Baixe 05 - epicuro, lucrécio, cícero, sêneca e marco aurélio - coleção os pensadores (1985) e outras Notas de estudo em PDF para Teologia, somente na Docsity!
Epicuro
Lucrécio
Cícero
Séneca
Marco Aurélio
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CIP-Brasil. Catalogação-na-Publicação Câmara Brasileira do Livro, SP Epicuro, 342 ou 1-271 ou 70A.C. E54a Antologia de textos / Epicuro. Da natureza / Tito Lucrécio Caro. 3.ed. Da república / Marco Túlio Cícero. Consolação a minha mãe Hélvia ; Da tranqüilidade da alma ; Medéia ; Apocoloquintose do divino Cláudio / Lúcio Aneu Sêneca. Meditações / Marco Aurélio ; traduções e notas de Agostinho da Silva ... [et al.] ; estudos introdutórios de E. Joyau e G. Ribbeck. — 3. ed. — São Paulo : Abril Cultural, 1985. (Os pensadores) Contém vida e obra de Epicuro, Lucrécio, Cícero, Sêneca e Marco Aurélio. Bibliografia. 1. Epicuristas 2. Estóicos 3. Filosofia antiga I. Lucrécio, 98?-55?A.C. II. Cícero, 106- 43A.C. III. Sêneca, 4?-65 ou 6. IV. Marco Aurélio, 121-180. V. Silva, Agostinho da, 1906- VI. Joyau, Emmanuel, 1850-1924. VII. Ribbeck, G. VIII. Título. IX. Título: Da natureza. X. Título: Da república. XI. Título: Consolação a minha mãe Hélvia. XII. Título: Da tranqüilidade da alma. XIII. Título: Medéia. XIV. Título: Apocoloquintose do divino Cláudio. XV. Título: Meditações. XVI. Série. CDD- 180 -187 84-1228 -188 índices para catálogo sistemático: 1. Epicurismo : Filosofia antiga 187 2. Estoicismo : Filosofia antiga 188 3. Filosofia antiga 180 4. Filósofos antigos 180 EPICURO ANTOLOGIA DE TEXTOS TITO LUCRÉCIO CARO DA NATUREZA MARCO TÚLIO CÍCERO DA REPÚBLICA LÚCIO ANEU SÊNECA CONSOLAÇÃO A MINHA MÃE HÉLVIA * DA TRANQÜILIDADE DA ALMA * MEDÉIA * APOCOLOQUINTOSE DO DIVINO CLÁUDIO MARCO AURÉLIO MEDITAÇÕES Traduções e notas de Agostinho da Silva, Amador Cisneiros, Giulio Davide Leoni, Jaime Bruna Estudos introdutórios de E. Joyau e G. Ribbeck 1985 EDITOR: VICTOR CIVITA Títulos originais: Texto de Lucrécio: De Rerum Natura Textos de Sêneca: Ad Helviam Matrem de Consolatione Ad Serenum de Tranquillitate Animi Medea Divi Claudi Apokolokintosis Texto de Marco Aurélio: Tά εις εαντόν (Meditações) ■ © Copyright desta edição, Abril S.A. Cultural, São Paulo, 1973 — 2.ª edição, 1980 —3.ª edição, 1985. Traduções publicadas sob licença de Editora Globo S.A., Porto Alegre (Antologia de Textos de Epicuro; Da Natureza); D. Giosa Indústrias Gráficas S.A., São Paulo (Da República; Consolação a Minha Mãe Hélvia; Da Tranqüilidade da Alma; Medéia; Apocoloquintose do Divino Cláudio); Editora Cultrix Ltda., São Paulo (Meditações). Direitos exclusivos sobre "Epicuro, Lucrécio, Cícero, Sêneca, Marco Aurélio — Vida e Obra", Abril S.A. Cultural, São Paulo. EPICURO LUCRECIO CÍCERO SÊNECA MARCO AURÉLIO VIDA E OBRA Consultoria: José Américo Motta Pessanha A perda da liberdade política — primeiro dominada pelos macedônios, depois pelos romanos — alterou profundamente os quadros dentro dos quais a Grécia Antiga vinha desenvolvendo sua experiência cultural e, em particular, sua criação mais arrojada: a especulação filosófica. Tornando-se parte do império fundado por Filipe da Macedônia e ampliado por seu filho Alexandre, o país passa a integrar vasto organismo político, verdadeiro mosaico de povos. Tendem a se diluir as distinções entre gregos e orientais, distinções que, então, os primeiros orgulhosamente proclamavam e procuravam preservar. O historiador Heródoto (c.480-c.425 a.C.) mostrara que a raiz dessas distinções estava no senso de liberdade política que um grego possuía por pertencer a uma cidade-Estado, cônscia de sua autonomia e de suas tradições, e onde, ao usufruir os direitos de cidadania, ele não estava submetido a nenhum senhor. O abismo entre os gregos do período helênico e os "bárbaros" orientais provinha, segundo Heródoto, da consciência de liberdade que os gregos desenvolveram a partir da peculiaridade de sua organização social e política. Essa consciência de liberdade está ilustrada, pelo historiador, no episódio dos dois espartanos que, por ocasião das Guerras Médicas, se apresentam voluntariamente aos persas para serem sacrificados como expiação pelo assassínio dos embaixadores de Xerxes. Indagados sobre por que Esparta insistia em resistir ao Grande Rei, rejeitando as vantagens da rendição e da submissão, os dois gregos respondem, altaneiros, ao persa que os O caráter de religiosidade, que se tornará evidente no pensamento ocidental a partir do século I d.C, afirma-se antes em centros orientais da cultura helenística, como Alexandria. Manifesta-se então acentuada tendência à fusão ou ao sincretismo religioso. Ao mesmo tempo, ocorre o confronto entre duas tradições: a greco-romana, formulada através de filosofias dotadas de alto índice de racionalização, e a da religiosidade oriental, fundada — como no judaísmo e no cristianismo — na noção de "verdade revelada". Os primeiros efeitos da repercussão do espírito religioso sobre a filosofia manifestam-se nos judeus- alexandrinos (do século II a.C. ao I d.C), nos neopitagóricos e platônicos pitagorizantes (entre os séculos I a.C. e III d.C.) e nos últimos defensores do pensamento e da religião do politeísmo: os neoplatônicos do século II ao século VI d.C. O neoplatonismo constituiu a mais perfeita manifestação de sincretismo religioso dessa época e teve em Plotino (204-270) seu principal representante. Para o neoplatonismo — canto de cisne do pensamento da Grécia Antiga —, todos os seres resultariam de sucessivas emanações do Um, divino, transcendente e inefável. Antes de se calar, a filosofia grega medita sobre um último tema: o silêncio do Ser. O jardim da amizade e do prazer Nascido em 341 a.C, em Atenas ou em Samos, Epicuro teria acompanhado, dos catorze aos dezoito anos, os ensinamentos do acadêmico Pânfilo. E, através de Nausífanes de Teo, discípulo de Demócrito (c.460-370 a.C), teria conhecido as doutrinas desse grande atomista. Durante algum tempo ganhou a vida como professor de gramática. Em seguida deu cursos de filosofia, primeiro em Lâmpsaco, depois em Mitilene e Colofonte. Finalmente regressa a Atenas, por volta de 306 a.C, onde adquire uma pequena casa e abre uma escola de filosofia, que ficará conhecida como o Jardim de Epicuro. Os alunos não têm em Epicuro um mestre no estilo tradicional: na verdade, formam um grupo de amigos que filosofam juntos. Epicuro exerce influência, não só pelo ensino direto como pela extraordinária personalidade. É um homem bondoso, de natureza terna e amável, que, apesar dos sofrimentos físicos impostos pela doença que o tortura e aos poucos o paralisa, cultiva as amizades, auxilia os irmãos e trata delicadamente os escravos. Por essa razão todos os que o conhecem dificilmente deixam seu convívio. Epicuro foi intensamente venerado por seus primeiros discípulos, grandes admiradores seus. E cerca de dois séculos depois de sua morte — ocorrida em 270 a.C. — ainda será assim exaltado pelo. poeta romano Lucrécio, seguidor e expositor de suas idéias: "Foi um deus, sim, um deus, aquele que primeiro descobriu essa maneira de viver que agora se chama sabedoria, aquele que por sua arte nos fez escapar de tais tempestades e de tais noites, para colocar nossa vida numa morada tão calma e tão luminosa". As tempestades e a noite a que se refere o poeta Lucrécio significam os temores e as perturbações que agitam o espírito humano e que Epicuro teria ensinado como vencer. "A morada tão calma e tão luminosa" seria a meta proposta pelo epicurismo: a morada da serenidade e do prazer. Com efeito, toda a ética de Epicuro representa um esforço para libertar a alma humana de equívocos ou de infundadas crenças aterrorizadoras. A filosofia, para Epicuro, deveria servir ao homem como instrumento de libertação e como via de acesso à verdadeira felicidade. Esta consistiria na serenidade de espírito que advém da consciência de que é ao homem que compete conseguir o domínio de si mesmo. O autodomínio — objetivo de toda reflexão filosófica — exige a libertação do jugo das falsas opiniões e a conquista do conhecimento verdadeiro e seguro da realidade e da posição do homem dentro dela. Conseqüentemente, a filosofia pode ser dividida em três partes que se articulam. Em primeiro lugar, a lógica, que permitiria distinguir quais as formas de conhecimento verdadeiro, quais as falsas. Em segundo lugar — com base nas soluções indicadas pela lógica —, uma física que mostrasse a verdadeira estrutura da realidade na qual se insere o homem. A lógica e a física constituiriam, assim, as disciplinas preliminares a possibilitar a descoberta dos fundamentos da ética. Esta seria a terceira parte da filosofia e seu objetivo último, constituindo a chave para abrir as portas da felicidade. A teoria do conhecimento dos epicuristas (que eles chamavam de canônica) é empirista, isto é, reduz toda a origem do conhecimento à experiência sensível. As repetidas experiências dos sentidos, preservadas pela memória, dariam nascimento à antecipação (em grego: prolepsis), equivalente à noção geral ou conceito. Quando se ouve a palavra homem, por exemplo, antecipa-se a presença real e efetiva de um homem, sem que o mesmo esteja sendo apreendido de fato por qualquer dos sentidos. A prolepsis teria a função de classificar as experiências e fixar seus limites de variação. Seria em si mesma verdadeira, pois simplesmente registra e preserva as diferenças e semelhanças encontradas na experiência sensível. A fonte da verdade. Depois que se possui um número suficientemente grande de prolepsis, podem-se formar juízos, verdadeiros ou falsos. A verdade de um juízo pode ser provada, segundo os epicuristas, de duas maneiras. Quando o juízo diz respeito a algo observável pelos sentidos, o critério é pura e simplesmente