação" cristã e, confrontando-a com a religiosidade, sobretudo, da Ásia, lançamos a pergunta: não teria sido muito mais simples crer no eterno-oculto, confiando-se a ele em meditação e anseio? Não teria sido melhor Deus deixar-nos na nossa infinita distância? Não fora mais simples e mais realizável perceber o eternamente incompreensível mistério mediante serena 7 Theou oudeis eoraken popote; monogenes theos... exegesato. O verbo exegeomai significa: ser chefe, servir de guia, de conselheiro, dar exemplo e, em sentido derivado (no texto presente): explicar, interpretar, expor. Cristo seria, então, quem explica, interpreta, expõe aos homens o segredo de Deus. (A. CHASSANG, Nouveau Dictionnaire Grec- Français) (Nota do Tradutor). 8 1Jo 1,1-3. 20 reconhecível, porque Deus, o puro intelecto, o criou; e criou-o, pensando-o. Pensar e fazer são uma única coisa para o Espírito Criador, o Creator Spiritus. Seu pensar é um criar. As coisas existem porque são pensadas. Por isso, para a Antiguidade e a Idade Média, todo ser é um ser-pensado, um pensamento do Espírito absoluto. E [27] vice-versa: porque todo ser é pensamento, todo ser é sentido, Logos, verdade9. Portanto o pensamento humano é um "pensar-depois", uma reflexão sobre o pensamento que é o próprio Ente. Mas, o homem pode pensar na esteira do Logos, do sentido do ser, porque o seu próprio logos, sua própria razão é logos do único Logos, pensamento do pensamento primitivo e original, do Espírito Criador que dispõe o ser até o fundo de suas raízes. Em contraste com isto, a obra do homem é considerada pela antiguidade e pela Idade Média como ocasional e contingente. O ser é pensamento, portanto é pensável, objeto do pensamento e da ciência que aspira à sabedoria. A obra humana, pelo contrário, é uma mistura de logos e de falta de lógica que, além disto, com o passar do tempo, recai no passado. Não admite uma compreensão completa, por faltar-lhe algo do presente, base da intuição, e algo do logos, ou seja, do sentido duradouro. Por esta razão, o impulso científico antigo e medieval estava convencido de que o saber sobre as coisas humanas não passava de techne, de técnica, de capacidade artesanal, jamais podendo alcançar o nível de uma ciência real. Por esta razão as artes, na universidade medieval, figuravam como preliminar à ciência propriamente dita, isto é, àquela ciência que reflete sobre o ser, ponto de vista este ainda firmemente defendido por Descartes, ao negar à história o caráter de ciência. O historiador convencido de conhecer a história romana antiga, afinal de contas saberia menos a respeito dela do que qualquer cozinheiro romano, e saber latim não conota mais do que o saber de qualquer doméstica de Cícero. Exatamente cem anos mais tarde Vico inverterá as normas da verdade medieval, ainda [28] claramente expressas por Descartes, abrindo assim a porta à virada fundamental do espírito moderno. Começa agora aquela atitude que traz consigo a idade "científica" – em cuja esteira ainda nos encontramos10. Pela sua importância fundamental para o nosso problema, tentemos analisá-lo um pouco mais a fundo. Descartes considera ainda, como certeza real, a certeza racional formal, purificada das incertezas do factível. Contudo, já se notam prenúncios da virada para a época moderna, quando Descartes compreende essa certeza real essencialmente sob o enfoque do modelo da certeza matemática, elevando a matemática à forma básica de todo o pensamento racional11. Enquanto, porém, em Descartes os fatos devem ser postos em parênteses, isto é, abstraídos, se se quer ter certeza, Vico levanta a tese diametralmente oposta. Formalmente, apoiando-se em Aristóteles, declara que o saber real se cifra no saber das causas. Conheço uma coisa, conhecendo-lhe a causa; compreendo o motivado, se souber o motivo. Mas, desse aforisma antigo tira-se e se afirma algo completamente novo: se, para o saber factivo 9 Declaração que, aliás, tem valor em todo o seu sentido somente dentro do pensamento cristão que, com o conceito de creatio ex nihilo, reduz a Deus também a matéria a qual, para a filosofia antiga, permanece como o alógico, o elemento cósmico estranho à divindade, marcando assim, ao mesmo tempo, o limite da inteligibilidade do real. 10 Relativamente ao material histórico veja-se a síntese em K. LÖWITH, Weltgeschichte und Heilsgeschichte, Stuttgart 31953, 109-128, assim como a obra de N. SCHIFFERS, Anfragen der Physik an die Theologie, Düsseldorf, 1968. 11 N. SCHIFFERS, obra citada. 21 se requer o conhecimento das causas, então podemos saber verdadeiramente somente aquilo que nós mesmos fizemos, pois só nos conhecemos a nós mesmos. O que, por conseguinte, vem a ser que, em lugar da antiga equação "verdade – ser", entra a nova: "verdade – facticidade"; só é reconhecível o feito, isto é, aquilo que nós mesmos fazemos. Tarefa e possibilidade do espírito humano não é refletir sobre o ser, mas sobre o fato, o feito, o mundo peculiar do homem, único objeto que estamos em condições de compreender verdadeiramente. O homem não produziu o cosmos, que, por isto, lhe permanece impenetrável em suas derradeiras profundezas. Só lhe é acessível um saber [29] perfeito, comprovado, no âmbito das ficções matemáticas e da história que representa a esfera do que o homem mesmo fez, sendo por esta razão acessível ao seu conhecimento. No meio do oceano de dúvidas que ameaça a humanidade após a derrocada da velha metafísica, nos alvores do tempo moderno, redescobre-se no fato a terra firme sobre a qual o homem pode tentar uma nova existência. Principia o reinado do "fato", isto é, a volta radical do homem para sua própria obra, como o único elemento que lhe é certo. Com isto está ligada aquela inversão de todos os valores, que transforma a história em época realmente "nova", em contraposição à antiga. O que antes havia sido desprezado como não científico – a história – resta, ao lado da matemática, como a única ciência verdadeira. O que antes parecia a única tarefa digna de espírito livre, a reflexão sobre o sentido do ser, surge agora como esforço vão e sem saída, ao qual não corresponde nenhuma possibilidade científica autêntica. Assim, matemática e história arvoram-se em disciplinas dominantes, chegando a história a absorver, por assim dizer, o mundo inteiro das ciências, modificando-as fundamentalmente. Filosofia torna-se um problema da história em Hegel, e, de modo outro, em Comte, problema onde o mesmo ser é sufocado como processo histórico; em F. Chr. Baur, teologia torna-se história; seu caminho, a pesquisa rigorosamente histórica que examina os eventos passados, esperando assim alcançar o fundo das questões; Marx repensa historicamente a economia nacional, e até as ciências naturais são afetadas por esta tendência geral para a história: Darwin concebe o sistema dos seres vivos como uma história da vida; em lugar da constância das coisas criadas entra uma doutrina evolucionista, na qual todas as coisas vêm umas das outras, permanecendo relacionadas com as do passado12. Assim [30] o mundo acaba por não mais parecer uma estrutura do ser, mas um processo cuja contínua propagação se identifica com o movimento do mesmo ser. Ou seja: o mundo é cognoscível, é sabível meramente como feito pelo homem. O homem tornou-se incapaz de olhar acima de si, a não ser, novamente, no âmbito do "fato", onde é obrigado a identificar-se com o produto ocasional de evoluções imemoriais. Deste modo surge uma situação muito estranha. No instante em que principia um antropocentrismo radical, o homem nada mais é capaz de reconhecer, além de sua própria obra, vendo-se simultaneamente compelido a aceitar-se a si mesmo como produto ocasional, como simples "fato". E o céu, do qual o homem parecia ter vindo, desaba, ficando-lhe entre as mãos a terra, o pó dos fatos, terra, pó, em que tenta decifrar, com a pá, a laboriosa história do seu devir. 12 K. LÖWlTH, obra cit., 38. Sobre a virada nos meados do século XIX, veja-se a instrutiva pesquisa de J. DÖRMANN, "War J. B. Bachofen Evolutionist?" em: Anthropos 60 (1965) 1-48. 22 b) O segundo estádio: virada para o pensamento técnico. Verum quia factum: este axioma que encaminha o homem para a história como sendo morada da verdade, certamente não poderia ser suficiente em si mesmo. Alcançou sua eficiência completa ao ligar-se a um outro motivo que, novamente cem anos depois, Karl Marx formulou em seu axioma clássico: "Até agora os filósofos contemplaram o mundo; agora devem por-se a modificá-lo". Com o que torna a ser completamente reformulada a tarefa da filosofia. Trocada em termos filosóficos tradicionais, esta máxima diria que, em lugar do verum quia factum – é reconhecível, é veraz o que o homem fez e pode contemplar – entra um programa novo: verum quia faciendum – a verdade, da qual dagora em diante se há de tratar, é a facticidade, a capacidade de ser feito. Ou, expresso ainda de outro modo: a verdade que ao homem cumpre manipular, não é nem a verdade do ser, nem, em última análise, a dos seres realizados, feitos, mas a verdade da alteração do mundo, da formação do mundo – uma verdade dirigida para o futuro e para a ação. [31] Verum quia faciendum – quer dizer que o domínio do "fato" foi substituído mais e mais, a partir do meado do século XIX, pelo domínio do factível, do a-ser- feito e do passível-de-fazer, com o que a preponderância da história cede lugar à techne, à técnica. Pois, quanto mais o homem avança pela rota nova, concentrando-se no "fato" e nele buscando certeza, tanto mais se vê obrigado a reconhecer que o "fato", ou seja a obra de suas mãos, lhe foge sempre mais das mãos. A comprovação visada pelo historiador, surgida apenas no século XIX como grande triunfo da história contra a especulação, conserva sempre algo de problemático, um momento de reconstrução, de exegese e de equívoco, de modo que arrastou a história, já no começo deste século, para uma crise, tornando duvidoso o historicismo em sua orgulhosa pretensão científica. Revelou-se sempre mais claramente a impossibilidade do "fato" em estado puro, cercado de certeza inabalável, pois também nele se encerram sempre o sentido e sua duplicidade. Tornou-se sempre mais difícil ocultar que não se detinha entre as mãos aquela certeza que inicialmente se havia esperado conseguir da pesquisa dos fatos, dando-se as costas à especulação. Assim impôs-se forçosamente e gradativamente a convicção de que, em última análise, é acessível ao conhecimento humano somente aquilo que o homem pode reproduzir quantas vezes quiser, através da experiência. Tudo o que ele consegue perceber apenas mediante provas secundárias torna-se passado e, malgrado todas as provas, não é plenamente conhecível. Com isto surge o método das ciências naturais, resultante da matemática (Descartes) e do retorno à facticidade em forma de experiência repetível, como único e seguro portador de certeza. Da fusão do pensamento matemático e dos fatos resulta a nova realidade espiritual, determinada pelas ciências naturais, do homem moderno, o lugar novo que conota retorno [32] à realidade em sua feição de facticidade13. O fato fez sair de dentro de si o factível; o repetível é o comprovável e existe por sua causa. Chega-se ao primado do factível sobre o fato, pois realmente de que servirá ao homem o que meramente existiu? Querendo ser dono do seu presente, o homem não pode encontrar sentido em ser guarda de museu do seu próprio passado. 13 Cfr. H. FREYER, Theorie des gegenwärtigen Zeitalters, Stuttgart, 1958, sobretudo 15-78. 25 grandiosidade desta frase. A raiz 'mn (amen) inclui os sentidos de: verdade, firmeza, fundamento sólido, solo, conotando ainda: fidelidade, fiel, confiar-se, apoiar-se em alguma coisa, crer em alguém ou alguma coisa. Deste modo a fé em Deus surge como um apoiar-se em Deus, mediante o qual o homem consegue base sólida para a sua vida. Com o que a fé é descrita como adesão, como um colocar-se confiante [36] no terreno da palavra de Deus. A versão grega (Septuaginta) reproduziu a citada frase não somente idiomaticamente, mas também conceitualmente, para o mundo grego, formulando-a: "Se não crerdes, não compreendereis". Afirmou-se, por vezes, que nesta tradução se patenteia o processo de helenização, o afastamento do sentido bíblico original. A fé teria sido intelectualizada: em vez de exprimir: estar postado no terreno firme da palavra de Deus digna de fé, teria sido criado um nexo com a compreensão e a razão, desalojando assim a fé para um plano que, de modo algum lhe condiz. No que, talvez, haja uma pitada de razão. Apesar disto, julgo que, em seu conjunto, conservou-se a idéia básica, embora com os sinais alterados. "Estar colocado", como vem indicado no texto hebraico, como conteúdo da fé, tem algo em comum com "compreender". Dentro em pouco teremos de refletir mais sobre isto. Por enquanto basta-nos reatar o fio das anteriores considerações, dizendo que a fé conota uma esfera totalmente outra do que a do "fazer" e da facticidade. É precisamente o confiar-se ao não-feito-por-nós e ao jamais factível por nós, que sustenta e possibilita todo o nosso agir ou fazer. Isto significa ainda que a fé não se encontra, nem pode encontrar-se no plano do verum quia factum seu faciendum e que qualquer tentativa de apresentá-la ali, "em um cardápio", e de querer prová-la no sentido do conhecimento do factível necessariamente estaria fadada ao fracasso. Não se deve procurar nesta espécie de estrutura de conhecimento e quem, apesar disto, ali a apresentar, estará servindo uma coisa falsa. O penetrante "talvez" com que a fé questiona o homem em toda parte e em todo lugar, não aponta para uma incerteza dentro do conhecimento do factível, mas representa o questionamento do caráter absoluto deste âmbito, sua relativização como uma das esferas da existência humana e do ser em geral, relativização e âmbito capazes de conservarem apenas o caráter de algo penúltimo. Expresso em outras palavras: nossas [37] considerações levaram-nos apenas a um lugar onde se torna visível a existência de duas formas básicas de atitude humana frente à realidade, das quais uma não pode ser reduzida a outra, por se movimentarem as duas em planos completamente separados. Talvez venha ao caso lembrar aqui uma contraposição de Martin Heidegger que fala do dualismo do pensamento calculador e do pensamento reflexivo. Ambas as maneiras de pensar são legítimas e necessárias, mas, exatamente por isto, nenhuma delas pode dissolver-se na outra. Portanto, cumpre existam ambas as coisas: o pensamento calculador subordinado à facticidade e o pensamento reflexivo que busca o sentido das coisas. Nem se deixaria de dar alguma razão ao pensador friburguense, ao exprimir o receio de que, em uma época em que o pensamento calculador festeja triunfos os mais extraordinários, o homem, no entanto, quiçá mais do que nunca, esteja ameaçado pela fuga diante da reflexão, pela superficialidade e leviandade. Pondo no centro do seu pensamento exclusivamente o factível, corre o perigo de esquecer de refletir sobre si mesmo e sobre o sentido de sua existência. Sem dúvida, esta tentação é comum a todos os tempos. Assim, no século XIII, o grande filósofo 26 franciscano Boaventura julgava-se obrigado a lançar em rosto aos colegas da Faculdade de Filosofia de Paris a censura de que, tendo aprendido a medir o mundo, esqueceram a arte de medir-se a si mesmos. Repitamos o mesmo em outros termos: Fé, no sentido visado pelo "Credo", não é uma forma inacabada de conhecimento, uma opinião que se possa ou deva trocar em saber factível. É antes uma forma essencialmente diversa de comportamento espiritual, colocada ao lado dele como algo independente e próprio, não podendo ser a ele reduzida, nem dele derivada. Pois a fé não se encontra no âmbito da facticidade e do "feito", tendo embora relações com ambos, mas localiza-se na esfera das decisões fundamentais, diante das quais o homem não pode furtar-se nem omitir-se, decisões que, por sua [38] própria natureza, só podem ser feitas de uma forma, forma à qual chamamos de fé. Parece-me imprescindível destacá-lo com toda a clareza: cada homem deve tomar posição, de qualquer forma, dentro do âmbito das decisões fundamentais; e homem nenhum pode fazê-lo de modo outro que não pela fé. Existe uma esfera que não admite outra resposta senão a da fé; e precisamente esta esfera não pode ser contornada por ninguém. Cada homem há de "crer" de qualquer modo. A mais impressionante tentativa de subordinar a atitude da "fé" à atitude do conhecimento factível deve-se ao marxismo. Pois nele o "faciendum", o "a-ser-feito", o factível cobre-se com o próprio futuro a ser criado, e, simultaneamente, com o mesmo sentido do homem, de modo que o esclarecimento que se realiza, e respectivamente se aceita pela fé, é transferido para o plano do factível. Com isto, sem dúvida, tirou-se a conseqüência extrema do pensamento moderno; parece ter sortido efeito relacionar o sentido do homem totalmente com o factível e até identificar um com o outro. Contudo, a uma análise mais demorada não escapará que também o marxismo não logrou fazer a quadratura do círculo. Pois nem ele é capaz de tornar cognoscível o factível enquanto sentido, mas apenas prometido, oferecendo- o à opção da fé. O que hoje torna a fé marxista tão atraente e facilmente acessível, é a impressão de harmonia com o conhecimento do factível que ela desperta. Após esta breve digressão voltemos a uma pergunta que sintetiza tudo: que é a fé, afinal de contas? Nossa resposta poderia ser: a fé é a forma de firmar-se o homem no conjunto da realidade, forma irredutível ao conhecimento e incomensurável pelo conhecimento; fé é o dar-sentido sem o que a totalidade do homem ficaria localizada, sentido que constitui a base do cálculo e da atividade humana e sem a qual, finalmente, não poderia nem calcular, nem agir, porque somente é capaz disto à luz de um sentido que o norteie. Com efeito, o homem não vive apenas do pão da facticidade; como homem, ele vive do [39] amor, do sentido das coisas. O sentido é o pão que lhe possibilita subsistir, em sentido próprio, como homem. Sem a palavra, sem uma finalidade, sem o amor, o homem chega à situação de não poder mais viver, mesmo cercado de todo o conforto humano. Quem ignoraria até que ponto uma tal situação de fracasso (entregar os pontos... não poder mais...) pode surgir em meio à fartura exterior? Ora, sentido não se deriva de saber. Querer torná-lo real através do conhecimento da facticidade seria como a absurda tentativa do barão de Münchhausen ao querer livrar-se a si mesmo do atoleiro, puxando-se pelos cabelos. O absurdo deste quadro expõe com exatidão a situação básica do homem. Ninguém está em condições de arrancar-se a si mesmo do pantanal da incerteza, da 27 incapacidade de viver. Nem nos salvamos de semelhante situação, como quiçá ainda poderia pensar Descartes com o seu cogito, ergo sum, mediante uma série de conclusões racionais. Sentido autofabricado não é sentido; sentido, ou seja, um solo, um pedaço de chão sobre o qual a existência possa firmar-se e desenvolver-se como um todo, um tal sentido não pode ser feito, só pode ser recebido. Tendo partido de uma análise muito geral da atitude fundamental da fé, chegamos à forma da fé cristã. Crer cristãmente significa confiar-se ao sentido que me sustenta a mim e ao mundo, torná-lo a base firme sobre a qual posso ficar sem receio. Usando um pouco mais a linguagem da tradição, poderíamos dizer: crer cristãmente significa compreender a existência como resposta à palavra, ao Logos que sustenta e conserva todas as coisas. Significa dizer "sim", isto é, aceitar, ao fato de ser-nos