Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

Cinema e Semiótica., Manuais, Projetos, Pesquisas de Filosofia

Artigo sobre cinema e semiótica

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2015

Compartilhado em 05/03/2015

joao-n-1
joao-n-1 🇧🇷

7 documentos

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Cinema e Semiótica. e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Filosofia, somente na Docsity! RESUMO O objetivo deste artigo é buscar uma reflexão que visa a compreender o signo cinematográfico no desenvolvimento de sua semiose, quer dizer, sua ação de signo híbrido. O que se pretende é observar os intercâmbios e as inter-relações das três matrizes de linguagem, a sonora, a visual e a verbal, operando e aparecendo engendradas dentro da linguagem cinematográfica, e revisitar certas questões ainda não totalmente exauridas sobre a construção de discurso realizada pela montagem, divisando, porém, a complexidade intersemiótica no qual esse processo está imerso. Tomamos como referência teórica principal a semiótica de Charles Sanders Peirce (1839-1914), trazendo para tanto, como fonte de contribuição a este estudo, o livro Matrizes de linguagem e pensamento (2001) de Lucia Santaella. Palavras-chave: cinema, semiótica, linguagem, montagem. ABSTRACT Cinema and semiotics: The construction of signs in the cinematographic discourse. This article is a reflection that aims at understanding the cinematographic sign in the development of its semiosis, that is, its action as a hybrid sign. What we intend to do is to observe the exchanges and inter-relations of the three matrixes of language: the sound, visual and verbal ones, as they appear, operate and are engendered within the cinematographic language, and to revisit certain issues which have not quite been solved regarding the construction of discourse brought about by the assemblage, without losing sight, however, of the intersemiotic complexity this process is immersed in. We have used Charles Sanders Peirce’s (1839-1914) Semiotics as our main theoretical reference, as well as of Lucia Santaella’s book, Matrizes de linguagem e pensamento (2001) as a source contributing to this study. Key words: cinema, semiotics, language, assemblage. Cinema e semiótica: a construção sígnica do discurso cinematográfico Marcelo Moreira Santos1 1 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Rua Monte Alegre, 984. Perdizes. 05014-901, São Paulo – SP, Brasil. E-mail: marcelo_m.s@terra.com.br revista Fronteiras – estudos midiáticos 13(1): 11-19, janeiro/abril 2011 © 2011 by Unisinos – doi: 10.4013/fem.2011.131.02 Introdução A construção do signo híbrido cinematográfico processa-se em uma tríade que a fundamenta, a sintaxe, a forma e o discurso, que são, conforme foi desenvolvido por Santaella (2001), os eixos correspondentes ao sonoro, visual e verbal respectivamente. Transposta para o cinema, a lógica da sonoridade, que é constituída pela sintaxe, irá no filme lidar com a combinação de diversos elementos como cenografia, figurino, diálogos, atores, luzes, cores, texturas, relevos, objetos, sons etc. Ao traçar esses ele- mentos em uma composição, o filme adquire uma forma. Esta nada mais é que a harmonização da sintaxe das partes que estão contidas na ação/drama transferindo-as para os enquadramentos, criando imagens em movimento e conferindo-lhes uma narrativa que, através da montagem, a constitui como discurso ou argumento. Mas é importante observarmos em pormenores como esse processo de construção de discurso ocorre pelo desenvolvimento da montagem cinematográfica, isto é, como por meio da justaposição das imagens em movimento se cria e propicia a construção de sentido. Marcelo Moreira Santos 12 Vol. 13 Nº 1 - janeiro/abril 2011 revista Fronteiras - estudos midiáticos Montagem e continuidade: a construção de sentido Os planos são fragmentos, são recortes com os quais a montagem traça uma ordem, dá-lhes um sentido. A montagem tece uma relação entre essas partes corpori- ficando um todo. Essa capacidade de governar os eventos/ imagens