a concordância entre o juízo e os fenômenos sensíveis correspondentes. O segundo critério de verificação da verdade de uma proposição refere-se aos juízos sobre fenômenos não passíveis de observação através dos sentidos. Nesse caso diz-se que certa proposição é verdadeira se não entrar em contradição com outros dados fornecidos pela experiência (critérios da não-infirmação). Os fenômenos adotados como prova são apenas signos de uma realidade invisível. Por exemplo, segundo a doutrina atomista, adotada por Epicuro, "todos os corpos, por mais compactos que sejam, possuem interstícios vazios dentro deles". Esse juízo não é atestado diretamente pelos sentidos; mas, se não for admitido como verdadeiro, também não seria verdade que "a água destila através das rochas", ou que "o calor e o frio passam através das paredes". A libertação do temor dos deuses e da morte não basta para conduzir o homem à verdadeira felicidade. É necessário ainda que ele se liberte da ânsia incontrolada de prazeres e do incontido pesar pelas dores. A luminosidade racional da doutrina atomista permitiria ao homem afastar os sombrios temores que lhe intranqüilizavam a alma, bem como reconhecer-se como um ser perfeitamente integrado na natureza universal. Enquanto ser natural, o homem — como os animais — pauta sua vida, espontaneamente, pela procura do prazer e pela fuga da dor. Mas a verdadeira sabedoria está além desse comportamento natural e espontâneo: sábio é reconhecer que há diferentes tipos de prazer, para saber selecioná-los e dosá-los. O hedonismo epicurista reconhece que o ponto de partida para a felicidade está na satisfação dos desejos físicos, naturais. Mas essa satisfação, para não acarretar sofrimentos, deve ser contida, reduzindo-se ao estritamente necessário: sábio é aquele que "com um pouco de pão e de água rivaliza com Júpiter em felicidade". Epicuro considera que todo prazer é basicamente um prazer corpóreo. Mas, ao contrário dos cirenaicos — corrente hedonista que se pretendia herdeira de Sócrates —, Epicuro afirma que o prazer que o homem deve buscar não é o da pura satisfação física imediata e mutável, o "prazer do movimento". Para Epicuro, o prazer que deve nortear a conduta humana — o prazer com dimensão ética e não apenas natural — é o "prazer do repouso", constituído pela ataraxia (ausência de perturbação) e pela aponia (ausência de dor). Ambas podem ser alcançadas na medida em que o homem, através do autodomínio, busque a auto-suficiência que o torne um ser que tem em si mesmo sua própria lei, um ser autárquico, capaz de ser feliz e sereno independentemente das circunstâncias. Para tanto, deve renunciar aos prazeres que possam ser fontes de aflição e aceitar a dor quando ela é portadora de um bem futuro (que nunca deve ser confundido com a suposta vida depois da morte). É necessário, portanto, fazer um cálculo utilitário dos prazeres e das dores possíveis, como primeiro passo para a conquista da felicidade. Epicuro, porém, reconhece que as circunstâncias podem impor a dor como um fato inelutável. Sabedoria será então utilizar a liberdade interior e, através do artifício que essa liberdade permite, permanecer sereno e feliz. À dor presente, ensina Epicuro, pode- se escapar por meio da lembrança dos prazeres passados ou pela expectativa de prazeres futuros. Interiormente, o homem é livre para jogar, à vontade, com as imagens (eidola) que seriam resquícios corpóreos (formados de átomos mais tênues) de suas sensações. Epicuro — ele próprio um homem doente e vítima de terríveis sofrimentos físicos, ele próprio um grego sem liberdade política — teria dado a demonstração dessa técnica interior de evasão, capaz de permitir ao homem enfrentar serenamente as mais adversas circunstâncias. Seu hedonismo altamente espiritualizado, que fazia da contemplação intelectual e das delícias da amizade os mais elevados prazeres, legou às éticas posteriores uma lição que nunca mais será esquecida: a de que o homem também pode se sustentar de recordações e de esperanças. A poesia do materialismo Na própria Antigüidade o epicurismo não sofreu reformulações. Os seguidores imediatos de Epicuro limitaram-se a cultuar a memória do mestre e a preservar e propagar suas idéias. Segundo Diógenes Laércio, a obra de Epicuro compreendia cerca de trezentos títulos, dentre os quais só Sobre a Natureza compreenderia 37 livros. Dessa grande quantidade de escritos, todavia, restou muito pouco: o próprio Diógenes Laércio conservou uma Carta a Heródoto (que trata da física), uma Carta a Pítocles (de "autenticidade contestada e tratando dos meteoros) e uma Carta a Meneceu (sobre moral); Diógenes Laércio faz seguir essas cartas de quarenta sentenças atribuídas a Epicuro e conhecidas sob a denominação de Máximas Principais. Em 1888, K. Wotke descobriu, num manuscrito da biblioteca do Vaticano, 81 máximas de Epicuro, algumas já inseridas nas Máximas Principais. Por outro lado, as escavações realizadas em Herculanum trouxeram à luz uma biblioteca epicurista, contendo inclusive o Sobre a Natureza de Epicuro. Mas, se os escritos de Epicuro só são conhecidos de forma fragmentária, existe uma outra fonte para o conhecimento de sua doutrina: o poema Da Natureza das Coisas, de seu seguidor Lucrécio, que viveu em Roma entre os anos 99 e 55 a.C. Pouco se sabe da vida de Tito Lucrécio Caro. Nasceu provavelmente em Roma, onde foi educado. Quando conheceu a doutrina de Epicuro — "honra da raça grega" —, Lucrécio deslumbrou-se com seus ensinamentos, que lhe pareceram a chave para desvendar os segredos do universo e para abrir as portas da felicidade humana. Seguindo as pegadas do mestre, Lucrécio propõe-se à tarefa de libertar os romanos da religião que os oprimia e que sobre eles pesava com mais força do que outrora pesara sobre os gregos. Além de servir de fonte para conhecimento da doutrina epicurista, o poema de Lucrécio tem imensa importância literária: através dele Lucrécio se revela um dos maiores poetas da língua latina. Lucrécio matou-se em 55 a.C. Seu poema, escrito em intervalos de ataques de loucura, ficou inacabado e foi completamente revisado, para publicação, segundo algumas fontes, por um irmão de Cícero chamado Quinto. Segundo outras fontes, aquele trabalho foi feito pelo próprio Cícero, que tinha pelo poeta do materialismo profunda admiração. O ecletismo de Cícero Em janeiro de 49 a.C, o triúnviro romano Júlio César atravessou o Rubicão e desencadeou a guerra civil que o levaria a dominar todo o império. Venceu Pompeu em Farsala, instalou Cleópatra no trono do Egito, reorganizou o Oriente e derrotou os últimos adeptos do segundo triúnviro da África, em 46 a.C, e na Espanha, um ano depois. De volta a Roma em 45 a.C., começou a governar como déspota absoluto e tratou de eliminar os últimos adversários. Entre os adversários perseguidos estava Marco Túlio Cícero (106-43 a.C), senador e figura proeminente da política romana nos anos anteriores. Obrigado a deixar os negócios públicos, Cícero recolheu-se à vida privada e retomou a O estoicismo grego propõe uma imagem do universo segundo a qual tudo o que é corpóreo é semelhante a um ser vivo, no qual existiria um sopro vital (pneuma), cuja tensão explicaria a junção e interdependência das partes. Em seu conjunto, o universo seria igualmente um corpo vivo provido de um sopro ígneo (sua alma), que reteria as partes e garantiria a coesão do todo. Essa alma é identificada, por Zenão, à razão, e assim o mundo seria inteiramente racional. A Razão Universal (Logos), que tudo penetra e comanda, tende a eliminar todo tipo de irracionalidade, tanto na natureza, quanto na conduta humana, não havendo lugar no universo para o acaso ou a desordem. A racionalidade do processo cósmico manifesta-se na idéia de ciclo, que os estóicos adotam e defendem com rigor. Herdeiros do pensamento de Heráclito de Éfeso (séc. VI a.C), os estóicos concebem a história do mundo como feita por sucessão periódica de fases, culminando na absorção de todas as coisas pelo Logos, que é Fogo e Zeus. Completado um ciclo, começa tudo de novo: após a conflagração universal, o eterno retorno. Tudo o que existe é corpóreo e a própria razão identifica-se com algo material, o fogo. O incorpóreo reduz-se a meios inativos e impassíveis, como o espaço vazio; ou então àquilo que se pode pensar sobre as coisas, mas não às próprias coisas. Nesse universo corpóreo e dirigido pelo fatalismo dos ciclos sempre idênticos, tudo existe e acontece segundo predeterminação rigorosa porque racional. Governada pelo Logos, a natureza é por isso justa e divina e os estóicos identificam a virtude moral com o acordo profundo do homem consigo mesmo e, através disso, com a própria natureza, que é intrinsecamente razão. Esse acordo consigo mesmo é o que Zenão chama "prudência" e dela decorrem todas as demais virtudes, como simples aspectos ou modalidades. As paixões são consideradas pelos estóicos como desobediência à razão e podem ser explicadas como resultantes de causas externas às raízes do próprio indivíduo; seriam, como já haviam mostrado os cínicos, devidas a hábitos de pensar adquiridos pela influência do meio e da educação. É necessário ao homem desfazer-se de tudo isso e seguir a natureza, ou seja, seguir a Deus e à Razão Universal, aceitando o destino e conservando a serenidade em qualquer circunstância, mesmo na dor e na adversidade. Uma nova lógica Os estóicos gregos não se limitaram a formular uma física e uma ética. Elaboraram também uma teoria do conhecimento de acentuada originalidade. As três formariam um conjunto sistemático que expressaria, no plano do conhecimento, a mesma racionalidade encontrada na natureza. A teoria do conhecimento consiste, para os estóicos, em vincular estreitamente a certeza e