oferecido o sentido que não podemos criar, mas apenas receber, de tal modo que nos basta aceitá- lo e confiar-nos a ele. De acordo com isto, fé cristã conota a opção da aceitação antes da feitura – com o que o "fazer" não sofre desvalorização e muito menos é declarado inútil. Somente porque aceitamos o sentido, também podemos "fazer". E mais: fé cristã – já o afirmamos – significa a opção do invisível como [40] mais real do que o visível. É declarar-se pelo primado do invisível e do real propriamente dito, que nos sustenta e, por isso, nos autoriza a enfrentar o visível com serena sobranceiria dentro da responsabilidade frente ao invisível como fundamento de tudo. Não se pode, contudo, negar que, em tais limites, a fé cristã representa um duplo ataque contra a mentalidade que parece dominar a situação mundial de hoje. Como positivismo e como fenomenologismo, esta situação mundial concita-nos a limitar-nos ao "visível", ao "fenômeno" em sentido mais vasto, estendendo sobre o conjunto das nossas relações com o mundo real a mentalidade fundamentalmente metodológica à qual a ciência deve tantos dos seus êxitos. Por outro lado, como técnica, ela nos incita a confiar no factível, esperando encontrar aí a base que nos sustente. O primado do invisível sobre o visível, o primado do "aceitar" sobre o "fazer" opõe-se radicalmente a esta situação. Está aí, sem dúvida, a razão por que o salto de confiar-se ao invisível se torna tão difícil hoje em dia. E contudo a liberdade de fazer, como a de usar o visível mediante a pesquisa metódica, somente se toma possível graças ao caráter transitório ao qual ambos são relegados pela fé e pela superioridade que assim se abre. 6. Razão da Fé Refletindo sobre tudo isto, constata-se o quão estreitamente se interpenetram a primeira e a última palavra – o "creio" e o "amém" –, o quão profundamente perpenetram o conjunto de cada artigo do "credo", determinando assim a interna localização de tudo o que entre elas se encontra. Na harmonia do "creio" e do "amém" torna-se visível o sentido de todo o movimento espiritual de que se trata. Anteriormente constatamos que, no hebraico, a palavra "amém" tem a mesma raiz da qual se deriva o termo "crer"; o confiante colocar-se sobre uma base que sustenta, não por ter sido feita e calculada por nós, mas [41] precisamente porque não somos capazes nem de fazê-la. Conota a entrega, a adesão ao que não podemos nem precisamos fazer, ao fundamento do mundo, como sentido que, por primeiro, nos 30 fé cristã, seu caráter pessoal. A fé cristã é mais do que opção por uma base espiritual do mundo; sua fórmula central não diz: "Creio alguma coisa", mas: "creio em Ti"17. É encontro com o homem Jesus, experimentando nesse encontro o [45] sentido do mundo, como pessoa. Na vida de Jesus que vem do Pai, no imediatismo e na espessura do seu trato orante, – que digo! – contemplador com o Pai, Jesus é testemunha de Deus, através da qual o impalpável se tornou tangível, o distante, próximo. E mais: não se trata apenas de testemunha à qual damos fé sobre o que ela viu em uma existência que realmente concretizou a virada do falso destino ao de primeira plana, rumo à profundeza da verdade inteira; não; Jesus é a presença do próprio eterno neste mundo. Em sua vida, na irrestrição do seu ser para os homens está presente o sentido do mundo; ele doa-se-nos como amor, que também me ama a mim, tomando amável a vida mediante dádiva, tão inconcebível, de um amor não ameaçado por nenhuma transitoriedade, por nenhuma perturbação egoística. O sentido do mundo é o "tu", naturalmente somente aquele "tu" que não é pergunta aberta, mas o fundamento da totalidade que dispensa outro fundamento. Assim a fé é a descoberta de um "tu" que me carrega e me transmite a promessa de um amor indestrutível dentro de toda a insatisfação e da derradeira incapacidade do humano encontro, um "tu" que não só aspira à eternidade, mas que a concede. A Fé cristã vive do fato de não apenas haver um sentido objetivo, mas de esse sentido conhecer e amar-me: de eu poder entregar-me a ele num gesto de criança que sabe todas as suas perguntas bem abrigadas no "tu" materno. Assim fé, confiança e amor, em última análise, são uma única coisa e todos os conteúdos em torno dos quais gira a fé são meras concretizações da reviravolta que a tudo sustenta, do "creio em Ti" – da descoberta de Deus no rosto do homem Jesus de Nazaré. Naturalmente isto tudo não dispensa a reflexão, como já vimos. [46] És tu realmente? – tal foi a pergunta nascida em negra hora do coração do Batista, ou seja, do profeta que orientou para Jesus os próprios discípulos e dobrou-se diante dele, como o maior, ao qual só lhe restava prestar serviços de preparador. És tu realmente? O crente sempre tornará a passar por esta treva na qual a contradição da descrença o cerca como sombria e fatal prisão, e a indiferença do mundo, que continua a rodar imperturbável como se nada tivesse acontecido, parecer-lhe-á cruel zombaria de sua esperança. És tu realmente pergunta que se nos impõe, não apenas por causa da honestidade do pensamento e da responsabilidade da inteligência, mas também de dentro da própria lei do amor que quereria conhecer mais e mais àquele ao qual deu o seu "sim", para mais amá-lo. És tu realmente? – todas as considerações deste livro estão subordinadas a esta questão, girando assim em torno da forma fundamental da profissão: "creio em Ti", Jesus de Nazaré, como sentido (Logos) do mundo e da minha vida. 17 Cfr. H. FRIES, Glauben-Wissen, Berlin, 1960, sobretudo 89-95; J. MOUROUX, lch glaube an Dich Einsiedeln 1951; C. CIRNE-LIMA, Der personale Glaube, Innsbruck, 1959. CAPÍTULO SEGUNDO Forma Eclesial da Fé 1. Preliminares à história e à estrutura do Símbolo Apostólico da Fé 1. [47] Tudo o que se disse até aqui girou em volta da pergunta formal: Que é a fé e onde pode localizar-se no mundo do pensamento moderno, onde pode exercer sua função? Assim forçosamente ficaram em aberto outros problemas mais vastos relacionados com a fé – e o conjunto quiçá se nos tenha apresentado ainda excessivamente pálido e indeciso. As respostas só podem ser encontradas com um olhar direto para a fé cristã em sua feição concreta que a seguir vamos analisar, tomando por guia o assim chamado símbolo apostólico. Talvez seja útil fornecer alguns dados sobre a origem e estrutura do símbolo, que contribuirão para esclarecer o "por quê" [48] do nosso proceder. A forma básica do nosso símbolo apostólico cristalizou-se no correr do segundo e terceiro século, em nexo com o rito batismal. Trata-se originariamente de uma fórmula nascida na cidade de Roma. Contudo, seu lugar interno de origem é a liturgia, ou mais exatamente, o batismo. O rito batismal fundamentalmente orientava-se pelas palavras de Cristo: "Ide, fazei discípulos a todos os povos e batizai-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo" (Mt 28, 19). De acordo com esta ordem, o batizando ouvia três perguntas: "Crês em Deus, Pai todo-poderoso...? Crês em Jesus Cristo, Filho de Deus...? Crês no Espírito Santo...?" 2. A cada uma das perguntas o batizando respondia: "Creio", sendo, de cada vez, mergulhado na água. Portanto, a fórmula mais antiga do símbolo realiza-se em tríplice diálogo e está enquadrada no rito batismal. Provavelmente ainda no correr do século II, mas sobretudo no século III, a fórmula tríplice, tão simples, e reproduzindo apenas o texto de Mt 28, sofreu um desdobramento em sua parte média, ou seja, na pergunta sobre Cristo. Por tratar-se do que é tipicamente cristão, aproveitou-se a ocasião para fornecer um resumo a respeito da importância de Cristo para o cristão, dentro dos limites daquela pergunta. Igualmente a terceira pergunta, a profissão da fé no Espírito Santo, foi explicitada e desenvolvida como declaração da fé a respeito do presente e do futuro do cristão. No século IV estamos diante de um texto contínuo, libertado do esquema de perguntas e respostas. A circunstância de continuar formulado em grego torna plausível sua origem no século III, pois no século IV a liturgia romana havia passado definitivamente para o latim. Não demora muito e surge uma versão latina. O símbolo 1 Obra decisiva e clássica a respeito é: Das apostolische SymboI de F. KATTENBUSCH, I, 1894; II, 1900 (reeditada sem alterações em 1962, Darmstadt; será citada sempre: KATTENBUSCH). Além disto, é importante J. DE GHELLINCK, Patristique et Moyen-âge I, Paris, 21949; e ainda a visão de conjunto de J. N. D. KELLY, Early Christian Creeds, Londres, 1950; e W. TRILLHAAS, Das apostolische Glaubensbekenntnis, Geschichte, Text, Auslegung, Witten, 1953. Breves resumos e bibliografias ulteriores encontram-se nas patrologias, por exemplo: B. ALTANER – A. STUIBER, Patrologie, Friburgo, 71966, 85 e ss; J. QUASTEN, Patrology I, Utrecht, 1962, 23-29; veja-se também J. N. D. KELLY, "Apostolisches Glaubensbekenntnis" em: LThK I, 760 e ss. 2 Confira-se, por exemplo, o texto do Sacramentarium Gelasianum (Edição WILSON), 86, citado em KATTENBUSCH II, 485, assim como, sobretudo, o texto da Traditio apostolica de HIPÓLITO (Edição BOTTE) Münster, 21963, 48 e ss. 32 da cidade [49] de Roma impôs-se rapidamente em todo espaço de fala latina, graças à posição especial que coube à Igreja de Roma em todo o Ocidente. O texto passou por uma série de alterações menores; afinal, Carlos Magno apresentou, para uso em seu império inteiro, um texto que – baseando-se no romano – recebera sua forma definitiva na Gália; em Roma, o texto uniformizado foi aceito no século IX. Aproximadamente desde o século V, talvez já do século IV, surge a lenda da origem apostólica desse formulário que muito cedo (provavelmente ainda no correr do século 5) se concretizou na suposição de que cada um dos doze artigos, em que fora dividido, representava a contribuição de um dos doze apóstolos. No Oriente permaneceu desconhecido o símbolo romano. Não foi pequena a surpresa dos delegados romanos ao Concílio de Florença (século XV), ao ouvirem que os orientais (gregos) não recitavam o símbolo tido como de origem apostólica. O Oriente jamais elaborou um texto uniforme porque nenhuma de suas Igrejas particulares assumira posição comparável à de Roma no Ocidente – como única "sede apostólica" nesta parte do mundo. Para o Oriente, sempre foi característica a multiplicidade dos símbolos que também se afastam um tanto do símbolo romano quanto à feição teológica. O Credo romano (e ocidental em geral) tem um cunho mais sótero-cristológico. Conserva-se, por assim dizer, no interior do aspecto positivo da história cristã; aceita, sem mais, o fato de Deus ter-se tornado homem para nossa salvação e não tenta olhar para os bastidores da história indagando de suas razões e do seu nexo com o conjunto do ser. O Oriente, pelo contrário, sempre procurou a fé cristã em sua perspectiva cosmo-metafísica, que se revela nos símbolos, sobretudo pelo fato de colocar em relação mútua a cristologia e a criação do mundo, pondo assim um nexo íntimo entre a redenção única e irrepetível, e a criação contínua e total. Mais tarde voltaremos a mostrar como esta visão mais larga, finalmente, começa a revalorizar-se [50] mais acentuadamente na consciência ocidental, sobretudo graças à influencia da obra de Teilhard de Chardin. 2. Limite e importância do texto O esquema rudimentar da história do símbolo que acabo de dar está a exigir uma reflexão complementar. Pois já um olhar fugaz sobre a gênese do texto, tal como foi apresentado, mostra que neste processo se refletem toda a tensão da história da Igreja do primeiro milênio, o esplendor e a miséria dessa história. Quer me parecer que também isto representa uma expressão que tem nexo com a causa da fé cristã, deixando reconhecer a sua fisionomia espiritual. Sem dúvida, o símbolo exprime primeiramente, por sobre todas as divisões e tensões, o fundo comum da fé no Deus trino. É a resposta ao apelo saído de Jesus de Nazaré: "Fazei discípulos a todos os povos e batizai-os". É reconhecimento dele como proximidade de Deus; dele como verdadeiro futuro do homem. Mas, simultaneamente, já exprime o destino incipiente da ruptura entre Oriente e Ocidente; a posição espiritual que Roma ganhou no Ocidente como sede de tradição apostólica; a tensão que daí surgiu para a Igreja inteira, tudo isto torna-se visível na história do símbolo. Finalmente a forma atual desse texto exprime a uniformização da Igreja ocidental, partindo do terreno político, e assim a tragédia do alheamento político da fé, seu uso como instrumento unificador 35 texto e da história do símbolo. a) Fé e palavra. O "Credo" é um resíduo do diálogo original: "Crês?" – "Creio!", diálogo que, por sua vez, aponta para o "cremos" onde o "eu" do "creio" não é absorvido, mas encontra o seu lugar próprio. Assim na pré-história do símbolo e na sua forma primitiva está presente a figura completa antropomórfica da fé. Torna-se evidente que fé não resulta de alguma subtileza individualista e solitária em que "eu" imagino alguma coisa, refletindo sozinho sobre a verdade, livre de todos os laços. É, antes, o resultado de um diálogo, expressão da audição, da recepção e da resposta que orienta o indivíduo para o plural da mesma fé, através da sintonia do "eu" com o "tu". "A fé vem da audição", diz S. Paulo (Rom 10, 17). Afirmação que poderia ser tomada por algo muito condicionado pela época e susceptível de ser alterado. Há a tentação de ver aí meramente o resultado de uma situação sociológica, de modo que, um belo dia, em vez disto, poderia dizer-se: "A fé vem da leitura", ou "da reflexão". Na realidade, impõe-se ver aí muito mais do que o reflexo de determinado momento histórico. Na fórmula: "A fé vem da audição" encontra-se uma afirmação duradoura da estrutura do que acontece a quem chega à fé. Nela está patente a diferença entre fé e simples filosofia, que aliás não impede que a fé revitalize a procura filosófica da verdade. Extremando a situação, poder-se-ia dizer que, realmente, a fé não vem da "audição", como a filosofia se origina da "reflexão". A natureza da fé está em não ser uma reflexão [55] sobre o que pode ser refletido e que, afinal, estaria à disposição como resultado do meu pensamento; para a fé, é característico que ela surge da audição, sendo aceitação do que não se imagina, de modo que, na fé, o pensamento sempre será, em última análise, uma reflexão sobre o que foi ouvido e aceito. Expresso de outro modo: existe na fé uma precedência da palavra sobre o pensamento, que a distingue estruturalmente do feitio filosófico. Na filosofia o pensamento precede a palavra, porque a filosofia é produto da reflexão que, a seguir, se procura revestir de palavras, as quais, contudo, permanecem secundárias em comparação com o pensamento e, por isto, sempre podem ser substituídas por outras palavras. Pelo contrário, a fé aproxima-se de fora, sendo-lhe essencial esta qualidade de vir de fora. Repitamos: a fé não é produto auto-imaginado, mas o que me foi dito, que me encontra, me alicia e me compromete, como algo não imaginado nem imaginável. É-lhe essencial a dupla estrutura do: "Crês?" – "Creio!", a estrutura do ser chamado de fora e da resposta. Portanto, não é anormal se, abstraindo de algumas exceções, devemos dizer: não cheguei à fé mediante uma procura particular da verdade, mas por uma aceitação que, por assim dizer, me antecedeu. E fé não pode nem deve ser mero produto da reflexão. A suposição de que a fé deveria nascer através da própria reflexão ou imaginação e mediante uma busca puramente pessoal da verdade, no fundo já é expressão de determinado ideal, de uma mentalidade intelectual que desconhece o aspecto peculiar da fé, que consiste na aceitação do que não é imaginável – aceitação responsável, sem dúvida – em que o objeto aceito jamais chega a tornar-se minha posse total, em que a dianteira nunca será vencida completamente, em que, no entanto, a meta deve ser: apoderar-se sempre mais do que foi recebido, através da minha entrega a ele como ao maior. Por ser assim, porque a fé não é o que inventei, mas o que me sobreveio de fora, por isto a sua palavra não está à minha [56] disposição, nem está sujeita à mudança, 36 ao meu talante, mas é-me superior e sempre está à frente, tomando a dianteira ao meu pensamento. A figura do processo da fé está caracterizada pela positividade do que me sobrevém, não se originando de mim e revelando-me o que não sou capaz de doar-me. Por isto, existe aqui uma primazia da palavra expressa sobre o pensamento, de tal modo que não é o pensamento quem cria a sua terminologia, mas a palavra apresentada indica a rota ao pensamento que compreende. Com este primado da palavra e com a "positividade" da fé que aí se manifesta, relaciona-se o caráter social da fé, que conota uma segunda diferença frente à estrutura essencial individualística do pensamento filosófico. Filosofia, por sua natureza, é obra do indivíduo que, como tal, reflete sobre a verdade. O pensamento, o pensado pertencem-lhe, ao menos em aparência, porque surgem do próprio pensador, muito embora nenhum pensamento viva só do que lhe é próprio, mas, ciente ou inscientemente, se complique em numerosos entrelaçamentos. O laboratório do pensamento é o âmago do espírito; por isto ele, inicialmente, permanece circunscrito ao pensador, tendo estrutura individualista. Torna-se comunicável somente secundariamente, ao revestir-se da palavra que, aliás, de modo geral, só consegue torná-lo compreensível aos outros de modo aproximativo. Em oposição, como vimos, a palavra anunciadora representa o principal elemento da fé. Como o pensamento, internamente, é apenas espiritual, a palavra constitui-lhe a ponte de comunicação. A palavra é o modo de estabelecer a comunicação no campo espiritual, é a forma pela qual o espírito se encarna, isto é, se torna corpo, se torna social. O primado da palavra significa ainda que a fé está orientada para a comunidade do espírito, de maneira diversa do que o pensamento filosófico. Na filosofia encontra-se, no começo, a pesquisa particular da verdade, que, a seguir, secundariamente, procura e encontra companheiros de jornada. Fé, ao contrário, é, primeiro, o apelo dirigido [57] à comunidade visando a união ou unidade do espírito pela unidade da palavra; seu sentido é de antemão social: criar unidade de espírito pela unidade da palavra; e só secundariamente os indivíduos encontrarão o caminho aberto para a aventura pessoal da verdade. Ao destacar-se na estrutura dialogal da fé uma imagem humana, podemos acrescentar que igualmente surge ali uma imagem de Deus. Ao homem compete tratar com Deus, quando lhe cabe tratar com o seu próximo. A fé está essencialmente orientada para o "tu" e para o "nós", e o homem somente consegue unir-se a Deus através destes dois vínculos. O que, ao inverso, significa não serem separáveis relação com Deus e relação com o outro, a partir da mesma estrutura interna da fé; o nexo com Deus, com o "tu", com o "nós" é mútuo, bilateral e não corre paralelo. Ainda poderíamos formular o mesmo pensamento sob outro ponto de enfoque: Deus quer vir ao homem somente mediante o homem; não procura o homem a não ser no meio dos seus semelhantes. Talvez seja possível, partindo-se daqui, tornar compreensível um fato intrínseco à fé, que deveria parecer surpreendente à primeira vista podendo tornar, pelo menos aparentemente, problemático o comportamento religioso do homem. Pois a fenomenologia religiosa – como todos podemos comprovar – constata que no campo religioso, como nos demais domínios do espírito humano, parece haver gradação de capacidades. Conhecemos, por exemplo, no âmbito da música a classe de espíritos criadores