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Guias e Dicas
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A Execução Penal à Luz do Método APAC, Notas de estudo de Serviço Social

metodo apac prisional

Tipologia: Notas de estudo

2014

Compartilhado em 19/01/2014

josimar-rocha-fernandes-9
josimar-rocha-fernandes-9 🇧🇷

4.8

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Baixe A Execução Penal à Luz do Método APAC e outras Notas de estudo em PDF para Serviço Social, somente na Docsity! A Execução Penal à Luz do Método APAC Realização mEJEF TJMG o! SCOLA JUDICIAL Tribunel de Justiça do programa novos >> << UMOS Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais Programa Novos Rumos Rua Rio de Janeiro, 471, 23º andar, Centro, Belo Horizonte/MG, CEP 30160-040 http://www.tjmg.jus.br/presidencia/novosrumos E-mail: novosrumos@tjmg.jus.br Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes - EJEF R. Guajajaras, 40, 22º andar, Centro, Belo Horizonte/MG, CEP 30180-100 http://www.ejef.tjmg.jus.br E-mail: gejur@tjmg.jus.br Os conceitos e afirmações emitidos nos artigos publicados nesta obra são de responsabili- dade exclusiva de seus autores. Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. A execução penal à luz do método APAC / Organização da Desembargadora Jane Ribeiro Silva. - Belo Horizonte: Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, 2011. 376 p. ISBN: 85-98923-07-9 1.Execução (processo penal).2. Reabilitação criminal.3. Reintegração social. I. Silva, Jane Ribeiro (org.). II.Título. CDU: 347.95 CDD: 341.582 Ficha catalográfica elaborada pela Cobib - Coordenação de Documentação e Biblioteca do TJMG 5 A Execução Penal à Luz do Método APAC Apresentação A Execução Penal à Luz do Método APAC Constitui grande desafio coordenar uma obra sobre a Lei de Execução Penal, examinando-a, artigo por artigo, à luz do método APAC. Inicialmente, é mister lembrar que, não obstante as reprimendas privati- vas de liberdade tenham como finalidade a punição daqueles que infringiram normas penais e foram condenados, sem dúvida alguma a sua função precípua é a ressocialização e, na maioria das vezes, simplesmente a socialização de pes- soas que sempre estiveram à margem da sociedade, sem conhecer seus deveres e nem mesmo os seus direitos, seguindo na vida sem qualquer orientação, rumo ao cárcere. Prisão que não reeduca o preso, nem satisfaz à sociedade, porquanto a reincidência é uma constante, contribuindo cada dia mais para a violência desen- freada vista nos nossos dias. Os malefícios da prisão comum são por demais conhecidos, e dispensá- vel torna-se arrolá-los. No entanto, ainda não se encontrou um meio de substi- tuir a pena privativa de liberdade, relativamente aos crimes mais graves, pelas exi- tosas restritivas de direitos, aplicadas nas infrações penais de pequeno e médio potencial ofensivo. Sendo dever do executor da pena fazê-la cumprir, impõe-se que o méto- do adotado seja eficaz para conduzir o apenado à conscientização da gravidade do ato praticado, seu dever de cumpri-la como uma forma de pagamento social, tão cobrado pela população, capaz de restituir-lhe autoestima, capacitá-lo para o trabalho, aproximá-lo da família e introduzi-lo na sociedade, sem ferir a paz social tão almejada por todos os homens. Nasceu daí a ideia deste livro, que se propõe examinar a Lei de Execução Penal à luz da jurisprudência e da doutrina, matéria que conta com escassa bi- bliografia, e ao mesmo tempo divulgar um eficaz método de sua aplicação, de autoria do advogado paulista Mario Ottoboni, o qual vem sendo aplicado como programa do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em várias comarcas, desde 2001, e, antes disso, por iniciativa do Juiz Paulo Antônio de Carvalho e do Promotor de Justiça Franklin Higino, da Comarca de Itaúna, com excelentes resultados e reduzida reincidência daqueles que cumpriram as suas penas sob uma severa disciplina, porém respeitadora da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. 6 Vale esclarecer que em nenhum momento o método se afasta das exi- gências da Lei de Execução Penal, e, em atendimento ao seu art. 4º, a sociedade participa ativamente da criação e da administração do estabelecimento penal, através de voluntários, que se sujeitam a cursos de capacitação. Breve história da aplicação do método APAC em Minas Gerais O Programa Novos Rumos, que hoje coordena também outros campos de atuação do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, nasceu com a finalidade de coordenar a implantação do método que se examina como política pública de execução penal no Estado. Essa institucionalização ocorreu no ano de 2001, na gestão do Desembargador Gudesteu Bíber Sampaio, sob a provocação do Desembargador Sérgio Antônio de Resende. O grande semeador da aplicação do método foi o Desembargador Joaquim Alves de Andrade, visto que percorreu quase todas as comarcas durante mais ou menos dez anos, divulgando-o para juízes, promotores e comunidades. O projeto recebeu apoio dos Presidentes Márcio Antônio Abreu Corrêa Marins, Hugo Bengtson Júnior e Orlando Adão de Carvalho e foi grandemente incentivado pelo Desembargador Sérgio Antônio de Resende, quando este últi- mo dirigiu os destinos do Tribunal mineiro. Hoje, alcançou a condição de programa prioritário do atual Presidente, Desembargador Cláudio Costa, que não poupa esforços para a humanização da pena no Estado. O Poder Legislativo, por meio da Lei 15.299/2004, reconheceu as APACs como entidades aptas a firmar convênios com o Poder Executivo, que, por sua vez, passou a destinar recursos para a construção e reforma dos esta- belecimentos prisionais administrados pelas APACs. O Poder Executivo sempre esteve favorável aos novos convênios, o que tem possibilitado a instalação de várias unidades prisionais aplicadoras do méto- do APAC. Destaca-se de modo especial o Governador Antônio Augusto Anastasia, incentivador da instalação dos estabelecimentos apaqueanos. Os juízes das comarcas, ao lado do Ministério Público, e por iniciativa de voluntários, possibilitaram a criação e a instalação dos estabelecimentos penais em questão. Cada APAC constitui uma entidade civil de direito privado, sem fins lucrativos, que adota, preferencialmente, o trabalho voluntário, utilizando o remunerado apenas em atividades administrativas, quando necessário. Possui A Execução Penal à Luz do Método APAC 7 A Execução Penal à Luz do Método APAC estatuto próprio, tem suas ações coordenadas pelo Juiz da Execução Criminal da Comarca, com a colaboração do Ministério Público e do Conselho da Comunidade, conforme previsto em lei. A APAC de cada Comarca é necessariamente filiada à Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados e coordenada pelo Programa Novos Rumos do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Outros estados têm instalado unidades prisionais que adotam o mesmo método na execução penal, buscando, para isso, a orientação inicial das APACs mineiras. Rende-se, nesta oportunidade, homenagem a esses valorosos magistra- dos e homens públicos, que acreditaram na afirmativa de Mario Ottoboni de que “todo homem é maior que o seu erro". Quanto aos autores desta obra e sua presumida utilidade Os autores deste livro são pessoas que, de alguma maneira, contribuíram para o sucesso da implantação do método APAC: o autor do método estudado, Dr. Mario Ottoboni, o Governador do Estado, Desembargadores, Juízes, Secretários de Estado, membros do Ministério Público, Presidentes das APACs, Advogados e servidores da Justiça e do Poder Executivo. Alguns assuntos, dada sua atual e acirrada discussão, foram alvos de arti- gos de autores diversos, para que os leitores possam ver a matéria sob aspectos e pontos de vista diferentes. Muitos outros detalhes poderiam ser enfatizados nesta apresentação, mas não o fizemos por já constarem dos artigos que compõem este livro, que entendemos irá suscitar o interesse dos leitores, por consistir não só na análise de importantes aspectos da execução penal, vistos por pessoas nela envolvidas, efetivamente, no seu dia a dia, como por relatar um método capaz de satisfazer a todas as exigências já mencionadas e atender aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, na construção de uma sociedade justa, fraterna e solidária. Jane Ribeiro Silva Desembargadora aposentada do TJMG Superintendente Adjunta da EJEF 11 A Execução Penal à Luz do Método APAC Prefácio Muito gentilmente, a ilustre Desembargadora Jane Ribeiro Silva convi- dou-me a prefaciar a obra por ela organizada, a versar sobre execução penal, investigada à luz do “método APAC”, que se converte, hoje, em alternativa con- creta às disfuncionalidades de nosso sistema penal. Tenho por certo que, com o convite, não se buscou um texto de criminalista ou criminólogo, mas, antes, uma contribuição de entusiasta do modelo e seu incentivador, enquanto gestor públi- co, mandatário político e soldado do Direito. O ordenamento pátrio palmilhou um longo e tortuoso percurso, na seara criminal, que remonta às Ordenações Filipinas, documento normativo marcado pelo revanchismo, por certo misticismo da pena e pelos suplícios impostos ao criminoso – pérfido legado da Inquisição aragonesa. Da Real Mesa da Consciência e Ordens ao Código de Processo Criminal de 1832 – forjado no Avanço Liberal – encetamos um processo que, para além de político e admi- nistrativo, representa o triunfo do valor humanístico central: a tutela da liber- dade; um processo, contudo, marcado por contrações e distensões, revelador da profundidade e dramaticidade do tema. Poder-se-ia, em última análise, indagar se, ao tratarmos da execução penal, não estaríamos a incorrer em contradição insolvível ao dizer de liberdade. Não me parece seja essa a inclinação do Direito. Ultima ratio que pretende ser, o Direito Penal tutela valores que nos são mais caros e, dentre eles, no mais alto degrau da pauta axiológica, a liberdade. O cárcere deve ser instrumento de liberdade, ainda que isso se afigure paradoxal. Sua função ressocializadora deve avançar para além dos limites da purgação pura e simples, esposando e assumindo a função pedagógica da pena. O reconduzir o apenado à vida social deve ser, bem assim, um libertar daquilo que coarcta seu discernimento e lhe impinge o delito. O Constituinte de 1988 não titubeou em afirmar o primado da dig- nidade humana, que se impõe a partir da simples existência do ser, não está sujeito a condição, não se mitiga e não se pondera. O ostracismo social que se impõe ao condenado, por óbvio, não lhe subtrai a essência humana e, conseguin- temente, jamais seria de se tolerar que se lhe suprimisse a dignidade. Se, no plano juspolítico, essa constatação parece emanar dos textos com fluidez e clareza – como que atendendo ao singelo brocardo in claris cessat interpretatio – a realidade pungente teima em obliterar nosso projeto humanista. Condenado, porque sub- metido ao cárcere, distingue-se do delinquente. Sic vos non vobis, lembra Carnelluti a máxima de Virgílio: o direito penal é construído pelos juristas, não para os juristas – antes para o homem, enquanto gênero, que não se pode permitir a ani- malização, a que a jaula, a todo instante, tenta nos remeter. 12 A Execução Penal à Luz do Método APAC O sociólogo francês Loïc Wacquant, na véspera da última década, denunciava os males advindos das políticas de encarcerização, com especial atenção para o sistema norte-americano. Uma denúncia áspera, que expôs os miasmas de um sistema penal ao borde da falência. Na mesma toada, conquan- to com recortes epistemológicos diversos, Zaffaroni põe às escâncaras a desle- gitimação do sistema penal, em especial latino-americano, eis que testemunha o solapar de suas bases, de modo a torná-lo uma espécie de anacronismo inepto e, por assim dizer, vingativo. Diante desta realidade, a multiplicidade de respostas no plano teorético tende a eleger o abolicionismo, seja lógico, seja estruturalista, como solução. Quiçá uma solução de conforto: ad impossibilia nemo tenetur ou, em versão mais próxima dos nossos anexins, o que não tem remédio, remediado está. Busca-se a quintessência do Direito Penal mínimo e do garantismo-minimalista de Ferrajoli, para, ao fim e ao cabo, poupar a sociedade da intervenção penal, pois se reconhece, embora por vias oblíquas, a imprestabilidade prática da sanção penal. Um dos mais criticados sistemas prisionais da atualidade, o norte-ame- ricano, de sua parte, já começa a experimentar novos ares. Em fevereiro último, a Texas Public Policy Foundation, em que pese sua flagrante inclinação conservado- ra, divulgou uma declaração em favor de um sistema que abandone um modelo que cresce, ao tempo em que falha, para um sistema que recompense resultados. De outro lanço, a Califórnia, estado conhecido por suas disfuncionalidades políticas e gerenciais, tem envidado esforços para uma mudança significativa: os condenados por crimes chamados non3, ou non-sexual, non-violent e non-serious, deixam de cumprir pena em estabelecimentos prisionais controlados pelo esta- do (prisons), para serem submetidos a penas nas jails, geridas pelos county sheriffs. O “realinhamento”, como denominou a iniciativa o Governador Jerry Brown, busca não apenas redirecionar os fluxos de poder político e dinamismo geren- cial para o nível local, mas também tem em mira diminuir os índices de recidiva, em um sistema que custa ao erário mais que o financiamento às universidades. Nessa toada encarta-se o “método apaqueano”: uma reforma avant la let- tre. Nos idos da década de 1970, alguns visionários, ainda poucos, no Estado de São Paulo, deram os primeiros passos para consolidar um movimento promis- sor: iniciava-se a história das APACs, que vieram a se converter em um dos mais destacados mecanismos de restituição das penas privativas de liberdade à sua essência: a ressocialização do apenado. Poder-se-ia sintetizar o método apaque- ano na possibilidade permanente de permitir ao preso tornar-se sujeito ativo de sua recuperação. Ainda fragilizada por sua recente implantação, as APACs 13 A Execução Penal à Luz do Método APAC acabaram por se disseminar no âmbito do sistema prisional brasileiro, con- tribuindo sobremaneira para uma inflexão positiva. A experiência da atuação das APACs, em Minas Gerais, é quiçá um dos mais promissores avanços no âmbito do Direito Carcerário, evidenciando a vocação do Estado para a inovação e para as parcerias dos Poderes com a sociedade. A concatenação de esforços entre Poder Judiciário, Poder Executivo e a Sociedade Civil organizada permitiu-nos avançar na implementação desse modelo, que hoje se mostra como a grande possibilidade para tornar a cadeia mais humana. A singeleza de suas atividades contrasta com a nobreza e altivez de seus objetivos. As APACs dão mostra con- creta da viabilidade de um Direito Penal fundado em bases humanistas, que saiba encontrar na compaixão o contrapeso da desforra; na dignidade, a antítese da massificação; e no Direito, a expressão última da centelha humana. Organizada como literatura de comentários à Lei de Execução Penal, a presente obra somar-se-á àquelas da mais alta estirpe que se distinguem do con- junto já amorfo da produção jurídica nacional. Coligindo contribuições de grandes juristas, todos senhores de uma vida pública exemplar e dedicada ao Direito, a obra esquadrinha o regime jurídico da execução penal no âmbito do ordenamento nacional. Não apenas daí se mede a sua grandeza. A clivagem que lhe dispensou a Desembargadora Jane Silva empresta-lhe densidade científica e alto teor de ineditismo, tornando os textos preordenados à inovação, a exigir de seus autores argúcia e sensibilidade. Tratar a execução penal sob o prisma do método apaqueano implica uma reordenação do pensamento, que se liberta dos grilhões da dogmática, para aventurar-se em domínios ainda insondáveis. Aqueles que acorrerem a este volume ganharão em engenho e filosofia, poden- do colher de textos profundos, sem ser agrestes, um Direito Penal que se quer antes équo que draconiano. Antonio Augusto Junho Anastasia Governador do Estado de Minas Gerais Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais A Execução Penal à Luz do Método APAC _____________________________________ 5 FAZZALARI, Elio. Conoscenza e valori saggi. Torino: G. Giappichelli, 1999, p. 32. 6 § 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. 7 III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; [...]. 8 XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decre- tação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido; [...]. 9 XLVII - não haverá penas: [...]