a ciência ao plano do conhecimento sensível. A base de qualquer conhecimento seriam as impressões recebidas pelos sentidos; mas já o nível do sensível estaria penetrado pela razão, sendo portanto predisposto à sistematização pela inteligência. Ao lado das coisas sensíveis, os estóicos distinguem os "exprimíveis", isto é, aquilo que se pode pensar e dizer sobre as coisas. Os "exprimíveis" seriam objeto da dialética, disciplina que se ocuparia dos enunciados verdadeiros ou falsos a respeito das coisas, e não das próprias coisas. Os mais simples enunciados, segundo os estóicos, são compostos por um sujeito (expresso por um substantivo ou um pronome) e um atributo (expresso por um verbo). Esses enunciados distinguem-se, assim, das proposições da lógica aristotélica, que estabelecem relações entre conceitos (por exemplo: "O homem é um animal racional"). Na lógica estóica, o sujeito é sempre singular (alguém, Pedro etc.) e o atributo indica sempre algo que ocorre com o sujeito. As ligações entre os enunciados, portanto, nunca assumem o caráter de juízo categórico, permanecendo como relacionamento entre eventos, cada qual expresso por uma proposição simples (por exemplo: "Está claro, é dia"). Os estóicos distinguem cinco tipos de juízos compostos que reúnem os enunciados simples. O juízo hipotético exprime relação entre antecedente e conseqüente ("Se há fumaça, há fogo"). O juízo conjuntivo simplesmente justapõe fatos ("É dia, está claro"). O juízo disjuntivo separa os enunciados, de modo que só um deles pode ser verdadeiro ("Ou é dia, ou é noite"). Finalmente, o quinto tipo de juízo expressa a idéia de mais e menos ("Fica menos claro quando é mais noite"). A medicina da alma Não foi a lógica dos estóicos gregos, nem mesmo sua teoria do mundo físico, que sobretudo atraiu o interesse dos estóicos romanos. Foi antes sua moral da resignação, sobretudo nos aspectos religiosos que ela permitia desenvolver. O primeiro representante do estoicismo romano, sem contar as idéias estóicas que se encontram no ecletismo de Cícero, foi Lucius Annaeus Sêneca, nascido em Córdoba (Espanha), aproximadamente quatro anos antes da era cristã. Era filho de Annaeus Sêneca (55 a.C-39 d.C.) — conhecido como Sêneca, o Velho —, que teve renome como retórico e do qual restou uma obra escrita (Declamações). O futuro filósofo Sêneca foi educado em Roma, onde estudou a retórica ligada à filosofia. Em pouco tempo tornou-se famoso como advogado e ascendeu politicamente, passando a ser membro do senado romano e depois nomeado questor. O triunfo político, no entanto, não se fazia sem conflitos e o renome de Sêneca suscitou a inveja do imperador Calígula, que pretendeu desfazer-se dele pelo assassinato. Sêneca, contudo, foi salvo por sua frágil saúde; julgava-se que ele morreria muito cedo, de morte natural. O próprio Calígula é que faleceria logo depois e Sêneca pôde continuar vivendo em relativa tranqüilidade. Não duraria esse período muito tempo. Em 41 d.C. foi desterrado para a Córsega, sob acusação de adultério, supostamente praticado com Júlia Livila, sobrinha do novo imperador Cláudio César Germânico. Na Córsega, Sêneca passaria quase dez anos em grande privação material. Em 49 d.C, Messalina, primeira esposa do imperador Cláudio e responsável pelo exílio de Sêneca, caiu em desgraça e foi condenada à morte. O imperador Cláudio casou-se com Agripina e esta mandou chamar Sêneca para educar seu filho bem. Esse problema assume a forma de intensa preocupação com o estado de sua própria alma, em virtude da natureza delicada e sensível do autor das Meditações, homem sobretudo religioso e pouco interessado na investigação científica. Por essa razão o estoicismo de Marco Aurélio freqüentemente apresenta discrepâncias em relação a suas origens gregas. Marco Aurélio não chegou a ser um pensador original e não procurou resolver as inconsistências de sua própria posição. Enquanto a ortodoxia estóica levava-o na direção de um credo materialista, seu sentimento religioso impelia-o no sentido da força moral e da benevolência. Por isso, as Meditações de Marco Aurélio expressam-se através de uma linguagem que, por um lado, parece pressupor a aceitação de um panteísmo puramente físico; por outro, abandona os dogmas da escola estóica para seguir os ditames do coração. Por certo a verdadeira chave para compreensão das oscilações de Marco Aurélio deve ser procurada menos em suas características psicológicas do que nas circunstâncias históricas em que viveu. O império romano estava perdendo o antigo esplendor e a cultura clássica greco-latina mostrava os últimos sinais de vitalidade. Cada vez mais ganhava corpo uma nova concepção do mundo: o cristianismo. Marco Aurélio expressa claramente essa etapa de transição. Nele a auto- suficiência do antigo estoicismo grego cede lugar à falta de confiança em si mesmo e à consciência das próprias imperfeições. Com isso antecipa a virtude cristã da humildade e mais um passo apenas poderia levá-lo à concepção de um Deus único e pessoal. Cronologia 470 a.C. — Nasce Sócrates. 460 a.C. — Nasce Demócrito. 428 a.C. — Nascimento de Platão. 399 a.C. — Processo e morte de Sócrates. 359 a.C. — Ascensão de Filipe ao trono da Macedônia. 341 a.C. — Nasce Epicuro. 338 a.C.— Batalha de Queronéia: Filipe derrota os gregos. 336 a.C. — Morte de Filipe. Ascensão de Alexandre. 334 a.C. — Nasce Zenão de Cício, fundador da escola estóica. Aristóteles funda o Liceu. 331 a.C. — É fundada a cidade de Alexandria. 323 a.C. — Morre Alexandre. 306 a.C. — Epicuro abre sua escola em Atenas. 287 a.C. — Nasce Arquimedes. 270 a.C. — Morre Epicuro. 148 a.C. — Os romanos reduzem a Macedônia a província. 106 a.C. — Nasce Cícero. 98(?) a.C. — Nasce Lucrécio. 55(?) a.C. — Morre Lucrécio. 51 a.C. — No exílio, Cícero redige suas primeiras obras filosóficas. 46 a.C. — Júlio César derrota forças de Pompeu na África. 45-44 a.C. — Cícero redige suas obras mais importantes. 44 a.C. — Assassínio de Júlio César. 43 a.C. — Cícero é assassinado. 29-19 a.C. — Virgílio compõe a Eneida. 4(?) a.C. — Nasce Sêneca. 41 d.C. — Sêneca é banido para a Córsega. 49 d.C. — Torna-se preceptor do jovem Nero. 50 d.C-130 d.C. — Vida de Epicteto. 54 d.C. — Nero torna-se imperador. Sêneca é feito seu conselheiro. 65 d.C. — Nero condena Sêneca ao suicídio. 68 d.C. — Morte de Nero. 121 d.C. — Nasce Marco Aurélio. 161 d.C. — Torna-se imperador. 180 d.C. — Morte de Marco Aurélio. Bibliografia MARX, K.: Diferença Entre as Filosofias da Natureza de Demócrito e Epicuro, Ed. Global, São Paulo, 1979. MONDOLFO, R.: O Pensamento Antigo, Ed. Mestre Jou, São Paulo, 1964. MONDOLFO, R.: Moralistas Griegos, Ed. Iman, Buenos Aires, 1941. BRUN, J.: Épicure et les Épicuriens, Presses Universitaires de France, Paris, 1961. NIZAN, P.: Les Matérialistes de l'Antiquité: Démócrite, Épicure, Lucrèce, F. Maspero, Paris, 1965. CRESSON, A.: Épicure, Presses Universitaires de France, Paris, 1947. BIGNONE, E.: Aristotele Perduto e la Formazione Filosófica di Epicuro, Florença, 1936. BIGNONE, E.: // Conceito della Vita Intima nella Filosofia d'Epicuro, Roma, 1908. BIGNONE, E.: Epicuro: Opere, Frammenti, Testimonianze, Bari, 1920. 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Os filósofos puderam então reentrar em Atenas e não foram inquietados mais. Não temos os elementos necessários para saber ao certo se Epicuro se contou entre aqueles a quem se impôs o êxodo; neste como noutros pontos, a nossa curiosidade fica excitada no mais alto grau e não encontra com que se satisfazer. Comprou pelo preço de 80 minas (6 000 ou 7 000 francos) um jardim, isto é, uma pequena casa com um jardim, e foi aí que estabeleceu a sua escola. Que idéia deveremos fazer desses jardins de Epicuro de que nos falam todos os escritores antigos e que lhes pareciam constituir notável inovação? Não era um parque: Cícero emprega muitas vezes, para os designar, o diminutivo hortuli: era uma propriedade para renda mais do que uma propriedade de recreio, porque Epicuro no seu testamento fala dos rendimentos que dela recebia. E provável que as casas com jardim não fossem raras em Atenas, porque a cidade não era muito povoada e as habitações não estavam amontoadas umas sobre as outras; mas Epicuro, em lugar de reunir os seus auditores numa sala, num ginásio ou num pórtico, dava-lhes lições ao ar livre; não fazia os seus cursos a certas horas, mas passava todo o dia no jardim, falando familiarmente com uns e com outros, de modo que se não via nele um mestre rodeado de discípulos, mas um grupo de amigos que filosofavam juntos. A influência extraordinária que exerceu sobre os seus discípulos foi devida ao ascendente da sua personalidade mais que às suas doutrinas; como o disse Sêneca, Metrodoro, Hermarco, Polieno devem mais a terem freqüentado Epicuro do que a seu ensino. É com efeito um dos caracteres mais notáveis da escola epicurista esta amizade que não cessou de nela reinar, unindo por um lado os professores e os alunos, por outro lado os alunos entre si. Todos os escritores da Antigüidade estão de acordo sobre este ponto; os adversários mais odientos nunca nos falam de dissensões, de rivalidades que tivessem dividido os epicuristas: "Foi ele próprio um homem bom, e houve muitos epicuristas, e ainda hoje existem, fiéis na amizade e em toda a sua vida graves e constantes".0F1 Era de natureza terna, como o atestam a sua piedade com os pais, a sua bondade, com os irmãos, a sua delicadeza com os escravos e em geral a sua humanidade com todos. Parece, por outro lado, ter sido muito amável. Metrodoro de Lâmpsaco, desde o dia em que conheceu Epicuro, nunca mais o deixou, exceto para uma viagem que fez à sua pátria. Na carta a Idomeneu, escrita mesmo no dia da morte, dizia ele: "Em nome da amizade que sempre