ou produtivos, a dos meramente receptivos e, afinal, a dos amusicais; o 37 mesmo parece dar-se na religião. Também nela encontramos "talentos" religiosos e outros pouco prendados; também no terreno religioso são muito raros os elementos capazes de uma experiência religiosa e de alguma espécie de creatividade religiosa através de uma intuição mais viva do mundo sacral. O "mediador" ou o "fundador", a testemunha, o profeta, ou qualquer que seja seu [58] nome, capazes de contacto direto com o "divino" são exceções. Em contraste com esses poucos para os quais a divindade se torna certeza evidente, encontram-se os muitos, meramente receptivos religiosamente falando, aos quais se recusa a experiência do "sagrado" e que, no entanto, não são tão surdos que não sejam capazes de viver um encontro com o divino através dos homens aos quais tais experiências são concedidas. E impõe-se a objeção: não deveria cada pessoa ter acesso a Deus, se "religião" é uma realidade que interessa a cada um, e se cada qual se sente reivindicado de maneira idêntica por Deus? Não deveria haver plena "igualdade de chances" e a mesma certeza patenteada a todos? Eis uma pergunta que aponta para o vazio, como se poderá ver do nosso ponto de consideração; pois o diálogo de Deus com os homens se desenvolve exclusivamente dentro do diálogo dos homens entre si: a diferença de talentos religiosos que classifica os homens em "profetas" e "ouvintes", compele-os reciprocamente uns para junto dos outros e uns pelos outros. É irrealizável e não-cristão o programa do Agostinho dos primeiros tempos: "Deus e a alma – nada mais". Afinal, religião não existe no solitário caminho do místico, mas só na comunidade do anúncio (pregação) e da audição. Postulam-se e condicionam-se mutuamente diálogo dos homens com Deus e diálogo dos homens entre si. Aliás, o mistério de Deus talvez represente, desde o início, o mais violento desafio do homem para o diálogo, desafio que jamais leva a um resultado completo, diálogo que, por obstruído e perturbado que seja, deixa transsoar o Logos, a palavra por excelência, da qual todas as palavras se derivam, tentando proferir todas as vozes em um ímpeto contínuo. Um diálogo legítimo não se realiza entre homens que se contentam em falar sobre alguma coisa. A fala do homem alcança a sua peculiaridade somente ao tentar exprimir não alguma coisa, mas a si mesmo, subindo o diálogo à comunicação. Onde tal acontece, onde o homem se exprime a si mesmo na [59] conversa, ali, de algum modo, se fala também de Deus, que é o tema dos debates dos homens entre si desde a aurora de sua história. Mas também somente onde o homem se exterioriza como objeto de sua fala, penetra no diálogo humano, com o Logos do ser humano, o Logos de todo ser. Eis a razão do silêncio do testemunho de Deus onde a fala somente é técnica de comunicação de "alguma coisa". Deus não está presente no cálculo lógico6. Talvez a hodierna dificuldade de falar de Deus tenha sua origem exatamente na crescente tendência do nosso falar para o cálculo puro, do fato de ela assumir uma significação crescente de pura comunicação técnica, sendo sempre menos um contacto do ser com o Logos, contato que adivinha e palpa o fundamento de todas as coisas. b) Fé como "símbolo". A reflexão sobre a história do símbolo apostólico levou- 6 Confira-se F. G. JÜNGER, "Sprache und Kalkül", em: Die Künste im technischen Zeitalter, editado pela Academia Bávara de Belas Artes, Darmstadt, 1956, 86-104. PRIMEIRA PARTE DEUS «Creio em Deus Pai, Todo-poderoso, Criador do céu e da terra" [63] O símbolo principia com o reconhecimento de Deus, que é descrito mais detalhadamente mediante alguns predicados: Pai – Todo-poderoso – Criador1. Por conseguinte, a primeira questão a ser examinada é: o que significa a atitude do crente que se declara por Deus? E, dentro desta pergunta, está incluída a outra: Que quer dizer o símbolo, quando este Deus é caracterizado com termos como: "Pai", "Todo- poderoso", "Criador"? 1 A palavra "Criador" não figura no texto romano original. Contudo, a idéia de "criação" está implícita na expressão "todo-poderoso" (Pantokrator). 41 CAPÍTULO PRIMEIRO Prolegômenos ao Tema "Deus" 1. Âmbito da questão [65] Quem vem a ser "Deus", afinal? Em outras épocas tal pergunta não constituía problema, de clara que era. Hoje ela se nos torna uma interrogação séria. Que é que pode conotar, em geral, a palavra "Deus"? Que realidade ela exprime e como chega aos homens a realidade de que fala? Querendo-se seguir a pista da pergunta com a profundeza de que hoje precisamos, seria necessário tentar primeiramente uma análise que pesquisasse as fontes da experiência religiosa, considerando-se, a seguir, como é que o tema "Deus" caracteriza a história inteira da humanidade e é capaz de desencadear nela todas as paixões até aos nossos dias – sim, até aos dias em que o clamor da morte de Deus se ergue por toda parte e, apesar disto, e precisamente por isto, coloca o problema de Deus poderosamente no meio de nós. Afinal, donde surgiu na humanidade a idéia de Deus; de que raízes nasceu? Como compreender que o mais dispensável aparentemente e o mais inútil dos temas para os homens se fixou e permaneceu, apesar de tudo, como o mais angustioso dos temas da história? E qual é a razão por que ele surge em formas basicamente tão diversificadas? Aliás, através da aparência desordenada da multiplicidade exterior, constata-se a existência fundamental de três formas, que certamente [66] atravessam alterações desiguais na figura do monoteísmo, do politeísmo e do ateísmo, como poderíamos denominar resumidamente os três grandes caminhos da história humana na questão de Deus. Além disso, já antes fomos alertados que mesmo o ateísmo representa apenas um ponto final aparente do assunto "Deus", conotando, na realidade, uma forma de preocupação humana com o problema, capaz, até, de revelar, e de fato, manifestando, nesta questão, um ardor apaixonado. Se quiséssemos seguir as questões preliminares fundamentais, deveriam ser apresentadas as duas fontes da experiência religiosa, às quais se pode reduzir a multiplicidade de formas dessa experiência. Sua tensão típica foi descrita pelo conhecido fenomenólogo de religiões, o holandês van der Leeuw, na afirmação paradoxal: na história das religiões Deus- Filho existe antes de Deus-Pai2. Dever-se-ia dizer com mais exatidão que o Deus, portador da salvação, o Salvador, existe antes do Deus Criador, e mesmo depois desta elucidação, cumpre notar que a fórmula não pode ser concebida em sentido de seqüência cronológica ou temporal, para a qual não existem provas. Por mais longe que se olhe na história da religião, o tema "Deus" surge sempre sob as duas figuras, de Filho e Pai, de Criador e de Salvador. A partícula "antes", portanto, conota apenas que, para a religiosidade concreta, para o interesse existencial vivo, o "portador da salvação" ocupa o primeiro plano, em relação ao Criador. Atrás dessas duas figuras, em que a humanidade representou o seu Deus, encontram-se os dois pontos de partida da experiência religiosa, dos quais acabamos de falar. O primeiro ponto é a própria existência a ultrapassar-se, sem cessar, 2 G. VAN DER LEEUW, Phänomenologie der Religion, Tübingen, 21956, 103. 42 apontando para a totalidade em uma forma qualquer, mesmo que seja a mais complicada. E também aí temos um [67] processo de muitas camadas – como multifacetada é a mesma existência humana. Bonhoeffer, como é notório, declarou estar na hora de acabar com um Deus que colocamos como "tapa buraco" na fronteira das nossas possibilidades e ao qual invocamos logo que nos sentimos levados ao fim da linha. Deveríamos procurar e encontrar Deus, não no lugar da nossa miséria e do nosso fracasso, mas em meio à fartura das coisas terrenas e no transbordamento da vida; somente assim se comprova não ser Deus uma escapatória fabricada pelas nossas necessidades, escapatória que se torna supérflua à medida que se alargam os limites do nosso poder3. Na história da luta humana em torno de Deus, encontramos ambos os caminhos parecendo os dois igualmente legítimos. Tanto as agruras e misérias da vida humana como a sua plenitude apontam para Deus. Onde os homens experimentaram a vida em sua fartura, em sua riqueza, beleza e grandiosidade, ali se lhes tornou presente e patente que uma tal existência é uma existência agradecida, que, precisamente em seu aspecto grandioso e luminoso, ela não é algo que alguém se doou a si mesmo, mas uma dádiva que o antecede, que o recebe nos braços de sua bondade, antes de qualquer ação sua, exigindo que se insufle um sentido a tamanha abundância, recebendo-se assim um sentido para a sua própria situação. E vice-versa, também a necessidade e a pobreza sempre serviram-nos de lembrete de algo todo diferente. A questão que se apresenta, pela nossa condição de homens, e que, mais ainda, existe pela nossa condição de homens é o inacabado contido dentro de nós, a fronteira que baliza o ser-homem e que, apesar disto, representa um anseio pelo ilimitado (mais ou menos) [68] no sentido da palavra de Nietzsche: todo prazer anseia pela eternidade, e contudo se revela como instante, esta simultaneidade de isolamento e desejo do ilimitado e do aberto impediu sempre qualquer descanso do homem em si mesmo, fazendo-o sentir que jamais pode bastar-se, só conseguindo encontrar-se passando por cima de si e movendo-se para o totalmente outro e para o infinitamente grande. O mesmo pode-se demonstrar da temática da solidão e da segurança. A solidão indubiamente é uma das raízes básicas de que surgiu o encontro do homem com Deus. Onde o homem experimenta a solidão, degusta ao mesmo tempo o quanto a sua vida representa um grito pelo "tu" e quão pouco o homem é apto a ser um puro "eu", encerrado em si mesmo. A solidão pode manifestar-se ao homem em profundezas diferentes. Primeiro, ela satisfaz-se com o encontro de um "tu" humano. Mas então desdobra-se um processo paradoxal descrito por Claudel: cada "tu" que o homem encontra, revela-se, finalmente como uma promessa irrealizada e irrealizável4; porque todo "tu", no fundo, representa de novo uma desilusão, existindo um ponto em que encontro nenhum é capaz de vencer a derradeira solidão: e exatamente o achar e o ter-achado voltam a ser um retorno ao ermo, um grito pelo "tu" real e absoluto, mergulhado nas profundezas do próprio "eu". Mesmo agora, nem a miséria da solidão 3 Cfr. R. MARLÉ, "Die fordernde Botschaft Dietrich Bonhoeffers", em Orientierung 31 (1967), 42-46, principalmente o texto clássico de Widerstand und Ergebund (ed. Betge), Munique, 121964, 182: "Gostaria de falar de Deus não nos limites, mas no meio, não nas debilidades, mas na força, não na morte e culpa, mas na vida e na bondade do homem" . 4 P. CLAUDEL, Le soulier de Satin (ed. alemã, Salzburg, 1953, 288 e ss.), o grande diálogo final entre Proeza e Rodrigo; veja-se também 181 e a cena antecedente com a dupla sombra. 45 descontinuidade. A fé de Israel, sem dúvida, representa um elemento novo, em confronto com a fé dos povos vizinhos; contudo não se trata de algo caído do céu, mas de uma cristalização efetuada no embate com a fé dos outros povos, em que uma seleção belicosa e uma re-interpretação diferente representam, ao mesmo tempo, o elo e a mudança. "Iahvé, teu Deus, é um único Deus", profissão fundamental situada no âmago do nosso "Credo" é, em seu sentido original, uma renúncia aos deuses vizinhos. É profissão no sentido pleno da palavra, isto é, não uma constatação de uma opinião ao lado de outras, mas uma opção existencial. Como renúncia aos deuses significa repúdio ao endeusamento dos poderes políticos, e ao endeusamento do "morre e torna-te" cósmico. Afirma-se que fome, amor e domínio são as três forças que movem a humanidade. Ampliando-se esta afirmação, pode-se constatar que as três formas fundamentais do politeísmo são a adoração do pão, a adoração do Eros e a divinização do poder. Os três caminhos são aberrações, absolutizações do que não é o absoluto e, por isto, escravização do homem. Certamente, trata-se de aberrações em que transparece [73] alguma coisa do poder que sustenta o universo. Mas a profissão de fé de Israel é, como foi dito, uma declaração de guerra contra a tríplice adoração, constituindo assim um processo de máxima importância na história da libertação do homem. Na declaração de guerra contra a tríplice adoração, a profissão de fé é, ao mesmo tempo, um grito de guerra contra a proliferação do divino em geral. É a renúncia a deuses próprios (vê-lo-emos mais tarde). Ou, expresso de outro modo, a renúncia à divinização do que é próprio do homem, típica do politeísmo. E também é a renúncia à própria segurança, ao medo, que tenta apaziguar o ominoso, prestando- lhe culto; e é a adesão ao Deus único do céu, como potência que protege tudo; significa coragem de confiar-se à força que domina o universo inteiro, sem tomar o divino nas mãos. A atmosfera inicial oriunda da fé de Israel não se alterou fundamentalmente no "Credo" cristão primitivo. Também nele o ingresso na comunidade e a aceitação do seu "símbolo" significa uma decisão existencial de pesadas conseqüência. Pois quem entrasse neste "Credo", simultaneamente consumiria a renúncia à legislação do mundo do qual era parte integrante, uma renúncia à adoração do poder político dominador, sobre o qual se baseava o império romano, renúncia da adoração do prazer, do culto do medo e da superstição que predominavam no mundo. Não foi por acaso que a luta cristã se deflagrou no campo assim demarcado, transformando-se em guerra em torno da própria forma básica da vida pública antiga. Creio que para a hodierna compreensão aprofundada e atualizada do "Credo" é de importância decisiva voltar a focalizar esses nexos. Somos levianos demais, considerando como fanatismo de tempos antigos, e por isto fanatismo desculpável, embora impossível hoje em dia, a atitude de recusa dos cristãos, até com sacrifício da vida, a participar, de qualquer [74] modo, no culto prestado ao imperador; o repúdio até das formas mais inocentes, como a inscrição na lista dos sacrifícios, expondo a própria vida em defesa de seus pontos de vista. Hoje distinguiríamos, em tal caso, entre a lealdade civil indispensável e o ato realmente religioso, tentando achar uma saída possível e tomando em conta o fato de não poder esperar-se heroísmo de homens medianos. Quiçá semelhante distinção seja possível em certos casos, e isto 46 graças à decisão que outrora fora tomada. Em todo caso é importante acentuar que a recusa de então muito longe estava de qualquer fanatismo mesquinho e que ela transformou o mundo de uma maneira que só é possível pelo empenho do sofrimento. Naquelas perseguições antigas ficou patente que fé não é brinquedo, mas coisa séria: a fé diz: "não" e é obrigada a dizer "não" ao absolutismo do poder político, à adoração do domínio e dos poderosos em geral – "depôs os poderosos de seus tronos" (Lc 1,52), quebrando assim definitivamente a pretensão totalitária do princípio político. A afirmação: "somente há um Deus", precisamente por não estar contaminada por nenhuma intenção política, representa um programa de importância política decisiva: graças ao caráter absoluto do seu Deus, que assim se inculca a cada um e graças ao relativamento em que assim se colocam todos os agrupamentos políticos pela unicidade ao Deus que os abrange a todos, temos aí a única defesa definitiva contra o coletivismo e também a supressão total de qualquer exclusivismo humano. O que foi afirmado sobre a luta da fé contra a adoração do poder poderia aplicar-se no terreno dos esforços pelo autêntico amor humano, na luta contra a falsa adoração do sexo e do Eros, fontes de escravização não menos trágica da humanidade do que o abuso do poder. É mais do que simples metáfora, quando os profetas descrevem a apostasia de Israel como "adultério". Os cultos idólatras quase sempre estavam ligados à prostituição cúltica e, assim, já a aparência externa [75] os apresentava como adultério. Além disto, eles revelam o seu espírito. O amor definitivo, indivisível e uno entre homem e mulher finalmente só se realiza e se compreende na unidade e indivisibilidade do amor de Deus. Hoje cresce o nosso conhecimento de que não se trata, no amor, de uma dedução filosófica independente, mas de uma realidade muito mais fundamental que resiste ou cai de acordo com a fé em um Deus único. E compreendemos melhor que a liberação do amor, degenerando em simpatia (ou camaradismo) do instinto, representa a entrega do homem às fúrias desencadeadas do sexo e do Eros, sob cuja escravidão cruel ele tomba, sonhando ter- se emancipado. Subtraindo-se a Deus, atacam-no os deuses, e a liberação do homem só se realiza na medida em que se deixa livrar e cessa de apoiar-se sobre si mesmo. Não menos importante do que o esclarecimento da renúncia encerrada no "Credo" é compreender a afirmação nele contida; e isto porque a renúncia só se sustenta a partir da afirmação e, a seguir, também porque a renúncia dos primeiros séculos cristãos se comprovou de tão grande eficiência histórica, que os deuses desapareceram para sempre. Certamente, não desapareceram as potências expressas nas divindades, nem desapareceu a tentação de absolutizar todas as energias. Um como o outro pertence ao cerne da situação humana e exprime a perene "verdade" do politeísmo: o absolutismo da força, do pão e do Eros não nos ameaça menos do que ao homem antigo. Porém, embora os deuses de então continuem hoje como "forças" a tentar impor-se de modo absoluto, deixaram tombar a máscara do divino e são obrigados a apresentar-se em sua verdadeira profanidade. Eis aí a base da diferença entre o paganismo pré e pós-cristão, que continua marcado pelo dinamismo histórico da renúncia cristã aos deuses. No vazio em que hoje nos encontramos, urge tanto mais a pergunta: qual é o conteúdo da afirmação que a fé cristã conota? 47 CAPÍTULO SEGUNDO A Fé em Deus na Bíblia [77] Para compreender a fé bíblica em Deus é preciso seguir-lhe a evolução histórica, desde as origens nos patriarcas de Israel até aos escritos do Novo Testamento. O Antigo Testamento, com o qual logicamente devemos começar, põe- nos nas mãos um fio condutor que orienta os nossos esforços: com efeito, o Antigo Testamento formulou sua idéia de Deus essencialmente em dois nomes: Elohim e Iahvé. Nestas duas denominações revela-se a segregação e a escolha feita por Israel em seu mundo religioso e, simultaneamente, torna-se visível a opção positiva realizada em uma tal escolha e na subseqüente conversão do eleito. 