. a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis; 10 XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral; [...]. 11 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana; [...]. 12 PUIG, Santiago Mir. Derecho penal - parte general. 5. ed. Barcelona: Tecfoto, 1998, p. 64. 17 superiores havidos na sociedade. Esses valores fundamentais são positivados em princípios constitucionais que, não sendo postos somente à contemplação, como se vivenciou em tempos idos do constitucionalismo, tornam-se valores ca- nonizados5, os quais explicitam a ideia de Direito inspiradora da Constituição e cuja aplicação visa ao alcance do ideal de justiça concretamente almejado pela sociedade. O artigo 5º da Constituição da República de 1988 dispõe sobre direitos fundamentais previstos e de aplicação imediata6, nos incisos: III (vedação de tor- tura, tratamento desumano ou degradante)7, XLV (pessoalidade da pena)8, XLVII (proibição de penas de morte, perpétuas, de trabalhos forçados, de bani- mento ou cruéis9) e XLIX (respeito à integridade física e moral)10. Os disposi- tivos mencionados, na condição de princípios constitucionais, são ratio essendi do sistema posto e instrumentos indispensáveis para a manutenção do complexo de normas e instituições jurídicas do Estado brasileiro. Contemporaneamente, os ordenamentos jurídicos ocidentais, em regra, reverenciam a pessoa com o fito de imprimir o respeito à dignidade do ser humano11, mas o caráter individualista que reveste o arcabouço jurídico de Estados como o Brasil apresenta-se despido do fermento anarquista, próprio do Estado mínimo liberal, em que as estruturas normativas, incluindo as garantias do condenado durante a execução da pena, lastraram-se, essencialmente, em regras abstratas e ideais, que pressupunham uma concepção ideal de homem, ignorando as desigualdades sociais e as características pessoais12. A Execução Penal à Luz do Método APAC _____________________________________ 13 ROUBIER, Pablo. Teoria general del derecho. Trad. José M. Cajica Jr. Puebla: Editorial José M. Cajica Jr., s.d. p. 31. O artigo 1º da Lei de Execução Penal, além de prever o papel de efetivar as disposições da decisão criminal, impõe a necessidade de que se ofereçam “condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. A regra de direito, ao contrário das manifestações individuais, caracteriza- se por ser geral e abstrata, sobrevivendo indefinidamente após a sua aplicação a um ou outro caso individual13. Assim, tem-se como dever do Estado oferecer condições concretas para que, após o cumprimento da pena, o condenado possa retomar a sua vida fora do cárcere, sem que lhe impeçam de conviver plena e efetivamente em sociedade. Sob esse aspecto, o método APAC é uma notável exceção aos desvios que, insistentemente, se constatam nos estabelecimentos penitenciários tradicionais, em que a reinserção do condenado na sociedade não ultrapassa uma singela for- malidade despida de concretude. A valorização do indivíduo apenado, com o oferecimento de condições dignas que lhe permitam sanar deficiências em sua formação prévia ao ingresso no estabelecimento penitenciário, oferece-lhe condições para um desenvolvimen- to físico, moral, espiritual, profissional e intelectual, sempre com efetivo envolvi- mento da sociedade e, especialmente, da sua própria família, quando viável. Desde os primeiros instantes em que adentra um estabelecimento que adota o método APAC, o visitante percebe que os internos, guardadas as dife- renças de personalidade, detêm a consciência da oportunidade de uma nova vida. Demonstram clara noção de vida em comunidade, pautada em tolerância, con- cessões e colaboração, além de uma autoestima elevada, especialmente em função das circunstâncias em que se encontram, sem, entretanto, perderem a consciência da falta que lhes rendeu a condenação. Há uma especial preocupação com a participação do apenado em ativi- dades laborais, utilizadas como terapia e com a nítida função de incutir nele a importância de ser útil e produtivo, desprendida da necessidade de ganho finan- ceiro, em geral a razão para a incursão na atividade criminosa. 3 A impossibilidade de a pena alcançar direitos outros que não os passíveis de punição Sentenciados a perderem a liberdade, e somente ela, os condenados em sentença penal têm lutado para conseguir aquilo que nenhuma decisão judicial lhes pode retirar: a dignidade. 18 A Execução Penal à Luz do Método APAC _____________________________________ 14 Fazzalari sustenta que a chamada posição subjetiva é a posição do sujeito em face da norma, norma esta que poderá prever uma faculdade, um dever ou um poder. A previsão de um poder assegura uma posição de premência para o sujeito que pode ser entendida como um direito subjetivo ou direito potestativo. Dessa maneira, Fazzalari rechaça a concepção de direito subjetivo como direito de alguém sobre a conduta de ou- trem, pois o direito subjetivo é concebido como uma posição de vantagem assegurada ao sujeito, única e exclusivamente, pela norma. In: Fazzalari, Elio. Conoscenza e valori. p cit., p. 66-71. 15 No original, La confianza en la poderosa protección del derecho es el fundamento sobre el cual nos movemos con seguridad todos en los assuntos de la vida cotidiana y en las grandes empresas. In: HECK, Philipp. El problema de la creacion del dere- cho. Barcelona: Ediciones Ariel, 1961, p. 37. 16 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 143-159. 17 CADEMARTORI, Sergio. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantista. 2. ed. Campinas: Millenium, 2007, p. 208-209. Amontoados às centenas em espaços ínfimos, muitas vezes dormindo em pé ou amarrados nas grades das celas, submetidos a constantes violências físicas, morais, psicológicas e sexuais, expostos ao risco das drogas, da Aids, da hepatite, da turbeculose e de toda a sorte de doenças infecciosas, a já consolidada realidade do sistema carcerário brasileiro desvela a brutalidade e a crueldade com que o homem é capaz de tratar os seus iguais. A gravidade da violação aos direitos do condenado não privados na sen- tença adquire maior impacto se analisada no contexto de um Estado de Direito que representa uma forma de governo no qual as situações vivenciadas pelas pes- soas - e as consequências por elas geradas: deveres, obrigações, direitos, facul- dades, prerrogativas e poderes, as chamadas “posições subjetivas”14 - decorrem privativamente de regras de direito, o que confere segurança e previsibilidade a todas as pessoas. A confiança na poderosa proteção do direito é o fundamento sobre o qual nos movemos com segurança nos assuntos da vida cotidiana e nas grandes empreitadas menos comuns15. Convém esclarecer que, em matéria de teoria política, uma das principais preocupações é a criação de mecanismos aptos a defender o cidadão frente ao poder do Estado16. Nesse aspecto, o Estado de Direito, entendido como sistema de limites substanciais impostos legalmente aos Poderes Públicos, visando à garantia dos direitos fundamentais, contrapõe-se ao estado absoluto, seja ele autocrático, seja democrático. Nem sequer por unanimidade pode o povo decidir - ou consentir que se decida - que um homem morra ou seja privado de sua liberdade e, por isso, não possa pensar, ou escrever, ou se associar a outros17. Os estabelecimentos penitenciários tradicionais do Brasil têm sistematica- mente fraudado a essência do Estado de Direito e imposto uma sorte de prejuízos 19 A Execução Penal à Luz do Método APAC _____________________________________ 21 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da constituição: con- tribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. 22 BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa: por um direito constitucional de luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 27. 23 BONAVIDES, Paulo. Op cit., p. 283. entre o povo e a nação, por meio do esvaziamento do papel da pessoa na estrutu- ração do modelo democrático de Estado. Atualmente, a democracia está inserida em uma “sociedade aberta”21 e plu- ral, prenhe de diversos grupos sociais com práticas, relações, valores, tradições e identidades culturais distintos entre si, uma sociedade multicultural. Sublinhe-se que o conceito de democracia não pode ser restrito à con- cepção de democracia política, relegada à simples legitimidade formal de um go- verno, nem tampouco a participação do povo limitada ao voto. [...] que a democracia participativa soube transcender a noção obscura, abstrata e irreal de povo nos sistemas representativos e transcende, por igual, os horizontes jurídicos da clássica sepa- ração de poderes. E o faz sem, contudo, dissolvê-la. Em rigor a vincula, numa fór- mula mais clara, positiva e consistente, ao povo real, o povo que tem a investidura da soberania sem disfarce22. O substantivo da democracia é, portanto, a participação. Quem diz democracia diz, no mesmo passo, máxima presença de povo no governo, porque, sem participação popular, democracia é quimera, é utopia, é ilusão, é retórica, é promessa sem arrimo na realidade, sem raiz na história, sem sentido na doutrina, sem con- teúdo nas leis23. A ampla abertura do exercício dos atos de poder do Estado para o povo, enquanto decorrência da Democracia, determina a assunção da responsabilidade pelas ações e omissões que possam interferir na produção dos atos oficiais. Por esse motivo, a cooperação da comunidade nas atividades de execução penal e de medida de segurança, prevista no artigo 4º da Lei 7.210/84, é uma pre- visão com forte conteúdo democrático, na medida em que distribui a responsabi- lidade sobre o sucesso dos objetivos da execução penal aos integrantes da socie- dade e lhes confere a autonomia para colaborar para a produção do ato de poder, cujo resultado (retorno à sociedade do condenado) afetará as pessoas em geral. O crime é praticado em um determinado entrecho social e, após o cumpri- mento da pena, o indivíduo condenado retornará para a mesma comunidade e, dessa forma, os integrantes do grupo social têm o ônus de contribuir para a exe- cução da pena. Caso se omitam, assumirão as consequências de sua passividade. 22 A Execução Penal à Luz do Método APAC 5 Conclusão A avançada Lei 7.210/84 no tocante ao seu objeto e à sua aplicação, ape- sar de viger há mais de 27 (vinte e sete) anos, ainda encontra muitos obstáculos que impedem a efetividade das bem ponderadas prescrições legais que integram o título I do referido diploma legal. O método APAC de gestão de estabelecimento penitenciário, com o apoio institucional do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, tem, de forma concreta e crescente, tornado viáveis as prescrições legais da Lei de Execução Penal, especialmente no tocante à dignidade do condenado em cumprimento penal e ao oferecimento de condições reais para a reinserção do apenado na sociedade, com verdadeira possibilidade de reconstrução de sua vida. 23 ... 25 A Execução Penal à Luz do Método APAC Do Condenado e do Internado Silvio Marques Neto* Sumário: 1 Aspecto histórico. 2 Aspecto legislativo. 3 Fundamento do método. 1 Aspecto histórico É secular a busca de meios legais para coibir o crime e, ao mesmo tem- po, recuperar o criminoso de modo que não volte a delinquir após o retorno ao seio da sociedade. Entretanto, o que se via era apenas uma ênfase na aplicação da pena de prisão e com o sentido de castigo. Pouco se dizia, e menos se fazia, com vistas à recuperação e reintegração social. Para nosso Código Penal de 1940, arts. 28 a 41, só existiam as penas de reclusão, detenção e multa. Tanto a reclusão como a detenção deveriam ser cumpridas em penitenciárias. A única diferença era o período inicial de isola- mento obrigatório nos casos de reclusão. As penitenciárias eram raras e normal- mente não tinham meios para separar os reclusos dos detentos. Na prática, a dis- tinção existia apenas no texto da lei e teor da sentença. No mais das vezes, os condenados ficavam recolhidos nas cadeias, sem nenhuma distinção de sistema e muito menos contando com algum trabalho ou atividade visando à recupe- ração e reintegração social. Não se há de olvidar que, invariavelmente, com todas essas deficiências, a família do condenado também pagava um alto preço. Mais grave do que essa visão material das prisões, das penas e de um pseudossistema de recuperação, era a relativa aos exames e perícias para verifi- cação de periculosidade e sua cessação, classificação de criminosos etc. Mesmo que houvesse dispositivo legal obrigando a realização de exame classificatório na entrada e o de cessação de periculosidade ao final da pena, poucos eram os locais que possuíam os meios para isso. Os aspectos psicológico e espiritual visando à recuperação e reintegração social algumas vezes não passavam de sonho de penalistas. Tentativas para melhorar o chamado “sistema penitenciário”, no Brasil e no mundo, são centenárias e contam-se aos milhares, tanto na teoria como na práti- ca, mas com pouco ou nenhum sucesso e duração. _____________________________________ * Desembargador aposentado do TJSP. Assessor Especial da Corregedoria Nacional de Justiça. Fundador e e um dos responsáveis pela constituição jurídica da APAC, em 1974, quando Juiz da Vara de Execuções Criminais de São José dos Campos - SP. (Título II da LEP) 28 A Execução Penal à Luz do Método APAC Tornou-se necessário apresentar um material mais sólido sobre a história e o modo de implantar uma APAC. Mario Ottoboni e eu escrevemos um livro a pedido das Edições Paulinas, que o denominou “Cristo Chorou no Cárcere”. O lançamento da primeira edição foi em 1976. Logo depois, pessoalmente entreguei um exemplar ao Presidente Ernesto Geisel. Ele determinou ao seu Ministro da Justiça, Armando Falcão, que providenciasse uma verificação e estu- do do “Sistema APAC” em São José dos Campos. Três assessores do Ministério da Justiça ficaram lá alguns dias verificando os fundamentos e o funcionamento do “Sistema APAC”. Após essa visita, veio a primeira modificação nessa parte do Código Penal com a Lei nº 6.416, de 24 de maio de 1977, alterando basica- mente os arts. 29 e 30, que dizem respeito ao sistema penitenciário. Esse foi o primeiro passo da legalização, a qual foi consolidada pela Lei de Execução Penal nº 7.210, de 11 de julho de 1984. O reconhecimento pelo Ministério da Justiça, consagrado por essa mo- dificação legislativa, ficou também registrado em ofício do Ministro Armando Falcão classificando a APAC como “laboratório e modelo”. Isso nos obrigou a tomar duas providências, segundo nos foi transmitido pela Professora Doutora Arminda Bergamini Miotto, assessora do Ministro. Tivemos que alterar a denominação “Carcerária” em razão de convenções internacionais das quais o Brasil era signatário, vedando a existência de cárceres e masmorras. Tivemos também que alterar o procedimento adotado ao instituir esse trabalho em outras cidades. Como o Ministério da Justiça não tinha como inspecionar todas as comarcas do País e havia classificado a APAC como laboratório e modelo, todas as similares deveriam adotar idêntico nome e sistema. Para tanto, reunidas em um congresso, todas as unidades que já existiam se uniram criando a Federação Brasileira das APACs. Houve apenas uma exceção, de Ribeirão Preto-SP. A palavra impugnada “carcerária” foi substituída por “condenados”, fican- do, inclusive, mais de acordo com o espírito do “Sistema” e preservou o acrós- tico que deu origem a tudo. O lema que os doze voluntários haviam adotado desde o início foi baseado no Evangelho - “estive preso e me visitastes”. Por isso era “Amando o Próximo (ou o preso), Amarás a Cristo” - APAC. Em outra ocasião, ainda em São José dos Campos, a Dra. Arminda Bergamini Miotto e o Dr. Hélio Fonseca, Diretor do Departamento Peni- tenciário Federal do Ministério da Justiça, anunciaram a intenção desse Minis- tério de construir um presídio modelo, diferenciado, nos moldes da filosofia da APAC. Infelizmente, depois de profunda discussão sobre o projeto, o plano encontrou resistência do Governo do Estado de São Paulo e não se concretizou. A formação da Federação também facilitou a nossa associação à Prison Fellowship International - PFI, mais nova que a APAC, sem um sistema, mas 29 A Execução Penal à Luz do Método APAC com excelente organização. A PFI atualmente abarca perto de 150 países e tem sede em Washington-DC. A PFI é classificada como órgão consultivo grau II da ONU para assuntos penitenciários. 