conferindo-lhes uma logicidade interatuante entre os fatos/planos perfazendo uma organização dos mesmos rumo a um resultado esperado ou almejado dá à montagem um caráter de lei. A lei funciona, portanto, como uma força que será atualizada, dadas certas condições. Por isso mesmo, a lei não tem a rigidez de uma necessidade, podendo ela própria evoluir, transformar-se. Contudo, em si mesma, a lei é uma abstração. Ela não tem existência concreta a não ser através dos casos que governa, casos que nunca poderão exaurir todo o potencial de uma lei como força viva. Quer dizer, a lei lhes empresta uma certa regularidade que se expressa através da regularidade (Santaella, 2001, p. 262). Assim, a montagem dos planos é governada por algo de natureza geral que rege a continuidade de uma imagem em relação à outra. A arbitrariedade da montagem ao as- sociar uma imagem à seguinte depende de uma abstração, de um efeito para que essa associação de planos se objetive como um discurso, isto é, o ordenamento das imagens é constituído de razoabilidade que a torna inteligível. Por- tanto, a montagem tem a natureza de um símbolo. Peirce observa que [u]m símbolo é essencialmente um objetivo, quer dizer, é uma representação que procura tornar-se a si mesma mais definitiva, ou que procura produzir um interpretante mais definido que ela própria. Na verdade, a totalidade da sua significação consiste em ela determinar um interpretante; de forma que é do seu interpretante que ela deriva a atualidade da sua significação (Peirce, 1998, p. 208). A montagem é algo geral na medida em que organiza outros planos, outros particulares, ditando esse ordenamento e o organizando, dotando essa sequência de imagens de significação, determinando um efeito. Efeito este que trabalha no sentido de sugerir, indicar e abstrair. Sobre o poder de significação da montagem, é clara uma observação de Peirce: “[...] um Signo tem um Objeto e um Interpretante, sendo o último aquilo que o Signo produz na Quase-Mente, que é o Intérprete, ao atribuir este mesmo último a um sentir, a um esforço ou a um Signo, atribuição esta que é o Interpretante” (Peirce, 2000, p. 177). A montagem vai operar dentro do processo de semiose exatamente pelo viés da construção de interpre- tantes. Mas antes de entendermos a ação do interpretante na montagem, é importante observarmos a relação entre signo e objeto, que se instaura no cinema na dualidade entre câmera e mundo visível. A dualidade entre câmera e objeto pode ser explicada pelo fato do objeto ser um segundo em relação à câmera, portanto, está lá fora, “[...] se apresenta aqui e agora e insiste na sua alteridade, [...] com uma defi- nitude que lhe é própria, algo concreto, físico, palpável, oferecendo-se à identificação e reconhecimento” (San- taella, 2001, p. 196). Dentro desse escopo, o que chama a atenção é exatamente essa dualidade entre câmera-objeto. Uma duali- dade que pode ser melhor observada a partir da perspectiva fenomenológica peirciana, que oferece uma importante ferramenta epistemológica para se entender esse embate. A segunda categoria de experiência fenomenológica, segundo Peirce, refere-se às experiências duais, como as de ação e reação, e para esta categoria o autor deu-lhe o nome de Secundidade (Secondness). A Secundidade corresponde ao Outro, ao não-ego. Possui o caráter da alteridade, da negação, de se opor ao eu, é, portanto, um segundo em relação a. Advém da Secundidade a ideia de ação-reação, aqui e agora, força bruta. Neste sentido, o mundo visível ou objeto em frente à câmera se estende adiante como pura alteridade, como algo fora e que é captado e impresso na película. Todavia, dada a magnitude e complexidade deste objeto em relação ao espaço circunscrito e delimitado dos fotogramas, a única possibilidade de capturá-lo se reduz a fragmentos de partes da realidade visível. Segundo Peirce, esse objeto real é denominado como objeto dinâmico, e esses fragmentos do real impressos nos fotogramas podem ser vistos como os objetos imediatos, isto é, objetos que trazem partes do todo. Esse mesmo processo é