1. O problema histórico da sarça ardente Como texto central do conhecimento de Deus no Antigo Testamento certamente deve ser apontada a narrativa da sarça ardente (Ex 3) em que, junto com a revelação do nome de Deus a Moisés, se coloca a base decisiva do deus que, a partir dali, dominará a Israel. O texto descreve a vocação de Moisés para chefe de Israel pelo Deus oculto-revelante na chama da sarça, e a hesitação de Moisés que exige um conhecimento claro do seu comitente e uma clara prova de sua autoridade. Neste contexto desenvolve-se o diálogo em torno do qual jamais cessarão as especulações: [78] "E Moisés disse a Deus: "Eis que eu me apresentarei aos filhos de Israel e lhes direi: O Deus de vossos pais enviou-me a vós. Mas se me perguntarem: "Como se chama?" Que lhes responderei?" E Deus disse a Moisés: "SOU AQUELE QUE SOU". E acrescentou: "Assim falarás aos filhos de Israel: EU SOU mandou-me a vós". E Deus disse ainda a Moisés: "Assim falarás aos filhos de Israel: Jahvé, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o. Deus de Isaac e o Deus de Jacó enviou-me a vós. Esse é o meu nome para a eternidade, e essa é a minha denominação para todos os séculos" (Ex 3,13-15) (Texto da Bíblia Sagrada Ed. Paulinas, 1967). Dentro do sentido do texto é evidente a intenção de fundamentar o nome "Iahvé" como nome decisivo de deus em Israel, primeiro fixando-o historicamente na origem da gênese do povo israelita e no acontecimento da aliança, e, em seguida, dando-lhe uma explicação do conteúdo. Este último sucede pela redução do incompreensível vocábulo "Iahvé" à raiz "haia" (= ser). Isto é possível dentro do resíduo consonantal hebraico. Mas, ao menos é problemático se tal explicação corresponda filologicamente à real procedência do termo "Iahvé": trata-se – como tantas vezes no Antigo Testamento – de uma etimologia teológica e não filológica. Não é o caso de pesquisar um sentido primitivo dentro da gramática histórica, mas de realizar um sentido, em concreto. A etimologia realmente torna-se instrumento de um comportamento que cria um sentido. A este esclarecimento do nome "Iahvé" pela palavra "ser" acrescenta-se então uma segunda tentativa de esclarecer: quando se diz que lahvé é o Deus dos pais, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó. Ou seja: a compreensão da palavra deve ser alargada e aprofundada pela equiparação do Deus assim denominado ao Deus dos patriarcas de Israel, que era invocado com "El" ou 50 costumamos chamar "o Deus, dos nossos pais", com apoio na Bíblia11. A etimologia proposta cobrir-se-ia assim com o que narra a história da sarça ardente, como suposição interna da fé em Iahvé, ou seja com a fé do Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó. Portanto, voltemos a atenção para esta figura sem a qual não é possível desvendar o sentido da mensagem de Iahvé. 2. Pressuposto intrínseco da Fé em "Iahvé": o Deus dos pais Na raiz etimológica e lógica do nome "Iahvé" que julgamos reconhecer no Deus pessoal insinuado pela forma "yau", torna-se visível tanto a escolha como a segregação que afetou a Israel em seu ambiente religioso-histórico, como também a continuidade com a pré-história de Israel desde [83] Abraão. Sem dúvida, o Deus dos pais não se chamava Iahvé, mas vem-nos ao encontro como "El" ou "Elohim". Assim os patriarcas podiam entrosar-se com a religião de El, do seu mundo ambiente, caracterizada essencialmente pelo cunho social e pessoal da divindade denominada El. O Deus pelo qual optaram distingue-se religioso-tipicamente pelo fato de ser numen personale (um Deus pessoal) e não numen locale (um Deus local). Que vem a ser isto? Tentemos explicá-lo brevemente partindo cada vez do ponto de saída do que se diz. Primeiro, poderíamos lembrar-nos do seguinte: a experiência religiosa da humanidade deflagra-se em lugares sagrados onde, por um motivo qualquer, o todo outro, o divino, se torna particularmente sensível; uma fonte, um roble poderoso, uma pedra misteriosa ou um acontecimento incomum podem tornar-se ativos. Mas então, em breve, surge o perigo de que o lugar da experiência religiosa e a própria divindade se confundam, de modo que o homem acredite em uma presença especial de Deus em determinado lugar, não a supondo possível em outro – o local torna-se lugar sagrado, habitação da divindade. Ou então, a ligação local com o divino assim efetuada conduz, com uma espécie de fatalismo, para a sua multiplicação: a experiência do sagrado dá-se em muitos lugares e não em um apenas, embora o sagrado seja imaginado como circunscrito cada vez ao seu local; por isto surge uma mulplicidade de divindades locais que se tornam divindades próprias dos respectivos espaços. Pode-se constatar certa sombra destas tendências mesmo no cristianismo, entre fiéis pouco esclarecidos, para os quais as Madonas de Lourdes, Fátima ou Aparecida são seres diferentes e não representações da mesma pessoa. Mas voltemos ao nosso tema. Em contraposição à tendência pagã do numen locale, da divindade local, ou seja condicionada e limitada localmente, o Deus dos patriarcas expressa uma determinação completamente diversa. Não é o Deus de um lugar, mas o Deus dos homens: o Deus de Abraão, de Isaac, de Jacó, que não está ligado a um local, mas se acha, poderoso e ativo, em toda parte, onde se encontre o homem. Assim chega-se a um modo todo outro de pensar sobre Deus. Deus é visto no plano do "eu" e do "tu", não no plano espacial. Afasta-se para a transcendência do ilimitado e, exatamente assim, se revela como o próximo em toda parte (e não em um local apenas), cujo poder é ilimitado. Ele não está em alguma parte, mas encontra-se onde está o homem e onde o homem se deixa encontrar por ele. Decidindo-se por El, os pais de Israel 11 Cazelles. O. cito 51 realizaram uma escolha de maior transcendência: pelo numen personale contra o numen locale, do Deus pessoal e relacionado pessoalmente, que pensa e se encontra no âmbito do "eu" e do "tu" e não, primariamente, em lugares sagrados12. Esse traço fundamental do El permaneceu um dos elementos básicos não só da religião de Israel, como também da fé do Novo Testamento: um Deus pessoal é o ponto de partida da religião, um Deus é compreendido naquele plano que se caracteriza pela relação do "'eu" com o "tu". A este aspecto que determina essencialmente a localização da fé em El, cumpre acrescentar um segundo: El não é considerado apenas como dono de personalidade própria, como Pai, Criador dos seres, como Sábio, e Monarca; ele impõe-se sobretudo como o Deus máximo, como a suprema força, como o que paira acima de todas as coisas. Não é preciso destacar que também este segundo elemento se conservou característico para a experiência bíblica inteira de Deus. Não se opta por uma força qualquer a atuar em um lugar qualquer, mas exclusivamente por aquela força que inclui em si todo o poder e que sobrepuja a todas as demais dominações. Finalmente temos de apontar para um terceiro elemento que igualmente perdura através de todo o pensamento bíblico: esse Deus é o Deus da promessa. Não é uma força da natureza, em cuja epifania (revelação, manifestação) se mostra o eterno poder da natureza, o eterno "morre e serás"; não é um Deus a orientar o homem para o imutável bailado do cosmos, mas a apontar para o que há de vir, para a meta de sua história, para o sentido e o fim que são definitivos – é o Deus da esperança colocada no futuro, um rumo que é irreversível. Finalmente ainda resta dizer que a fé em El foi aceita pelos israelitas sobretudo em sua forma desdobrada em "Elohim", na qual se revela, ao mesmo tempo, o processo de metamorfose de que a figura de El também precisava. Poderia causar espécie o fato de substituir-se aqui o singular "El" por um termo que, propriamente, denota plural (Elohim). Sem precisar expor os detalhes multiformes deste processo, seja dito que foi exatamente assim que Israel conseguiu acentuar sempre mais a singularidade do seu Deus: um Deus único, mas supergrande, todo outro, ultrapassando os limites de singular e plural, estando além deles. Embora não se encontre no Antigo Testamento (pelo menos em seu estágio mais antigo) nenhuma revelação trinitária, oculta-se neste fato uma experiência orientadora para a doutrina cristã do Deus trino. Sabe-se, embora sem refletir, que, por um lado, Deus é radicalmente um, sem contudo poder ser enquadrado em nossas categorias de singular e plural, ficando acima delas, de modo que, afinal, também não pode ser determinado com exatidão pela categoria "um", por mais que, na verdade, seja um Deus apenas. Na história antiga de Israel (e também mais tarde, exatamente para nós) isto significa que, dessa maneira, foi incorporado o legítimo problema inerente ao politeísmo13. [86] O plural relacionado com o Deus único significa: Ele é tudo que é 12 Aqui conviria lembrar (como na nota 10) que "opção" inclui '''dádiva, recepção" e, por conseguinte "revelação". 13 Confira-se MÁXIMO CONFESSOR, Expositio Orationis Dominicae, em: Patrologia Graeca (PG) 90,892. Para Máximo reconciliam-se no Evangelho o politeísmo pagão e o monoteísmo judaico. "Aquele é multiplicidade contraditória sem liame; este é unidade sem riqueza interna". Máximo considera a ambos igualmente imperfeitos e carentes de complementação. E então ambos abrem caminho para a idéia de Deus uno e trino, que completa, pela "multiplicidade viva e engenhosa dos gregos", a idéia monoteísta dos judeus "estreita, imperfeita e quase sem valor em si" e "inclinada" ao perigo do "ateísmo". Assim, conforme H. U. VON BALTHASAR, Kosmische Liturgie, Das 52 divino. Se quiséssemos falar adequadamente sobre o Deus dos patriarcas, deveríamos acrescentar agora que espécie de renúncia se acha incluída na afirmação que se nos apresenta nas formas El e Elohim. Baste o aceno para dois nomes divinos que predominavam no ambiente existencial de Israel. São excluídas as idéias de Deus espalhadas entre os povos vizinhos dos israelitas sob o nome de Baal (= o Senhor) e Melech ou Moloch (= rei). Repudia-se assim o culto da fertilidade e a ligação local do divino que ela envolve. Além disto, com a negação do deus régio Melech, repudia- se determinado modelo social. O Deus de Israel não se refugia na distância aristocrática de um rei, não conhece o despotismo ilimitado que, naquele tempo, se ligava ao conceito de monarca – é o Deus próximo capaz de tornar-se o Deus de cada pessoa. Quanto se poderia dizer e ponderar sobre este ponto!... Renunciemos a isto, para tornar ao ponto de partida, à questão do Deus da sarça ardente. 3. Iahvé, Deus dos patriarcas e de Jesus Cristo Iahvé é considerado o Deus dos patriarcas. Na fé em Iahvé incluem-se todos os ingredientes que eram visados na fé dos pais, recebendo assim um nexo novo e nova forma. Mas, onde está o específico, o novo expresso com o vocábulo "Iahvé"? São numerosas as respostas; não é possível transmitir com certeza o sentido exato das fórmulas de Ex 3. [87] Contudo, destacam-se dois aspectos. Constatamos que, para a nossa mentalidade, o simples fato de um Deus que tem nome, surgindo como uma espécie de indivíduo, causa escândalo. Mas, encarando mais de perto o texto, surge a pergunta: Tratar-se-ia realmente de um nome? Tal pergunta inicialmente parece absurda, pois está fora de dúvida que Israel conhecia a palavra Iahvé como um nome divino. Uma leitura atenta, no entanto, mostra que a cena da sarça ardente expõe este nome de modo tal, que ele parece excluído como nome; em todo caso, parece afastar- se do rol de denominações divinas, a que primeiro parece pertencer. Escutemos com atenção! Moisés pergunta: Os filhos de Israel, aos quais me envias, dirão: Quem é o Deus que te manda? Qual é o seu nome? Como deverei responder-lhes? A seguir relata-se que Deus retrucou a Moisés: "Sou aquele que sou"; também poderíamos traduzir: "Sou o que sou". Temos aí propriamente uma recusa; parece antes uma negação de citar o nome, do que uma apresentação do nome. A cena toda está envolvida como que em atmosfera de mau humor, por causa de tamanha importunação e a resposta vem impaciente: Ora, sou quem sou! A idéia de que aqui não se dá nome algum, mas de que a pergunta de Moisés foi rejeitada, torna-se mais provável, através do cotejo com os dois textos que se poderiam aduzir como paralelos ao nosso: Jz 13,18 e Gên 32,30. No texto de Jz 13,18 um certo Manué pergunta pelo nome do Deus que lhe aparece. Recebe como resposta: "Por que perguntas pelo meu nome? Ele é mistério (ou: ele é misterioso)". Não é mencionado nome algum. Em Gên 32,30 é Jacó quem pergunta pelo nome, após a luta noturna com o desconhecido; e também ele recebe uma resposta negativa: "Por que perguntas por meu nome?" Weltbild Maximus' des Bekenners, Einsiedeln, 21961, 312; cfr. também A. ADAM, Lehrbuch der Dogmengeschichte I, Gütersloh, 1965, 368. 55 coisas e aparências, às quais não cabe nenhuma duração. Demos um último passo que nos leve ao Novo Testamento. A linha que coloca, sempre em crescendo, a idéia de Deus sob a luz do conceito do ser, interpretando a Deus com o simples "eu sou", torna a surgir no Evangelho de S. João, ou seja, no derradeiro intérprete bíblico; João traça a síntese da fé em Jesus, fé que, para os cristãos, representa ao mesmo tempo o último passo da auto-interpretação do movimento bíblico. O pensamento de João se entrosa exatamente com a literatura dos livros sapienciais e o Deutero-Isaías; e somente com este fundo literário é que pode ser compreendido. João eleva o "eu o sou" de Isaías à idéia central de sua fé em Deus, mas o faz colocando-o como núcleo de sua cristologia: processo decisivo tanto para a [92] idéia de Deus, como para a imagem de Cristo. A fórmula que, pela primeira vez, se destaca no episódio da sarça; que, no fim do exílio, se transforma em expressão da esperança e da certeza frente às divindades em derrocada; e que representa a presença permanente de Iahvé acima de todas estas potências, essa fórmula encontra-se agora no centro da fé em Deus, através do testemunho prestado em Jesus de Nazaré. A importância desse processo torna-se de uma clareza cristalina, se atendermos ao fato de João ter retomado o núcleo da narração da sarça, como nenhum autor antes dele, a saber, a idéia do nome de Deus. O pensamento de um Deus que se nomeia, que se torna invocável mediante um nome avança até o cerne do seu testemunho prestado pelo "eu o sou". João traça um paralelo entre Cristo e Moisés também neste sentido, descrevendo a Cristo como o personagem no qual a história da sarça alcança o seu sentido pleno. O capítulo 17 todo – a chamada "oração sacerdotal" e, provavelmente, o próprio núcleo do Evangelho em geral – gira em torno da idéia "Jesus, o revelador do nome de Deus", apresentando-se assim como o correlativo da narração da sarça. O tema do nome divino volta, qual ritornello, nos versículos 6, 11, 12, 26. Destaquemos apenas os dois principais: "Manifestei o teu nome aos homens que me deste, separando-os do mundo" (6). "Eu dei-lhes a conhecer o teu nome e dar- lho-ei a conhecer ainda, para que o amor com que me amaste esteja neles e eu esteja neles" (26). Cristo surge aqui como sendo a mesma sarça ardente, da qual brota o nome de Deus para os homens. Mas, na perspectiva do quarto Evangelho, Jesus aplica a si o "eu o sou" de Ex 3 e de Is 43; torna-se claro ser ele próprio o nome, isto é, a invocabilidade de Deus. A idéia do nome entra agora em uma fase nova e decisiva. Aqui "nome" não é mais somente uma palavra, mas uma pessoa: o próprio Cristo. A cristologia, e correspondentemente a fé em Cristo, [93] em conjunto, é elevada a uma única interpretação do nome de Deus e do que ele significa. Com isto alcançamos um ponto onde, qual cúpula, se impõe uma questão que interessa o complexo inteiro tratado sobre o nome de Cristo. 4. A idéia do nome Após estas considerações todas, urge, finalmente, fazer uma pergunta muito geral: que quer dizer, afinal, um nome? E que sentido há em falar no nome de Deus? Não penso em fazer uma análise detalhada desta questão, deslocada neste lugar, mas apenas indicar em poucos traços o que me parece essencial. Primeiramente podemos dizer que existe uma diferença fundamental entre a intenção visada por uma idéia e a 56 intenção incluída em um nome. A idéia quer reconhecer a natureza da coisa como tal, tal como existe. O nome, pelo contrário, não procura a natureza da coisa, tal como existe, independente de mim, mas a ele lhe interessa tornar a coisa nominável, invocável, criar um nexo para com ela. Certamente também o nome deve atingir a própria coisa, mas com a finalidade de colocá-la em relação comigo e, torná-la, assim, acessível. Exemplifiquemos: saber que alguém se enquadra no conceito "homem" ainda não é suficiente para criar uma relação para com ele. Somente o nome torna-o nominável; através do nome o outro penetra na estrutura de minha humanidade e pode ser chamado. Portanto o nome cria o entrosamento, a correlação com a estrutura social das relações. Quem é considerado como mero número é rejeitado da estrutura da co-humanidade. Ora, o nome cria a relação para com os outros. Confere a um ser a invocabilidade que completa a coexistência com o ser nomeado. Mas é aqui também que se encontra o ponto de encaixe a partir do qual deveria tornar-se claro o que acontece quando João apresenta o Senhor Jesus Cristo como o verdadeiro e [94] vivo nome de Deus. Nele realiza-se o que nenhuma palavra estaria em condições de realizar. Nele alcançou a sua meta o sentido do diálogo sobre o nome de Deus e chegou à sua concretização o que sempre havia sido pretendido e intencionado com a idéia do nome. Em Cristo – é o que o Evangelho deseja exprimir com esta idéia – Deus de fato tornou-se o invocável. Com Cristo Deus entrou para sempre na coexistência conosco: o nome não é mais simples palavra a que nos apegamos; é carne de nossa carne e osso de nossos ossos. Deus é um dos nossos. E assim concretiza-se realmente o que vinha sendo intencionado com a idéia do nome desde o episódio da sarça, a saber, na pessoa daquele que, como Deus, é homem e, como homem, é Deus. Deus tornou-se um de nós, portanto um portador de nome e uma presença ao nosso lado em coexistência. 5. As duas faces da idéia bíblica de Deus Tentando resumir tudo, nota-se a continuidade de uma dupla componente no conceito bíblico de Deus. De um lado está o elemento pessoal da proximidade, da invocabilidade, da autocomunicação, que se condensa de modo sintético na denominação, prenunciando-se primeiro na idéia "Deus dos pais, de Abraão, de Isaac e de Jacó", e concentrando-se no conceito "o Deus de Jesus Cristo". Trata-se sempre do Deus dos homens, Deus com um rosto, Deus pessoal; sobre ele concentram-se a conexão, a escolha e a decisão da fé patriarcal, de onde um longo, mas direto caminho nos conduz ao Deus de Jesus Cristo. Do outro lado está o fato de que essa proximidade, essa facilidade de acesso é livre dádiva de quem paira acima do espaço e do tempo, a nada ligado, e ligando tudo a si. O elemento do dinamismo supratemporal é típico desse Deus; concentra-se com crescente insistência no conceito [95] do ser, do "eu o sou", tão enigmático quanto profundo. Israel, no avançar do tempo, tentou traduzir, às apalpadelas, para os povos, o que é peculiar e próprio à sua fé, partindo deste segundo elemento. Colocou o "é" de Deus em antítese com o devir e a ruína do mundo e dos seus deuses – as divindades da terra, da fertilidade, da nação. Contrapôs aos deuses particulares o 57 Deus do céu, sobranceiro a tudo, senhor de tudo e independente de tudo. Acentuou a circunstância de o seu Deus não ser um Deus nacional de Israel, como cada povo costumava fazer com a sua divindade própria. Israel faz questão de não possuir nenhum Deus próprio, mas o Deus de todos e do universo: estava convencido de adorar o verdadeiro Deus exatamente desta maneira. Somente se tem Deus, quando não se dispõe de nenhum Deus próprio, confiando-se somente ao Deus que é o Deus dos outros, exatamente como o meu, porque ambos lhe pertencemos. O paradoxo da fé bíblica em Deus consiste na ligação e na unidade dos dois elementos citados, isto é, em que o ser é crido como pessoa e a pessoa como ser; que só o oculto é acreditado como o todo próximo; o inacessível como acessível, o um como o um que existe para tudo e para o qual todos existem. Interrompamos aqui a análise do conceito bíblico de Deus para retomar o fio da questão do nexo entre fé e filosofia, entre fé e razão, com a qual nos deparamos no princípio e que agora voltamos a encontrar. 