2 Aspecto legislativo Como visto acima, o Código Penal de 1940 era bastante parcimonioso. O art. 30 previa um período inicial de isolamento diurno e noturno por até três meses. A Lei 6.416/77 manteve a prática. Basicamente essa era a diferença entre a reclusão e a detenção, sob o ponto de vista qualitativo. Essa lei também manteve as regras básicas do Código de 40. Avanço maior foi no tema das atividades educacionais e laborais. Interessante destacar as disposições constantes nos parágrafos 6º e 7º da nova redação do art. 30. Começou pela determinação para que a lei local, ou Provimento do Conselho Superior da Magistratura, ou órgão equivalente fizesse, em cada Estado, a regulamentação do sistema progressivo como inovado nessa lei. A combinação desse dispositivo com a parte final do inciso VI, do parágrafo 7º, “indicação da entidade fiscalizadora”, nos mostra que a experiência regulamentadora exercida pela Corregedoria dos Presídios de São José dos Campos frutificou e ficou mantida. O art. 1º do Provimento 02/75 diz que “As normas e regras estabeleci- das nos Estatutos da Associação de Proteção e Assistência Carcerária [...] são parte integrante deste Provimento [...]”. O art. 6º especifica que “Todo o traba- lho de reeducação será feito por intermédio da APAC [...]”, e seu parágrafo único completa: “Qualquer outro trabalho de reeducação que outros grupos ou entidades queiram desenvolver na cadeia local deverá ser exercido através da APAC”. Seguiu-se a Lei de Execução Penal nº 7.210, de 1984, que, no art. 4º, determinou: “O Estado deverá recorrer à cooperação da comunidade nas ativi- dades de execução da pena e da medida de segurança”. Note-se que a norma é imperativa, e não facultativa. A administração das atividades nos presídios onde o “Sistema APAC” é aplicado é exercida pela APAC, braço direito do Juiz das Execuções. Aqui é importante destacar outro dispositivo do Estatuto. No art. 23, letra “a”, ficou estabelecido que o Presidente “será sempre o Juiz Corregedor”, membro nato do Conselho Deliberativo. Estava regulamentado o controle e a absoluta sub- missão das atividades da entidade e de seus voluntários associados às normas legais e à direção do Magistrado. Nas comarcas onde a APAC mais avançou, nas 30 A Execução Penal à Luz do Método APAC quais a presença do Estado é mínima ou já está afastada, o estabelecimento pri- sional funciona como se estivesse privatizado, mas supervisionado diretamente pelo Juiz das Execuções e Corregedor. Em resumo, ficou reconhecido que o condenado é produto da sociedade e foi dela segregado por descumprimento de suas regras. Deverá então aprender ou reaprender as boas normas de convivência para um dia retornar, e esse ca- minho não pode ser palmilhado sem a participação dessa mesma sociedade. Como visto acima, a APAC veio antes da Lei nº 6.416/77 e da Execução Penal de 1984, testando e experimentando as modificações que se faziam necessárias com vistas à recuperação e reintegração social do condenado. Portanto, não cabe questionar se ela é ou não legal, já que foi o próprio mode- lo para a lei. 3 Fundamentos do método De início, é importante consignar um ensinamento do Professor e Psiquiatra Forense Odon Ramos Maranhão. Em palestra de abertura de uma Semana de Criminologia na Faculdade de Direito de São José dos Campos, de- vidamente gravada e lá registrada, o Professor Odon iniciou dizendo que iria se antecipar respondendo a uma pergunta que sabia ainda seria feita por ser recor- rente - “qual é a causa do crime?”. Disse que, examinando milhares de condena- dos no Sistema Penitenciário de São Paulo para a elaboração dos laudos relativos à periculosidade, veio a concluir que “a causa da criminalidade é a falta de amor pater- no na fase da formação da personalidade”. Detalhou essa conclusão explicando que essa fase vai da vida intrauterina até aproximadamente os 10 anos de idade. Quanto ao falado amor paterno, não é limitado à figura do pai, mas de todo o núcleo familiar, mãe, avós, tios etc., ou seja, essa microssociedade. A lei pode obrigar um pai a assumir seu filho, dar-lhe nome e sustento, mas não a amá-lo. Está aí um grave problema. Uma coisa que aprendi com os próprios internados, mas também com criminologistas e psicólogos, é que o condenado pode não querer mudar de vida. A lei, essa abstração, não pode obrigar qualquer pessoa a mudar seu modo de pensar. Pode forçar determinado comportamento, por mera coação, mas sem convicção, sem mudança interior. Isso não interessa à sociedade que o segregou em uma prisão. Com essa visão, no Provimento 02/75 não se fixou período ou prazo para o internado passar de um estágio a outro, progredindo ou regredindo, nem vedação para que tentasse progredir quantas vezes fosse necessário. Como uma 33 A Execução Penal à Luz do Método APAC Voltou, mas depois do quarto dia da morte, dirigiu-se ao túmulo fechado com uma grande pedra. Em primeiro lugar, é de ser notado que Cristo não voltou de imediato, nem tomou qualquer providência nas diversas vezes em que foi procurado pelos amigos de Lázaro. A conveniência e o tempo eram Dele. Aos amigos restou aguardar com fé, insistindo nos pedidos. É o papel dos “padrinhos” da APAC. Quando Lhe conveio, Cristo retornou. Para alguém que iria ressuscitar um morto enterrado há quatro dias, era mais fácil tirar a pedra com um sopro, mas ordenou aos amigos de Lázaro que a tirassem. Em seguida, sem entrar no túmulo, ordenou de novo - “Lázaro, vem para fora”, e ele veio caminhando com os próprios pés. O mesmo acontece com os condenados de hoje. Não cabe aos homens explicar os desígnios de Deus quanto aos atos dos internados. Quanto à liber- tação deles, não aquela possibilitada por uma fuga ou por um alvará de soltura, mas a verdadeira, a do interior, essa passagem nos mostra como deverá aconte- cer. Eles terão que ouvir e atender ao chamado. Devem compreender essa cir- cunstância contando com a ajuda dos “padrinhos”, que retiram a pedra, para vivenciar o Evangelho e não apenas dizê-lo de cor. Ao internado compete ouvir e atender ao chamado, saindo com as próprias pernas. Por mais que Deus queira a recuperação e reintegração dos condenados, e os “padrinhos” os ajudem, a estes compete levantar e sair. A transformação acima referida será complementada com a “harmônica integração social do condenado e do internado”, conforme art. 1º da Lei 7.210/84. Essa integração, ou reintegração, como é lógico, deverá efetuar-se de preferência, e na maior parte das vezes, por intermédio da família. No curso de suas atividades e desenvolvimento do seu “Sistema”, a APAC observou que existiam inúmeras dificuldades e resistências por parte de membros da família e de vizinhos em relação ao retorno do condenado. Obser- vou também que era sério e complexo o problema do sexo na prisão. Com a sábia orientação do nosso voluntário psicólogo Hugo Veronese, a APAC de São José dos Campos criou dois eventos de suma importância: o “terço em família” e o “domingo em família”. Ambos faziam parte do processo de aproximação do internado com a família, e, ao mesmo tempo, promoviam essa família, enquan- to os vizinhos eram preparados para o retorno do condenado. O evento “terço em família” foi criado para os católicos, mas atividades similares, ou seja, reli- giosas, podem ser executadas para internados de outras denominações cristãs. Trata-se de uma reunião de familiares, amigos e vizinhos, na qual o preso será levado pelos “padrinhos” apenas para esse ato de convivência espiritual de pou- 34 A Execução Penal à Luz do Método APAC cas horas. O “terço em família” era uma preparação para as saídas subsequentes, como o “domingo em família”. Por outro lado, prevalecia o entendimento de que a relação marido-mu- lher deveria estar centrada no amor e não poderia ser banalizada como os encon- tros íntimos realizados dentro dos estabelecimentos prisionais. Além do mais, os locais para tais encontros nunca são suficientes e muito menos apropriados, para não falar no péssimo papel a que o Estado fica reduzido nesse quadro. Não se ignore ainda a humilhação a que são submetidas as mulheres. A alternativa cria- da pela APAC contornava esses problemas. Com o “domingo em família”, concedido como prêmio pelo bom compor- tamento e aproveitamento, propiciava-se o encontro do internado com a família, pela manhã, no templo da sua confissão religiosa, participando da missa, ou culto, em companhia dos “padrinhos”. Em seguida, o internado podia seguir para sua casa onde ficava até o retorno em horário preestabelecido no fim da tarde. Antes da primeira saída para o “terço em família”, e depois para o “domin- go em família”, competia aos “padrinhos” visitar a família e os vizinhos preparando a volta do internado, a fim de evitar todo tipo de hostilidade, “cobranças”, queixas etc. Tudo isso foi dito para demonstrar a importância da “amorização” do cumprimento da pena, e uma das características, das mais importantes, a dos “padrinhos” no “Sistema APAC”, hoje denominado Método APAC. Os volun- tários intitulados “padrinhos” são preparados para atuar dentro e fora dos esta- belecimentos penais como pais substitutos. Essa foi a grande inovação do “Sistema APAC”. Os voluntários “padrinhos” são os pais substitutos daqueles internados que não tiveram pais, ou cujos pais falharam. Também, como se verá, são muito úteis no contato semanal dentro da prisão. Na forma como a visita íntima foi colocada no inciso X do art. 41 da Lei de Execução Penal, como “direito”, não importa nem mesmo o comportamen- to, muito menos o aproveitamento do internado na prisão, nem se ele tem esposa ou companheira; criou-se um leito subsidiário, para quem perdeu o prin- cipal, e sem nenhum compromisso, merecimento, ou responsabilidade. São Paulo, na sua Carta a Filemon mostra que a função do “padrinho” dentro da prisão é antiga. São Paulo estava preso com Timóteo quando escreveu essa carta. Era a respeito de outro preso, Onésimo, que encontrou no cárcere onde estavam. Onésimo seria um servo de Filemon, amigo de Paulo, e teria cometido alguma falta. São Paulo disse que agora Onésimo era seu filho, “gera- do” ali na prisão, mas o devolvia a Filemon esperando que ele o recebesse de 35 A Execução Penal à Luz do Método APAC volta, não mais como servo, mas como irmão. Esse registro bíblico da recupe- ração de um condenado dentro da prisão não se limita à função do “padrinho”, aqui o Apóstolo Paulo, mas também a do recuperando resgatado do mundo do crime. Paulo queria que Onésimo lá continuasse para ajudá-lo com outros pre- sos; aqui a figura do modelo, do exemplo. Essa é outra das características do Método APAC, o preso ajudando o próprio preso. Finalizando, impende recordar mais duas lições evangélicas, entre muitas outras, muito bem aplicáveis à atividade dos voluntários nas prisões. O bom pas- tor deixa todo o rebanho no redil e volta à procura da ovelha desgarrada. O pai, na parábola, vai até a porta e manda fazer uma festa para acolher o filho pródi- go que retorna. Não se há de esmorecer na luta contra o crime, especialmente no ofe- recimento de meios e oportunidades para a recuperação dos condenados. Ainda que a lei dos homens se desespere a ponto de criar a pena de morte, é esta mesma pena que nos mostra que sempre há uma esperança. Não é por coin- cidência que a sede da Diocese de São José dos Campos, criada anos depois da APAC, ficou na Catedral de São Dimas, aquele que se arrependeu e se conver- teu junto ao próprio Cristo. ... 39 A Execução Penal à Luz do Método APAC de Execução Penal, para distinguirmos sua amplitude. Preso: A princípio, é aquele que está no interior do estabelecimento pri- sional, fruto de uma sentença penal, ou seja, o condenado, ou aquele encarcerado por força de decisão cautelar que resulta numa prisão pro- visória. Portanto, sendo definitiva ou não, a assistência é indistinta, deve ser concedida a todos os presos, independentemente de sua situação processual. Não se distingue, aqui, da condição de preso aquele que foi beneficiado pela prisão domiciliar prevista no art. 117 da LEP, recebendo, por dis- posição legal, a mesma assistência definida na legislação especial. Internado: É aquela pessoa que está custodiada pelo Estado em razão de aplicação de medida de segurança, ou seja, foi reconhecido por sen- tença - ainda que sujeita a recurso - que o paciente judiciário é portador de doença mental, sendo inimputável ou semi-imputável (arts. 96 e 98 do Código Penal) e exigindo tratamento. Egresso: É a pessoa que deixou definitivamente a prisão, ou seja, encer- rou o cumprimento da pena. A pessoa é considerada como egressa pelo período de um ano a contar de sua saída da prisão após o cumprimento de sua pena; considera-se também egresso a pessoa que deixa a prisão e está cumprindo livramento condicional, e que, transcorrido o período de prova, perderá a condição de egresso. Tudo consoante a redação dos incisos do art. 26 da Lei de Execução Penal. Além desses assistidos, existem algumas variantes, criadas, na maioria, pelas novas legislações, bem como pelo avanço da doutrina e da jurisprudência, e que estendem a assistência a outras pessoas não elencadas diretamente pela Lei 7.210: Monitorado: É aquela pessoa em liberdade mediante a utilização de equipamento de monitoramento eletrônico. É aquele preso que, por decisão judicial, usa pulseira ou tornozeleira eletrônicas, a fim de obter o direito de sair da prisão, conforme autorização concedida pela Lei 12.258/2010 - que alterou as disposições do art. 122 da LEP -, bem como pela Lei 12.403/2011 - que alterou o art. 319 do Código de Processo Penal. 40 A Execução Penal à Luz do Método APAC Em ambos os casos - o primeiro, para condenados, e o segundo, para provisórios -, os deveres de conceder assistência prevista na LEP per- manecem, visto que, ainda que fora da prisão, essas pessoas de alguma forma permanecem vigiadas e limitadas em sua liberdade pelo monitora- mento eletrônico. Albergues domiciliares especiais: Noutro giro, em razão de ausência de casas de albergado, tem sido recorrente a jurisprudência admitir, excepcionalmente, prisão domiciliar aos condenados em regime aberto, nas prisões desprovidas de casa de albergado, mediante condições. Vejamos um exemplo de decisão do Tribunal de Justiça mineiro, seguin- do consagrado entendimento do Superior Tribunal de Justiça: Agravo em execução. Recuperando progredido para o regime aberto. Ausência de casa de albergado na comarca. Prisão domi- ciliar. Concessão mediante condições. Decisão confirmada. Agravo não provido. I - Tendo em conta que as condições estipuladas pelo Juízo da Execução estimulam, na medida do possível, a autodisciplina e senso de responsabilidade do reeducando, poderá ele, ante a ausência de casa de albergado, ser colocado em prisão domiciliar, em homenagem aos princípios da humanidade e da dignidade da pessoa. II - Agravo não provido (Agravo de Execução Penal n° 1.0143.09.023359-2/001 - Relator: Des. Eduardo Brum - 4ª Câmara Criminal - TJMG). Também nesses casos a pessoa permanece presa, ainda que de forma excepcional em seu domicílio, e, por isso, também deve receber a assistência pre- vista na Lei de Execução Penal. 3 A obrigação do Estado e a função da APAC Uma leitura fria e breve do caput do art. 10 da LEP pode levar os incau- tos a interpretarem que a assistência ali prevista é “dever do Estado”, exclusiva- mente. Realmente, do ponto de vista geral, é o Estado que deve dar condições ao preso (em prisão domiciliar ou não), ao internado, ao egresso e ao monitora- do, para seu retorno ao convívio social, como pessoa útil e produtiva. De fato, superado o tempo da interpretação da pena como retribuição 41 A Execução Penal à Luz do Método APAC ao crime, ou da prevenção contra ações criminosas, o Estado deve proporcionar condições de tratamento àqueles que viveram marginalmente, para que possam ser incluídos. Nesse sentido, a lição de Mirabete: O objetivo do tratamento é fazer do preso ou internado uma pes- soa com a intenção e a capacidade de viver respeitando a lei penal, procurando-se, na medida do possível desenvolver no ‘reeducan- do’ uma atitude de apreço por si mesmo e de responsabilidade individual e social com respeito à sua família, ao próximo e à sociedade em geral (1987, p. 75). O grande drama, por certo, é desafiar o preso para a cultura da reflexão, da demonstração de que possui escolha: manter-se no crime ou viver em regime de paz. O problema é que, dentro das prisões, em ambientes infestados pela cul- tura da impunidade, nas quais barbaridades e crimes são praticados ao arrepio da Lei, é praticamente impossível brotar no preso a possibilidade de mudança. Lídio Machado Bandeira de Melo, em sua tese de concurso, Responsa- bilidade Penal, dedica diversos capítulos de sua obra para demonstrar a importân- cia do livre arbítrio para as pessoas, e acentua: A noção do livre arbítrio, a consciência da liberdade, não vem do desejo satisfeito: vem da renúncia; vem da mortificação; vem do poder de contrariarmos os desejos nossos, a ponto de causarmos a doença e a ruína do corpo (1941, p. 94). Fazer germinar esse sentimento de escolha é o grande desafio que o Estado, como poder frio, jamais terá vocação. O que ele pode, e deve fazer, é possibilitar aos diversos órgãos de atuação nas prisões, principalmente através de voluntários e pessoas de bem, que desenvolvam as modalidades de assistência elencadas no art. 11 da LEP. Mirabete reforça esse entendimento, na obra já referida, ao citar Heleno Cláudio Fragoso (Direitos dos presos), para demonstrar que “o tratamento terapêu- tico só pode ser efetivo se for voluntário, e a tendência moderna se orienta no sentido de limitar os programas de ‘tratamento’, sejam quais forem, aos internos que os desejem” (p. 76-77). A força do voluntariado tem trazido ótimos resultados, uma vez que recebido pelos presos e internos como um gesto de amor, de dedicação e cari- nho, e não como cumprimento de uma jornada - por vezes - burocrática de tra- balho. Tem conseguido, com muito esforço, a facilitação da escolha, permitindo ao recuperando aceitar o tratamento. 