me testemunhaste, toma conta dos filhos de Metrodoro". Segundo certos comentadores, Epicuro, além do seu jardim de Atenas, teria ainda possuído uma casa de campo em Melite e tê-la-ia legado também à sua escola. Mas se examinarmos os planos de Atenas e da Ática que foram reconstituídos pelos arqueólogos, vemos que o nome Melite designa não uma localidade distinta mas um bairro da cidade perto da porta ocidental. Achamos, pois, que Epicuro não tinha duas propriedades, uma dentro, outra fora das muralhas, mas uma só, compreendendo jardim e casa de habitação, situada em Atenas, muito perto da extremidade do subúrbio. Apesar das perturbações que afligiram a Grécia, Epicuro passou em Atenas toda a segunda parte da sua vida, exceto duas ou três viagens que fez aos confins da Jônia, para visitar amigos. Não se meteu em assuntos públicos, não desempenhou nenhum papel nas sucessivas revoluções da sua pátria, não atraiu sobre ele próprio nem sobre os seus amigos o ódio de nenhum partido. A sua carreira não foi, portanto, assinalada por nenhum acontecimento importante e os historiadores antigos não nos contam a seu respeito nenhuma anedota interessante. Durante um cerco da cidade, quando os habitantes sofriam cruelmente de fome, alimentou os seus discípulos partilhando com eles as provisões de favas que tinha tido a 1 Cícero, De Finibus, II, XXV, 80, 81. precaução de pôr de reserva e dando aos outros exatamente o mesmo que guardava para si próprio. O êxito que obteve não foi efêmero; prolongou-se sem interrupção durante trinta e seis anos; consolou Epicuro dos cruéis ataques de uma terrível doença, a pedra; suportou-a com uma grande firmeza e morreu em 270 a.C, no segundo ano da 127.a Olimpíada, com a idade de setenta e dois anos. Dava desta firmeza sinais bem engenhosos e bem delicados. "Durante as minhas doenças", escreve ele, "não falava a ninguém do que sofria no meu miserável corpo; não tinha essa espécie de conversação com aqueles que me vinham visitar: não falava com eles senão daquilo que desempenha na natureza o primeiro papel. Procurava sobretudo fazer-lhes ver que a nossa alma, sem ser insensível às perturbações da carne, podia no entanto manter-se isenta de cuidados e no gozo pacífico dos bens que lhe são próprios. Ao chamar os médicos, não contribuía com a minha fraqueza para lhes fazer tomar ares importantes, como se a vida que eles procuravam conservar-me fosse para mim um grande bem. Mesmo nesse tempo vivia eu tranqüilo e feliz." A sua constância não se desmentiu mesmo no momento da morte; eis aqui a sua última carta a Idomeneu: "Este dia em que te escrevo é o último da minha vida e é também um dia feliz. Sinto tais dores de bexiga e de entranhas que nem se poderia imaginar dores mais violentas; mas estes sofrimentos são compensados pela alegria que traz à minha alma a recordação das nossas conversações". Nos últimos tempos da sua vida, não podia nem sequer suportar os vestuários, nem descer da cama, nem consentir luz, nem ver lume. Conta Hermarco que, depois de ter sido atormentado por dores incessantes durante catorze dias, pediu que o metessem numa bacia de bronze cheia de água quente para dar alguma trégua ao mal; em seguida bebeu um pouco de vinho, exortou os amigos a lembrarem-se dos seus preceitos e nesta conversação terminou a vida. Guyau compara a serenidade da morte de Epicuro à de Sócrates. Outros historiadores, pelo contrário, foram até o ponto de dizerem que estas práticas constituíam um verdadeiro suicídio. Não somos desta opinião: o recurso a uma morte voluntária em tais circunstâncias não agora acontece com os epicuristas". O número de epicuristas despertava provavelmente a inveja dos estóicos, cujos preceitos austeros não podiam ser postos em prática senão por um raro escol. Segundo parece, Epicuro abriu a sua escola alguns anos depois de Zenão. Em todo caso, era sensivelmente mais novo do que este último, e morreu muito antes dele, porque não viveu senão setenta e dois anos, ao passo que Zenão atingiu a idade de oitenta e oito anos. No entanto, o epicurismo não foi uma reação contra a severidade dos estóicos e nenhum dos dois sistemas exerceu qualquer influência sobre a constituição do outro; é provável que mais tarde não tenha acontecido o mesmo, a luta entre as duas escolas rivais tornou-se cada vez mais áspera e mais encarniçada, muitos homens, não se sentindo com forças de aderir ao estoicismo, lançaram-se na doutrina oposta; mas não é a um sentimento desta natureza que se deve atribuir o aparecimento do epicurismo. O que nos impressiona primeiro é a docilidade com que os discípulos aceitaram as doutrinas do mestre e as conservaram sem alteração. O epicurismo não tem história: está todo ele nos ensinamentos de Epicuro e o tempo não lhes trouxe nenhuma modificação; nenhum dos epicuristas foi um filósofo original, nenhum procurou ganhar qualquer nomeada. No entanto, parece-nos justo mencionar alguns dos discípulos imediatos de Epicuro. Metrodoro de Lâmpsaco, a quem Cícero chama "quase um outro Epicuro" e a quem o próprio mestre tinha conferido o título de Sábio. São algumas vezes apresentados como sendo dele os fragmentos de um tratado Acerca das Sensações publicados no tomo sexto dos papiros de Herculano, mas a atribuição é duvidosa. Metrodoro morreu sete anos antes de Epicuro, que não deixou de lhe cuidar dos filhos. Existe no Louvre um busto de Epicuro com duplo rosto, representando de um lado o mestre, do outro o discípulo inseparável. Polieno, que morreu também antes do seu mestre, era um distinto matemático. Hermarco de Mitilene é muitas vezes designado pelo nome de Hermarco; mas, segundo Zeller, não devem subsistir dúvidas sobre o seu nome verdadeiro; foi a ele que coube a direção da escola depois da morte do fundador. Ao mesmo grupo pertencia ainda Colotes, contra quem Plutarco devia escrever um livro quatrocentos anos mais tarde. A admiração pelo gênio do mestre que Lucrécio exprime em tantos passos, a adesão sem reservas à sua doutrina, são sentimentos comuns a toda a escola. Ficavam encantados pelos ensinamentos de Epicuro como se fosse pelo canto das sereias; recebiam como verdades incontestáveis os princípios formulados pelo mestre; a convicção que tinham era profunda, o dogmatismo intransigente; aprendiam de cor as fórmulas do sistema e tinham um grande cuidado em não deixar perder nada daquilo que o mestre tinha dito ou escrito; tocar num só ponto da doutrina era a seus olhos um verdadeiro sacrilégio. "Epicuro", diz Crouslé, "foi o fundador e o deus de uma espécie de religião nova... os discípulos de Epicuro formavam na realidade uma pequena igreja." Esta docilidade é muito nova entre os gregos, cujo espírito era audacioso e independente. "A aparição e o êxito do epicurismo atestam", segundo Croiset, "um enfraquecimento notável do pensamento especulativo da Grécia." A extrema docilidade dos epicuristas deu motivo a uma singular acusação: censuraram-nos de terem considerado Epicuro como um deus e de o terem adorado. Sem dúvida praticavam-se nessa pequena sociedade certos ritos, realizavam-se reuniões para festas, para repastos em comum, celebravam-se aniversários, rodeava-se de um verdadeiro culto a memória do mestre, elevavam-se estátuas, os discípulos entusiastas traziam sempre sobre eles a sua imagem, ou então um anel, como os escravos forros; diziam que era bem digno do seu nome de "auxiliador" (epi-kourios). Alguns evidentemente não souberam parar a tempo em tal caminho; nos espíritos medíocres a superstição depressa se vinga da abolição das crenças religiosas. Assim Néocles, irmão de Epicuro, escreveu, segundo se diz, que a mãe tinha sido bem feliz por ter juntado no seu seio os átomos que tinham formado um tal sábio. Quanto aos versos de Lucrécio, que iguala Epicuro aos deuses e o põe acima de Hércules ou de Ceres, não podemos ver nisso outra coisa que não seja um brilhante desenvolvimento poético; o que o resto do poema nos faz conhecer do caráter e dos sentimentos do autor não nos permite ter dúvidas sobre o sentido destas expressões. Mas, segundo se afirma, um dia Colotes lançou-se aos pés do mestre e adorou-o; Epicuro teve o maior cuidado em não o desenganar. Responderemos primeiro que esta anedota, embora seja contada por Diógenes Laércio, não é talvez muito autêntica; pode ser que tenha sido completamente inventada ou que ao menos o aspecto lhe tenha sido singularmente alterado pelos seus adversários. Em todo caso. é única e é necessário que não tiremos dela conclusões exageradas. Que Colotes. que era do número dos pequenos espíritos de que falávamos há pouco, se tivesse deixado levar por um entusiasmo irrefletido, que o próprio Epicuro tenha ficado um momento embriagado pelo prestígio que lhe reconheciam os seus amigos — eis aí alguma coisa de muito humano e esta fraqueza passageira não nos parece manchar seriamente o valor do sistema. Tem havido grande indignação pelo fato de a escola estar aberta às mulheres e por várias terem nela desempenhado um papel importante. Parece desconhecer-se a liberdade de que gozavam as mulheres na sociedade ateniense e o gosto que manifestaram algumas pela cultura intelectual; parece esquecer-se sobretudo que Sócrates tinha prazer em conversar com mulheres, mesmo com cortesãs, e especialmente com Aspásia. Havia um grande número de mulheres nas escolas de Pitágoras e de Platão. Os costumes dos epicuristas não parecem ter sido diferentes dos dos seus compatriotas e dos seus contemporâneos; seria muitíssimo injusto acusá-los de um crime de práticas que a nossa moral condena, mas que não tinham sido eles a introduzir na Grécia. Nada é mais falso do que o quadro delineado por vários escritores que representam o jardim de Epicuro como uma espécie de local mal freqüentado, como