encontrado de modo similar na interação entre signo e objeto, pois o signo carrega informações do objeto dinâmico, informações estas fragmentadas e incompletas chamadas por Peirce de objetos imediatos. Esse processo entre signo e objeto se desencadeia por relações de semelhança, referência e con- venção que conferem ao signo graus de correspondência Cinema e semiótica: a construção sígnica do discurso cinematográfico Vol. 13 Nº 1 - janeiro/abril 2011 revista Fronteiras - estudos midiáticos 15 Isto nos remete ao objeto dentro do signo e ao objeto real, ou dinâmico. A diagramação da atenção perceptiva, traçando-lhe relações e tecendo a unidade na representação, é um movimento rápido e contínuo de inferências, por meio do qual a mente trata de sintetizar o todo, mas esse signo ou série de signos é determinado pelo objeto real, o todo. Dentro dos signos há fragmentos desse todo que se renovam em continuidade com o deslocar na metrópole. Há, portanto, um alto grau de correspondência com o objeto dinâmico, isto é, com a realidade, mas nunca o signo conseguirá substituir ou representar por completo o objeto dinâmico; há sempre esse jogo de autocorreção, ad infinitum, entre representação e realidade. Ocorre que a mente assimilou, tornou-se um hábito, devido às experiências colaterais e da regularidade das coisas, aprendeu a generalizar e sintetizar o todo através das partes e dos fragmentos por meio de dois tipos de associações: por contiguidade e por similitude. A contiguidade tem um grau de indexicalidade muito evidente e a similitude um alto grau de iconicidade. Ambas permitem que a mente trace conexões na continuidade espacial e temporal dos movimentos dos objetos, traçando relações de experiências anteriores com a experiência atual, prevendo qual a atitude a ser tomada a partir dessas associações. Ora, a montagem traça um caminho muito pa- recido, mas, em vez de ter o todo à sua frente e produzir diagramas através da atenção perceptiva às partes, no filme os fragmentos e sua ordenação se mostram em sequência na montagem. Onde está o objeto dinâmico ou a realida- de visível? A generalização e síntese cabe à mente, é um exercício de inferência hipotética construir a continuidade daquele mundo onde a história se passa, e essa continuidade (ideia geral), só é realizada pela parte-ícone. Pois “[...] uma importante propriedade peculiar ao ícone é a de que, através de sua observação direta, outras verdades relativas a seu objeto podem ser descobertas além das que bastam para determinar sua construção. Assim, através de duas fotogra- fias pode-se desenhar um mapa etc.” (Peirce, 2000, p. 65). Como Béla Balázs destaca: Esta unidade e a simultaneidade das imagens evoluindo no tempo não é produzida automaticamente. O especta- dor deve participar com uma associação de ideias, uma síntese de consciência e imaginação aos quais o público de cinema teve, em primeiro lugar, que ser educado. [...] Cabe ao diretor, se assim o desejar, fazer com que o espectador sinta a continuidade da cena, sua unidade no tempo e no espaço, mesmo que, para a orientação do espectador, ele ainda não tenha mostrado, nenhuma vez, a imagem total da cena (Balázs in Xavier, 2003, p. 88). A linguagem cinematográfica não reside apenas naquilo que é mostrado, mas principalmente naquilo que é sugerido: “A relação entre mente e as cenas filmadas adquire uma perspectiva interessante à luz de um processo mental [...], a saber, a sugestão” (Munsterberg in Xavier, 2003, p. 43). Há um diálogo entre os fragmentos sígnicos (pla- nos), sua ordenação e a mente do espectador. A imersão naquela “realidade” é feita por esse diálogo; cada fragmen- to, sejam diálogos, sons, luzes, figurinos, objetos de cena, cenários etc., enfim, todo esse compósito de elementos (sintaxe) são peças que vão construindo esse mundo que a mente completa (ver Bürch, 1969, p. 26, 66). Ou como Peirce explica: “A significação de um signo complexo é determinada por certas regras de sintaxe que são parte do seu significado” (Peirce, 1998, p. 200). Mas essa realidade não possui nenhuma alteridade, é