44 A Execução Penal à Luz do Método APAC sos, não despertará simpatia aos ouvintes, sendo que as lições se reverterão, por vezes, em revolta. Nesse sentido, para qualquer tipo de assistência, é evidente, como ensi- na Mario Ottoboni, “que tudo deve começar com a participação da comu- nidade” (obra citada, p. 64). Portanto, para que seja despertado no preso o poder da escolha, a comu- nidade deve participar efetivamente da rotina do estabelecimento prisional, trazendo lições, exemplos e discussões das mais variadas, as quais resultarão em esperança, para o recuperando, de uma nova oportunidade, quando deixar o sis- tema penitenciário. 4.2 O recuperando ajudando o recuperando Dividir as tarefas de assistência entre os presos, com eles próprios, con- tribui para a harmonia do estabelecimento, partilhando responsabilidades para o alcance das propostas com os próprios beneficiados. Não há dúvida de que a pessoa condenada, na maioria das vezes, não teve oportunidade de dividir responsabilidades nem com sua própria família. São pessoas, em regra, sem limites e que nunca receberam lições sobre a vida em sociedade. À medida que vão recebendo essas lições e compreendendo a dimensão de sua nova postura, verificarão que estão participando da melhoria do ambiente onde estão convivendo; por isso, deve-se entregar ao próprio preso (recuperan- do) a possibilidade de acolher o outro, demonstrando, com seu exemplo, a im- portância da recuperação. Para o sucesso desse elemento, que, de alguma forma, contempla, no mínimo, o dever de assistência social e educacional, ensina Ottoboni: é fundamental ensinar o recuperando a viver em comunidade, a acudir o irmão que está doente, a ajudar os mais idosos e, quan- do for o caso, a prestar atendimento no corredor do presídio, na copa, na cantina, na farmácia, na secretaria etc. (obra citada, p. 67). É um exemplo da gigantesca diferença do método convencional, em que, em razão do clima de hostilidade e egoísmo que norteia o ambiente prisio- nal, não há possibilidade de o preso despertar sua capacidade de servir ao pró- ximo. 45 A Execução Penal à Luz do Método APAC 4.3 O trabalho Constantemente, escutamos que os presos deveriam trabalhar para pagar sua estada na prisão. Trabalhos forçados, ou até mesmo trabalhos humilhantes e degradantes, estas são as únicas funções que deveriam ser praticadas pelos pre- sos, bradam muitos. Remição por meio de funções, tais como limpeza de córregos fétidos e contaminados pelo esgoto, zeladores de cemitérios, entre outras, embora impor- tantes, nem sempre são as melhores e capazes de oferecer ao preso a oportu- nidade de recuperação. Muitas vezes, dentro do próprio estabelecimento prisional, o recuperan- do pode desenvolver diversas atividades, com as quais, de acordo com seu per- fil, pode se identificar, possibilitando, dessa forma, sua interação futura com a sociedade e respeitando sua dignidade humana. É bom lembrar que muitos presos nem sequer tiveram, ou conheceram, profissões regulares, desenvolveram atividades prestativas e dignas de algum re- gistro. Os presos, ao organizarem as tarefas do dia a dia na rotina dos presídios, demonstram responsabilidade, buscando, cada um, sua aptidão para o trabalho cotidiano. Além de melhorar a autoestima de cada preso, o trabalho proporciona melhoria nas condições materiais do estabelecimento, e, por vezes, estará con- tribuindo para melhor assistência a todos os recuperandos. Por exemplo: quan- to à saúde, consultórios limpos e bem cuidados; quanto à assistência jurídica, organização dos prontuários e apoio logístico aos operadores do direito; quan- to à assistência educacional, aulas e condições físicas das salas de aula; e até reli- giosas, com a preparação e desenvolvimento dos atos. São todas essas ações socializadoras, na essência. Por isso, o trabalho é obrigatório em todos os regimes, mas não força- do, pois proporciona a todos os recuperandos estarem comprometidos com a caminhada dos demais, estando todos dirigidos para a proposta de conversão, consoante o livre arbítrio de cada um. 4.4 A religião Trata-se de um elemento cuja assistência é nominalmente citada na LEP. Melhor seria denominá-lo de espiritualidade, e essa modalidade de assistência, de espiritual. Isso para que não se evidencie a escolha de uma religião como funda- mental para a recuperação dos presos. 46 A Execução Penal à Luz do Método APAC Na verdade, o fundamental é a oportunidade de cuidar do espírito, e, nesse sentido, a religiosidade pode funcionar de forma importante. Proporcionar ao recuperando a introspecção de valores espirituais para chegar a uma libertação, a uma jornada de apegar-se a algo maior do que seu passado, que o fez chegar à situação de preso. Em visitas a prisões, em celas de todos os lugares do mundo, são vistos desenhos e anotações. Não é preciso um estudo específico, mas é extremamente raro entrar em uma cela e não ver símbolos religiosos: a cruz, a invocação de Deus e o nome de Jesus são uma constante. Isso revela que, nos momentos de desespero, nos piores momentos, pes- soas que normalmente nunca frequentaram qualquer tipo de religião se apegam a nomes e a mitos religiosos na busca de algo para salvá-los, para retirá-los daquela situação de trevas. Daí que cuidar da espiritualidade é tão importante. Nos movimentos apaqueanos, líderes religiosos oferecem, com técnica e carinho, estudos que pro- porcionam melhor apego e valores aos internos dos presídios, e que, por certo, alcançam seus objetivos. Por fim, é também importante ressaltar que esse elemento - essa forma de assistência, como as demais - somente surtirá os efeitos desejados se as demais modalidades estiverem presentes na recuperação do interno. Somente a religião, isoladamente, não será capaz de preencher a necessidade do recuperan- do, e muito menos sua lacuna espiritual. 4.5 A assistência jurídica Quem conhece estabelecimentos prisionais sabe que uma das maiores angústias que carregam as mentes dos presos é a situação jurídica de cada um. Entrando no presídio, logo ao aproximarmos das celas, os presos estão sempre a se queixarem de que estão ali injustamente, ou que, por vezes, já pas- saram da hora de sair. As visitas às cadeias e penitenciárias têm sempre essa marca. Impossível, em razão disso, que uma pessoa que frequente esses estabelecimentos em visita oficial dispense o caderno e a caneta para futuras verificações. Assim, verificar a situação jurídica dos presos é assistência importantís- sima, significa calmaria no estabelecimento prisional e, sobretudo, tranquilidade para a pessoa que está na prisão. Os presídios lotados e em situação sempre adversa levam a um fator de muita dificuldade na correta distribuição dessa modalidade de assistência. 49 A Execução Penal à Luz do Método APAC projetos de vida, as causas que o levaram à criminalidade, enfim, tudo aquilo que possa contribuir para a recuperação de sua auto- estima e da autoconfiança (obra citada, p. 85-86). 4.8 A família Não há maior assistência social ao preso do que proporcionar seu encontro e contato com sua família. O convívio respeitoso com as pessoas que o rodeiam significa também esperança. Na maioria das vezes, os familiares dos presos alimentam-no de ideias de que o estão aguardando quando retornarem à sociedade. Conhecemos prisões que proporcionam os encontros dos presos com suas famílias de todas as formas. Não falamos de encontros íntimos, referimo- nos a visitas regulares para contato dos presos com seus entes sociais e queridos. Existem prisões em que essas visitas são coletivas, onde os visitantes isolados por uma corda, de longe, assistem ao preso no interior da cela e desenvolvem algum contato. É quase uma exposição de feras ou algo parecido com um zoológico. Em outros, como nas APACs, as visitas de familiares são calmas, tran- quilas, equilibradas e trazem, além de carinho e esperança ao preso, a certeza de que é amado e terá com aqueles visitantes novos contatos, e não ficará esqueci- do até seu retorno ao convívio social. O contato com os familiares proporcionará ao preso o elo com o mundo exterior. Mais do que isso, permite que ele continue pai de seus filhos, marido de sua esposa, filho e irmão, além de suas outras relações sociais. Daí a importância desse elemento, que consagra de alguma forma a assistência social ao preso. Permite também que os familiares conheçam da metodologia e, por vezes, alterem seu comportamento, extirpando o mal social que fomentou a ação criminosa do ente querido, agora preso. Nas APACs, esse contato com a família é recheado de cuidado e respeito. São ministrados cursos aos familiares, chamando-os à responsabilidade com o recuperando, convidando-os a uma reflexão quanto à mudança de valores. Esses familiares estão sempre presentes na APAC e, acima de tudo, têm o dever de conhecer da metodologia, buscando zelar por ela e disseminá-la da maneira correta. Ajudam fundamentalmente na reinserção social do preso, ainda que esteja distante do convívio familiar. 4.9 O voluntário e o curso para sua formação Embora não conste do rol exemplificativo do art. 11 da LEP, impossível deixar de reconhecer que a presença do voluntário, devidamente qualificado, é 50 A Execução Penal à Luz do Método APAC importante na recuperação dos presos. Isso não apenas para as APACs, mas também para todos os estabeleci- mentos penais. Anote-se que isso se estende também aos funcionários e diri- gentes das prisões e presídios. Ora, não se concebe que amadores tratem causa tão preciosa, como cuidar do ser humano para que saia da prisão melhor do que entrou. Pessoas despreparadas fatalmente vão contribuir para o aumento da promiscuidade e da revolta dos apenados, ou, mesmo, irão proporcionar senti- mentos, alheios a essa fase da vida, como injustiçados pela sorte ou pelo direito penal. Portanto, é imprescindível que essas pessoas cotidianamente se sub- metam a cursos, sempre relembrando valores e construindo ideias capazes de ajudar na melhoria da autoestima do condenado e de proporcionar seu resgate social. A respeito das APACs, Ottoboni, mais uma vez com razão, ao referir-se sobretudo ao voluntário, sustenta que o amor há de ser gratuito, constante e incondicional, por isso a graça de Deus passa a ser a recompensa. O valor de um trabalho gratuito é incomensurável, pois é realizado por gestos concretos de doação, amor, convicção cristã (obra citada, p. 90). 4.10 Os Centros de Reintegração Social Todo presídio deveria possuir condições sanitárias e higiênicas mínimas para o tratamento humanitário do recuperando. No entanto, mesmo nos presídios novos, muito em razão da cultura dos presos e de sua não preparação, as celas estão em péssimas condições, impedin- do o desenvolvimento de tarefas para a recuperação do interno. Nas APACs, a existência de Centros de Reintegração Social, dotados de Departamentos de Saúde, Jurídico e Administrativo, bem como de recursos materiais convenientes à recuperação do preso, como celas ou alojamentos dig- nos, cozinha e locais para recebimento da família, tem demonstrado sua grande importância como assistência material ao preso, sendo fundamental no auxílio a sua recuperação. Além do mais, é fundamental que os Centros de Reintegração possuam cuidado na separação dos regimes dos condenados, sem confusão ou contato entre eles, para que o sistema progressivo previsto na Lei de Execução Penal funcione corretamente. 51 A Execução Penal à Luz do Método APAC Também nas APACs, a capacidade máxima dos Centros de Reintegração Social é observada criteriosamente, evitando-se, assim, a superlotação e os con- sequentes desmandos, motins ou rebeliões derivados dela. Enfim, o estabelecimento penal adequado e digno proporcionará ao recuperando condições para alcançar sua verdadeira reinserção social. 4.11 O mérito Registre-se que, em razão da boa assistência concedida ao preso, é pos- sível avaliá-lo para fins de concessão de benefícios durante o cumprimento de sua pena. Nos presídios comuns, essa avaliação é, de regra, entregue aos comitês técnicos de classificação. Nas APACs, também estão presentes os CTCs, porém há rigor na apu- ração do mérito do recuperando. Verifica-se que, desde o dia em que o preso entrou na APAC, ele passa a ser avaliado, muitas vezes, pelos próprios conselheiros dos Conselhos de Sinceridade e Solidariedade - CSSs, formados pelos próprios recuperandos do regime, quanto a sua caminhada e vontade de recuperação. São os CSSs que irão indicar, a princípio, o trabalho dos presos na roti- na do dia a dia e avaliarão seu compromisso no que diz respeito à receptividade da assistência externa recebida. Note-se, assim, que esses Conselhos formados pelos presos (que costu- mam ser extremamente rigorosos) participam das atividades avaliativas que poderão proporcionar a chance de melhoria da situação prisional de cada um dos recuperandos. Já os Comitês Técnicos de Classificação são formados por pessoas que participam da rotina dos presos, geralmente voluntários, dirigentes e fun- cionários das APACs, verificando as tarefas e a caminhada de cada um dos pre- sos, dentro da metodologia, opinando, assim, pela concessão de benefícios. Isso demonstra que os benefícios são concedidos àqueles que também se empenham na metodologia, e não àqueles que simplesmente não registram notas desabonadoras em seus prontuários, passando como “obedientes”, quan- do, na verdade, são “omissos e descomprometidos”. Esse envolvimento proporciona ao recuperando interesse muito maior numa possibilidade de mudança do direcionamento nas opções de vida que teve até aquele instante. Daí a grande importância da correta avaliação do mérito dos recuperan- dos para a concessão de benefícios. A Execução Penal à Luz do Método APAC _____________________________________ * Secretário Adjunto de Estado de Defesa Social de Minas Gerais - Governo de Minas Gerais. Execução Penal - APAC Genilson Ribeiro Zeferino* Sumário: 1 Introdução. 2 APAC. 3 Estágios. 4 Assistência material. 5 Considerações finais. 6 Referências. 1 Introdução A dignidade da pessoa humana está consagrada na Carta Magna em seu art. 1º, inciso III, como base do nosso Estado brasileiro. Em concordância com tal fundamento, o art. 5º do mesmo dispositivo legal eleva a integridade física e moral dos encarcerados à categoria de cláusula pétrea. Nesse ínterim, o art. 1º da Lei de Execuções Penais traz, em seu teor, que a execução penal tem por finalidade proporcionar condições para a harmônica integração social do conde- nado. Hodiernamente, torna-se fato o crescimento incondicional do número de encarceramento nos presídios, em consequência da efetivação das dis- posições de sentença e decisões criminais, originado do desenvolvimento pro- gressivo da criminalidade. Nesse diapasão, com os presídios superlotados, os esforços incondi- cionais de toda a equipe técnica dos presídios, com o objetivo de executar cuida- dos exercidos prioritariamente de forma individualizada e com excelência ao penitente, tornam-se comprometidos. Diante de toda essa preocupação, foram realizados diversos estudos, necessários para situar o contexto penitenciário, no sentido de se criar um novo método que, além de garantir a função punitiva da pena, ainda recuperasse a ressocialização do encarcerado. Assim, surge a APAC em 1972, idealizada pelo jurista paulista Mario Ottoboni, preconizando a humanização da execução penal, sem perder de vista o caráter punitivo da pena, sendo considerado um direcionamento novo na execução penal brasileira. 