o teatro de encontros obscenos. Comparam-nos às cavalariças de Augias, a um chiqueiro de porcos; dão pormenores precisos que fazem honra à sua imaginação, mas não ao seu sentido crítico. sentimentos que tinham florescido na Grécia tinham a sua razão de ser na idéia de Estado. Por isso, logo que o povo viu que lhe interditavam este terreno, logo que viu que já não tinha pátria e que a própria vida municipal estava decaindo, perdeu todas as virtudes que tinha herdado do passado... O bem-estar material, o conforto da vida de pequena cidade, eis o que a multidão se pôs a procurar. Todos os nobres instintos se foram enfraquecendo de dia para dia". Droysen traça um quadro mais sombrio ainda do estado da Grécia no começo do século IV: "As massas empobrecidas, imorais; uma juventude asselvajada pelo mister de mercenários, estragada pelas cortesãs, desequilibrada pelas filosofias em moda; uma dissolução universal, uma ruidosa agitação, uma febril exaltação a que sucedem a distensão e uma estúpida inércia, tal é o quadro deplorável da vida grega nessa altura... (Em especial em Atenas) estas duas coisas, a leviandade mais frívola e de maior abandono, e a cultura delicada, amável e espirituosa que se designou depois com o nome de aticismo, são os traços característicos da vida de Atenas durante o domínio de Demétrio de Falero. É uma questão de bom-tom visitar as escolas dos filósofos; o homem da moda é Teofrasto, o mais hábil dos discípulos de Aristóteles, que sabe tornar popular a doutrina de seu ilustre mestre, reúne mil ou dois mil alunos à sua volta e que é mais admirado e mais feliz do que nunca o foi seu mestre. No entanto, este Teofrasto e uma quantidade de outros professores de filosofia eram eclipsados por Stilpon de Megara. Quando Stilpon vinha a Atenas, os artífices deixavam as suas oficinas para vê-lo e todos os que podiam acorriam para o ouvir; as heteras afluíam às suas lições para o ver e para serem vistas em sua casa, para exercerem na sua escola o vivo espírito que fazia o seu encanto na mesma medida dos vestuários sedutores e da arte de reservar os seus últimos favores. Estas cortesãs gozavam da companhia habitual dos artistas da cidade, pintores e escultores, músicos e poetas; os dois autores cômicos mais célebres do tempo, Filêmon e Menandro, louvavam publicamente nas suas comédias os encantos de Glicera e disputavam-se publicamente os seus favores, prontos a esquecê-la por outras cortesãs no dia em que ela encontrava amigos mais ricos do que eles. Da vida de família, da castidade, do pudor já se não fala em Atenas; talvez se mencionem; toda a vida se passa em frases e em ditos graciosos, em ostentação e em agitada atividade. Atenas lança aos pés dos poderosos a homenagem dos seus louvores e do seu espírito e aceita como recompensa os seus dons e as suas liberalidades... Apenas se temia o tédio ou o ridículo e tinham-se os dois até à saciedade. A religião tinha desaparecido e o indiferentismo do livre-pensamento não tinha feito senão desenvolver ainda mais a superstição, o gosto da magia, das evocações e da astrologia; o fundo sério e moral da vida, expulso dos hábitos, dos costumes e das leis, pelo raciocínio, era estudado teoricamente nas escolas dos filósofos e tornava-se objeto de discussões e de querelas literárias".3F4 "O epicurismo", diz por seu lado Denis. "não corrompeu nada e não matou nada na Grécia porque já não havia mais nada para corromper e para matar."4F5 O mérito de Epicuro está em ter compreendido que havia alguma coisa que reclamava um grande número de espíritos e em ter-lhes dado satisfação de uma forma admirável. Muitos homens, com efeito, preocupam-se acima de tudo em ser felizes; a felicidade é o último termo das suas aspirações; mas, como são inteligentes, não podem recusar o terem em conta as exigências do seu espírito; não poderiam ser completamente felizes se não dessem uma razão plausível da sua regra de procedimento; sentem a necessidade de conceber uma explicação do espetáculo que apresentam os seres e os fenômenos do mundo, mas não apresentam muitas dificuldades, não são muito exigentes em matéria de explicação; contentam-se de boa vontade com a primeira teoria que lhes propõem, que julgam compreender e que aceitam com confiança; não se dão ao trabalho de a complicar, de a aprofundar; se as suas doutrinas apresentam algumas contradições, não dão por isso ou não se inquietam com a sua resolução. O epicurismo trazia-lhes precisamente aquilo que eles pediam: "Ó aberta e simples e direta via", diz Cícero.5F6 Na luta contra o estoicismo, os epicuristas conservaram uma atitude mais defensiva 4 Droysen, Histoire de l'Hellénisme. Trad. Bouché-Leclerc, t. II, I. III, ch. III. 5 J. Denis, Histoire des Idées Morales dans s 'Antiquité, l'Antiquité, I, p. 298. 6 Cícero, De Finibus, I, XVIII, 57. que ofensiva; respondiam às acusações dos seus adversários, mas de modo algum empreendiam a crítica dos dogmas sobre os quais estes fundavam o seu sistema. Tais homens, considerando a imensidade do universo e o pequeno lugar que nós temos dentro dele, a impossibilidade em que nós estamos de triunfar sobre as forças e as leis da natureza, não empreendem a luta; facilmente se acomodam com a nossa fraqueza, procuram adaptar-se o melhor possível às condições que nos foram determinadas e fazem o possível por passar agradavelmente o pouco tempo que nós temos para viver. Alguns dentre eles são homens de um espírito muito fino e muito delicado; o que lhes falta é a energia da vontade. Muitas vezes se lhes têm acusado de covardia: é proferir uma palavra bastante violenta que não parece justificada. O epicurista não é um covarde: primeiro, trabalha por se libertar dos temores que tornam tão infelizes a maior parte dos homens; depois, se acontece ser atingido por algum infortúnio, procura consolar-se sem fazer esforços sobre- humanos e sem se enganar a si próprio com frases ambiciosas. Compreende-se, pois, a aversão que inspira tal sistema àqueles cujo caráter é feito sobretudo de altivez e coragem, que têm uma idéia mais alta da dignidade do homem, que não se propõem outro objetivo senão o de ser fortes, e àqueles também que, convencidos de que o único objeto digno de nós é o conhecimento da verdade, põem as investigações científicas acima da busca da felicidade. Epicuro é um dos escritores mais fecundos da Antigüidade: tinha composto mais de trezentos tratados e estas obras eram realmente dele, não as aumentava por meio de citações tiradas aos seus antecessores. Também Crisipo escreveu muito, porque não queria parecer inferior em nada aos seus adversários; mas seus livros eram antes réplicas, polêmicas, do que exposições sistemáticas; além disso, a sua abundância era mais aparente que real, porque muitas páginas estavam cheias de citações tomadas aqui ou além. Diógenes Laércio transmitiu-nos os títulos dum certo número de obras de Epicuro: um Tratado da Natureza, em trinta e sete livros, sobre os átomos e o vácuo, resumo do que se escreveu contra os físicos; objeções dos megarenses; dos deuses, contradição que não é precisamente em seu abono? Dizia que Nausífanes não era mais do que um pulmão, sem dúvida por causa da força e da beleza da voz; Platão, um homem de ouro, amigo do fausto; Aristóteles, um devasso, que tinha devorado todo o seu patrimônio; Protágoras, um moço de fretes; Heráclito, um trapalhão; os Cínicos, os inimigos da Grécia; os Dialetas, uns corruptores; Pirro, um ignorante e um homem mal educado; Demócrito, um mestre de primeiras letras. Em primeiro lugar, seria necessário saber — o que se não pode conseguir — a que se reduzem ao certo estas graças de que tanto se fala. Deveremos ver nelas afirmações que lhe eram habituais ou ditos lançados no decurso de uma conversação familiar e que foram repetidos por auditores divertidos, depois habilmente explorados pela malignidade dos seus adversários? Tomemos cuidado, não sejamos induzidos em erro pelo aoristo de hábito: pode apresentar-nos como uma linguagem habitual de Epicuro o que na realidade não disse senão uma vez; e ainda nos seria necessário saber em que circunstâncias. Com efeito, numerosos testemunhos nos atestam que Epicuro fazia um grande elogio de Demócrito e declarava que muitas vezes se tinha inspirado nele; quanto a Nausífanes, tinha talvez razões pessoais para lhe querer mal. É muito verossímil que perdesse a paciência ante os mesquinhos ataques de seus adversários, que se não cansavam de lhe repetir o nome dos antigos filósofos, pretendendo que os tinha pilhado sem misericórdia e que, passando da defensiva à ofensiva, troçasse deles para separar a sua causa da dos outros. É provável que os discípulos tenham exagerado esta tendência do mestre e que se tenham divertido com pilhérias ainda mais irreverentes contra homens pelos quais a maior parte dos seus contemporâneos professava um profundo respeito; mas trata-se de uma falta de gosto de que não devemos acusar o próprio Epicuro. Pode-se também tomar num sentido favorável a frase de que nada tinha aprendido com mestre algum: dizia e acreditava provavelmente que, se sustentava tal ou tal teoria, não era porque Demócrito ou Aristipo lha tinham ensinado, mas porque ele próprio a tinha reconhecido como verdadeira; mas nisto se iludia, porque não teria encontrado todas estas idéias se outros antes dele as não tivessem tido e lhe não tivessem indicado o caminho. Quando sustentamos que Epicuro foi um grande homem, não deixamos de reconhecer que foi um homem e que, embriagado pelo êxito da sua doutrina, pelos aplausos dos seus alívios, fez do seu mérito uma idéia demasiado alta, assim como do seu papel e do valor do seu sistema. Longe de nós o pensamento de pôr de lado todos os ditos que lhe atribuem; traem uma vaidade