60 teologia patrística. Está aí condensada de modo único a luta da Igreja antiga e a tarefa permanente imposta à fé cristã, caso queira conservar-se fiel a si mesma. A divinização da consuetudo Romana, da "origem" da cidade de Roma, que transformava os seus costumes em norma auto-suficiente do comportamento contrapõe-se à pretensão exclusivista da verdade. Com isto o cristianismo colocou-se decididamente ao lado da verdade, dando as costas a uma idéia de religião que se satisfazia em ser figura cerimonial, [101] à qual se podia acrescentar um sentido qualquer na fase da interpretação. Uma indicação ainda para esclarecer o que foi dito. A antiguidade ajeitou, afinal, o dilema de sua religião, de sua separação da verdade do conhecimento filosófico, na idéia de três teologias cuja existência era afirmada: teologia física, política e mítica. Justificou a pendência de mito e Logos com a consideração pelo sentir do povo e pela utilidade do estado na medida em que a teologia mítica possibilitava também uma teologia política. Em outras palavras: de fato colocou verdade contra costume, utilidade contra verdade. Os representantes da filosofia neoplatônica deram um passo adiante interpretando o mito ontologicamente, explicando-o como teologia do símbolo, tentando assim colocá-lo como mediador no caminho da exegese da verdade. Mas, cessou realmente de existir o que só pode sobreviver graças à interpretação. O espírito humano, com razão, volta-se para a própria verdade e não para o que ainda se pode declarar como concorde com a verdade por meio do método da interpretação, usando de atalhos, de subterfúgios, muito embora não possua mais verdade alguma. Ambos os processos revelam algo presente em nosso momento histórico, prenhe de preocupações. Em uma situação onde a verdade do crístico parece em vias de desfazer-se, tornam a delinear-se na luta em torno do cristianismo hodierno exatamente aqueles dois métodos com que outrora o politeísmo antigo travou o seu combate mortal e foi derrotado. De um lado, está a retirada do âmbito da verdade da razão para uma esfera de pura piedade, de pura fé, de simples revelação; retirada que, na realidade, queira-se ou não, concedida ou negada, se assemelha de maneira fatal à retirada da religião antiga frente ao Logos, à fuga frente à verdade, para os domínios de lindos costumes ou tradições, e frente à física, para o seio da política. Do outro lado está o processo, [102] que eu denominaria resumidamente cristianismo interpretativo. Aqui se desfaz, com o método da interpretação, o escândalo do crístico e, ao tornar-se assim inescandaloso, faz, ao mesmo tempo, de sua própria causa uma frase dispensável, um atalho inútil para dizer o simples que aqui é explicado mediante complicadas artimanhas interpretativas. Ao contrário disto, a opção cristã original é completamente outra. A fé cristã optou – já o vimos – pelo Deus dos filósofos, isto é, contra o mero mito do costume, optou exclusivamente pela verdade do próprio ser. A objeção contra a Igreja antiga – de que seus membros eram sequazes do ateísmo – procedia desse processo. Realmente, conseqüência disto foi que a antiga Igreja repudiou o mundo inteiro da religião antiga, que declarou nada disto aceitável, mas afastou de si tudo isto como sendo costume vazio, que se opõe à verdade. O Deus dos filósofos que foi conservado, não era considerado pela antiguidade como religiosamente importante, mas apenas como uma realidade acadêmica, extra-religiosa. O fato de só deixar este 61 Deus e de somente e exclusivamente declarar-se por ele foi considerado como irreligiosidade, como negação da religião e como ateísmo. Na suspeita de ateísmo com que o cristianismo antigo tinha de lutar, torna-se claramente reconhecível a sua orientação espiritual, sua opção contra a religião e contra o seu costume vazio de verdade opção feita unicamente em favor da verdade do ser. 2. Metamorfose do Deus dos filósofos Certamente não se pode deixar de considerar a outra face do processo. Decidindo-se exclusivamente pelo Deus dos filósofos e, conseqüentemente, declarando-o como o Deus ao qual se podia rezar e que fala aos homens, a fé cristã conferiu a este Deus dos filósofos um significado completamente novo, arrancando-o da esfera puramente acadêmica e alterando-o [103] profundamente. Este Deus que primeiro se apresenta como um neutro, como o conceito supremo, arrematador, este Deus compreendido como o puro ser ou a idéia pura, a girar eternamente fechado em si mesmo, jamais se inclinando para o homem e para o seu pequeno mundo, este Deus cuja pura eternidade e imutabilidade exclui qualquer relação para com o mutável e o em-devir apresenta-se agora para a fé como o Homem-Deus, que não é somente idéia da idéia, eterna matemática do universo, mas ágape, dinamismo do amor criativo. Neste sentido encontra-se na fé cristã o que Pascal experimentou na noite em que escreveu em uma cédula, que costurou no forro da roupa, esta frase: "Fogo, 'Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó' não 'Deus dos filósofos e sábios"17. Em oposição a um Deus totalmente remergulhado no mundo da matemática, Pascal viveu a experiência da sarça ardente, compreendendo que o Deus, que é a eterna geometria do cosmos, só pode sê-lo por ser amor criador, por ser sarça ardente de onde soa um nome, com que ele penetra no mundo do homem. Portanto, neste sentido existe a experiência de que o Deus dos filósofos é todo diferente da imagem que eles dele fizeram, sem cessar de ser o que eles constataram. Este Deus só se torna realmente conhecido, quando compreendemos que, sendo a verdade por excelência e o fundamento de todo o ser, é, inseparavelmente, o Deus da fé e o Deus dos homens. Para averiguar a mudança sofrida pelo conceito filosófico de Deus em sua equiparação ao Deus da fé, basta apelar para qualquer texto bíblico que fale de Deus. Escolhamos, a esmo, Lc 15,1-10, a parábola da ovelha extraviada e da [104] dracma perdida. Pretexto e ponto de partida é o escândalo dos escribas e fariseus pelo fato de Jesus assentar-se à mesa com pecadores. Como resposta segue-se o aceno para homem que, tendo cem ovelhas, perde uma delas, vai-lhe ao encalço, procura, encontra-a e sente-se mais contente e alegre com isto do que com as 99 que lhe ficaram fiéis. A estória da dracma reencontrada, que desperta mais alegria do que o restante dinheiro jamais perdido, tende para a mesma direção: "Haverá mais alegria no céu por um só pecador arrependido do que por noventa e nove justos que não têm 17 Texto do "Mémorial", como se denomina essa cédula, em ROMANO GUARDINI, Christliches Bewusstsein, Munique, 21950, 47 s, ibd, 23, reprodução reduzida do original; confira-se a análise de GUARDINI, 27-61. Para completar e corrigir H. VORGRIMLER, "Marginalien zur Kirchenfrommigkeit Pascals", em : J. Daniélou-H. Vorgrimler, sentire ecclesiam, Priburgo 1961, 371 a 406. 62 necessidade de arrependimento" (Lc 15,7). Destas parábolas, em que Jesus justifica e descreve a sua atuação e missão de enviado de Deus, emerge, como assunto, com a história das relações entre Deus e homem, a pergunta: quem é o próprio Deus? Tentando separá-lo deste texto, teremos que dizer: o Deus que aqui vemos apresentar-se surge, como em numerosos textos do Antigo Testamento, muito antropomórfico, muito antifilosófico; tem paixões como o homem, alegra-se, procura, espera, vai ao encontro. Não é a geometria insensível do universo, não a justiça neutra a pairar sobre as coisas, impassível diante de um coração e dos seus afetos. É um Deus que tem coração, que ama com toda a singularidade do amante. Assim torna-se clara neste texto a alteração da idéia puramente filosófica, e vê-se quão longe continuamos desta identificação do Deus da fé e do Deus dos filósofos, o quanto somos incapazes de alcançá-la, e quanto fracassaram a nossa idéia de Deus e a nossa compreensão da realidade cristã. A grande maioria dos homens de hoje continua reconhecendo, de uma forma qualquer, a existência de algo como "um ser supremo". Mas considera-se absurdo um tal ser ocupar-se com os homens. Temos a impressão – inclusive os que tentam crer – de que algo assim é expressão de um [105] antropomorfismo simplório, de uma forma antiga de pensamento humano, compreensível em uma situação onde o homem ainda vivia em um mundo pequeno, no qual a terra constituía o centro de todas as coisas e Deus nada mais tinha a fazer do que ficar olhando para ela. Mas, pensamos, em uma época em que sabemos quão imensamente outra é a realidade, quão insignificante é a terra no cosmos gigantesco e quão sem importância, portanto, se apresenta o grãozinho de pó chamado homem, em confronto com a dimensão cósmica; em um tempo como o nosso parece-nos absurda a idéia de um ser supremo a preocupar-se com o homem, com o seu pequeno mundo miserável, com os seus cuidados, seus pecados e suas boas ações. Mas pensando estar assim a falar de Deus, de maneira muito divina, realmente pensamos nele de modo muito humano e mesquinho, como se, para não perder a supervisão, Deus tivesse de escolher. Imaginamo-lo como uma consciência igual à nossa, limitada, sempre necessitada de algum ponto de apoio e incapaz de abarcar a tudo. Diante de tais limitações, sirva-nos de lembrete da verdadeira imagem de Deus aquele lema com que Hölderlin encabeçou o seu Hyperion: "Non coerceri maximo, contineri tamen a minimo, divinum est – não ser coartado pelo máximo, deixar-se abarcar pelo mínimo, isto é divino". Aquele espírito ilimitado, portador da totalidade do ser, ultrapassa o "máximo" de modo tal, que este se torna insignificante para ele; e alcança até o cerne do mais pequeno, porque nada é pequeno demais para ele. Exatamente esta ultrapassagem do máximo e esta extensão até ao mínimo constituem a autêntica natureza do espírito absoluto. Ao mesmo tempo, revela-se aqui uma inversão dos valores de máximo e mínimo, de maior e menor, que é característica para a compreensão cristã da realidade. Para aquele que sustenta e dilata o universo, como espírito, o coração de um homem capaz de amar é maior do que todas as Vias Lácteas. São ultrapassados [106] os parâmetros quantitativos; revelam-se outras ordens de grandeza a partir das quais o infinitamente pequeno é o verdadeiramente 65 CAPÍTULO QUARTO "Creio em Deus" – Hoje [111] Depois de tudo o que se disse, qual é o sentido das palavras do Credo: "Creio em Deus", nos lábios do homem hodierno? Quem assim fala, realiza primeiramente uma opção entre os valores e as medidas do mundo, opção perfeitamente clara como verdade (e, em certo sentido qualificado, até valendo como opção pela verdade), mas que somente pode ser alcançada na opção e como opção. Uma opção que assim se faz, também no sentido de uma procura selecionadora entre diversas possibilidades. O que Israel teve de completar nos albores de sua história e a Igreja foi obrigada a repetir no início do seu caminho, deve ser feito novamente em cada vida humana. Como, naquela época, devia ser feita a opção contra as possibilidades chamadas Moloch e Baal, contra o costume, em favor da verdade, assim a profissão cristã "creio em Deus" continua sendo sempre um processo de separação, de aceitação, de purificação e de mudança. Somente assim pode ser mantida a confissão cristã em um Deus, nos tempos que correm. Mas quais os rumos apontados por este processo hodierno? 1. O primado do Logos Fé cristã em Deus conota primeiramente a opção pelo Logos em confronto com a matéria pura. Dizer: "Creio que [112] Deus existe" inclui, na opção, a aceitação do Logos, isto é, do pensamento, da liberdade, do amor, não apenas no fim, mas também no início; que ele é a força original e envolvente de todo o ser. Em outras palavras: a fé denota uma escolha da idéia de que pensamento e sentido não são meros produtos ocasionais e secundários do ser, mas, antes de todo o ser, é produto do pensamento e até, em sua estrutura mais íntima, é pensamento. E neste sentido a fé significa, especificamente, uma opção pela verdade, pois, para a fé, o próprio ser é verdade, compreensibilidade, sentido, tudo isto não representando um mero produto acessório do ser, surgido alhures, sem poder ter uma importância estruturadora, normativa para a totalidade do real. Nessa opção pela estrutura espiritual do ser, que se origina do sentido e da razão, está incluída, ao mesmo tempo, a fé na criação. Porquanto essa fé nada mais é do que a convicção de que o espírito objetivo, cuja presença constatamos em todas as coisas e ao qual até aprendemos a compreender, em medida crescente, como sendo as coisas, é imagem e expressão do espírito subjetivo; e a estrutura ideal possuída pelo ser, possível de ser conhecida, é expressão de um protopensamento criador, através do qual as coisas existem. Digamo-lo mais exatamente: na antiga expressão pitagórica do Deus que pratica geometria, exprime-se a opinião da estrutura matemática do ser, a qual ensina a conceber o ser como pensamento, como estruturado racionalmente; revela-se o pensamento de que também a matéria não é puro non-sens a furtar-se à compreensão, mas portadora, também ela, da verdade e da compreensibilidade, que torna possível uma compreensão racional. Essa hipótese tornou-se particularmente densa em nossa 66 época, graças à pesquisa da constituição matemática da matéria, da sua racionabilidade e aplicabilidade matemática. Certa feita Einstein declarou, a respeito das leis da natureza, que nelas "se revela uma razão tão sobranceira, [113] que todo o racional da inteligência humana e da ordem humana não passa de insignificante reflexo"20. O que, sem dúvida, quer dizer que todo o nosso pensamento, de fato, é mero refletir sobre o que já foi pensado. Nosso pensamento somente pode tentar, de modo pobre, reproduzir aquele "ser-pensado" que são as coisas, encontrando ali a verdade. A compreensão matemática encontrou aqui, como que através da matemática do cosmos, o "Deus dos filósofos" – aliás com toda a sua problemática, que se trai, quando Einstein recusa continuamente o conceito pessoal de Deus como sendo "antropomorfo", catalogando-o como "religião do medo" e "religião moral", à qual contrapõe a "religiosidade cósmica" como a única condizente, que, para ele, se concretiza "na admiração extasiada da harmonia das leis da natureza" em uma "fé profunda na inteligência do edifício dos universos" e no "anseio pelo desvendamento de um, mesmo que seja, medíocre reflexo da razão que se revela neste mundo"21. Eis, diante de nós, o problema inteiro da fé em Deus: de um lado, percebe-se a transparência do ser que, como "ser-pensado", aponta para um pensamento, mas, simultaneamente, encontramos a impossibilidade de relacionar esse pensar do ser com o homem. Torna-se visível a barreira erguida por um conceito de pessoa estreito e não suficientemente refletido, a dificultar a equiparação do Deus da fé com o Deus dos filósofos. Antes de tentar avançar, acrescento uma segunda declaração semelhante, de um cientista. James Jeans disse certa vez: "Averiguamos que o universo apresenta vestígios de uma [114] força planificadora e controladora, que tem algo de comum com o nosso próprio espírito individual. Enquanto o avanço hodierno nos permite ver, não se trata de sentimento, moral ou capacidade estética, mas da tendência de pensar de um modo que, na falta de termo melhor, denominamos geometria"22. Tornamos a encontrar fenômeno idêntico: o matemático descobre a matemática do cosmos, o "ser-pensado" das coisas. E nada mais. Descobre apenas o Deus dos filósofos. Mas, será de admirar um tal fato? O matemático que considera o mundo matematicamente, pode encontrar no cosmos outra coisa que não a matemática? Não deveríamos perguntá-lo, se jamais contemplou o mundo de outra maneira senão matematicamente? Pergunto; por exemplo, se ele nunca viu uma pereira em flor e nunca se admirou de que o processo da fecundação, numa espécie de balé entre abelha e árvore, não se realiza de outro modo senão mediante a flor, incluindo aí o milagre plenamente inútil da sua beleza, que, de novo, somente pode ser entendido pela participação e pelo empenho do que já é belo sem nós? Se Jeans pensa que algo assim ainda não foi descoberto naquele espírito, poder-se-á responder-lhe serenamente: também jamais será nem pode ser descoberto pela física, porque ela, em 20 A. EINSTEIN, Mein Weltbild, editado por C. SEELIG, Zurique-Stuttgart-Viena, 1953, 21. 21 Ob. cit., 18-22. No capítulo Necessidade da cultura ética (22-24) mostra-se, aliás, um abrandamento da ligação íntima de antes, entre conhecimento científico-natural e admiração religiosa; a visão sobre o religioso propriamente dito parece um tanto aguçada através das trágicas experiências passadas. 22 Citado por W. VON HARTLIEB. Das Christenturn und die Gegenwart, Salzburgo, 1953 (Stifterbibliothek, vol. 21), 18 s. 67 seu questionamento, abstrai, naturalmente, do sentimento estético e da atitude moral, interrogando a natureza com mentalidade puramente matemática e, conseqüentemente, podendo enxergar exclusivamente o lado matemático da natureza. A resposta depende sempre da pergunta. Ora, o homem à procura de uma visão global, será antes obrigado a dizer: sem dúvida, deparamos com matemática objetivada no mundo. Mas muito menos deixamos de encontrar no mundo o milagre inaudito e inexplicável da beleza, [115] ou melhor: no mundo existem processos, que se apresentam ao espírito inquiridor do homem sob a forma do belo, obrigando-o a reconhecer que o matemático realizador desses processos desenvolveu sua fantasia criativa em proporção inaudita. Resumamos as observações enfileiradas de modo esquemático e fragmentário: mundo é espírito objetivo; apresenta-se-nos em uma estrutura espiritual, isto é, oferece-se como reflexível e compreensível, à nossa mente. Daí se segue o próximo passo. Dizer: Credo in Deum – "creio em Deus" exprime a convicção de que o espírito objetivo é resultado de espírito subjetivo, podendo subsistir exclusivamente como sua forma derivada. Expresso de outra maneira: o "ser-pensado" (como o constatamos na estrutura do mundo) não é possível sem o pensar. Quiçá seja ainda útil esclarecer e garantir esta afirmação, entrosando-a – novamente, apenas em traços gerais – em uma espécie de autocrítica da razão. Após vinte e cinco séculos de pensamento filosófico já não nos é mais possível falar simplesmente e despreocupadamente do assunto, como se muitos outros antes de nós não tivessem tentado a mesma coisa, fracassando em seu intento. Além disto, se olharmos para o montão de ruínas de hipóteses, de agudeza mental esbanjada sem resultado e de lógica desengrenada que a história apresenta, ameaça abandonar-nos a coragem de encontrar algo da verdade propriamente dita e oculta, que ultrapassa o imediato. Contudo, a impossibilidade não é tão imensa como à primeira vista poderia parecer. Pois, apesar da quase inumerável multiplicidade de caminhos filosóficos contraditórios, apresentam-se, em última análise, apenas umas poucas possibilidades básicas para explicar o mistério do ser. Poderíamos formular assim a pergunta, na qual, afinal, tudo está incluído: Na multiplicidade dos seres individuais, onde identificar, vamos dizer, a matéria comum do ser – qual é o ser único [116] que se encontra atrás de todas as coisas existentes, as quais "são"? As múltiplas respostas, apresentadas no correr da história, podem reduzir-se a duas possibilidades fundamentais. A primeira soaria mais ou menos assim: tudo o que encontramos é, afinal de contas, matéria; ela é o único elemento que sobra como realidade comprovável; portanto ela representa o ser propriamente dito da existência – eis o caminho materialista. A outra possibilidade aponta para rumo oposto: quem observar a matéria até o fim, descobrirá ser ela "ser-pensado", pensamento objetivado. Portanto, a matéria não pode ser o último elemento. Antes dela, encontra-se o pensar, a idéia; todo o ser é, finalmente, um "ser-pensado", tendo de ser reduzido a espírito como protorealidade – eis o caminho idealista. Para julgar tais hipóteses, urge perguntar mais exatamente: Que é matéria? E que é espírito? Muito resumidamente, poderíamos dizer: Chamamos "matéria" a um ser que não é autoconsciente de ser, que, portanto, "é", mas não se compreende a si mesmo. Por conseguinte, a redução de todo ser à matéria como forma original da 70 que o genérico; a pessoa, o único, o irrepetível também é o definitivo e o supremo. Em tal visão cósmica, a pessoa não é exclusivamente indivíduo, um exemplar mimeografado mediante a simples divisão da idéia pela matéria, mas é exatamente e em sentido pleno "pessoa". A mentalidade grega sempre designava os inúmeros seres individuais, inclusive os homens, apenas como "indivíduos". Eles originam-se graças ao fracionamento da idéia pela matéria. Portanto, o multiplicado sempre será o secundário; o próprio seria o único e o geral. O cristão não vê no homem um indivíduo, mas uma pessoa – parece-me que na mudança de indivíduo para pessoa se encontra a medida completa da passagem da Antiguidade ao Cristianismo, do Platonismo à Fé. Esse ser determinado não é, absolutamente, nada de secundário que nos permita adivinhar, fragmentariamente, o geral como o próprio. Como o mínimo, ele é o máximo, como o único e irrepetível, é o supremo e o próprio. Tira-se daí uma última conclusão. Se é verdade que a pessoa é mais do que o indivíduo, que existe um primado do específico sobre o geral, segue-se que a unidade não é o único e derradeiro, mas que também a multiplicidade tem o seu direito próprio e definitivo. Esta conclusão que, com necessidade interna, se deriva da opção cristã conduz automaticamente a ultrapassar a idéia de um Deus que é exclusivamente unidade. A lógica interna da fé cristã em Deus obriga a passar por cima de um puro monoteísmo, conduzindo-nos à fé no Deus uno e trino, sobre o qual agora teremos de dar uma palavra conclusiva. 