2 APAC No ano de 1972, um grupo formado por 15 pessoas, lideradas pelo advogado Dr. Mario Ottoboni, preocupados com o grave problema da super- 55 (Título II, capítulo II, seção II, da LEP) A Execução Penal à Luz do Método APAC lotação das prisões no Município de São José dos Campos (SP), passou a pesquisar o fenômeno da execução penal nos presídios brasileiros. Em Minas Gerais, o método APAC surgiu há 26 anos na cidade de Itaúna, tornando-se referência com a realização de um trabalho voltado para a recuperação social e valorização humana dos encarcerados, a proteção da sociedade, bem como a promoção da justiça. Para Mario Ottoboni, a APAC é um método de valorização humana, portanto de evangelização, para oferecer ao condenado condições de recuperar-se, logrando, dessa forma, o propósito de proteger a sociedade e promover a justiça (OTTOBONI, 2004, p. 23). A APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados) é uma entidade jurídica sem fins lucrativos, imbuída na missão de reestruturar a maneira como a execução da pena é executada. O acompanhamento da sociedade civil é um diferencial essencial no caminho para a reabilitação social. A APAC surge embasada na Lei de Execução Penal, pautando-se por um novo enfoque no cumprimento da pena, executando a liberdade progressiva, priorizando a reeducação do encarcerado que desempenhar os requisitos preli- minarmente estabelecidos. A cada etapa cumprida dos estágios estabelecidos, o encarcerado passa a ter um acesso maior à liberdade. Sua liberdade é conquista- da a partir da inserção, aceitação da proposta metodológica, desempenho satis- fatório, disciplina e confiança. O método é baseado no amor, na confiança e na disciplina, tendo como filosofia “matar o criminoso e salvar o homem” e, como objetivos, recuperar o preso, proteger a sociedade, socorrer a vítima e promover a justiça. O que há de mais considerável na APAC - e, consequentemente, o que a diferencia do sistema carcerário comum - é que os encarcerados (“recuperan- dos” - definição para encarcerados na APAC) são corresponsáveis pela própria recuperação, além de lhes ser oferecida assistência espiritual, médica, psicológi- ca e jurídica, prestada pela comunidade local. A segurança e a disciplina são feitas com a cooperação dos recuperan- dos, tendo como sustentáculo funcionários, voluntários e diretores das enti- dades, sem a presença de policiais e/ou agentes de segurança penitenciários. O método, aliado à vontade de mudança do recuperando, atua na recuperação do condenado, visando, assim, à proteção da sociedade. Para o método, um preso recuperado representa um criminoso a menos nas ruas. 56 A Execução Penal à Luz do Método APAC 57 A metodologia aplicada leva em consideração a experiência vivenciada pelo recuperando. É necessário trabalhar o problema existente; conhecer as questões que levaram o recuperando ao mundo do crime e à prisão; trabalhar os fenômenos, os fatores e sofrimentos que o levaram à transgressão. A transferência de presos para a APAC somente se dá através de auto- rização judicial. Para o fiel cumprimento da proposta da APAC, é necessária a efetivação de 12 elementos fundamentais, sendo eles: 1. A participação da comunidade. A Lei de Execução Penal dispõe, em seu art. 4º: O Estado deverá recorrer à cooperação da comunidade nas ativi- dades de execução da pena e da medida de segurança. Essa participação se faz necessária, tendo em vista que é a própria comu- nidade a maior interessada em um ambiente seguro, até porque o criminoso não nasce criminoso, é a comunidade que o torna assim. São ministrados cursos para a comunidade, tendo esta a tarefa de introduzir o método nas prisões. Os mem- bros da comunidade afetados por crimes devem participar ativamente e em con- junto na resolução das questões resultantes da delinquência local. 2. O recuperando ajudando o recuperando. A inserção desse elemento, como fundamento primordial, é despertar nos recuperandos a construção de um sentimento de ajuda mútua e o despertar para os valores humanos. 3. O trabalho. Está ligado à ideia da valorização humana, no sentido de se evitar a ociosidade. O trabalho deve fazer parte do dia a dia, para manter os reeducan- dos em atividade constante. É de se destacar que o trabalho faz parte da metodologia, mas não é elemento fundamental do processo, pois que, sendo somente ele, não é fundamental para recuperar um condenado. Conforme dispõem Mario Ottoboni e Valdeci Antônio Ferreira, na obra Parceiros da Ressurreição (p. 21), No Método APAC, o regime fechado é o tempo para a recupe- ração, o semiaberto para a profissionalização, e o aberto, para a inserção social. Neste sentido o trabalho, é aplicado em cada um dos regimes de acordo com a finalidade proposta. 4. A religião e a importância de realizar a experiência de Deus. A Execução Penal à Luz do Método APAC lhos, reunião de grupos para discussão de erros, higienização, aproximação da família, inserção no conselho de sinceridade e solidariedade dos recuperandos. Os recuperandos, para progressão de medidas e conquistas de ultrapas- sagem das etapas estabelecidas pelo método apaqueano, são submetidos a dois estágios: 3.1 Estágio inicial. Etapa inicial em que os recuperandos em regime fechado iniciam o processo de cumprimento de pena na metodologia apaqueana, procurando desenvolver o senso de responsabilidade do preso. Nesta etapa, é proposta a recuperação do apenado. São levantadas as causas do cometimento do crime e o contato inicial com a família, colaborado- ra e peça fundamental no processo de ressocialização do recuperando. 3.2 Segundo estágio. Presos em regime semiaberto. Nesta etapa, os recuperandos iniciam o processo de inserção nos serviços burocráticos da própria APAC, como, por exemplo, os serviços administrativos. 4 Assistência material Conforme dispõe o art. 11 da Lei de Execução Penal, a assistência des- tinada ao preso ou internado será: material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa. Ao indivíduo preso, mesmo que provisoriamente, cabe ao Estado o dever de assistir, prestando a assistência devida, na forma da lei. O princípio da dignidade da pessoa humana assegura e determina os contornos de todos os demais direitos fundamentais. Vale dizer que a dignidade deve ser preservada e permanecer inalterada em qualquer situação em que a pes- soa se encontre. A prisão deve dar aos apenados condições que assegurem o respeito à dignidade. Aos condenados, privados de liberdade, devem ser propiciadas condições dignas, priorizando a vida, a saúde e a integridade física e moral dos apenados. O art. 41 da LEP estabelece direitos, desde os elementares, que devem ser assegurados aos que estão sob a responsabilidade do Estado, como o direito à alimentação, vestuário, educação, instalações higiênicas, assistência médica, far- macêutica e odontológica. O que se pretende é tornar, durante o cumprimento da pena, a vida do preso tão igual quanto possível à vida em liberdade, com prevalência do cumprimento dos direitos estabelecidos na Carta Magna de 88. De acordo com o art. 10 da Lei 7.210/84, é dever do Estado dar a de- vida assistência ao preso e ao internado, objetivando sempre a prevenção do 60 A Execução Penal à Luz do Método APAC crime e orientando-os para o retorno à convivência em sociedade. Conforme estatui o art. 12 da referida lei, a assistência material prestada pelo Estado ao preso e ao internado consiste no fornecimento a eles de alimentação, vestuário e instalações higiênicas. Segundo Nogueira (1996): A qualidade de vida que se pretende dar ao condenado, no nosso modesto entendimento, não pode de forma alguma ser melhor do que a que se dá ao homem livre, que trabalha o dia todo, talvez recebendo uma remuneração que não lhe permite ter uma vida digna, mas que continua honesto e respeitando as regras de con- vivência social. (NOGUEIRA, 1996, p 19.) Conforme dispõe o ilustre doutrinador, seria injusto o preso ter me- lhores condições de vida do que o homem livre. Porém, não se quer dizer que o preso não mereça respeito e tenha um tratamento desumano e degradante. NOGUEIRA, ibid., p. 20, relata ainda que o crime não retira do homem a sua dignidade, mas também não deve o regime carcerário propiciar-lhe mais benefícios do que aqueles que ele desfrutava quando em liberdade. Assim, o apenado tem o direito de receber alimentação digna, suficiente e em condições higiênicas adequadas, equilibradas e necessárias para a manutenção de sua saúde, porém sem privilégios e regalias que exorbitem a vida comum de um cidadão. As roupas usadas pelos presos e internos devem ser mantidas limpas e em bom estado. As celas dos apenados devem ser limpas, iluminadas e arejadas, com a higiene necessária para conviver, durante o período em que vai permanecer preso ou internado, com o mínimo de dignidade humana. O art. 13 da Lei de Execução Penal dispõe que o estabelecimento disporá de instalações e serviços que atendam aos presos nas suas necessidades pessoais, além de locais destina- dos à venda de produtos e objetos permitidos e não fornecidos pela Administração. Mirabete lembra que a regra do art. 13 se justifica em razão da "natural dificuldade de aquisição pelos presos e internados de objetos materiais, de con- sumo ou de uso pessoal". 61 A Execução Penal à Luz do Método APAC Nas APACs, cabe aos recuperandos manter sua higiene pessoal e o asseio da cela, bem como a constante higienização de todo o espaço. Esse é um dos requisitos para a permanência nas APACs. A ordem, a disciplina e a manutenção da higiene local são deveres e exercício constante dos recuperandos. As APACs devem sempre estar limpas, contando com um ambiente agradável e harmonioso, cabendo aos recuperandos a execução dessa atividade. 5 Considerações finais Para Aristóteles, a igualdade consistia em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. Com esse pensamento, o filósofo não quis dissemi- nar o preconceito entre as diferenças, mas, já que essas diferenças existem, con- sidera que sejam tratadas como tais, com a finalidade de integrá-las à sociedade. A mesma distinção feita por Aristóteles está na Oração aos moços, de Rui Barbosa: Não há no universo duas coisas iguais. Muitas se parecem umas às outras. Mas todas entre si diversificam. Os ramos de uma só árvore, as folhas da mesma planta, os traços da polpa de um dedo humano, as gotas do mesmo fluido, os argueiros do mesmo pó, as raias do espectro de um só raio solar ou estelar. Tudo assim, desde os astros no céu, até os micróbios no sangue, desde as ne- bulosas no espaço, até aos aljôfares do rocio na relva dos prados. O método apaqueano surge exatamente com a filosofia de trabalhar, no íntimo de cada infrator, suas dificuldades e diferenças, realizando um labor árduo na reconquista dos valores humanos daquele que se vê “diferenciado” de uma sociedade puramente punitiva e recriminadora. A APAC tem uma tríplice finalidade: auxilia a Justiça, preparando o preso para o retorno ao convívio social; protege a sociedade, retornando a ela apenas indivíduos reestruturados humanamente e capazes de respeitá-la; e, por fim, é um órgão de proteção aos condenados, pautando-se por um método baseado no fiel cumprimento dos direitos humanos, executando um trabalho pautado no cumprimento das legislações vigentes e procurando sempre a eli- minação da fonte geradora de novos criminosos. Deve-se enfatizar que a APAC surgiu como um “plus” ao Poder Judiciário, como mais uma opção de ressocialização e busca para determinar qual a melhor forma de reparar o dano causado pela transgressão, evitando práticas puramente punitivas, as quais tendem a “estigmatizar as pessoas, rotu- lando-as indelevelmente de forma negativa", ou meramente permissivas, bus- cando "proteger as pessoas das consequências de suas ações erradas". 62 A Execução Penal à Luz do Método APAC Assim, para os iluministas do século XVIII, a prisão foi tomada como forma de levar o homem a refletir, no isolamento de uma cela, sobre o ato que praticou. Fortemente influenciada pelo ideário da Revolução Francesa que tinha como bens maiores do ser humano a liberdade, a igualdade e a fraternidade, e também pelas práticas penitentes do catolicismo, o aprisionamento se tornou uma prática privilegiada de castigo em detrimento dos suplícios corporais ou- trora imputados aos delinquentes de todo tipo. As penas privativas de liberdade, ou a prisão, destinada aos que praticam delitos, são, portanto, práticas da sociedade moderna, herdadas pela sociedade contemporânea. Foucault, grande filósofo e pensador do século XX, fez inda- gações sobre o fenômeno da prisão e suas práticas do castigo, bem como sobre os inúmeros aspectos da prática penal. Ao ter como tema central de seus estu- dos a genealogia da moral, mas seguindo o fio condutor das transformações, denominado por ele de "as técnicas morais", Foucault (2003), ao buscar enten- der o que se castiga e por que se castiga, propôs estabelecer uma pergunta con- sistente, da seguinte forma: Como se castiga? Assim, interessava-se substancial- mente pelas práticas que se repetiam na prisão e pelas condições, que, num dado momento, as tornam aceitáveis. Postulou, dessa forma, que o encarceramento fazia parte de toda uma tecnologia da correção humana, da vigilância, do comportamento e da indivi- dualização dos elementos do corpo social. Ao estudar a "Sociedade Disciplinar", Foucault (2000) constata que a sua singularidade reside na existência do “Desvio” diante da “Norma”. Dessa feita, para "normalizar" o sujeito moder- no, foram desenvolvidos mecanismos e dispositivos de vigilância, capazes de interiorizar a culpa e causar no indivíduo remorsos pelos seus atos. Duas imagens, portanto, da disciplina. Num extremo, a disciplina - bloco, a instituição fechada, estabelecida à margem, e toda volta- da para funções negativas: fazer parar o mal, romper as comuni- cações, suspender o tempo. No outro extremo, com o panop- tismo, temos a disciplina - mecanismo: um dispositivo funcional que deve melhorar o exercício do poder tornando-o mais rápido, mais leve, mais eficaz, um desenho das coerções sutis para uma sociedade que está por vir. O movimento que vai de um projeto ao outro, de um esquema da disciplina de exceção ao de uma vi- gilância generalizada, repousa sobre uma transformação histórica: a extensão progressiva dos dispositivos de disciplina ao longo dos séculos XVII e XVIII, sua multiplicação através de todo o corpo social, a formação do que se poderia chamar grosso modo a sociedade disciplinar (FOUCAULT, 2000, p. 173). 