excessiva e sobretudo deslocada; mas parece-nos que esta vaidade é, se não desculpável, pelo menos explicável. Na sua admiração exclusiva por Epicuro, Lucrécio exagera ainda esta reivindicação de originalidade e desconhece todos os antigos filósofos. É esta uma censura que teremos de fazer várias vezes a Epicuro: não se deteve a tempo; talvez julgasse que exagerando-o dava mais força ao seu pensamento. Condenou, assim, em termos formais o estudo de todas as ciências e foi a instâncias suas que um dos seus amigos, Polieno, renunciou a cultivar as matemáticas. Na verdade, não fazia mais do que retomar a opinião de Sócrates; ensinava este que os homens fazem mal em perder tempo com buscas só determinadas pela curiosidade sobre assuntos que lhes importam pouco ou mesmo nada, quando deveriam concentrar todos os seus cuidados sobre as coisas que dizem respeito à sua felicidade. "Os filósofos pós-aristotélicos". diz Brandis, "fizeram como Sócrates: tornaram a trazer a filosofia do céu à terra." É impossível ir mais longe sem se contradizer abertamente; não se poderia formular uma teoria moral senão apoiando-se numa filosofia e, por seu turno, a filosofia não sabe senão o que a ciência lhe ensinou. Epicuro reconhece-o, visto que se deu ao trabalho de edificar um sistema completo; vê como é exigente a curiosidade do espírito, mas imagina que se pode contentar com uma satisfação qualquer e não acredita que a fraqueza da sua física possa comprometer a solidez da sua moral. Pensa mesmo que a investigação profunda das dificuldades científicas pode prejudicar a retidão natural do espírito e que os que mostram mais bom senso são aqueles que menos se importam com ciência. O tom de Epicuro é sempre muito afirmativo; tem horror do ceticismo. Esta teoria, diz ele, é contraditória: como é que um homem pode saber que não sabe nada? O que ele principalmente censura no ceticismo é o não poder fundamentar uma regra de procedimento, porque sempre procedemos segundo aquilo que acreditamos; a ética deve, portanto, ter por base um conjunto de convicções bem firmes. Os seus discípulos são ainda mais dogmáticos do que ele; Lucrécio considera este sistema como a expressão da verdade absoluta. Aristóteles tinha proclamado a independência e a legitimidade dos estudos especulativos; tinha posto a necessidade de saber num lugar principal entre os apetites naturais do homem, e tinha sustentado que o esforço que despendemos em contentá-lo é o mais nobre emprego que podemos dar à nossa atividade, que as ciências devem ser mais estimadas quanto mais inúteis são, e, por fim, que as virtudes teóricas são mais perfeitas do que as virtudes práticas. A doutrina de Epicuro é muito menos ambiciosa; a vida prática deve ser não somente a nossa principal mas também a nossa única preocupação. A filosofia não é uma ciência, é uma regra de procedimento: "Epicuro dizia que a filosofia era uma atividade destinada a estabelecer, por meio de raciocínios e de discussões, uma vida feliz".8F9 Devemos filosofar não em palavras mas em atos; a filosofia não deve ser uma ciência de que se ande fazendo gala. Epicuro escrevia a Pítocles: "Meu caro, foge a todo pano da ciência". Proscrevia também rigorosamente e pelos mesmos motivos a cultura das artes. Eis o que ele dizia não somente da geometria, da aritmética e da astronomia, mas também da música e da poesia: "De falsas bases nada pode vir que seja verdadeiro e, se alguma coisa houvesse de verdadeiro, nada poderia trazer para vivermos com mais prazer, isto é, melhor... Nos poetas não há nenhuma sólida utilidade e todo o seu deleite é pueril".9F10 Professava também um profundo desprezo pela investigação curiosa da história: visto que o passado é passado, por que motivo nos temos nós de inquietar com ele? 9 Sexto Empírico, Adv. Math. (Ethicos).Xl, 169 10 Cícero, op. cit., I, XXI. Assim como realmente a medicina em nada beneficia, se não liberta dos males do corpo, assim também sucede com a filosofia, se não liberta das paixões da alma. * Não pode afastar o temor que importa para aquilo a que damos maior importância quem não saiba qual é a natureza do universo e tenha a preocupação das fábulas míticas. Por isso não se podem gozar prazeres puros sem a ciência da natureza. * Antes de tudo, considerando a divindade incorruptível e bem-aventurada, não se lhe deve atribuir nada de incompatível com a imortalidade ou contrário à bem-aventurança. * Realmente não concordam com a bem-aventurança preocupações, cuidados, iras e benevolências * O ser bem-aventurado e imortal não tem incômodos nem os produz aos outros, nem é possuído de iras ou de benevolências, pois é no fraco que se encontra qualquer coisa de natureza semelhante.. * Habitua-te a pensar que a morte nada é para nós, visto que todo o mal e todo o bem se encontram na sensibilidade: e a morte é a privação da sensibilidade. * É insensato aquele que diz temer a morte, não porque ela o aflija quando sobrevier, mas porque o aflige o prevê-la: o que não nos perturba quando está presente inutilmente nos perturba também enquanto o esperamos. * O limite da magnitude dos prazeres é o afastamento de toda a dor. E onde há prazer, enquanto existe, não há dor de corpo ou de espírito, ou de ambos. * A dor do corpo não é de duração contínua, mas a dor aguda dura pouco tempo, e aquilo que apenas supera o prazer da carne não permanece nela muitos dias. E as grandes enfermidades têm, para o corpo, mais abundante o prazer do que a dor. * O essencial para a nossa felicidade é a nossa condição íntima: e desta somos nós os amos. II Canônica ou teoria do conhecimento Se recusas todas as sensações, não terás mais possibilidade de recorrer a nenhum critério para julgar as que, entre elas, consideras falsas. * Da superfície dos corpos se desprende um eflúvio contínuo, que se não manifesta como diminuição, visto que se encontra compensado pelo afluxo e conserva durante muito tempo a posição e a ordem dos átomos do corpo sólido. * A estas imagens chamamos simulacros. * A semelhança das imagens com as coisas que chamamos reais e verdadeiras não existiria se não houvesse semelhantes emanações. A falsidade ou o erro está sempre no juntar-se de uma opinião. * Não haveria erro se não concebêssemos também outro movimento em nós próprios, unido com ele, mas distinto: por isto, se não é confirmado ou desmentido nasce o erro, se é confirmado ou não desmentido, a verdade. Cingindo-se bem aos fenômenos, podem fazer-se induções a respeito do que nos é invisível. * Tem de saber-se extrair pelo raciocínio conclusões concordantes com os fenômenos. * A sensação deve servir-nos para proceder, raciocinando, à indução de verdades que não são acessíveis aos sentidos. * É verdadeiro tanto o que vemos com os olhos como aquilo que apreendemos mediante a intuição mental. [Para a explicação dos fenômenos naturais] não se deve recorrer nunca à natureza divina; antes, deve-se conservá-la livre de toda a tarefa e em sua completa bem-aventurança. * Deve recordar-se sempre o método da multiplicidade [de causas possíveis para os fenômenos naturais]. * Pelo contrário, quem só admite uma rejeita a evidência dos fenômenos e não cumpre a exigência de examinar tudo o que é possível ao homem, * Adquire-se tranqüilidade sobre todos os problemas resolvidos com o método da multiplicidade de acordo com os fenômenos quando se cumpre com a exigência de deixar subsistir as explicações convincentes. Pelo contrário, quando se admite uma e se exclui a outra, que se harmoniza igualmente com o fenômeno, é evidente que se abandona a investigação naturalista para se cair no mito. III Física Antes de mais, nada provém do nada, pois que então tudo nasceria sem necessidade de sementes. E, se se dissolvesse no nada tudo o que desaparece, todas as coisas seriam destruídas, anulando-se as partes nas quais se decompunham. E É, além disso, necessário que os átomos se movam com igual velocidade quando avançam no vazio sem que se choquem com coisa alguma; com efeito os pesados não se moverão mais velozmente do que os pequenos e leves. * Há também mundos infinitos, ou semelhantes a este ou diferentes. Com efeito, sendo os átomos infinitos em número, como já se demonstrou, são levados aos espaços mais distantes. Realmente, tais átomos, dos quais pode surgir ou formar-se um mundo, não se esgotam nem em um nem num número limitado de mundos, quer sejam semelhantes quer sejam diversos destes. Por isso nada impede a infinidade dos mundos. * É necessário crer que os mundos e toda combinação finita nascem do infinito. * Todos se dissolvem de novo, alguns mais lentamente e outros mais rapidamente, sofrendo um umas ações e outros outras. E semelhante mundo pode nascer num mundo ou num intermundo (assim chamamos a um intervalo entre os mundos), num espaço que contenha muito vazio — mas não no grande espaço puro e vazio, como dizem alguns —, afluindo a ele princípios aptos de um mundo ou intermundo, de um só ou de vários, fazendo, pouco a pouco, acumulações, conexões e transposições a outro lugar, se assim sucede, e afluência de núcleos aptos até lograr o seu acabamento e a detenção do seu crescimento. * A alma é corpórea, composta de partículas sutis, difusa por toda a estrutura corporal, muito semelhante a um sopro que contenha uma mistura, de calor, semelhante um pouco a um e um pouco a outro, e também muito diferente deles pela sutileza das partículas, e também por este lado capaz de sentir-se mais em harmonia com o resto do organismo. Tudo isto manifestam as faculdades da alma, os afetos, os movimentos fáceis e os processos mentais, privados dos quais morremos. E é necessário admitir que a alma leva em si causa principal das sensações, mas certamente estas se não produziriam se de algum modo não estivessem