71 CAPÍTULO QUINTO Fé no Deus Trino [121] Com as considerações feitas até agora alcançamos um ponto em que a fé cristã no Deus uno passa à aceitação do Deus uno e trino, como por uma espécie de interna necessidade. Por outro lado, não podemos esquecer que agora pisamos em terreno onde a teologia cristã deve ter consciência de sua limitação, mais do que até agora, por vezes, se tem dado; terreno, onde qualquer falsa ousadia de querer saber tudo com exagerada exatidão há de transformar-se em loucura de conseqüências imprevisíveis; terreno em que somente o humilde reconhecimento da insciência pode redundar em verdadeiro saber e só a atitude maravilhada diante do mistério impenetrável pode constituir uma fé autêntica em Deus. Amor é sempre mistério: mais do que se pode calcular e compreender. Portanto, o próprio amor – o Deus incriado e eterno – deve ser mistério em grau supremo: o mistério por excelência. Contudo – apesar da inevitável discrição da razão, a única atitude aqui indicada para que o pensamento se mantenha fiel a si mesmo e à sua tarefa – deve-se lançar a pergunta sobre o que significa a fé em um Deus uno e trino. Não se pode tentar agora – como, aliás, seria necessário para uma resposta satisfatória – seguir, passo a passo, as várias etapas de sua evolução, nem desenvolver as diversas fórmulas pelas [122] quais a fé procurou proteger essa verdade contra o equívoco. Umas poucas indicações deverão bastar. 1. Introduzindo na compreensão a) Ponto de partida da fé no Deus uno e trino. A doutrina trinitária não se originou de uma especulação sobre Deus, de alguma tentativa da reflexão filosófica para explicar como se teria processado a origem de todo ser, mas foi conseqüência dos esforços para uma elaboração de experiências históricas. A fé bíblica primeiramente girava – no Antigo Testamento – em torno de Deus que se lhe manifestava como Pai de Israel, como Pai dos povos, como criador do mundo e seu Senhor. Na época da estruturação do Novo Testamento acrescenta-se-lhe um processo totalmente novo mediante o qual Deus se mostra sob um aspecto até ali desconhecido: em Jesus Cristo encontramos um homem que, ao mesmo tempo, se sabe e se revela como Filho de Deus. Encontramos a Deus na figura do mensageiro, o qual é todo Deus e não algum ser intermediário e que, contudo, conosco chama a Deus de "Pai". Donde se segue um singular paradoxo: por um lado, esse homem chama a Deus de "Pai", fala-lhe como a alguém que lhe está próximo. Ora, se uma atitude assim não quiser passar por puro teatro, mas por verdadeira – como condiz a Deus – ele deve ser alguém diverso desse Pai ao qual fala e a quem nos dirigimos. Por outro lado, ele mesmo é a concreta proximidade de Deus que nos vem ao encontro; a mediação de Deus para nós e, exatamente, pelo fato de ser, ele mesmo, Deus feito homem, em figura e natureza humana é o Deus conosco ("Emmanuel"). No fundo, a sua mediação se eliminaria transformando-se de mediação em separação, fosse ele outro que não Deus, fosse ele um ser intermediário. Em tal caso não nos 72 conduziria a Deus, mas nos afastaria dele. Segue-se daí que, como mediador, é o próprio Deus e o "próprio homem", ambos [123] de modo real e completo. Ora, isto significa que Deus nos vem ao encontro não como Pai mas como Filho e irmão nosso – incompreensível e altamente compreensível, ao mesmo tempo – revelando uma dualidade em Deus, Deus como "eu" e "tu" em um. A essa experiência inédita de Deus segue-se finalmente, como terceiro, o acontecimento do Espírito, da presença de Deus em nós, em nossa vida interna. E torna a patentear-se que esse "Espírito" não é, sem mais, idêntico nem ao Pai, nem ao Filho, nem representa um terceiro entre nós e Deus, mas é a maneira como o mesmo Deus se nos doa, entra em nós, de modo que, dentro do homem e no âmago da "interioridade", é-lhe infinitamente superior. Portanto, constatamos que a fé cristã, no correr de sua evolução histórica, primeiramente gira, de fato, em torno de Deus nessa figura trina. É claro que, em breve, o homem deveria começar a refletir como essas diferentes realidades deviam ser relacionadas entre si. Havia de se perguntar qual seria o comportamento das três formas de encontros históricos com Deus em relação à própria realidade divina. A trindade das formas divinas experimentadas seria, acaso, simplesmente sua máscara histórica com que, fazendo diversos papéis, é sempre o mesmo único Deus que se avizinha do homem? Essa trindade revelar-nos-ia apenas algo sobre o homem e sobre suas diversas maneiras de relacionar-se com Deus? Ou não faria ela transparecer algo daquilo que é o próprio Deus em si mesmo? Hoje facilmente estaríamos inclinados a aceitar a primeira [124] hipótese como plausível, considerando todos os problemas como resolvidos por este caminho. Contudo, cumpre tomar consciência da extensão do problema, antes de embrenhar-se por um tal atalho. Ora, trata-se de saber se o homem, em sua relação com Deus, deve haver-se exclusivamente com os reflexos de sua própria consciência ou se lhe é concedido elevar-se realmente acima de si e encontrar-se com o próprio Deus. São imensas as conseqüência em ambos os casos. Se a primeira hipótese está certa, a prece não passaria de uma ocupação do homem consigo mesmo; a raiz de uma adoração propriamente dita está truncada, como também a da súplica – conseqüência, que, a seguir, mais e mais se vai avolumando. Tanto mais fortemente se impõe a pergunta, se tal atitude, afinal, não se baseia em certo comodismo mental, que escolhe o caminho do menor esforço, sem fazer muitas perguntas. Porquanto, se a segunda hipótese for a verdadeira, adoração e súplica são, não só possíveis, mas ordenadas, isto é, são um postulado do ser humano aberto na direção de Deus. Quem perceber a profundeza desta questão compreenderá também a paixão da luta que em torno dela se desencadeou, na antiga Igreja: compreenderá que nessa luta atuaram forças outras que não cavilações idealísticas ou culto de fórmulas, como facilmente poderia pensar o observador superficial; terá consciência de que a luta de então tornou a se reacender hoje, exatamente a mesma luta do homem em torno de Deus e de si mesmo; terá consciência de que não podemos sobreviver como cristãos, julgando poder escolher hoje um caminho mais cômodo do que o de outrora. Antecipemos a resposta na qual foi então encontrada a separação entre o caminho da fé e uma vereda que forçosamente conduziria a uma aparência de fé: Deus é como se revela. Deus não se revela de um modo que não seja o seu. Nesta afirmação está baseada a relação cristã com Deus; nela está fundada a doutrina trinitária; ela é essa 75 história. Expresso em outros termos: o Logos – o sentido de todo o ser – nasce para si mesmo, gradativamente, somente na história. A historização da doutrina trinitária, incluída no monarquismo torna-se assim historização de Deus. O que, novamente, significa que o sentido não é, sem mais, criador da história, mas que a história se torna criadora do sentido, passando este a criatura dela. Karl Marx contentou-se em tirar as últimas conseqüência desta doutrina: se o sentido não antecede ao homem, está no futuro, que o homem, combativamente, deve tornar presente. Ora, assim se comprova que na lógica do pensamento monarquista o caminho da fé se perde não menos do que o subordinacionismo. Porquanto em uma tal opinião suspende-se o contraste das liberdades, tão essencial para a fé; suspende-se, não menos, o diálogo do amor e sua incalculabilidade, suspende-se a estrutura personalística do sentido cosmo-envolvente e da criatura aberta para este sentido. Tudo isto – o pessoal, o dialogal, a liberdade e o amor – funde-se na necessidade do processo único da razão. Mas ainda há outra coisa a notar: o desejo radical de penetrar na doutrina trinitária, a racionalização radical que devém historização do próprio Logos, querendo, com o conceito de Deus, compreender sem mistério, também a história de Deus e construí-la em sua lógica exata exatamente esta grandiosa tentativa de apossar-se totalmente da lógica do próprio Logos reconduz à mitologia da história, ao mito de um Deus que se dá à luz a si mesmo historicamente. [129] A tentativa de uma lógica total termina em ilógica, em auto-supressão da lógica mergulhada no seio do mito. De resto, a história do monarquismo ainda revela um outro aspeto que cumpre citar, ao menos brevemente: o monarquismo recebe uma conotação positivamente política já em sua forma primitiva e, depois novamente, em sua retomada por Hegel e Marx: torna-se "teologia política". Na Igreja antiga o monarquismo serve para o tentame de fundamentar teologicamente a monarquia imperial; em Hegel torna-se apoteose do estado prussiano; em Marx passa a ser programa de ação para um futuro feliz da humanidade. Vice-versa, poder-se-ia notar, como, na Igreja antiga, a vitória sobre o monarquismo denota um triunfo sobre o abuso político da teologia: a fé trinitária da Igreja destruiu os modelos politicamente aproveitáveis, suprimindo deste modo a teologia como mito político e recusando o abuso da pregação para justificar uma situação política24. d) Doutrina trinitária como teologia negativa. Um olhar complexivo sobre o conjunto constata que a forma eclesiástica da doutrina trinitária pode ser justificada, primeiro e antes de tudo, negativamente, como comprovante da inviabilidade de todos os demais caminhos. Talvez seja isto a única coisa que aqui de fato se possa fazer. Num tal caso, a doutrina trinitária deveria ser entendida negativamente, como a única forma segura de rebater qualquer veleidade de penetrar o mistério, como uma espécie de código para a insolubilidade do mistério de Deus. Tornar-se-ia problemática se tentasse, por sua vez, encaminhar-se por um querer-saber simples e positivo. Se a trabalhosa história da luta humana e cristã em torno de Deus prova alguma coisa, então será que qualquer tentame de enquadrar [130] Deus no conceito 24 L. c. 102 e ss. Igualmente importante é a observação de PETERSON, 147, nota 168: "O conceito de "teologia política" foi introduzido na literatura por W. CARL SCHMITT, Politische Theologie, Munique, 1922... Tentamos comprovar, com um exemplo concreto, a impossibilidade de uma "teologia política". 76 da nossa razão conduz ao absurdo. Podemos falar corretamente dele, exclusivamente renunciando ao desejo de compreender, deixando-o como o incompreensível. Portanto, doutrina trinitária não pode ser uma compreensão de Deus. Ela é uma declaração de limites, um gesto indicador, a apontar para o inominável, não uma definição a encaixar as coisas nos fichários do saber humano; não um conceito capaz de colocar o objeto na posse do espírito humano. Este caráter de indicação onde conceito se torna mero aceno, compreensão se torna simples tentativa rumo ao inatingível, poderia ser representado exatamente mediante as próprias formulações eclesiásticas e por meio de sua pré-história. Cada um dos grandes conceitos básicos da doutrina trinitária já foi condenado alguma vez: todos eles só foram aceitos através desse entrecruzamento com alguma condenação; tais conceitos valem apenas enquanto são simultaneamente designados como inúteis para assim serem admitidos, como pobre balbuciar e nada mais25. O conceito persona (prósopon), como ouvimos, foi condenado uma vez; o termo central, que no século IV se tornou estandarte da ortodoxia, o homousios (= uma natureza com o Pai) fora condenado no século IV; a idéia da processão tem atrás de si uma proscrição, e assim por diante. Penso que essas condenações das fórmulas posteriores da fé pertencem intrinsecamente a estas mesmas fórmulas: são utilizáveis apenas pela negação e no ilimitado caráter indireto que daí se segue: a doutrina trinitária só é possível como teologia entrecruzada. Ainda haveria outra observação a acrescentar. Perlustrando a história dogmática da doutrina trinitária em qualquer tratado [131] moderno de Teologia, temos a impressão de estar em alguma necrópole de heresias, cujos estandartes a Teologia continua a carregar consigo, como outros tantos troféus de vencidas batalhas. Contudo, olhando desta maneira, não se compreende bem a questão, pois todas essas tentativas repelidas finalmente como aporias e, assim como heresias, no correr de uma refrega demorada, não são meros mausoléus de pesquisas humanas fracassadas, sepulcros nos quais nos é dado constatar quantas vezes o pensamento falhou, restos que agora podemos contemplar com uma curiosidade voltada para o passado – aliás sem resultado prático. Cada heresia é, antes, um código, uma sigla a resumir alguma verdade permanente que só subsiste unida com outras declarações igualmente válidas, separada das quais, ela resulta em falsa visão. Dito em outras palavras: todas essas declarações não são tanto monumentos sepulcrais, mas, antes, pedras de uma catedral, que, naturalmente, serão aproveitáveis se não ficarem isoladas, mas, encaixadas no todo maior, assim como as fórmulas positivamente aceitas só valem quando guardam consciência, ao mesmo tempo, de sua insuficiência. O jansenista Saint-Cyran, certa vez, exprimiu um pensamento memorável, afirmando que a fé consiste em uma série de paradoxos que se conservam unidos pela graça26. Exprimiu assim, no terreno da Teologia, uma idéia que, na Física hodierna, 25 À guisa de ilustração seja aduzida aqui a história do "homousios". Confira-se a síntese de A. GRILLMEIER, em: LThK V, 467 s.; além disto, o resumo da história do dogma trinitário em A. ADAM, o. cito 115-254 (veja-se à pág. 86 nota 13). Sobre o tema "Balbuciar do homem diante de Deus" cfr. a bela estória "O balbuciar" das narrações cassídicas em: M. BUBER, Werke III, Munique, 1963, 334. 26 Citado por H. DOMBOIS, "Der Kampf um das Kirchenrecht", em: H. ASSMUSSEN – W. STÄHLIN, Die Katholizität der Kirche, Stuttgart, 1957, 285-307, citações 297 s. 77 integra o pensamento científico, como lei da complementaridade27. Torna-se mais e mais claro ao físico moderno que [132] não podemos compreender as realidades dadas, por exemplo: a estrutura da luz ou da matéria em geral, em uma única forma de experiência, nem, por conseguinte, podemos representá-los em uma única forma de axioma, pois não conseguimos senão captar, focalizando de vários lados, e de cada vez, um aspeto, que não estamos em condições de reduzir a outro. Reunidos ambos – por exemplo, a estrutura corpuscular e a onda – hão de ser considerados como um avanço preliminar ao conjunto, sem que se possa descobrir um ponto de vista que abranja tudo, que, como tal, não nos é acessível globalmente por causa da limitação do nosso ponto de enfoque. O que se dá na esfera da Física, como conseqüência da limitação de nossa capacidade visual, vale em proporção incomparàvelmente maior, com respeito às realidades espirituais e a Deus. Também neste terreno somos capazes apenas de focalizar um único lado e perceber de cada vez um único aspeto, que parece contradizer a outros, mas que, apesar disto, poderá constituir uma indicação na direção do todo, porém com a condição indispensável de ficar unido aos demais elementos que não podem ser compreendidos nem expressos. Somente por circunlóquios, por percepção e afirmação de diversos aspetos, aparentemente contraditórios, conseguimos apontar para a verdade que, não obstante, jamais se nos torna patente em sua totalidade. Quiçá o pensamento da Física moderna nos forneça algum subsídio melhor do que a Filosofia aristotélica. A Física atual sabe que se pode falar sobre a estrutura da matéria apenas pela confrontação de variadas estimativas. Sabe que o resultado da pesquisa da natureza depende cada vez do respectivo ponto de enfoque do observador. Por que não poderíamos também nós compreender, de modo todo novo, a partir daqui, que na pesquisa de Deus não cumpre buscar um conceito último do ser, envolvedor da totalidade, mas deveríamos estar dispostos a enfrentar e aceitar uma multiplicidade de aspetos dependentes do ponto de observação, que, em última análise, [133] não podemos contemplar, mas aceitar uns dos outros, sem contribuir com o elemento último para a expressão? Encontramos aqui a oculta complementaridade de fé e pensamento moderno. A Física moderna, ultrapassando a estrutura da Lógica aristotélica, pensa assim, e isto já é resultado da nova dimensão aberta pela Teologia cristã, de sua necessidade de pensar em complementaridade. Quero ainda lembrar em poucas palavras dois outros subsídios da Física. E. Schrödinger definiu a estrutura da matéria como "embrulhos de ondas" (ou "pacotes de ondas"), apresentando assim a idéia de um ser não substancioso, mas puramente ativo, cuja "substancialidade" aparente, de fato, resulta da estrutura móvel de ondas sobrepostas. No domínio da matéria uma proposta assim devia ser altamente vulnerável fisicamente e, em todo caso, filosoficamente. Mas, continua sendo um símile excitante da actualitas divina, do ato puro de Deus e do fato de o mais compacto dos seres – Deus – só poder afirmar-se em uma pluralidade de relações que 27 H. DOMBOIS (o. cit.) chama a atenção para o fato de N. BOHR, introdutor da complementaridade na Física, por sua vez, ter aludido à Teologia: à complementaridade da justiça e misericórdia de Deus; Confira-se N. BOHR, Atomtheorie und Naturbeschreibung, Berlin, 1931; do mesmo: Atomphysik und Menschliche Erkenntnis, Braunschweig, 1958. Outras indicações e bibliografia oferece C. F. VON WEIZSACKER em seu artigo "Komplementarität", em: Die Religion in Geschichte und Gegenwart (RGG) III, 1744 e s. 80 é, em si mesma, plenitude e multiplicidade, de modo que a unidade e a pluralidade das criaturas, ambas, na mesma medida, são imagem e participação no divino. Não só a unidade é divina, também a multiplicidade é algo primitivo, tendo no próprio Deus o seu fundamento intrínseco. Multiplicidade não é apenas ruína a se originar fora da divindade; ela começa não só pela intervenção da "dyas", da rachadura, da fenda; não é resultado do dualismo de duas forças antagônicas, mas corresponde à plenitude criativa de Deus que, pairando acima da unidade e da pluralidade, a ambas envolve29. Por conseguinte, só com a fé trinitária a reconhecer o plural na unidade de Deus se conseguiu eliminar definitivamente o dualismo como princípio esclarecedor da unidade ao lado da multiplicidade. Só por essa fé fundamentou-se definitivamente a valorização positiva do plural. Deus está acima do singular e do plural. Ele ultrapassa a ambos. Há conseqüência a tirar daí. A unidade máxima para quem crê em Deus, como uno e trino, não é a unidade da rígida imobilidade monótona. Portanto, o modelo da unidade a ser visado como ideal não é a indivisibilidade do átomo, a menor das unidades, não susceptível de divisão; o protótipo mais elevado da unidade é a unidade que desabrocha do amor. A pluri-unidade que floresce no amor é mais radical, mais verdadeira do que a unidade do "átomo". [138] 2ª. Tese: O paradoxo: "Una essentia tres personæ" existe em função do conceito de pessoa e deve ser interpretado como implicação interna da idéia de pessoa. Reconhecendo a Deus, sentido criativo, como pessoa, a fé cristã vê nele inteligência, palavra, amor. A confissão de Deus como pessoa necessariamente inclui, a seguir, o reconhecimento de Deus como relação, como pronunciável, como fecundidade. Não poderia ser pessoa o que é simplesmente uno, irrelacionado e irrelacionável. Não existe pessoa na unidade absoluta. Aliás isto já se dá nos vocábulos com que o conceito de pessoa cresceu. O grego prósopon, literalmente: "olhar", com a partícula pros = para, inclui a relação como seu constitutivo. Dá-se o mesmo com o latim persona (e o português: pessoa): per-sonare: soar através, fazer- se ouvir através, a exprimir capacidade de falar, de dialogar, de manifestar-se. Em outras palavras: se o absoluto é pessoa, não é absoluta unidade, porquanto a ultrapassagem da unidade está incluída necessariamente no conceito de pessoa. Ao mesmo tempo, contudo, somos forçados a reconhecer que a confissão de que Deus é pessoa na modalidade da trindade, supera e vence qualquer conceito simplório e antropomórfico de pessoa. Revela-nos, como que em forma de sigla, que a personalidade divina supera infinitamente o modo humano de ser pessoa, de modo que a idéia de pessoa, por mais rico que seja o seu conteúdo, se revela como símile insuficiente. 