66 A Execução Penal à Luz do Método APAC Há que se ressaltar que nem toda conduta desviada tem enquadramento legal. Perante o Direito Penal, para que um fato seja considerado crime deve haver uma lei anterior que dite o que é proibido. Dentre os dispositivos de vigilância do início do século XIX, pode-se destacar o panóptico, de Jeremy Bentham (2000), um mecanismo arquitetônico, utilizado para o domínio da distribuição de corpos em diversificadas superfícies (prisões, manicômios, escolas, fábricas). Bentham defendia o panóptico como sendo um instrumento de usos múltiplos, que iria ao encontro da moral utili- tarista1, valendo enquanto prisão, escola, asilo, e, em cada espaço determinado dessas instituições ou celas, o recluso trabalha, come e dorme. Mas o alcance que esse dispositivo quer atingir não se restringe apenas aos prisioneiros, nem tam- pouco ao vigilante. O panóptico procura atingir toda a sociedade. Não como forma de castigo, mas como forma de disciplina. Cabe nesta discussão atentar, a todo momento, que as penas são apli- cadas objetivando não somente que o infrator pague por seus erros, mas tam- bém tendo a pretensão de dissuadi-lo e a toda a sociedade de não cometer novos delitos, tendo caráter preventivo e profilático. Avançando um pouco mais no tema, torna-se importante sublinhar outro aspecto importante das prisões: o de se caracterizar como fechada e tota- lizadora. Goffman (2007) chamou de instituições totais, as prisões, assim como os manicômios, conventos e outras instituições, nas quais seu “Fechamento” é simbolizado pela barreira à relação social com o mundo externo e por proibições à saída que, muitas vezes, estão incluídas no esquema físico das mesmas. Pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, se- parados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada (GOFFMAN, 2007, p. 11). Nessas instituições, toda a rotina, as regras e normas e as várias ativi- dades obrigatórias são reunidas num plano racional único, supostamente plane- jado para atender aos objetivos oficiais da instituição. Assim, diante das exigên- cias disciplinares e dos objetivos institucionais, o institucionalizado, o preso, foco desta discussão, passa por um processo de desculturamento e mortificação 67 _____________________________________ 1 De acordo com Gonçalves (2008), “o Utilitarismo é a teoria ética que diz que uma ação é moralmente cor- reta se promover a felicidade, e condenável, se produzir a infelicidade. O seu princípio completo reside na ideia de que tudo deve servir várias vezes”. A Execução Penal à Luz do Método APAC 68 do eu. A perda de escolha pessoal e perturbação da autonomia, o sentimento de não garantia de sua integridade física, a exposição das relações pessoais, angús- tia crônica quanto à desobediência às regras e suas consequências, a falta de pri- vacidade e de momentos consigo mesmo são algumas das características dessas instituições totais elencadas por Goffman (2007), chamadas de ataques diretos ao eu, que se constituem como causas da sistemática perda de identidade e da concepção de eu dos internados. As instituições totais promovem o fenômeno de institucionalização, ou prisionização, gerando o quadro de cronificação, no qual o indivíduo se torna progressivamente menos apto a viver na sociedade, de forma livre. Além disso, pode-se perceber pelas características da instituição prisional, que esta se torna cenário propício para a violação dos direitos humanos daqueles que ali se encon- tram. 2 Sobre o Sistema Prisional Brasileiro Na atualidade, a realidade brasileira reflete o que ocorre no cenário mundial, uma vez que a reclusão de pessoas que cometem delitos é a maneira preponderante e predominante de punição. Apesar de existirem as chamadas penas alternativas (à prisão), estas são pouco aplicadas e muitas vezes mal acom- panhadas em sua execução. O Poder Público e a sociedade civil demandam a construção de novas unidades prisionais, apostando numa cultura de prisioniza- ção e, portanto, de exclusão. Por outro lado, é preciso refletir que, de acordo com a legislação brasileira, não existe prisão perpétua nem pena de morte no Brasil, razão pela qual a prisão deveria cumprir seus objetivos primordiais, que são dissuadir o infrator e a sociedade de cometer novos crimes, proporcionando ao infrator condições de não mais delinquir. Porém, o que se constata na prática é a ineficácia das penas de reclusão, como é veiculado rotineiramente pela mídia, demonstrando que as prisões são popular e verdadeiramente chamadas de “escolas do crime”. O tratamento dado aos presos ocorre, na maioria das vezes, através da violação de seus direitos, constituindo-se, de acordo com Karam (2010), como obstáculos à reintegração social daqueles que foram atingidos pelo sistema penal, os quais reproduzem conflitos e outras situações socialmente negativas. Carvalho Filho (2007) denuncia que as prisões brasileiras são insalubres, corrompidas, superlotadas, esquecidas. A maioria de seus habitantes não exerce A Execução Penal à Luz do Método APAC Como parte do seu objetivo na reabilitação e ressocialização, a LEP - Lei de Execuções Penais determina que os presos tenham acesso a vários tipos de assistência, inclusive assistência médica, assessoria jurídica e serviços sociais. Como consta no texto da lei, a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade. A seção III, que trata da assistência à saúde, traz a seguinte redação: Art. 14. A assistência à saúde do preso e do internado de caráter preventivo e curativo, compreenderá atendimento médico, farma- cêutico e odontológico. § 1º (Vetado). § 2º Quando o estabelecimento penal não estiver aparelhado para prover a assistência médica necessária, esta será prestada em outro local, mediante autorização da direção do estabelecimento. § 3º Será assegurado acompanhamento médico à mulher, princi- palmente no pré-natal e no pós-parto, extensivo ao recém-nascido. Parágrafo único. A assistência estende-se ao egresso (BRASIL, LEP, 1984). A grave situação em que se encontram as pessoas privadas de liberdade, refletida, dentre outros fatores, nas práticas de violência, na precariedade de espaço físico e na carência do atendimento à saúde, é uma realidade que não se pode negar. Embora existam ainda inúmeros tratados internacionais que definem normas e orientações para uma melhor implementação das unidades penitenciárias de todo o mundo, observa-se que estas não vêm sendo seguidas. 5 A desassistência à saúde do preso: aspectos da realidade A prática demonstra que a assistência à saúde em suas diversas modali- dades não é oferecida na extensão contemplada pela lei e, quando o são, ocorre de forma insuficiente, oferecida em níveis mínimos para a maior parte dos pre- sos. Constata-se que várias doenças infectocontagiosas, tais como tuberculose e Aids, atingiram níveis epidêmicos entre a população carcerária brasileira. Ao ne- gar o tratamento adequado aos presos, o Sistema Prisional não apenas ameaça a vida destes, como também facilita a transmissão dessas doenças à população em geral, através das visitas conjugais e a partir do livramento desses presos. Como os presos não estão completamente isolados do mundo exterior, uma contami- nação não controlada entre eles representa um grave risco à saúde pública. Como as autoridades prisionais do Brasil geralmente não prestam serviços de assistência médica, sua ausência torna-se a principal fonte de recla- 71 A Execução Penal à Luz do Método APAC mações entre os presos. Histórias de negligência e risco de morte constante são relatadas, como na história de Roseanne Cristina R. Costa (2010), em suas Memórias do Cárcere, que narra sua trajetória como presa, na condição de grávida. Desabafa, em seu relato, narrando que passou os primeiros 30 dias na prisão a pão e água da pia, não tinha acesso a remédios para dor e não teve durante sua gestação assistência pré-natal. A questão relacionada à saúde do preso é um dos grandes problemas no Sistema Penitenciário, pois os estabelecimentos prisionais não dispõem de apa- relhamento e remédios necessários para realizar atendimento aos internos. Além disso, os espaços físicos destinados aos atendimentos de saúde são deficientes, havendo uma má distribuição de profissionais que não recebem treinamento mínimo para atuar nos cuidados de saúde da população prisional. Mais uma vez o Estado deixa em último plano algo tão sério como a saúde, ainda mais a dos presos, que não têm como procurar um local digno para fazer tratamento ou qualquer procedimento hospitalar. Milhares de internos estão com a saúde debi- litada, e muitos morrem nos presídios, por falta de cuidados de saúde e de atendimento médico. Outro aspecto de grande importância é a atenção à saúde mental da população prisional. Precisam receber atenção especializada aquelas pessoas portadoras de sofrimento mental grave ou persistente e também aquelas que fazem uso abusivo ou são dependentes de drogas, tanto os presos que estão no Sistema Penitenciário cumprindo pena, como aqueles que cumprem medidas de segurança em hospitais de custódia. O abuso e a violação dos direitos desse público específico tendem a se multiplicar, por se caracterizar como um público dupla e triplamente excluído. Essas questões têm relevância diante do atual cenário brasileiro em que tanto se discutem estratégias para prevenção e trata- mento do uso de drogas. Além disso, estatísticas já demonstram a relação entre o uso de drogas e a prática do primeiro delito (PILLON e MARTINS, 2008), bem como a reincidência criminal e sua ligação com as drogas, a partir da lida na execução das penas. 6 O Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário: os primeiros pas- sos para se levar o SUS à população prisional brasileira Para garantir os princípios do SUS, da “Integralidade, Equidade e Universalidade”, tornou-se necessário criar uma estratégia específica para a efe- tivação da assistência à saúde da população prisional. No início dos anos 2000, com o aumento da população carcerária e a precariedade de consolidações para sua assistência, o Ministério da Justiça, bus- 72 A Execução Penal à Luz do Método APAC cou ajuda junto ao Ministério da Saúde. Assim, partindo da realidade brasileira, o Governo Federal criou a partir da Portaria Interministerial nº 1.777 (Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2003/ pri_1777_09_09_2003.html> e <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/ gm/2003/pri_1777_09_09_2003.html>), de setembro de 2003, o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário - PNSSP. Nas palavras de Humberto Costa, Ministro de Estado da Saúde: Reconhecendo sua responsabilidade frente a essa necessidade, o Ministério da Saúde, em ação integrada com o Ministério da Justiça, elaborou o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, que será desenvolvido dentro de uma lógica de atenção à saúde fundamentada nos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS). Este Plano alcançará resultados a partir do envolvimento das Secretarias Estaduais de Saúde e de Justiça e das Secretarias Municipais de Saúde, reafirmando a prática da intersetorialidade e das interfaces que nortearam a sua construção (BRASIL, 2003). O plano não inaugura o cuidado com a saúde do preso no Brasil, que até sua criação ficava sob a responsabilidade do Ministério da Justiça, mas su- blinha a necessidade de estratégias diferenciadas para a atenção à saúde no Sistema Prisional Brasileiro. Ressalta-se, ainda, que o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário foi elaborado a partir de uma perspectiva pautada na assistência e na inclusão das pessoas presas e respaldou-se em princípios básicos que assegurem a eficácia das ações de promoção, prevenção e atenção integral à saúde. Especifica ainda o espaço físico adequado que as unidades prisionais devem ter para que a equipe de saúde possa desempenhar com êxito suas atribuições. O público-alvo do PNSSP é 100% da população penitenciária brasileira, confinada em unidades masculinas, femininas e psiquiátricas. Para implementação do Plano Nacional nos estados, foi preconizado que cada um deles deveria criar um Plano Operativo. Assim, o Estado de Minas Gerais foi considerado qualificado, atendendo aos critérios estabelecidos pelo Governo Federal, por contar com equipes de saúde multiprofissionais, com- postas minimamente por médico, dentista, enfermeiro, auxiliar de enfermagem, psicólogo e assistente social, que atuam em unidades de saúde de estabelecimen- tos prisionais e desenvolvem ações de atenção básica. Entre as ações desenvolvi- das estão o controle da tuberculose, eliminação da hanseníase, controle da hipertensão, controle do diabetes mellitus, ações de saúde bucal, ações de saúde da mulher; acrescidas de ações de saúde mental, DST/AIDS, ações de redução de danos, repasse da farmácia básica e realização de exames laboratoriais. 73 A Execução Penal à Luz do Método APAC Além disso, a APAC é um método para se trabalhar a execução penal, com uma filosofia própria, que se traduz concretamente através da metodologia aplicada em 12 elementos: 1) participação da comunidade; 2) recuperando ajudando recuperando; 3) trabalho; 4) religião; 5) assistência jurídica; 6) assistência à saúde; 7) valorização humana; 8) família; 9) voluntário e sua formação; 10) Centro de Reintegração Social - CRS; 11) mérito; 12) jornada de libertação com Cristo (OTTOBONI, 2001). Torna-se importante mencionar a Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados - FBAC, que é a entidade que congrega, orienta, fiscaliza e zela pela unidade e uniformidade das APACs do Brasil e assessora a aplicação do Método APAC no exterior. É filiada à Prison Fellowship International - PFI, organização consultora da ONU para assuntos penitenciários. Desde 2004, a FBAC tem sua sede na cidade de Itaúna-MG, não sem razão. Em sede própria, totalmente equipada através de doações, a FBAC (2011) busca reunir esforços para uma maior integração e comunicabilidade entres as APACs. A partir de uma iniciativa da sociedade civil, em 1985 surgia a APAC de Itaúna, que se tornaria referência para o mundo inteiro. Em Itaúna, a APAC gere atualmente os três regimes de privação de liberdade previstos no Código Penal brasileiro: regime aberto, semiaberto e fechado, além de acompanhar os egres- sos e fiscalizar o livramento condicional. Para isso, a APAC gerencia o Centro de Reintegração Social, que funciona como uma unidade prisional, porém com tratamento humanizado, garantindo os direitos dos presos, enquanto cidadãos. Outro aspecto diferencial é que a APAC de Itaúna, com suporte da rede intersetorial, acompanha os casos de medida de segurança e há mais de 10 anos não encaminha ninguém para hospitais de custódia. Pelo sucesso da ousadia que a metodologia apaqueana apresenta, em 2001, numa iniciativa singular, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais cria o Projeto Novos Rumos, que engloba, entre outros programas, a APAC, buscan- do a humanização no cumprimento das penas privativas de liberdade mediante a aplicação do método APAC. Esse projeto traz o reconhecimento do Poder Judiciário de Minas Gerais de que as APACs buscam executar a pena dentro do 76 A Execução Penal à Luz do Método APAC que preconiza a legislação brasileira. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais afir- ma em seu site que, [...] após anos à frente de iniciativas próprias - através da divul- gação, criação e instalação do método APAC em Minas Gerais - bem como o Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário (PAI-PJ) no âmbito da Capital Mineira -, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, motivado pela Resolução 96 do CNJ e pela Lei 12.102/2009, que criaram o Projeto Começar de Novo e o Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas, incorporou todas as suas iniciativas para seu novo Projeto Novos Rumos. O Projeto Novos Rumos é gerenciador de todas as ações já indi- cadas e tem como principal objetivo fortalecer a humanização no cumprimento das penas privativas de liberdade e das medidas de internação, buscando a individualização e alcance da finalidade das medidas socioeducativas, penas alternativas e medidas de segurança, com vista à expansão das ações para todo o Estado de Minas Gerais com enforque especial na reinserção social da pes- soa em conflito com a Lei (TJMG, 2001). O Projeto Novos Rumos conta atualmente com 84 comarcas que têm APAC em funcionamento ou em fase de implantação, beneficiando mais de 300 Municípios por todo o Estado de Minas Gerais. Além de oferecer novas vagas ao Sistema Prisional de Minas Gerais, ao longo dos anos, consolidou-se a mis- são de propagar a metodologia APAC como importante ferramenta para humanizar o Sistema de Execução Penal de forma a contribuir para a construção da paz social. Por outro lado, a APAC é o coroamento da incapacidade do Estado em gerir prisões, como aponta o Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas Privadas em Liberdade (2011). Estima-se que a reincidência entre os egressos das unidades APAC gira em torno de 15% (quinze por cento), enquanto que os ori- undos do sistema comum alcançam o percentual de 70% (setenta por cento). As dezenas de unidades APAC, que são mantidas por convênio com o Estado de Minas Gerais, custam aos cofres mineiros 1/3 (um terço) do valor que seria despendido para manutenção do preso no sistema comum. 