contidas no resto do organismo. E o resto do organismo, tendo preparado esta capacidade causal, participa ele próprio, por meio dela, de semelhante condição, mas não de todas as condições que ela adquire: por isso, quando a alma se separa do corpo, este perde a sensibilidade. Efetivamente não tinha em si esta faculdade, mas preparava-a para a outra, nascida juntamente com ele, a qual, posteriormente, pela faculdade nela desenvolvida por meio do movimento, desenvolvendo imediatamente para si a condição da sensibilidade, dava participação ao corpo, por contato e correspondência, como já disse. É por isso que a alma, enquanto permanece no corpo, nunca pode perder a sensibilidade, mesmo se desaparece alguma parte do corpo, enquanto persiste uma excitação à sensação, mesmo se desaparece também alguma faculdade da alma em virtude de uma destruição do corpo, quer no seu todo quer nas suas partes. O corpo, pelo contrário, mesmo que fique intato, quer no seu todo quer nas suas partes, deixa de possuir sensibilidade quando dele se afastou o princípio que retém unida a multidão dos átomos que constituem a natureza da alma. É, também, no entanto, verdadeiro dizer-se que, logo que se dissolve inteiramente o corpo, a alma se dissipa, e disseminada perde a sua força e os seus movimentos, de tal modo que também ela se torna insensível. IV Ética Chamamos ao prazer princípio e fim da vida feliz. Com efeito, sabemos que é o primeiro bem, o bem inato, e que dele derivamos toda a escolha ou recusa e chegamos a ele valorizando todo bem com critério do efeito que nos produz. * Nem a posse das riquezas nem a abundância das coisas nem a obtenção de cargos ou o poder produzem a felicidade e a bem-aventurança; produzem-na a ausência de dores, a moderação nos afetos e a disposição de espírito que se mantenha nos limites impostos pela natureza. * A ausência de perturbação e de dor são prazeres estáveis; por seu turno, o gozo e a alegria são prazeres de movimento, pela sua vivacidade. * Quando dizemos, então, que o prazer é fim, não queremos referir-nos aos prazeres dos intemperantes ou aos produzidos pela sensualidade, como crêem certos ignorantes, que se encontram em desacordo conosco ou não nos compreendem, mas ao prazer de nos acharmos livres de sofrimentos do corpo e de perturbações da alma. * A imediata desaparição de uma grande dor é o que produz insuperável alegria: esta é a essência do bem, se o entendemos direito, e depois nos mantemos firmes e não giramos em vão falando do bem. E como o prazer é o primeiro e inato bem, é igualmente por este motivo que não escolhemos qualquer prazer; antes, pomos de lado muitos prazeres quando, como resultado deles, sofremos maiores pesares; e igualmente preferimos muitas dores aos prazeres quando, depois de longamente havermos suportado as dores, gozamos de prazeres maiores. Por conseguinte, cada um dos prazeres possui por natureza um bem próprio, mas não deve escolher-se cada um deles; do mesmo modo, cada dor é um mal, mas nem sempre se deve evitá-las. Convém, então, valorizar todas as coisas de acordo com a medida e o critério dos benefícios e dos prejuízos, pois que, segundo as ocasiões, o bem nos produz o mal e, em troca, o mal, o bem. * Formula a seguinte interrogação a respeito de cada desejo: que me sucederá se se cumpre o que quer o meu desejo? Que me acontecerá se não se cumpre? * * Não são os convites e as festas contínuas, nem a posse de meninos ou de mulheres, nem de peixes, nem de todas as outras coisas que pode oferecer uma suntuosa mesa, que tornam agradável a vida, mas sim o sóbrio raciocínio que procura as causas de toda a escolha e de toda a repulsa e põe de lado as opiniões que motivam que a maior perturbação se apodere dos espíritos. De todas estas coisas, o princípio e o maior bem é a prudência, da qual nascem todas as outras virtudes; ela nos ensina que não é possível viver agradavelmente sem sabedoria, beleza e justiça, nem possuir sabedoria, beleza e justiça sem doçura. As virtudes encontram-se por sua natureza ligadas à vida feliz, e a vida feliz é inseparável delas. * A justiça não tem existência por si própria, mas sempre se encontra nas relações recíprocas, em qualquer tempo e lugar em que exista um pacto de não produzir nem sofrer dano. Entre os animais que não puderam fazer pactos para não provocar nem sofrer danos, não existe justo nem injusto; e o mesmo sucede entre povos que não puderam ou não quiseram concluir pactos para não prejudicar nem ser prejudicados. * Das normas prescritas como justas, o que é considerado útil nas necessidades da convivência recíproca tem o caráter do justo, embora no fim não seja igual para todos os casos. Se, pelo contrário, se estabelece uma lei que depois não se revela conforme a utilidade da convivência recíproca, então já não conserva o caráter do justo. * O sábio não participará da vida pública se não sobrevier causa para tal. Vive ignorado. Da segurança, obtida até certo limite pelos homens, deriva, cheia de força e de puríssima facilidade de vida, a segurança da existência tranqüila e afastada da turba. * Não realizes na tua vida nada que, se for conhecido por teu próximo, te possa acarretar temor. * A serenidade espiritual é o fruto máximo da justiça. * O justo é sumamente sereno, o injusto cheio da maior perturbação. Realizará o sábio coisas que a lei proíbe, sabendo que permanecerão ocultas? Não é fácil encontrar uma resposta absoluta. O homem que tenha alcançado o fim da espécie humana será honesto mesmo que ninguém se encontre presente. . * As leis existem para os sábios, não para impedir que cometam, mas para impedir que recebam injustiça. * De todas as coisas que nos oferece a sabedoria para a felicidade de toda a vida, a maior é a aquisição da amizade. * Toda amizade é desejável por si própria, mas inicia-se pela necessidade do que é útil. * Não temos tanta necessidade da ajuda dos amigos como de confiança na sua ajuda. * Não é amigo quem sempre busca a utilidade, nem quem jamais a relaciona com a amizade, porque um trafica para conseguir a recompensa pelo benefício e o outro destrói a confiada esperança para o futuro.. * No que se refere à amizade, não há que apreciar nem os que estão sempre dispostos nem os que recuam, pois que por ela se devem afrontar os perigos. * A natureza, única para todos os seres, não fez os homens nobres ou ignóbeis, mas sim as suas ações e as disposições de espírito. * Devemos escolher um homem bom e tê-lo sempre diante dos olhos, para vivermos como se ele nos observasse e para fazermos tudo como se ele nos visse. Não é ao jovem que se deve considerar feliz e invejável, mas ao ancião que viveu uma bela vida. O jovem na flor da juventude é instável e é arrastado em todas as direções pela fortuna; pelo contrário, o velho ancorou na velhice como em um porto seguro e os bens que antes esperou cheio de ansiedade e de dúvida os possui agora cingidos com firme e agradecida lembrança. * Recorda-te de que, ainda que sejas de natureza mortal e com um limite finito de vida, te debruçaste, mediante a investigação da natureza, no que é infinito e eterno, e contemplaste o que é agora, será e sempre foi no tempo transcorrido. * O sábio que se pôs à prova nas necessidades da vida, melhor sabe dar generosamente que receber: tão grande é o tesouro de íntima segurança e independência dos desejos que em si possui. * Ele prefere a sabedoria desafortunada à insensatez com fortuna, ainda que pense que o melhor de tudo é que nas ações o juízo sábio seja acompanhado da fortuna próspera. fracas, devia excitar o desprezo e o desgosto no espírito de todo homem inteligente. Depois da ruína da sua independência, as almas fatigadas dos gregos abraçaram com alegria a resignação calma e a vida contemplativa que recomendava a filosofia de Epicuro. Os deuses, cuja intervenção se tinha feito sentir tão pouco, não eram realmente destronados por esta doutrina: eram postos de parte. A criação não era sua obra; o Céu, a Terra, as plantas, os animais, o próprio homem, tudo saiu do jogo eterno dos móveis átomos; tudo o que aparece, tudo o que sucede cada dia, tanto na natureza como na vida dos indivíduos e dos povos, é a conseqüência das combinações incessantes e imperceptíveis de parcelas infinitamente pequenas que se encontram no espaço. Quanto aos deuses, cabe-lhes a humilde parte da felicidade contemplativa e, segundo o seu exemplo, não há para os mortais felicidade maior do que a pacífica satisfação do homem livre, que de si próprio goza, e que se entrega a uma serena contemplação, precavido contra os desvarios da imaginação e da paixão. Lucrécio estava bem longe de conceber o prazer no seu aspecto carnal, como o faziam certos contemporâneos de espírito menos nobre que o seu, e entre outros Pisão, o adversário de Cícero. A sua idéia era profunda e grandiosa. Ligou-se com fé robusta a uma doutrina que afinal só oferecia à miséria humana a consolação de pregar que nenhuma potência oculta nem malévola exerce a sua influência sobre a nossa vida e que a morte põe fim a tudo. Acreditou fazer obra de redentor negando a existência de um reino desolado das sombras e abalando os fundamentos da temerosa crença que ameaçava o defunto com todos os terrores de uma noite eterna acompanhada de impiedosas torturas. Sem dúvida já se tinha começado, no mundo culto, a fazer luz sobre este ponto; mas a vitória só foi firmemente assegurada à razão pela prova científica do absurdo destas histórias de velha ama. Quantos não havia que hesitavam entre o temor e a dúvida, e que no infortúnio ou nas angústias da hora derradeira se deixavam cair de novo nas superstições da infância e do vulgo! A estes fantasmas, a que escapou para sempre, Lucrécio os segue com um olhar cheio de ódio, como a