3ª. Tese: O paradoxo: "Una essentia tres personæ" está subordinado ao problema do absoluto e relativo e destaca o caráter absoluto do relativo. 29 Confira-se a respeito W. KERN, "Einheit-in-Mannigfaltigkeit", em: Gott in Welt (Festschrift für K. Rahner) I, Friburgo, 1964, 207-239; veja-se também o que escrevi à página 85, nota 13 sobre MÁXIMO CONFESSOR. 81 a) Dogma como regulamentação de termos. Tentemos abrir caminho ao que pensamos, mediante a seguinte consideração: se a fé exprime a trindade de Deus na fórmula "uma natureza [139] – três pessoas" desde o século III, uma tal disposição dos conceitos é, em primeiro lugar, mera "disciplinação terminológica"30. De início, abstraindo-se de qualquer terminologia fixa, era considerado como firme e certo apenas o elemento do "um" e o da "trindade"; além disto, devia encontrar expressão a completa igualdade de ambos no domínio envolvente da unidade. Em certo sentido deve considerar-se obra do acaso a circunstância de ambas as realidades terem encontrado o seu revestimento verbal nos vocábulos "substância" (ou "natureza") e "pessoa". Trata-se, em última análise, de fazer valer ambas as realidades, não as deixando ao arbítrio de cada um, com o perigo de poder fazer evaporar-se e destruir-se a mesma realidade, junto com a terminologia usada indiscriminadamente. Diante de tal situação, cumpre evitar avanços excessivos, por exemplo, considerando tais termos como os únicos possíveis e concluindo-se que a verdade só se poderia exprimir assim e não de outros modos: com o que se negaria o aspeto negativo da terminologia da doutrina de Deus, e o seu caráter de mera tentativa. b) O conceito de pessoa. Por outro lado, porém, cumpre notar que este disciplinamento da terminologia significa mais do que qualquer possível encalhe em algum vocábulo. Na luta pela formulação do conteúdo da fé estava incluída a luta pelo próprio conteúdo, de modo que, nas fórmulas e nos termos, por inadequados que sejam, realiza-se um contato com a própria realidade. Sob o ponto de vista da história da Filosofia pode-se afirmar ter sido neste ponto que a realidade de "pessoa" passou por um crivo muito concreto; tanto o conceito, como a coisa em si, que se cobrem com o termo "pessoa", somente se desdobram ao espírito humano na luta em torno da imagem cristã de Deus e em torno do significado da figura de Jesus de Nazaré. Tentando analisar, com estas restrições, a [140] nossa fórmula, em sua conveniência, averiguamos que ela se impôs a partir de duas pressões. Primeiro, estava claro que Deus é um, visto de modo absoluto, que não existe uma pluralidade de princípios divinos. Uma vez estabelecida esta verdade, é claro que a unidade se encontra no plano da substância. Conseqüentemente, a Trindade, da qual também se deve falar, não pode ser procurada neste plano. Deve localizar-se em outro plano, no da relação, do "relativo". Esta conclusão é inevitável também, e sobretudo, mediante a pesquisa na Bíblia. Ali ela torna-se clara pelo fato de Deus parecer estar a falar consigo mesmo. Existe um "nós" em Deus – a Patrística já o encontrou na primeira página do Gênese: "Façamos o homem" (1,26); há um "eu" e um "tu" – a Patrística localizou-o nos salmos – ("Disse o Senhor ao meu Senhor", Sl 110,1), como também no diálogo de Cristo com o Pai. A descoberta do diálogo no seio da divindade levou a aceitar em Deus um "eu" e um "tu", um elemento de relação, de diferenciação e de sintonia mútua para o qual o conceito "pessoa" se impunha expressamente, de modo a conquistar assim uma dimensão nova de profundidade realística, para além dos 30 Confira-se o artigo de K. RAHNER, citado à pág. 60, nota 26. 82 limites de sua conotação teatral e literária, sem perder o seu caráter vago que o tornava apto para semelhante aplicação31. A categoria da relação recebeu um significado totalmente novo no pensamento cristão devido à idéia de que Deus, sob o ponto de vista da substância, é um, realizando-se nele o fenômeno dialógico, do qual resulta a diferenciação e a relação da fala. Para Aristóteles, "relação" enquadrava-se entre os "acidentes" ou seja, as peculiaridades ocasionais do ser que se distinguem da substância, que é a exclusiva forma portadora da [141] realidade. A experiência do Deus dialogizante, do Deus que não é Logos somente, mas Dia-logos, não só pensamento e sentido, mas conversa e palavra na correlação dos protagonistas esta experiência destrói a divisão antiga da realidade em substância – como o que propriamente é – e acidentes, ou seja, o mero ocasional. E toma-se claro que o diálogo-relação se firma como forma igualmente original do ser ao lado da substância. Com isto estava posto o fundamento da terminologia dogmática. Ela exprime a verdade de que Deus, como substância, como "ser" é simplesmente um. Se, apesar disto, temos de tratar dele na categoria de trindade, não se tenciona fazer uma multiplicação das substâncias, mas diz-se que, no seio de Deus, do Deus único e indivisível, existe o fenômeno do diálogo, a recíproca inclinação de palavra e amor. O que, por sua vez, denota que as "três pessoas" existentes em Deus são a realidade da palavra e do amor em sua intrínseca relação recíproca. Não são substâncias, personalidades em sentido moderno, mas são a relação, cuja pura atualidade (= ser ato) (lembre-se do "pacote de ondas"!) não suspende, mas determina a unidade do ser supremo. Agostinho, certa vez, concretizou este pensamento na fórmula seguinte: "Deus não é chamado Pai em relação a si, mas somente em relação ao Filho; visto em relação a si ele é apenas Deus"32. Aqui transparece o elemento decisivo de um modo muito belo. "Pai" é um conceito totalmente relativo. Deus é Pai exclusivamente na relação para com o outro; em si mesmo é apenas Deus. Pessoa é a pura relação, nada mais. A relação não é algo que se acrescenta à pessoa, como acontece em nós, ela existe exclusivamente como relação. Expresso com os termos de comparação da tradição cristã, isto quer dizer: a primeira pessoa não gera o Filho, como [142] se o ato generativo viesse a acrescentar-se à pessoa, mas ela é o ato generativo, de auto-doação e do transbordamento. A pessoa é idêntica ao ato de doação. Ela é pessoa somente como este ato; portanto, não o doador, mas o ato de doação, "onda" e não "corpúsculo"... Com esta idéia de relacionamento em palavra e amor, independente do conceito de substância, e não subordinável aos "acidentes", o pensamento cristão encontrou e tocou o cerne da idéia de pessoa, que denota algo diverso e diz mais do que o mero conceito de "indivíduo". Tornemos a ouvir Agostinho: "Em Deus não há acidentes, só substância e relação"33. Está latente aí uma revolução da imagem do mundo: está 31 Confira-se C. ANDRESEN, "Zur Entstehung und Geschichte des trinitarischen Personbegriffs", em: Zeitschrift für neutestamentliche Wissenschaft 52 (1961), 1-38; J. RATZINGER, "Zum Personverständnis in der Dogmatik", em: J. SPECK, Das Personverständnis in der Pädagogik und ihren Nachbarwissenschaften, Münster, 1966, 157-171. 32 AGOSTINHO, Enarrationes in Psalmos 68 s I, 5, em: CChr 39,905 (Patrologia Latina (PL) 36, 845). 33 Confira-se De Trinitate V 5,6 (PL 42, 913 s): "... In Deo autem nihil quidem secundum accidens dicitur, quia nihil in eo mutabile est; nec tamen omne quod dicitur, secundum substantiam dicitur... quod tamen relativum non est accidens, quia non est mutabile". Veja-se também M. SCHMAUS, Katholische Dogmatik I, Munique, 31948, 425-432 (§ 58). 85 tornar-se o ponto central da Teologia e do pensamento cristão em geral, de onde as demais linhas se irradiam. Tornemos novamente ao Evangelho de João que fornece os subsídios decisivos. Pode-se afirmar que a linha insinuada representa a dominante propriamente dita da sua Teologia. Ela revela-se, ao lado da idéia do "Filho", sobretudo em dois outros conceitos cristológicos que vamos indicar pelo menos rapidamente para completar o assunto. Trata-se do conceito de "missão" e do epíteto de Jesus como "Palavra" ("Verbo, Logos") de Deus. Outra vez a teologia da missão cobre-se com a teologia do ser como relação e a relação como modo de unidade. É conhecida a afirmação rabínica: "O enviado de um homem é como ele mesmo"35. Jesus surge em João como o enviado do Pai, e nele se cumpre tudo que os outros mensageiros conseguiram apenas assintoticamente: Jesus empenha-se de fato em ser o enviado; ele é o único mensageiro que representa o outro, sem meter de permeio nada dos seus próprios interesses. E assim, como autêntico enviado, ele é um com quem o envia. De novo, o conceito de missão conota o ser como ser "de" e ser "para"; e o ser é novamente compreendido como simples estar-aberto sem restrição. E outra vez segue-se a aplicação à vida cristã: "Como o Pai me enviou, assim eu vos envio" (13,20; 17,18; 20,21). Subordinada essa existência à categoria de missão, também ela passa a denotar ser "de" e "para", como relacionamento e, por isto, como unidade. Finalmente, ainda uma observação em torno da idéia de Logos. Caracterizando o Senhor como Logos, João colhe um termo vastamente espalhado na mentalidade grega e judaica, aceitando com ele uma série de conotações ligadas [147] ao mesmo, e que são transferidas para Cristo. Contudo, talvez a novidade que João imprimiu ao termo esteja, não por último, na circunstância de, para ele, "Logos" não significar meramente a idéia de uma eterna racionalidade do ser, como era compreendido na mentalidade grega. O conceito Logos aplicado a Jesus de Nazaré recebe uma nova dimensão. Não denota mais apenas a perpenetração, o embebimento de todo o ser com um sentido, mas denota determinado homem: este, aqui presente, é Logos (Verbo, Palavra). O conceito Logos, sentido, "razão" para o grego (ratio), transforma- se realmente em "Palavra" (Verbum). Este, aqui presente, é Verbo; portanto ele é "fala" e assim, a pura relação do que fala para com aqueles aos quais fala. Portanto, a teologia do Logos, como teologia do Verbo, torna a ser abertura do ser no rumo da idéia de relação. E torna a valer: Verbo essencialmente é "de um outro" e "para um outro", é existência, é completamente caminho e abertura. Terminemos com um texto de Agostinho, que coloca o assunto em plena luz, de modo grandioso. Encontra-se no comentário ao Evangelho de S. João, no texto: "Mea doctrina non est mea – minha doutrina não é minha doutrina, mas do Pai que me enviou" (7,16). Aproveitando o paradoxo desta afirmação, Agostinho esclareceu o paradoxo da idéia cristã de Deus e da vida cristã. Ele se pergunta, primeiro, se não é pura contradição, violência contra as regras elementares da lógica dizer algo como: o meu não é meu. Mas, assim vai ele penetrando em que consiste afinal a "doutrina" de Jesus que, simultaneamente, é e não é dele? Jesus é "palavra", portanto é claro que sua doutrina é ele mesmo. Tornando a ler a frase, sob este ponto de vista, eis o que 35 Citado por K. H. SCHELKLE, Jüngerschaft und Apostelamt, Friburgo, 1957, 30. 86 Jesus declara: eu não sou apenas eu; eu não sou meu mas o meu "eu" é de um outro. Com o que, ultrapassando a cristologia, chegamos a nós mesmos: Quid tam tuum quam tu, quid tam non tuum quam tu – o que é tão teu como tu mesmo; o que é [148] tão pouco teu como tu mesmo?"36 O mais nosso – que realmente pertence a nós somente – o próprio "eu" é, ao mesmo tempo, o menos nosso, porque justamente o nosso "eu" não o temos de nós nem para nós. O "eu" é o que mais tenho e, simultaneamente, o que menos me pertence. Portanto, torna a romper-se o conceito de simples substância (= do que subsiste em si), patenteando-se como um ser racional compreende que não se pertence dentro da sua identidade; que somente chega a si afastando-se de si, regressando, como relacionamento, para a sua verdadeira origem. Mediante tais ponderações não se arranca o véu de mistério à doutrina trinitária. Contudo, é claro que, por meio delas, se abre nova compreensão da realidade, do que é o homem, do que é Deus. No ponto da teoria, aparentemente mais extremada, revela-se algo de muito prático. Falando-se de Deus, descobre-se quem é o homem. O mais paradoxal é simultaneamente o mais claro e o mais prático. 36 AUGUSTINUS, In Joannis Evangelium tractatus 29, 3 (relativo a Jo 7,16), in: CChr 36, 285. SEGUNDA PARTE JESUS CRISTO CAPÍTULO PRIMEIRO "Creio em Jesus Cristo seu Filho Unigênito, Nosso Senhor". I. O problema da Fé em Jesus Cristo hoje [151] A segunda parte principal do Credo coloca-nos propriamente diante do elemento cristão fundamental – já abordado, de leve, nas considerações introdutórias: a crença de que o homem Jesus, um indivíduo executado na Palestina pelo ano 30, é o "Cristo" (ungido, escolhido) de Deus, e mais: é o próprio Filho de Deus, centro e opção de toda a história humana. Parece ousadia e tolice declarar centro decisivo da história inteira uma figura isolada, destinada a diluir-se mais e mais nas névoas do passado. A fé no "Logos", na razão ou racionalidade do ser, corresponde perfeitamente a uma tendência da razão humana; ora, neste segundo artigo do Credo realiza-se a quase monstruosa união de Logos e Sarx*, de razão ou sentido e figura individual da história. O sentido que sustenta todo o ser, tornou-se carne, isto é, penetrou na história, tornando-se alguém nela; ele não é mais apenas quem envolve e carrega a história, mas um ponto dentro dela. De acordo com isto, o sentido de todo o ser não mais poderia ser encontrado, de agora em diante, na intuição [152] do espírito a elevar-se acima do individual e limitado, até alcançar o geral; não mais existiria simplesmente no mundo das idéias a ultrapassar o particular, refletindo-se aí apenas fragmentariamente; deveria ser encontrado imerso no tempo, no rosto de um homem. Acorre à memória a comovente passagem com que Dante encerra a Divina Comédia quando, ao contemplar o mistério de Deus, no meio daquela "onipotência de amor, que conduz, silente e harmoniosa, o sol em seu círculo e todas as estrelas", descobre com bem-aventurada admiração a sua semelhança, uma face humana1. Mais tarde teremos de considerar a mudança do aspecto de ser para sentido que daí resulta. Por ora constatamos que, ao lado da união de Deus da fé e Deus dos filósofos reconhecida, no primeiro artigo, como condição fundamental e forma estrutural da fé cristã, surge agora uma segunda união, não menos decisiva, a saber, de Logos e Sarx, de Verbo e Carne, de fé e história. O homem histórico Jesus é o Filho de Deus, e o Filho de Deus é o homem Jesus. Deus acontece para o homem mediante o homem, e até mais concretamente: mediante aquele homem no qual se revela o aspecto definitivo da existência humana e o qual é ao mesmo tempo o próprio Deus. Talvez já agora se delineiem os traços que mostram revelar-se no paradoxo de Verbo e Carne algo cheio de sentido e em sintonia com o Logos. Contudo, o primeiro impacto desta realidade causa escândalo ao pensamento humano: Não nos tornamos com isto vítimas de um tremendo positivismo? Será razoável agarrar-nos à palhinha de um único acontecimento histórico? Poderemos ousar fundamentar a nossa * Sarx: vocábulo grego = carne (nota do tradutor). 1 Paradiso, XXXIII, 127 até o fim. O texto que interessa, no verso 130 e ss: Dentro da sè del suo colore istesso / Mi parve pinta della nostra effige / Per che il mio viso in lei tutto era messo. 