pura imaginação sugerida pelo filme; por isso mesmo que um bom filme é aquele que surpreende e obriga a mente a renovar as hipóteses. É um convite ao jogo lúdico. Pois, da mesma forma como a Terceiridade se derrama sobre a mente a todo momento, a mente, de pronto, generaliza esses fragmentos justapostos, se derrama sobre estes, confeccionando uma Terceiridade, uma continuidade, ainda que fictícia. Como Peirce observa, a “[...] extraordinária dispo- sição da mente humana para pensar acerca de tudo através da difícil e quase incompreensível forma de um continuum apenas pode ser explicada supondo que cada um de nós é na sua natureza real um continuum” (Peirce, 1998, p. 121). O espectador completa o enredo, dialoga com o todo do filme, assim o diretor e sua equipe convida-o a criar e imaginar aquela história juntos, mesmo no cinema onde tudo é dado: imagens, sons, caminhos, destinos, etc. Há, entretanto, essa incompletude que é da característica do signo, cabendo ao intérprete tentar adivinhar aquele objeto dinâmico, aquela “realidade” da história; portanto, está aberto a conjecturas. E é nisso que consiste o envolvi- mento do intérprete, pois tem que haver esse gosto de poder conjecturar ao mesmo tempo em que o filme se desenvolve. O efeito pragmático desse diálogo é esse enlace, é essa par- ticipação mediada, ora desafiador, ora contemplativo, ora emocional, ora enérgico, ora lógico. O filme, através de seus interpretantes que corporificam o signo cinematográfico, está aberto a essa recriação, pois este não diz tudo. Para cada intérprete há esse jogo da imaginação, um jogo, por isso mesmo lúdico, despertado e acionado pela obra. Quantas vezes o filme conduz a mente para um caminho que “pensa” já saber, já previsto, já construído, e é Marcelo Moreira Santos 16 Vol. 13 Nº 1 - janeiro/abril 2011 revista Fronteiras - estudos midiáticos surpreendida quando se dá conta de que não era bem aquilo, e se vê obrigada a recomeçar esse jogo de remontar o mundo que está sendo contado, em um intenso processo inferencial a relacionar outros trechos em que não se prestou atenção e a retomá-los, tentando descobrir qual a “realidade” do filme? Não é, portanto, a busca de um significado único da história, é simplesmente o filme que se oferece a estar aberto a esse jogo lúdico. É simplesmente ter a prazerosa oportunidade de conjecturar sobre o filme, sobre suas possibilidades. Dessa forma, o conceito de montagem não se reduz apenas à ordenação dos planos e imagens. Talvez a palavra continuidade seja a que mais lhe caiba quando se observam todos os fragmentos que compõem o filme, continuidade essa que se engendra por meio de contigui- dade e similitude. Um close-up de uma mão pegando uma arma, um close-up do olhar do bandido, um close-up de uma mulher apavorada, colocados em sequência, são todos contíguos. A mente tece uma imagem total, uma ideia geral de que tudo isso está sendo relacionado e compõe a cena. Outro exemplo, plano do bandido entrando no apartamento, plano do herói em seu carro em algum ponto da cidade tentando chegar à casa da mulher, plano da mulher com seus afazeres domésticos, close-up da mão do bandido abrindo a porta, o plano do herói chegando à casa etc., ao mesmo tempo tem-se aí associação por contiguidade e similitude, e foi exatamente esse tipo de associação de montagem que D.W. Griffith realizou em seus filmes. Vale destacar, voltando mais uma vez à experiência fenomênica da metrópole, que esse tipo de experiência já podia ser encontrado ali pela ótica do flâneur: “Com a ajuda de uma palavra que escuto passar, refaço toda uma conversa, toda uma vida; basta-me o tom de uma voz para ligar o nome de um pecado capital ao homem com quem acabo de cruzar e cujo perfil entrevi” (Fournel, in Benjamin, 2006, p. 204). Essa parte-ícone da montagem/símbolo opera em três tipos de construção: Imagem, Diagrama e Metáfora. Estas categorias pertencem aos hipoícones. Os que participam das qualidades simples, ou Pri- meira Primeiridade, são imagens; os que representam as relações, principalmente as diádicas, ou as que