8 A caminho de mais uma experiência pioneira Os desafios de se consolidar a APAC numa comunidade são muitos, principalmente porque a maioria das cidades que criaram unidades prisionais 77 A Execução Penal à Luz do Método APAC diferenciadas convive também com unidades prisionais convencionais ou do sis- tema comum. Esse Sistema Prisional misto gera impasses na sociedade local, dividindo as opiniões, mas também é terreno fértil para a comprovação de que é possível a execução penal humanizada, que garanta o que é previsto na legis- lação em vigor. Em Itaúna, além da APAC, existe um presídio municipal, geren- ciado pela SUAPI, que se configura, pela área física e população prisional, como um dos mais superlotados no Estado de Minas Gerais. O apoio do Poder Judiciário e do Ministério Público local, da sociedade civil organizada e também da administração municipal traz grande suporte para a sustentação da APAC nesse Município. A Prefeitura de Itaúna mantém convênio com a APAC, para mútua ajuda, onde ambos os envolvidos se beneficiam. A Secretaria Municipal de Saúde de Itaúna, ao tomar conhecimento, tardiamente, da existência do PNSSP, manifestou seu interesse em implementar as ações previstas, com a criação de uma equipe de atenção primária de saúde na APAC. Descobriu-se, então, que em todo o Brasil as APACs não foram contempladas pelos Planos Operativos Estaduais. Em Minas Gerais, o Plano Operativo contemplou somente 18 unidades penitenciárias mineiras do sistema convencional, unidades estas admi- nistradas pela Subsecretaria de Administração Prisional - SUAPI, subordinada à Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS). Assim, o Plano Operativo esta- dual impossibilitou que as APACs pudessem ser beneficiadas pelas subvenções do PNSSP. Nesse sentido, entende-se que o Ministério da Saúde não abriu real- mente as portas do SUS para os cuidados de saúde dos presos. Apesar de o PNSSP almejar atingir 100% da população prisional brasileira, os Planos Operativos inviabilizaram sua concretização. Do ponto de vista do Estado de Minas Gerais, a justificativa de que só as unidades administradas pela SUAPI seriam contempladas pelo Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário se traduz numa forma de tentar enfraquecer ou até mesmo boicotar a APAC enquanto sistema diferenciado. Não há embasamento legal que justifique que as APACs não possam ser contempladas pelas ações do SUS e muito menos pelas ações destinadas à po- pulação prisional, uma vez que são reconhecidas como entidades legítimas de cumprimento e execução penal. Na verdade, as ações governamentais, se esten- didas ao Sistema Prisional diferenciado, só irão fortalecê-lo, dando condições ca- da vez maiores e melhores de humanização das penas de privação de liberdade. Do ponto de vista da gestão da saúde, o que se percebe é que os profis- sionais de saúde geridos pela SUAPI não exercem práticas de prevenção, pro- 78 A Execução Penal à Luz do Método APAC Se a Psicanálise traz a exortação de que, “Por nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis”3, a punição, o cumprimento de uma pena, deve trazer a retificação subjetiva para aquele que delinquiu, oportunizando a pro- dução de novos significados e perspectivas de vida, enquanto sujeito singular e social. Mas para responder como sujeito é preciso antes ser tratado como ser humano, com todos os direitos e deveres que esse lugar proporciona, sob o risco de, não assim ocorrendo, despertar o animal homem que existe dentro de cada um de nós. E do nosso lugar, de julgadores e expectadores dos suplícios a que são submetidos os presos de toda sorte, não nos responsabilizarmos por garan- tir à população prisional o lugar de cidadania. O conceito de saúde preconizado pela OMS é impossível de se alcançar dentro do Sistema Prisional convencional. É preciso avançar, ir além do ato de vigiar e punir, para o ato de cuidar. É urgente que se escancarem os portões das prisões para que as equipes possam entrar, descronificando, desinstitucionalizan- do, produzindo novas formas de relações. Nesse sentido, as APACs, com seu pioneirismo na humanização das penas, têm muito a ensinar e também a rece- ber para que possa dar continuidade a seus trabalhos. Acredita-se que a criação de novos caminhos, abertura de novas possi- bilidades nos cuidados de saúde dos presos, possa efetivar a assistência como direito e como garantia, revertendo a percepção social de que não só a saúde, mas qualquer assistência que o preso receba, se caracteriza como um privilégio. Nesse processo, uma mudança de mentalidade urge acontecer. É preciso avançar nas perspectivas que trazem para o campo do cuidado em saúde e da produção da vida na sociedade brasileira. As preocupações que nos ocupam neste cotidiano de construção de um SUS de fato comprometido com a vida não nos permitem negligenciar o direito do preso de ser por este sistema contemplado. Se os brasileiros se mobilizaram para garantir que todos tivessem o direi- to constitucional e real à saúde universal e de qualidade, no bojo da saída da ditadura e começo de nosso aprendizado democrático, nossas implicações com a construção do mundo, especialmente com o campo da saúde no Brasil, a experiência de Itaúna, narrada na história da APAC, nos faz acreditar que as mobilizações e os debates nas redes farão avançar a construção do Sistema Único de Saúde, do SUS de todos e para todos. 81 _____________________________________ 3 LACAN, 1988, p. 873. A Execução Penal à Luz do Método APAC 82 10 Referências BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2000. BENTHAM, Jeremy et al. O panóptico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a orga- nização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providên- cias. Diário Oficial da União - DOU, Poder Executivo, Brasília, DF, 20 set. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 5 maio 2011. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 5 maio 2011. BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 5 maio 2011. BRASÍLIA. Carta de Mobilização para as etapas municipais e estaduais para a 14º Conferência Nacional de Saúde. Disponível em: <<http://pcbibliotecadoforumso- cialmundial.blogspot.com>>. Acesso em: 5 ago. 2011. BRASÍLIA. 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Saúde Pública: Rio de Janeiro, v. 24, n. 5, maio 2008. SECRETARIA DO ESTADO DE SAÚDE. Plano Operativo Estadual de Atenção à Saúde da População Prisional do Estado de Minas Gerais. Disponível em: <<http://www.saude.mg.gov.br>>. Acesso em: 10 abr. 2011. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS - TJMG. Atos normativos - Projeto Novos Rumos. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais: Belo Horizonte, 2007. 83 86 A Execução Penal à Luz do Método APAC ausência no processo de execução acarreta flagrante violação aos princípios da ampla defesa, do contraditório e do devido proces- so legal, que também devem ser observados em sede de execução (2011, p. 57). Mario Ottoboni enfatiza a angústia dos presos em razão da situação de miséria de cada um deles: Essa preocupação é de todos, mas justificada, porém, quando sabemos que 95% da população prisional não reúne condições para contratar um advogado, especialmente na fase da execução da pena, quando toma conhecimento de inúmeros benefícios que a lei faculta aos condenados (2006, p. 80). Daí a necessidade de se cuidar com carinho e atenção dos processos de execução penal, preferencialmente em contato com os presos. O certo é que o direito de quem quer que seja não pode ser violado. Um minuto a mais de uma pessoa no presídio, quando já alcançados os requisitos subjetivos e objetivos para a liberdade, é uma violência imperdoável. 2 Os artigos 15 e 16 da LEP, sua abrangência e legitimidade para reclamar direitos A ausência de defensores nos presídios sempre foi um drama que muito incomodou os criminólogos. Em Minas Gerais, o Professor Jason Albergaria, nossa maior referência, reclamou da ausência da Defensoria Pública como órgão de execução penal no anteprojeto que resultou na Lei de Execução Penal: A Defensoria Pública não figura entre os órgãos da execução penal no Anteprojeto Benjamim Morais e na LEP. Entretanto, deverá estar implícito, no juízo da execução, o defensor do con- denado, como ensina G. Cateli (1993, p. 91). O saudoso professor, embora vencido quando da discussão que resultou no texto da LEP, logrou sucesso em introduzir em seu anteprojeto (transforma- do na Lei de Execução Penal de Minas Gerais) para assegurar a participação da Defensoria Pública como órgão de execução penal. Vejamos: Os arts. 173 e 174 do Projeto de Lei Estadual de Execução Penal de Minas Gerais dispõem sobre a Defensoria Pública como um dos órgãos da execução penal. Como já foi dito, no I Encontro Nacional sobre o Sistema Penitenciário reivindicou-se a inclusão 87 A Execução Penal à Luz do Método APAC da Defensoria Pública entre os órgãos da execução penal (ALBERGARIA, 1993, p. 91). Pois bem, aproximadamente vinte anos depois da promulgação da Lei de Execução Penal do Estado de Minas Gerais, o legislador federal despertou para essa necessidade e, seguindo o exemplo mineiro, editou a Lei 12.313, que mo- dificou a Lei 7.210/1984, para equiparar a Defensoria Pública a órgão de exe- cução penal, modificando a assistência jurídica prevista na Lei de Execução Penal, que passou a ter a seguinte redação: Art. 15. A assistência jurídica é destinada aos presos e aos inter- nados sem recursos financeiros para constituir advogado. Art. 16. As Unidades da Federação deverão ter serviços de assistência jurídica, integral e gratuita, pela Defensoria Pública, dentro e fora dos estabelecimentos penais. § 1º As Unidades da Federação deverão prestar auxílio estrutural, pessoal e material à Defensoria Pública, no exercício de suas funções, dentro e fora dos estabelecimentos penais. § 2º Em todos os estabelecimentos penais, haverá local apropria- do destinado ao atendimento pelo Defensor Público. § 3º Fora dos estabelecimentos penais, serão implementados Núcleos Especializados da Defensoria Pública para a prestação de assistência jurídica integral e gratuita aos réus, sentenciados em liberdade, egressos e seus familiares, sem recursos financeiros para constituir advogado. Esse também é o espírito que norteou o legislador ao conceder à Defen- soria Pública a condição de órgão da execução penal - arts. 81-A e 81-B da LEP. Atento à norma aqui comentada - arts. 15 e 16 da LEP -, numa primeira leitura há a impressão de que nos processos em que o réu possui defensor cons- tituído não é possível a concessão de qualquer benefício sem sua provocação. Na verdade, o dispositivo tem realmente o cuidado mencionado no pará- grafo acima, mas, por certo, se refere ao preso cautelar, ou seja, o preso ainda sem ter recebido sentença penal condenatória. Afinal, o preso cautelar que possui advogado, seguramente tem acom- panhamento estratégico daquela situação, evidenciando-se a atuação do profis- sional contratado naquele momento, o que deve ser respeitado. Nada impede, no entanto, que a Defensoria ou mesmo o Ministério Pú- blico reclame ao juízo direitos eventualmente infringidos, principalmente aque- les relativos à dignidade da pessoa humana. Já quanto ao condenado, ainda que provisoriamente, não se pode deixar 88 A Execução Penal à Luz do Método APAC de examinar sua situação, mesmo que seu advogado particular não tenha apre- sentado provocação. É que o direito penitenciário é público, possuindo normas iguais de tra- tamento para concessão de benefícios, mormente quanto ao sistema de progres- são de regimes e livramento condicional. Por isso, admite-se, inclusive, que o apenado possa postular suas preten- sões diretamente em juízo, mesmo não sendo advogado, e o próprio presídio pode - e deve - chamar a atenção do Juiz Presidente do processo de execução, quando chegar o momento de concessão de benefícios previstos na LEP. Nesse sentido, a doutrina: Em muitas hipóteses, o advogado do serviço de assistência jurídi- ca nos presídios pode contribuir para uma adequada execução da pena privativa de liberdade, de modo a reparar erros judiciários, evitar prisões desnecessárias, diminuir o número de internações e preservar a disciplina com o atendimento dos anseios da popu- lação carcerária (MIRABETE, 1987, p. 88). Além do mais, o direito resguardado ao condenado é soberano, ou seja, o direito de liberdade. Por isso, não há que se falar que a ausência de petição por advogado resultará em negativa da prestação jurisdicional. 3 A importância da organização da assistência jurídica Não restam dúvidas de que uma organização especial há ser dada aos processos dos réus presos. As varas criminais de conhecimento devem reservar espaço próprio para os processos de réus presos, e os juízes devem manter rígido controle quanto ao prazo de formação da culpa, a fim de evitar excessos e constrangimentos. As varas de execuções de penas devem dispor de condições para rápida tramitação dos processos de condenados presos, além de dispositivos especiais, tais como: - despertar no Juízo o lapso objetivo da chegada do benefício do preso, com prazo de antecedência, para proporcionar a juntada de documentos (ates- tado carcerário, exame criminológico etc.); - manter os processos de condenados presos separados dos soltos; - promover audiências preferenciais para os condenados presos, a fim de decidir com brevidade sobre eventuais benefícios ou faltas disciplinares; - remeter pontualmente aos condenados levantamentos de pena atualiza- dos. 91 A Execução Penal à Luz do Método APAC 5 Conclusão Este estudo trouxe a oportunidade de reflexão quanto à importância da assistência jurídica ao preso. Trouxe, também, a convicção de que a prestação dessa assistência mais próxima ao condenado é extremamente vantajosa. A presença dos operadores do direito no mesmo prédio onde está o preso cumprindo sua pena é sempre motivo de tranquilidade ao ambiente. Revela cuidado por parte das pessoas para com a situação do apenado, e, sobre- tudo, cuidado daqueles que zelam diariamente pelo preso em fazê-lo da melhor forma possível. Além do mais, possibilita economia para o Estado, ao evitar o traslado de presos pela cidade para os atos processuais. Nos Centros de Reintegração Social das APACs, essa organização está melhor operacionalizada. Primeiro, porque recebe apenas condenados, sem efeito dotados da documentação pertinente para acompanhamento da pena. Segundo, porque as unidades não possuem mais do que 200 (duzentos) presos, facilitando o controle da situação processual de cada um. Terceiro, porque nas APACs estão asseguradas as demais assistências previstas na LEP, visto que há intensa preocupação em possibilitar ao recuperando sua conversão, através da valorização humana. Nesse sentido, levando-se em conta a aplicação da assistência, conforme previsto pela metodologia da APAC, têm-se as seguintes vantagens: a) Para o condenado: a assistência bem feita é importantíssima, pois traz ao condenado calma a seu interior, porquanto compreende a dimensão de sua condenação. Toma consciência de seu dever de cumprir a pena e percebe os benefícios de cumpri-lo corretamente. Possibilita sua mudança de atitude para uma nova escolha de vida; b) Para a sociedade: a correta distribuição da justiça, conferindo pontual- mente os direitos dos presos, traz como reflexo a segurança da comunidade na responsabilidade e compromisso dos órgãos de segurança pública e dos ope- radores do direito para com suas causas; c) Para os operadores do direito: a consciência de que cada uma de suas profissões é exercida na execução penal levando-se em conta os interesses da coletividade, em detrimento dos pessoais; provoca em proveito do apenado princípios humanizadores, uma vez que a situação de cada um deles não tem solução matemática; extirpa o perverso sentimento de crueldade e excessivo rigor, lembrando sempre que, em razão do crime, já foi aplicada a pena, inexis- tindo, na execução, modos de agravamento da penalidade, salvo em casos de prática de faltas graves por parte do condenado. 92 A Execução Penal à Luz do Método APAC Esse raciocínio indica que o juiz de direito, o promotor de justiça, o de- fensor público e o advogado que atuam na execução penal devem estar prepara- dos para essa missão. Despindo-se de qualquer sentimento de justiceiros ou de banalizadores da pena aplicada. A correta assistência jurídica deve ser o referen- cial. Por fim, vale a lição de Dostoievsky, extraída de sua obra Recordações da Casa dos Mortos, citado pelo inigualável Professor Lídio Bandeira: “Não existe homem infinitamente mau; que, no fundo de cada coração, por mais pedrento que se nos afigure, vegeta sempre uma roseira e abre sempre uma flor” (p. 89). 6 Referências ALBERGARIA, Jason. Manual de direito penitenciário. Rio de Janeiro: Aide, 1993. MARCÃO, Renato. Curso de execução penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. MELLO, Lídio Machado Bandeira de. Responsabilidade penal. Rio de Janeiro: Tip. Batista de Souza, 1941. MELLO, Lídio Machado Bandeira de. Tabu, pecado e crime. Leopoldina, MG: Gráfica Guimarães, 1949. MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução penal, Comentários à Lei 7.210, de 11.07.84. São Paulo: Atlas, 1987. OTTOBONI, Mario. Vamos matar o criminoso? 3. ed. São Paulo: Ed. Paulinas, 2006. ... 93 A Execução Penal à Luz do Método APAC _____________________________________ * Advogado, escritor de vários livros, alguns traduzidos para outros idiomas. Detentor de várias homenagens e condecorações, internacionais e do Brasil. Fundador da APAC e inspirador de seu Método. A bibliografia do autor da exposição está fundamentada na sua própria criatividade, inspirada pelo Espirito Santo de Deus. ** Advogado, teólogo, atual presidente executivo da Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados - FBAC. Autor do livro: A Missão a partir da Periferia do Mundo e coautor do Parceiros da Ressurreição. Fundador da APAC de Itaúna. Há mais de 28 anos se dedica voluntariamente à causa de recuperação dos presos, rea- lizando conferências e seminários do Método APAC em diversos Estados do Brasil e em 27 países do mundo. A Execução Penal e a Participação da Comunidade Mario Ottoboni* Valdeci Antônio Ferreira** Sumário: 1 O surgimento da APAC de fato. 2 A APAC entidade civil. 