90 seu intermediário, nos aproximarmos do próprio assunto. Do seio da primeira tendência – fuga de Cristo para Jesus – surgiu, no início do século, a Essência do Cristianismo de Harnack: um livro que apresenta uma forma de cristianismo saturada de orgulho e de otimismo racionalista, com base no qual o Liberalismo purificou o Credo original. Uma das frases básicas desta obra diz: "Não o Filho, mas exclusivamente o Pai pertence ao Evangelho, como Jesus o anunciou"6. Quão simples, quão rico de elementos libertadores [157] não nos parece isto! Onde a fé no Filho criou separações – cristãos e não cristãos e cristãos de diversos credos – a fé no Pai é capaz de unir. Onde o Filho só a poucos pertence, o Pai pertence a todos e todos a ele. Onde a fé cindiu, o amor pode reunir. Jesus contra Cristo significa: fora com o dogma, retorno ao amor. O Jesus pregador, a anunciar a todos os homens o Pai comum, tornando-os irmãos, foi transformado no Cristo pregador que exigia fé e se transformou em dogma: e está aqui, conforme Harnack, o elemento da decisiva ruptura: Jesus proclamou a mensagem não-doutrinal do amor; estava aí a grande revolução com que destruiu a couraça da ortodoxia farisaica; em lugar do legalismo intolerante, a simplicidade da confiança no Pai, a fraternidade dos homens e a vocação para um único amor. No lugar disto, colocaram a doutrina do Homem-Deus, do "Filho", pondo assim, em lugar de tolerância e fraternidade que conotam salvação, uma doutrina salvífica que só pode denotar desgraça, tendo desencadeado lutas sobre lutas e cismas sobre cismas. De tudo isto segue-se, por si, a evidente conclusão: fora com o Cristo pregado, o objeto da fé que separa; volta a Jesus pregador, o apelo à força única do amor, sob o Pai comum, rodeado de muitos filhos. Não se pode negar haver aí afirmações enfáticas e dinâmicas de que não se pode abstrair facilmente. E contudo... Harnack mal pregava a sua mensagem otimista, e já se encontravam na soleira da porta os que iriam levar a sua obra à cova. Na mesma época fora apresentada a prova de que o simples Jesus, do qual Harnack falava, não passava de sonho romântico, fata morgana do historiador, reflexo de sua sede e saudade, que se dissolvem à medida que ele avança. Assim Bultmann escolheu resolutamente o outro caminho: só é verdadeiramente importante em Jesus o fato de sua existência; de resto, a fé não se refere a hipóteses incertas sobre as quais é impossível conseguir segurança histórica, mas [158] exclusivamente ao acontecimento da palavra, da pregação pela qual a existência humana abriu-se para o seu sentido. Mas, um mero fato será mais fácil de aceitar do que um fato rico em conteúdo? Lucrou-se alguma coisa com o afastar-se para a esfera do secundário a questão sobre quem e o que e como era esse Jesus, restando em seu lugar o homem ligado a um puro acontecimento de pregação? Isto seguramente se dá porque "prega-se", mas a legitimação e real conteúdo desta pregação tornam-se bastante problemáticos. Considerando tais questões, compreender-se-á por que aumenta o número daqueles que tornam a afastar-se do puro "querigma" e do Jesus histórico, como que emagrecido e reduzido a fantasma que mal existe, voltando a procurar refúgio junto do mais humano de todos os homens, cuja humanidade, dentro de um mundo des- 6 Nova edição 1950, 86. No 56-60.° milheiros (1908) em uma nota (183) HARNACK confirmou expressamente essa frase ("nada tenho a mudar nela"), acentuando ao mesmo tempo ser evidente que vale isto apenas para o Evangelho "como Jesus o anunciou", não "como Paulo e os Evangelistas o pregaram". 91 deificado, lhes parece como derradeiro clarão do divino, que sobrou após a "morte de Deus". É o que se dá hoje na teologia da "morte de Deus" a qual ensina que, embora não disponhamos mais de Deus, nos ficou, contudo, Jesus como sinal de confiança a animar-nos a ir adiante7. No meio de um mundo esvaziado de Deus, a humanidade deve ser algo assim como o substitutivo de Deus que já não se pode mais encontrar. Mas quão privados de senso crítico se revelam agora os que antes se comportaram tão criticamente a ponto de só quererem admitir Teologia sem Deus, para não criarem aos olhos dos seus contemporâneos progressistas a impressão de serem atrasados! Aliás, a pergunta já devia ter sido feita antes, ao refletirmos se não se revelava uma perigosa falta de senso crítico na intenção de fazer Teologia – tratar de Deus-sem Deus. Não precisamos [159] preocupar-nos com isto agora. No que toca ao nosso assunto, está fora de dúvida que não estamos em condições de fazer voltar atrás os últimos quarenta anos, e que nos está irrevogavelmente barrado o retorno a um simples Jesus. É intrinsecamente absurda a tentativa de construir um mero Jesus do qual se possa viver, abstraindo do Cristianismo histórico e apelando apenas para a retorta do historiador. A mera história não cria nenhuma presença, mas constata o que houve. Por isto a romântica de Jesus é, em última análise, tão sem futuro, e tão vazia de presente como deveria ser uma fuga ao puro acontecimento da pregação. Contudo não foram de todo em vão os vaivém do espírito moderno entre Jesus e Cristo, cujas etapas principais em nosso século tentei descrever. Creio até que se pode ver aí uma orientação, a saber, no sentido de não ser possível um (Jesus), sem o outro (Cristo), no sentido de ser necessário olhar continuamente de um para o outro, porque, na verdade, Jesus só existe como o Cristo e o Cristo só é real como Jesus. Impõe-se-nos mais um passo adiante: em vez de qualquer reconstrução, que só pode resultar em reconstrução, ou seja, em imagens artísticas ulteriores, devemos tentar compreender simplesmente o que a fé nos diz, a fé que não é reconstrução, mas presença, não é teoria, mas realidade de viva existência. Talvez seja mais indicado confiar mais na presença da fé atuante através dos séculos, que, em sua natureza, nada mais é do que compreensão – compreensão do que e quem finalmente foi Jesus – quiçá seja mais indicado confiar na fé, do que na reconstrução que busca seu caminho fora da realidade. Pelo menos convém tentar tomar conhecimento do que, afinal, essa fé nos diz. 2. Imagem do Cristo do Símbolo O símbolo, que seguimos neste livro como resumo representativo da fé, formula sua crença em Jesus em palavras [160] muito sóbrias: "e (creio) em Cristo Jesus". O máximo que nos poderá despertar a atenção neste tópico é que, à semelhança da maneira preferida pelo apóstolo Paulo, foi colocada antes a palavra "Cristo", originariamente denotando não um nome, mas um título ("Messias"). Ora, pode-se provar que a palavra ainda era conhecida em sua acepção original pela comunidade 7 Cfr. a respeito a síntese de G. HASENHÜTTL, "Die Wandlung des Gottesbildes", em: Theologie im Wandel (Tübinger Festschrift. Schriftleitung J. RATZINGER – J. NEUMANN), Munique, 1967, 228-253; W. H. VAN DE POL, Das Ende des Konventionellen Christentums, Viena, 1967, 438-443, trad. port. O fim do cristianismo convencional. Herder. São Paulo, 1969. 92 romana que formulou o nosso símbolo. A alteração para um puro nome próprio, tal como o notamos hoje, já se havia consumado em época bem remota. Contudo, no Credo, o termo "Cristo" ainda se emprega como epíteto de Jesus. Contudo, a fusão com o nome de Jesus já estava bem adiantada e nos encontramos na última etapa da mudança de significado da palavra "Cristo". Ferdinand Kattenbusch, o grande pesquisador do Símbolo Apostólico, esclareceu com acerto o fato, aduzindo um exemplo no seu tempo (1897). A guisa de paralelo, indica a expressão "Kaiser (= imperador) Guilherme": o título Kaiser transformou-se quase em parte integrante do nome próprio, tão inseparavelmente se pertencem o Kaiser e o "Guilherme", Contudo, todos sabem que o termo Kaiser não exprime apenas, nem em primeiro lugar, um nome, mas uma função8, Algo de muito parecido existe na justaposição de "Cristo Jesus" com idêntica formação: Cristo, sendo título, também já é parte do nome primitivo do homem de Nazaré. No processo da fusão do nome com o título, do título com o nome, desenvolve-se algo bem diverso dos inumeráveis esquecimentos da história, para os quais teríamos aqui mais um exemplo. Devemos, ao contrário, ver aqui, a revelar-se, o núcleo mais profundo daquela compreensão que a fé realizou relativamente à figura de Jesus de Nazaré. A expressão propriamente dita desta fé é que não se pode distinguir cargo e pessoa naquele [161] Jesus; esta diferença aplicada a Jesus não tem razão de ser. A pessoa é o cargo, o cargo é a pessoa. Ambos são inseparáveis: não existe uma esfera de restrição do que é pessoal, do "eu" que se conserva de algum modo fora da sua ação, podendo, portanto, também ficar "fora de ação". Não há nenhuma obra sua que seja um "eu" separado – o "eu" é a obra e a obra é o "eu". Sempre de acordo com a evidência da fé espelhada no símbolo – Jesus não deixou uma doutrina passível de ser separada do seu "eu", como se podem colecionar e avaliar as idéias dos grandes pensadores sem levar em consideração a pessoa do autor. O Símbolo não oferece uma doutrina de Jesus. Nem sequer se chegou a pensar numa evidente tentativa de ver nele uma doutrina, porque o sentido fundamental presente no Símbolo atua em direção completamente outra. E, de acordo com a declaração do Credo, Jesus não fez uma obra capaz de se distinguir e de ser representada como distinta do seu "eu". Compreendê-lo como o "Cristo" significa estar convencido de que ele se entregou a si mesmo dentro da sua palavra: não é um "eu" que fala (como acontece conosco) – ele identificou-se com a sua palavra de modo tal, que "eu" e "palavra" são indistinguíveis: ele é palavra. De modo idêntico, para a fé, sua obra nada mais é do que o irrestrito identificar-se com essa obra; ele se faz e se dá; sua obra é sua autodoação. Karl Barth certa vez exprimiu essa constatação da fé do modo seguinte: "Jesus é simplesmente portador de um cargo. Portanto, não é, primeiro, um homem e depois um encarregado de certa tarefa... Não existe dentro de Jesus uma humanidade neutra... Poderia ser repetida, em nome dos quatro Evangelhos, a preciosa palavra de Paulo (2 Cor 5,16): 'e, se todavia temos conhecido a Cristo segundo a carne, agora, porém, já não o conhecemos assim'. Os evangelistas se mantiveram inteiramente desinteressados a respeito de tudo o que [162] esse homem pode ter sido e ter feito 8 KATIENBUSCH II, 491, cfr. 541-562. 95 Porque, quem reconhecer o Cristo em Jesus, e só nele, e reconhecer a Jesus como o Cristo, quem conceber a total identidade de pessoa e obra como elemento decisivo, abandonará a exclusividade da fé e sua antítese em relação ao amor, e unirá a ambos em um todo que torna impensável a sua separação. O traço de união entre Jesus e Cristo, a ausência de separação de pessoa e obra, a identidade de um homem com o ato da entrega denotam também o traço de união entre amor e fé. Pois o "eu" de Jesus, sua pessoa que agora avança até o centro, encontra a sua peculiaridade no fato de este "eu" não se situar em nenhum isolamento autônomo, mas haurir a sua total existência do "tu" do Pai e em existir para o "vós" dos homens. Ele é identidade de Logos (verdade) e amor, e transforma o amor em Logos, [166] em verdade da existência humana. Portanto, a fé postulada por uma cristologia assim compreendida, essencialmente tende a tomar-se a abertura universal do amor incondicional. Porque acreditar em um Cristo assim compreendido significa simplesmente tornar o amor conteúdo da fé de modo que se possa dizer: amor é fé. Isto corresponde ao painel que Jesus traçou na grande parábola do juízo final (Mt 25,21-66): o encontro, a identificação de Cristo nos últimos dos homens, nos que necessitam do nosso auxílio, é equiparado à profissão de fé exigida pelo Senhor julgador. Portanto, crer em Cristo é o mesmo que reconhecer como sendo Cristo o homem que precisa do meu auxílio, tal como me vem ao encontro; é compreender o apelo do amor como apelo da fé. A aparente alteração do Credo cristológico na incondicionalidade do serviço e da disponibilidade humanas, que se processa em Mt 25, depois do que foi dito, nada mais é do que o irromper de uma dogmática de resto já presente; de fato, é, em verdade, a conseqüência do traço de união entre Jesus e Cristo ou seja, do âmago da cristologia. Porque tal traço de união – repitamo-lo – é simultaneamente o traço de união entre fé e amor. E por isto, fé que não seja amor não é, mas apenas parece, fé cristã – constatação que deve ser proclamada tanto contra o equívoco doutrinal do conceito católico da fé, como contra a secularização do amor, que se origina em Lutero, devido à exclusividade da justificação pela fé12. III. Jesus Cristo – verdadeiro Deus e verdadeiro Homem 1. Introdução ao problema [167] Voltemos à questão cristológica em sentido mais exato, para que o que até aqui foi afirmado não fique como mera afirmação ou mesmo como um apelo ao que é favorável. Constatamos que a fé cristã em Jesus o afirma como sendo o Cristo, isto é: como aquele em quem pessoa e obra são idênticos. Partindo daí chegamos à unidade de fé e amor. Fora de qualquer mera idéia e de qualquer doutrina independente, a fé 12 Cfr. P. HACKER, Das Ich im Glauben bei Martin Luther, Graz 1966, sobretudo o capítulo "Säkularisierung der Liebe", 166-174. Recorrendo a numerosos textos, HACKER demonstra que o Lutero da Reforma (mais ou menos do ano de 1520) destina o amor à "vida exterior", ao uso "com os homens", portanto ao reino profano, à hoje chamada mundanidade, ou seja à "justiça da lei", excluindo-o, assim secularizado, da esfera da graça e da salvação. HACKER torna claro que o plano de secularização de GOGARTEN pode com todo o direito apelar para Lutero. Está claro que Trento devia traçar aqui uma clara linha provisória que continua valendo ali onde se defende a secularização do amor; Sobre GOGARTEN consulte-se a apresentação e avaliação de sua obra por A. V. BAUER, Freiheit zur Welt (Säkularisation), Paderborn, 1967. 96 cristã conduz ao "eu" de Jesus, a um "eu" que é todo abertura, todo "palavra", todo "Filho". Também já consideramos que, com os conceitos "palavra" e "Filho" se deve exprimir o caráter dinâmico dessa existência, sua pura actualitas. Jamais a palavra subsiste em si, mas vem de alguém e existe para alguém, para ser ouvida, existe para outros. Ora, Jesus existe exclusivamente nessa totalidade do "de" e "para". O mesmo descobrimos como sendo o sentido do conceito de "Filho", que conota uma tensão semelhante, entre "de" e "para". Poderíamos resumir tudo na seguinte fórmula: a fé cristã não está relacionada com idéias, mas com uma pessoa, um "eu", a saber, um "eu" que pode definir-se como palavra e Filho, ou seja, abertura total. Isso conduz a duas conseqüências nas quais se revela a dramaticidade da fé em Cristo (no sentido de fé em Jesus como Cristo, isto é, como Messias) e sua necessária auto-ultrapassagem histórica até o completo escândalo da fé no Filho (como fé na autêntica divindade de Jesus). Porquanto, se for assim, se esse "eu" for crido como pura abertura, puro "estar (ou: ser) – para", como existência total vinda do Pai, se ele, com [168] toda a sua existência, for "Filho" – actualitas do puro servir – se – expresso em outras palavras – essa existência não só tiver, mas for amor, não deve ela ser idêntica com Deus que, somente ele, é amor? E então, Jesus, o Filho de Deus, não seria Deus? Não estaria certo: "O Verbo era de Deus, e o Verbo era Deus" (Jo 1,1)? Entretanto, somos também obrigados a encarar a pergunta oposta: Se esse homem for totalmente o que ele faz, se ele se colocar atrás do que diz, se for completamente para os outros e, contudo, entregando-se assim, conservar-se totalmente em si, se for quem se encontrou, perdendo-se (Cfr. Mc 8,35), não será ele o mais humano dos homens, a realização do humano de modo completo e absoluto? Teríamos então o direito de dissolver a Cristologia (tratado de Cristo) na Teologia (tratado de Deus)? Não deveríamos, antes, reclamar a Jesus apaixonadamente como homem, praticando Cristologia como Humanismo e Antropologia? Ou deveria o Homem propriamente dito ser Deus exatamente pelo fato de ser homem em todos os sentidos e Deus ser homem autêntico? Seria possível o encontro e o completo entrelaçamento do humanismo mais radical e da fé no Deus que se revela? Ao meu ver estas questões, cujo impacto abalou a Igreja dos primeiros cinco séculos, surgem naturalmente da própria fé cristológica. A luta dramática daquelas eras em torno dessa questão conduziu à afirmação das três perguntas nos concílios de então. E é exatamente esta tríplice afirmação que cria o conteúdo e dá a configuração final e definitiva ao dogma cristológico clássico que assim apenas tentou conservar a fidelidade plena à singela profissão de fé inicial no Jesus como o "Cristo". Em outras palavras: o dogma cristológico desenvolvido reconhece que o radical "ser-Cristo" de Jesus postula a filiação e que a filiação inclui a divindade. Só interpretado assim, o dogma conserva-se como expressão "lógica" – de acordo com o Logos – compreensível, enquanto a falta desta congruência leva ao mito. Contudo, o dogma reconhece com [169] não menor decisão que Jesus, no radicalismo do seu serviço, é o mais humano dos homens, o homem verdadeiro e, deste modo, o dogma apóia a união de Teologia e da Antropologia, união em que, desde então, consiste o elemento verdadeiramente excitante da fé cristã. Mas surge de novo uma pergunta: devendo, embora, reconhecer a irredutibilidade da lógica desenvolvida e, com isto, a conseqüência interna do dogma, permanece 97 decisivo o olhar para os fatos. Não nos estamos, quiçá, elevando nos ares, nas asas de um lindo sistema, deixando para trás a realidade, de modo que a inquestionável lógica do sistema de nada nos serve por faltar-lhe a base? Com outras palavras, cumpre indagar se o fundamento bíblico e o que dele resulta mediante a indagação crítica dos fatos nos autorizam a conceber a filiação de Jesus como o fizemos e como o realiza o dogma cristológico. A resposta de hoje, sempre mais firme e mais evidente, é "não", Muitos vêem na resposta positiva uma posição pré-crítica que mal merece alguma consideração. Em oposição a isto, queria mostrar que a resposta positiva não só pode, mas deve ser dada, se não se quiser cair em banalidades racionalistas ou em idéias mitológicas de filiação que foram superadas e vencidas pela fé bíblica no Filho e pela sua interpretação na antiga Igreja13. 2. Clichê moderno do "Jesus histórico" É preciso avançar devagar. Afinal, quem foi Jesus de Nazaré? Que consciência tinha de si? A dar crédito ao clichê que começa a se espalhar largamente como forma de vulgarização da Teologia hodierna14, os fatos ter-se-iam processado [170] mais ou menos assim: Seria preciso imaginar o Jesus histórico como uma espécie de mestre profético que surgiu na atmosfera escatológica e excitada do judaísmo tardio do seu tempo, anunciando a proximidade do reino de Deus de acordo com a situação escatológica excitante. Sua pregação, de início, era toda condicionada pelo tempo: Virá, em breve – agora o reino de Deus, o fim do mundo. Contudo, Jesus acentuava o "agora" de modo tão forte que o futuro condicionado não podia mais valer como o elemento decisivo aos olhos do observador mais atento. Este elemento só podia ser percebido no apelo à decisão – mesmo se o próprio Jesus não pensasse em um futuro, em reino de Deus: o homem torna-se todo comprometido com o presente, com o "agora" que irrompe cada vez. Não vamos nos deter em comentar que uma mensagem tão vazia de conteúdo com que se presume compreender a Jesus melhor do que ele mesmo se compreendeu, dificilmente teria algum significado para os outros. Ouçamos antes, qual tenha sido a continuação do caso. Por razões que não se conseguem mais reconstituir exatamente, Jesus foi executado, morrendo como um fracassado. Depois, de uma maneira que não é mais possível esclarecer, surgiu a fé na ressurreição e a idéia de que ele voltaria a viver ou, pelo menos, de que ele significava alguma coisa. Paulatinamente, esta fé cresceu dando existência a outra idéia que gira em uma esfera semelhante: Jesus voltaria como Filho do homem ou Messias. O passo seguinte re-projetou essa esperança sobre o Jesus histórico, colocando-a nos seus lábios e re-interpretando-o de acordo. Passou-se então a declarar, como se ele pessoalmente se tivesse anunciado como o Filho do homem ou vindouro Messias. Em seguida – sempre dentro dos moldes do nosso clichê – a mensagem transferiu-se do mundo semita para o mundo 13 Com o que, naturalmente, não quero aceitar a posteriori a tentativa já repudiada como impossível, de uma construção histórica da fé. Trata-se aqui de comprovar a legitimidade histórica da fé. 14 Falando-se de uma "forma de vulgarização da Teologia moderna" já está dito, implicitamente, que os fatos são vistos diferençadamente nas pesquisas teológicas e também de múltiplos modos, se tomados isoladamente. Contudo, as aporias são as mesmas, não tendo valor a desculpa preferida de que não é exatamente assim.
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