são assim consideradas, das partes de uma coisa através de relações análogas em suas próprias partes, são dia- gramas; os que representam o caráter representativo de um representâmen através da representação de um paralelismo com alguma outra coisa, são metáforas (Peirce, 2000, p. 64). Para que haja a Imagem bastam três ou quatro planos e se terá uma ideia do ambiente onde se passa a ação, dos personagens envolvidos, do conflito em questão etc. O Diagrama é construído por eventos que ocorrem em paralelo no filme que de certa forma se relacionam, se completam e são dispostos de forma que a mente trace um diagrama entre os fatos, pois muitas vezes são eventos separados espacial ou temporalmente. A Metáfora se constitui em eventos que dialogam com sentidos mais gerais, fazem uma analogia com essas ideias por meio de fatos/ação, isto é, os planos ilustram, flertam, insinuam ou sugerem algo que é abstrato, impalpável, mas que pelas imagens e sua sequência conseguem se relacionar com estas. Fazem isso por buscarem uma semelhança com a abstração ou conceito envolvido. Assim, pela Metáfora, o cinema dialoga conjecturalmente com teorias, argumentos e discursos de natureza metafísica ou científica, arvorando- se por teses e hipóteses de todas as áreas do conhecimento, trazendo-as, abordando-as e transitando por estas, por meio do livre exercício metafórico de sentido. Nesse ponto, é importante destacar o papel do som no cinema. A linguagem sonora, como visto anterior- mente, tem a sintaxe como elemento característico na sua estruturação de linguagem. A linguagem cinematográfica – temporal como a linguagem sonora – lida com a sintaxe visual da mesma forma que a sonora lida com os elementos sonoros, empregando para si noções e conceitos desta para se objetivar o primeiro estágio de organização do cinema. A linguagem sonora é prioritariamente icônica. Pois, enquanto “[...] no percepto visual, por exemplo, a sensação de externalidade, de algo que está lá, fora de nós, diferente de nós, é proeminente, no som, o senso de alteridade e externalidade tende a dissipar-se na fusão icônica entre o som físico e o som percebido” (Santaella, 2001, p. 111). Depois do aperfeiçoamento da montagem, ainda na época do cinema mudo, um grande momento histórico a ter grande destaque foi o advento tecnológico do som e da sua sincronização com a imagem. Apesar das discussões prós e contras a respeito do som no cinema (ver Stam, 2000, p. 76-82), o que de fato se constatou é que o som se mostrou um elemento importante aos filmes. A junção da sintaxe visual com a sintaxe sonora trouxe uma complexidade importante para a composição da parte-ícone do símbolo/montagem. Enquanto a ação é fragmentada em diversos planos, o som, ao contrário, é contínuo, só cessando quando se muda de local e espaço. O som cria uma ambiência que se amalgama com os planos. Ao mesmo tempo em que cria um enlace, pois o som na tela e o Cinema e semiótica: a construção sígnica do discurso cinematográfico Vol. 13 Nº 1 - janeiro/abril 2011 revista Fronteiras - estudos midiáticos 17 som que o público sente se dissolvem, sem nada separando os dois, não há um delimitador. Assim,a alteridade que reside na imagem na tela se desvanece no som. Através do som,o público compactua com o mesmo ambiente sonoro que há na tela. “O som físico que está lá, fora de mim, é sentido como se estivesse brotando aqui dentro, volátil, instável, movendo-se no passo da vida” (Santaella, 2001, p. 109). O som está conectado à imagem, ao plano e sua sucessão no cinema, mas, apesar dessa conexão diádica, o som tem um poder de sugestão que vai além do que está na tela. A linguagem sonora vai preencher os vazios que a imagem fragmentada possui. Em um processo de simbiose, a imagem e o som se nutrem, produzindo um interpretante potencial que vai agir nessa reconstrução do objeto dinâmico ou realidade ficcional para além dos limites dos planos e de sua montagem, nessa continuidade que a mente de pronto cria. Enquanto os efeitos sonoros (muitas vezes indiciais), cujo papel semiótico é agir no campo das