3 O Método e sua contribuição para leis inovadoras. 4 A presença da comunidade. 5 Casais padrinhos. 6 Assistência educacional e social. 7 A religião e a importância de se fazer a experiência de Deus. 8 Projeto Novos Rumos na Execução Penal. 9 Por derradeiro. 1 O surgimento da APAC de fato Em 1972, mais precisamente em 18 de novembro, fizemos uma reunião que contou com a presença de 15 cristãos que haviam participado do Cursilho de Cristandade, movimento da Igreja Católica, surgido em Palma de Mayorca, na Espanha. Fizemos uma explanação de nossa aspiração que, em síntese, seria a de trabalhar com os presidiários e, posteriormente, também com os menores. Propusemos, e foi aceito, o nome do grupo de Amando o Próximo, Amarás a Cristo (APAC); e, depois, Amando o Próximo Amarás a Criança. Decidimos, ainda, que deveríamos visitar presídios e pesquisar o que constava da Cátedra de Direito Penal na Faculdade de Direito de São José dos Campos. A próxima reunião foi designada para após trinta dias, a fim de que fos- sem estudados os relatos e traçado o modo como seria iniciada a nossa expe- riência. Coube-nos a tarefa de acertar com o Delegado de Polícia de São José dos Campos, responsável pelo Presídio Humaitá, único existente na cidade, entrevis- tas com presos daquele estabelecimento, para nos inteirarmos de seus proble- mas. No nosso encontro com a equipe, concluímos que não deveríamos repe- tir nada do que vinha sendo feito no Sistema Prisional. Lembramo-nos, como se fosse hoje, da advertência que fizemos na ocasião: (Título II, capítulo II, seções V, VI e VII, da LEP) 96 A Execução Penal à Luz do Método APAC à época, de humanização da pena, que reformou parcialmente o Código Penal e o Código de Processo Penal, pela Lei 6.416/77, valendo-se das pesquisas e da par- ticipação, em vários atos da APAC, da Prof.ª Arminda Bergamini Miotto e do Prof. Hélio Fonseca. Ambos eram assessores especiais do Ministro de Justiça Dr. Armando Falcão. O General Geisel, então Presidente da República, em visita à Embraer, em São José dos Campos, recebeu das mãos do Dr. Sílvio Marques Neto um exemplar do livro Cristo chorou no Cárcere, de nossa autoria, e recomendou ao Ministro a sua leitura, porque o livro continha novidades interessantes na área da Execução Penal. Da mesma forma, em 1975, fixou-se a experiência vivenciada pela APAC, com a publicação de Provimento do titular da Vara das Execuções, sendo o condenado à pena privativa de liberdade autorizado a cumprir a reprimenda na Comarca de São José dos Campos, se nessa cidade houvesse nascido ou vivido há muito tempo com os seus familiares, objetivando facilitar a reintegração so- cial e preservar os laços afetivos fundamentais. Fizemos, como dissemos, a experiência pioneira do estágio semiaberto, que, posteriormente, transformou-se em regime semiaberto. Nenhum recuperando prosperava de “estágio”, ou ganhava qualquer benefício, sem antes ser submeti- do a um meticuloso exame da comissão de avaliação - integrada por um pro- fissional psiquiatra -, a uma análise psicológica, ao parecer do assistente social e de um dirigente da APAC, para constatar se houve cessação de periculosidade e de dependência toxicológica, visando a proteger a sociedade e o próprio conde- nado. Essa providência propiciou uma queda substancial no índice de rein- cidência, que chegou a menos de 5%. Anos depois, o Ministro da Justiça Dr. Márcio Thomas Bastos propôs que essa medida dos exames deixasse de ser obrigatória, mas a prática nas APACs prosseguiu inalterada. Criamos, numa inovação singular, a prisão sem o concurso da Polícia Civil e Militar, administrada pela própria APAC, com a cooperação dos pre- sidiários e voluntários. Certa vez, uma delegação de cidadãos norte-americanos visitava a APAC Joseense e, quando estes souberam que os presidiários eram escoltados por colegas do regime semiaberto, pediram autorização para entrevis- tar alguém que chegasse após ser escoltado. E assim aconteceu. Um dos visi- tantes indagou ao recuperando que havia retornado após atendimento no pron- to-socorro: - Qual é o tempo de sua condenação? - Oito anos - respondeu - Com tanto tempo de condenação, por que não fugiu? 97 A Execução Penal à Luz do Método APAC - Da confiança e do amor ninguém foge. Aqui não há contenda, somos uma família unida - respondeu de pronto. 4 A presença da comunidade Qualquer trabalho objetivo de nossa proposta dificilmente atingirá o seu desiderato se não for desenvolvido com o preso atrás das grades. A pena deve ser executada como uma forma de diálogo do presidiário com a sociedade, e isso só será possível com a presença da comunidade no presídio, dando palestra de valorização humana, de conhecimentos gerais, sobre a importância da família, com alfabetização, cursos bíblicos, tudo enfim que desperte no recuperando a certeza de que ele não está sozinho, que é útil, que poderá vencer e ser feliz. Há, entre os presos, um código de honra, e raramente a polícia, por intermédio deles, toma conhecimento de seus planos de ação. Os agentes peni- tenciários, por sua vez, via de regra, não acreditam no sentenciado, pois dificil- mente são preparados de forma adequada para a função que exercem. É preciso romper esse obstáculo secular, e somente uma terceira força, no caso a comunidade, poderá debilitar os graves vícios do sistema, exaurindo- os paulatinamente; romper, assim, essa separação forte e cheia de ódio entre segurança e condenados, para evitar os degradantes espetáculos observados nos estabelecimentos penais e, por fim, para executar eficazmente a finalidade da pena, que se resume em preparar o preso para voltar ao convívio social. Por que será que, até hoje, embora decorridos 27 anos de existência da Lei de Execução Penal, os seus dispositivos só são aplicados integralmente nas Comarcas onde existe APAC? Estamos cansados de saber que presos do semi- aberto e do aberto cumprem pena em prisão domiciliar, assinando, no Fórum, uma vez por mês, o livro de presença, como se estivessem desfrutando do livra- mento condicional. Aí a sociedade reclama, com razão, e nenhuma providência é tomada. Vale lembrar: quando a comunidade não assume, a cidade também se prende. 5 Casais padrinhos O Método APAC adotou, desde o início, o atendimento à necessidade do recuperando de possuir um casal como padrinhos, com o objetivo de coo- perar na recuperação, orientando o afilhado em tudo que pudesse ajudá-lo a retornar ao convívio social em condições normais. Para os recuperandos, esses casais constituem a identificação com as próprias famílias, as quais muitos nem sequer conheceram. As imagens corretas de um casal são de fundamental impor- 98 A Execução Penal à Luz do Método APAC tância, pois, em mais de 90% dos casos, a raiz dos crimes está na família. Nessa convivência com o casal, o recuperando tem oportunidade de, aos poucos, restaurar as figuras desfiguradas dos pais. O recuperando paulatinamente se afasta daquele mundo sórdido de vio- lência, ódio e desconfiança. Com o passar do tempo, aproximam-se do mundo saudável em que o padrinho e a madrinha vivem. A APAC tem especial preocu- pação em preparar bem os casais de voluntários, para o desempenho eficaz dessa missão. É normal os recuperandos pedirem a bênção aos seus padrinhos, preenchendo dessa forma um vazio de afeto existente. Certa vez, fomos surpreendidos com um pedido de audiência de um recuperando com idade aproximadamente 10 anos a menos na relação entre nós dois. A surpresa se deveu ao fato de que já havia três anos que ele cumpria pena na APAC, e nunca se dignou a marcar uma audiência, a qual se realizava se- manalmente com a Presidência. Ficamos felizes com a iniciativa, por se tratar de um recuperando exemplar. Entrou em nossa sala e, amparando-se com as mãos numa das cadeiras, ficou em silêncio por alguns segundos, sem condições de ini- ciar o diálogo: - Pode falar. Estamos prontos para ouvi-lo! Percebemos que a emoção o dominava. Ele fez um sinal, pedindo tem- po. Passados mais alguns segundos, insistimos. E ele manifestou: - Sabe, Dr. Mario, o que lhe venho pedir e espero ser atendido? - Diga, por favor. Sendo possível, vamos atendê-lo. - Aqui estou para pedir a sua bênção! Comovidos, o abençoamos, com afeto paternal. Ele nos abraçou, cho- rando, e acabamos chorando juntos, naquele momento inesquecível. Era, com certeza, um desejo enorme que atormentava o seu coração. Depois que nos despedimos, pusemo-nos a meditar e a nos indagar: quanto tempo esse cidadão esperou angustiado pela bênção de seu pai e, hoje, para nossa felicidade, e para a dele especialmente, no ocaso da vida, o encontrou! Quem faz o bem, não sabe o bem que faz. Deus passa pela vida de todos, não apenas dos bons. Ele assim age por bondade, e porque nos ama sem distinção. A APAC, hoje, é um forte instrumento usado por Deus para converter seres humanos ao verdadeiro cristianismo. 6 Assistência educacional e social A Metodologia APAC, em seus 12 elementos, trata de forma explícita ou implícita da Assistência Educacional e Social do recuperando. 101 A Execução Penal à Luz do Método APAC mais seguros para o diálogo. - Há dias você nos disse que não teria enveredado para o crime se tivesse descoberto Deus há mais tempo, é verdade? - Sim. É verdade - respondeu ele, sem titubear. - E por quê? - indagamos. Ele repetiu a história que já era de nosso conhecimento, arrematando: - Sabe, agora aceito a minha mãe como ela é, porque, conhecen- do Deus, aprendi a amar e a viver a verdade, sem fantasias. Fico pensando na decepção que tenho sido para ela, que, com certeza, me alimentou no útero, com a esperança de alguém que iria tirá- la da miséria moral e ampará-la. E nada mais procurei fazer, até hoje, do que agredi-la e desprezá-la, como se ela fosse a minha inimiga. Há quatro anos que não a vejo, não dou nem recebo notí- cias dela. O senhor pode calcular quanto de preocupação e de tris- teza ela tem vivido por minha causa - concluiu. Suas palavras eram embargadas por forte emoção, com as lágrimas ba- nhando-lhe o rosto. Inútil foi a tentativa de acalmá-lo, e as nossas lágrimas se somaram, naquele momento de confidência inusitada. Após recobrar o controle emocional, disse: - Hoje, o que desejo é abraçar e beijar a minha mãe e lhe pedir perdão. Quero recomeçar sem os erros do passado. Quero ser gente! É evidente que esse fato poderia se juntar a tantos outros de idêntico valor, para deixar patente, sem nenhuma sombra de dúvida, que Deus é o suporte em que podemos encontrar resposta para nossos anseios e angústias. E o caminho para se viver e cultivar a amizade de Deus é a religião. O preso, normalmente, tem fortes preconceitos contra o amor, já que o ambiente penitenciário é violento, brutalizante, e o coloca sobressaltado, arma- do contra tudo e contra todos, desacreditando da bondade. A qualquer gesto delicado, fidalgo, o condenado tem como resposta a desconfiança, a reserva, porque imagina sempre que, por trás de tudo, há interesses escusos. Existe, por- tanto, um preconceito muito grande contra o amor, uma barreira que precisa ser vencida, e só Deus, que é o amor verdadeiro, desinteressado, disponível, pode atingir esses corações empedernidos, tingidos pelo ódio e pela descrença nos valores positivos. “A verdade vos libertará” – João 8,32. No presídio, cultiva-se a mentira, e toda a criatividade gira em torno dela; ali, a verdade é sempre sufocada, estrangulada, e, nas poucas vezes em que 102 A Execução Penal à Luz do Método APAC ela é posta para fora, há timidez, medo, reserva, gerados por conta das censuras e vigilâncias. E o homem - criado à imagem e semelhança de Deus, que é a verdade e o amor que habitam dentro de nós - se vê, por não poder exercitá-los, angustia- do, odiento, agressivo. Em tudo o que é humano, circula a verdade, de modo que a existência perde sua qualidade humana quando a verdade lhe é impedida. Aliás, Gandhi dizia que “A verdade é Deus, antes de Deus é a verdade”. E Pascal lem- brou que, Se o amor é a afirmação da revelação cristã, o cristianismo se co- loca como uma exigência de verdade. O amor à verdade é, segundo ele, a primeira virtude cristã. Quando alguém é impedido de dizer a verdade, a outra opção que lhe resta é a mentira, e isso propicia a luta interior entre o bem e o mal. A opressão contra os anseios de libertação interior provoca, como diz Czeslau Milosz, “A inquietação da ver- dade que se oculta”. Por mais ignorante que seja, o homem sabe que não é negando a ver- dade que conseguirá destruí-la. Uma verdade existirá independentemente da crença ou descrença nela, e não será difundindo a mentira, cultivando-a, mesmo espontaneamente, que se fará dela uma verdade. Quem vive mentindo, com o tempo não sabe onde mora a verdade. Somente quando o preso sente a presença de alguém que lhe oferece uma amizade sincera, dessas que não exigem compensações ou retornos, é que se inicia o processo de desalojamento das coisas más armazenadas em seu inte- rior, e a verdade começa a assumir o seu lugar, restaurando, gradativamente, a autoconfiança, revitalizando os seus próprios valores. Isso se chama libertação interior. Na Penitenciária do Estado de São Paulo, após uma Jornada de Liber- tação com Cristo, realizada com 50 presos, um deles levantou-se chorando e proclamou em voz alta: Hoje, pela primeira vez na vida, estou chorando lágrimas de amor; antes, só chorei lágrimas de ódio. E, num ser humano em que somente o ódio circula, ocorre, inevitavel- mente, a destruição física e psíquica de quem odeia. Em contrapartida, só o amor supera o tempo na eternidade, fazendo com que o homem promova um encontro consigo mesmo, tornando-se capaz de contrariar os seus impulsos e desejos mórbidos, de se modificar. Num editorial de El Pasionario (nº 634-635), 103 A Execução Penal à Luz do Método APAC órgão da imprensa espanhola, B. Monsegú, profundo conhecedor das condições em que a Europa vive atualmente, afirma: Os fatos cantam e provocam que, solta a rédea religiosa e a social que obriga a modelar a mais forte das nossas paixões, não nos fazemos mais castos, e sim mais selvagemente impuros. Por isso, não há virtude mais santificadora, nem mais excelente, que o amor a Deus. No Brasil, a execução da pena é olvidada simplesmente porque o problema vem sendo visto por uma ótica errada, distante da realidade brasileira. Os verdadeiros valores que deviam ser cultivados estão sendo ingenuamente re- legados. Os presídios brasileiros, nos dias atuais, abrigam condenados dos quais mais de 60% são jovens na faixa de 18 a 28 anos de idade, e o comportamento dos jovens é sinal evidente da crise de mudança em que se envolveu o mundo atual, deixando pro- fundas vacilações em torno dos valores, principalmente entre os três setores fundamentais: família, Igreja e escola. Em geral, os crimes que cometeram na vida tiveram origem não na coragem e na força, mas na fraqueza gerada pela falta de religião e de Deus. Tanto isso é verdade, que é sob o efeito de drogas que se cometem mais de 65% dos crimes no Brasil. Quem se lembra da visita do Papa João XXIII ao presídio Regina Coeli, em Roma, e de sua afirmação ao ali chegar: “Aqui também é a casa do Senhor!”? Grande emoção dominou a todos, inclusive provocando lágrimas. E o que falar do encontro de SS. João Paulo II com o seu agressor Ali Agca, na prisão de Rebibbia? Só o amor é vida, e somente ele propicia o acolhimento fraterno, pro- duzindo a reconciliação. Hélio Tornaghi, comentando um discurso de Francesco Carnelutti, um dos luminares da cultura jurídica italiana, afirmou: A solução do problema do crime e da pena, que não encontrou nos livros da ciência, - ele, Carnelutti – a vai achar no livro da fé. Quanto ao problema do crime, Jesus, falando aos discípulos acerca do Juízo Final, colocou os encarcerados ao lado dos doentes, dos desnudos, dos peregrinos, dos sedentos, dos esfaimados - Mateus 25,34. Os presos são doentes, mas do espírito. Mas de que têm sede ou fome? Quanto à questão da pena, os homens alcançarão o prêmio (a visão bea- tífica) por haverem alimentado os famintos, dessedentado os sedentos, hospeda- do os viajantes, vestido os nus, visitado os enfermos e os presos. Aí está, por-
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