referências, estão atrelados à parte-ícone, nesse caráter de sugerir o objeto dinâmico, ou o todo da “realidade” onde o drama ocorre, a trilha sonora ou a música, por sua vez, está conectada à parte-índice da montagem/símbolo, isto é, a narrativa. Mas, antes de explicar melhor o valor da música à narrativa, é necessário explicar o que é a narrativa cinematográfica. É pela narrativa cinematográfica que se pode observar com propriedade a presença mais marcante da linguagem verbal ao cinema. Apesar de o verbal aparecer já na construção do roteiro literário, com descrição de cenas que sugerem uma narrativa em seus deslocamentos entre internas e externas acompanhando os personagens, é na narrativa cinematográfica que o verbal traz os conceitos e noções da narração, em uma sintaxe com o visual e o sonoro, para a construção de uma história. Defino a narração como universo da ação, do fazer: ação que é narrada. Portanto, a narrativa em discurso verbal se caracteriza como o registro linguístico de eventos ou situações. Mas só há ação onde existe con- flito, isto é, esforço e resistência entre duas coisas: ação gera reação e dessa inter-ação germina o acontecimento, o fato, a experiência. Aliás, aquilo que denominamos personagem só se define como tal porque faz algo. E os movimentos desse fazer só se processam pelo confronto com ações que lhes são opostas, que lhe opõem resistência. Isso gera a história: factual, situacional, f iccional, ou de qualquer outro tipo. Mas qualquer que seja o tipo terá sempre essa constante: conflito, coação, confronto de forças (Santaella, 2001, p. 322). A narrativa cinematográfica, primeiramente, vai lidar com a composição entre o movimento da ação, do drama, do conflito, lá fora, com a seleção e registro destes dentro dos planos, produzindo um movimento interno nesses enquadramentos, que quando prontos trazem consigo um ritmo determinado pelo andamento da ação pontuados pelas mudanças de ponto de vista de um plano a outro. [...] uma narrativa é feita de ações de personagens, sem as quais a própria personagem não poderia se def inir, quer dizer, personagens não são pessoas, no sentido de depositárias de atributos psíquicos inde- pendentes das sequências e esferas de ações de que participam em um universo narrativo mais amplo do que a personagem, universo que ela própria faz “andar” (Santaella, 2001, p. 323). A montagem vai trabalhar com esses planos existentes, podendo vir a alterar e manipular esse ritmo interno da ação que está impressa na película, confeccio- nando outros ritmos. Portanto, a montagem possui uma autonomia criativa na manipulação de sua parte-índice, todavia esta não perde sua âncora mestra, isto é, a ação que determinou o objeto/ação dentro dos planos. Dessa forma, “[...] a narrativa seria um modo de organização da linguagem que tende a registrar através do convencional (signo linguístico) o universo da se- cundidade peirciana: dos fatos existenciais, da dualidade agente-paciente (de ações), do esforço-resistência, do agir sobre objetos externos e sobre o próprio eu” (Santaella, 2001, p. 323). Essa autonomia que tem o discurso de organizar os eventos que compõem uma narrativa (característica própria do discurso verbal) ressurge à montagem. A ação contida nas imagens (parte-índice) é organizada pela montagem/símbolo. A narrativa é a junção do drama capturado e selecionado e seu ordenamento. Essa narrativa tem uma característica híbrida em que se amalgamam a sintaxe visual e a sintaxe sonora, adquirindo forma que, ao contato com os conceitos do verbal, impregna-se de sentido, costurando todas essas sintaxes de linguagens di- ferentes, somando-as, fazendo com que dialoguem entre si, em um intercâmbio de trocas sígnicas que objetiva ao cinema contar suas histórias de forma muito singular enquanto meio. Dessa forma, a narrativa cinematográfica se divide em três estágios: a narrativa espacial, a narrativa sucessiva e a narrativa causal.
Docsity logo



Copyright © 2024 Ladybird Srl - Via Leonardo da Vinci 16, 10126, Torino, Italy - VAT 10816460017 - All rights reserved