perseguidores de que se livrou, e combate pela sua fé com a paixão de um neófito. As doutrinas de seu mestre, "honra da raça grega", parecem-lhe mais certas que os oráculos da Pítia. Segue-lhe os passos com entusiasmo respeitoso; vê nele o filósofo que descobriu o segredo da criação; graças às suas revelações desvanecem- se os terrores do espírito, entreabrem-se as muralhas do mundo, aparece à luz a serena moradia dos deuses e nada mais vem perturbar a paz da alma. Seguindo-o e esforçando-se por o imitar, quer por seu turno empreender e elevar o facho da verdade para livrar os seus romanos do temor dos deuses, dessa gravis religio, dessa pesada religião, que os oprime e que pesa sobre eles com muito mais força do que outrora sobre os gregos. Quer tornar a levá-los até a natureza, de que eles se afastaram; quer livrá-los dos seus piores inimigos, o temor e a inveja, e acima de tudo do terror da morte. Mas não encontra a paz da alma (pietas) nem na prece nem nos sacrifícios. Não há piedade alguma em se mostrar freqüentemente de cabeça velada, em se voltar para uma pedra, em se aproximar de todos os altares, em ficar prostrado no chão, em estender as mãos diante dos santuários dos deuses, em derramar sobre os altares o sangue de numerosas vítimas, em acumular votos sobre votos; é preciso, pelo contrário, olhar tudo com absoluta calma (V, 1196 e segs.). O bem-estar físico e a tranqüilidade da alma. eis o que reclama a natureza humana, e o destino mais agradável é habitar o templo da ciência e contemplar dessas alturas os desvarios da vida. Lucrécio dedicou o seu poema a Mêmio, um jovem nobre que se consagrava aos assuntos públicos. Era o futuro pretor da Bitínia, que iremos conhecer no círculo de Catulo? Não há possibilidade de afirmá-lo. Lucrécio trata-o como a um discípulo que se procura ganhar para a filosofia epicurista; mas a amizade que os unia não parece ter sido muito íntima, porque, se excetuarmos a introdução solene do poema, os passos em que o interpela, algumas vezes pelo nome, não são destinados senão a reanimar a atenção do leitor. Para o poeta a influência a exercer sobre a nação é muito mais importante, o que se compreende sem dificuldade. No princípio, é certo, permite-se, para agradar ao seu amigo, uma licença poética pela qual parece confessar ingenuamente que nele o poeta ainda não desapareceu por detrás do filósofo: Lucrécio, que pretende curar os seus leitores da crença no poderio dos deuses, na ação destes sobre o mundo e os homens, celebra numa esplêndida invocação à benéfica Vênus, protetora da gens Memmia, a deusa cuja cabeça se encontra cunhada nas moedas desta família. Louva-a como mãe dos romanos, filhos de Enéias, como prazer dos homens e dos deuses; é ela quem povoa o mar e as terras que produzem as searas; é por ela que foi criado tudo o que vive. Num quadro impressionante, descreve os ventos e as nuvens que fogem à sua aproximação, a terra variegada que se cobre de flores, o mar e o céu que se riem, as aves que saúdam a primavera, os animais que saltam alegres pelos pastos, todo o mundo, enfim, penetrado pelo seu poder, É Vênus que deve ajudar o poeta na sua obra, porque sem ela não poderiam nascer nem as alegrias nem as graças; a ela também compete exercer a sua força experimentada sobre Marte, que muitas vezes lhe repousa nos braços, dar a paz aos romanos nesses tempos funestos, a fim de que o poeta possa trabalhar na sua obra e que o seu amigo tenha tempo livre para escutá-lo. E, numa só pessoa, a natureza criadora e a mãe do seu povo bem-amado, a quem o poeta, levado pelo entusiasmo do assunto e pelos seus cuidados de patriota, apresenta do fundo do coração a sua homenagem, sem que a razão reclame. Como Lucrécio não tem por objetivo expor todo o sistema de Epicuro de uma forma rigorosa e científica, mas sim dar paz aos espíritos pregando-lhes a sua doutrina, escolheu, "como a abelha nas clareiras floridas" (III, 11), na vasta obra sobre a natureza, as "palavras de ouro", e deu-lhes uma ordenação apropriada ao seu fim. Em especial da física, cujas proposições basilares repousam sobre a profunda doutrina atomística de Demócrito, decorrem para ele importantes conclusões práticas a respeito da indiferença dos deuses e da imortalidade da alma. percebem são infalíveis e todas as suas percepções são seguras, embora não seja fácil em todos os casos explicá-las racionalmente. Depois de sucessivamente haver passado em revista as percepções dos sentidos da vista, do ouvido, do gosto, do cheiro, o poeta explica os simulacros do pensamento, que são os mais finos de todos. Movendo-se na presença da alma, produzem a vontade; dançam à volta da alma no sonho (vem o sono quando a alma fatigada se retira sobre si própria). O quinto livro tem por objeto as leis da criação. O mundo está destinado a perecer assim como tudo o que é feito de partes e membros perecíveis. A natureza não é mais do que uma perpétua agitação, um nascer e um morrer perpétuos. É por uma coincidência fortuita dos átomos que a criação apresenta a sua forma atual. O autor descreve como a Terra, o éter, o mar, o Sol, a Lua e as estrelas saíram do movimento dos átomos; explica a mudança das estações e demonstra que tudo na natureza acontece na sua época fixa, segundo uma lei constante. Mas a Terra já fez muitos ensaios infrutíferos, e muitos dos seus esboços não alcançaram nenhum resultado antes de ter chegado ao seu estado atual. Coloca-se aqui a história da civilização, de que o poeta trata de leve e os problemas de maior importância. O abrandamento e em seguida a efeminação dos costumes são o resultado da vida doméstica e familiar. A natureza e a necessidade fizeram nascer, inventaram as línguas. Chegou-se à crença nos deuses (e quanto mal não fez ela ao mundo!) pela imaginação e pelos sonhos, e depois ao considerar-se a constância das leis da natureza; com efeito, não se poderia negar que nos sentimos levados a acreditar num poder divino quando se contempla o céu estrelado, ou quando se é testemunha de tempestades ou de tremores de terra. O trabalho dos metais (o poeta distingue as idades da pedra, do bronze e do ferro), as armas e a guerra, a fiação e a tecelagem, as sementeiras e as plantas, tudo o que desenvolve e embeleza a vida, tudo foi a pouco e pouco ensinado aos homens pela experiência e pela necessidade. Finalmente, no sexto livro, Lucrécio, sem plano bem claro, explica diversos fenômenos naturais: o relâmpago e o trovão, a formação das nuvens, a chuva e a neve, os tremores de terra, as erupções do Etna, as cheias do Nilo, as emanações do lago Averno, as propriedades de certas fontes, a força do ímã, enfim a origem das epidemias, como por exemplo a peste de Atenas. O poema termina, sem verdadeira conclusão, pela descrição completa deste flagelo, segundo os dados de Tucídides. Era a primeira vez que um romano empreendia explicar cientificamente fenômenos físicos, sem se afastar realmente um só instante de um mestre grego: esta obra de imitação e de adaptação de idéias estrangeiras não deixa de ser, no entanto, um enorme trabalho intelectual. Não se trata de apreciar aqui, mesmo de passagem, o valor da doutrina filosófica exposta por Lucrécio. Embora o conjunto não possa apresentar mais do que um interesse histórico, há nos pormenores muitas idéias e observações justas a respeito dos fenômenos naturais. O poema, tal como existe, não pode ser considerado uma perfeita obra-prima. Mas sabemos que o poeta morreu antes de o ter completado, que a sua obra, que ficou assim no estado de esboço, não foi preparada senão depois da morte do autor, por Marco ou Quinto Cícero, e vemos claramente que foi publicada sem grandes cuidados, depois de uma revisão muito rápida. Encontram-se com efeito muitos passos em que faltou o trabalho final; notam-se omissões, acréscimos, trechos empregados duas vezes, erros de composição, lacunas no pensamento e negligência nos pormenores da forma; tudo prova que o trabalho, bem adiantado em certos pontos, ainda não tinha, no seu conjunto, chegado à maturidade. A própria introdução, apesar do seu exórdio brilhante, está mal ordenada. Possuímos trechos que estão admiravelmente realizados, mas que se não encontram reunidos num todo. O primeiro livro é relativamente mais perfeito que os outros e sobretudo que o sexto, o que é natural tendo-se em vista as circunstâncias. O que assegura valor imorredouro à obra que Lucrécio deixou em estado tão imperfeito é, além do entusiasmo do autor pela sua nobre empresa e da sua fé ardente, o tom e o estilo elevados em que a sua doutrina de salvação foi concebida e exposta, a elevação dos seus sentimentos, que se mantêm bem acima das paixões e das ambições mesquinhas, o generoso ardor com que se compadece da vida e do destino da humanidade, a imaginação e a emoção com que contempla na natureza os pormenores das menores coisas, por fim, o dom de exprimir como um artista, com força e verdade impressionantes, as suas impressões e as suas idéias. No decurso do seu trabalho teve à vista os poemas filosóficos de um Xenófanes, de um Parmênides, de um Empédocles; e não lhes eram desconhecidos os recursos artísticos por meio dos quais os alexandrinos tinham dado à poesia didática um novo atrativo e um novo impulso. Este gênero, hoje tão pouco apreciado, gozava na Antigüidade de um prestígio por assim dizer religioso. Apresentar-se como educador da nação, expor como uma revelação as idéias mais altas do espírito humano sobre a vida e o destino, era a mais santa das missões; o tom profético e sublime do poeta parecia necessário para dar uma forma verdadeiramente digna e eficaz às obras deste gênero, e isto mesmo no tempo em que a prosa já sabia servir-se da expressão científica. A exemplo de Ênio, que fora o primeiro a, inspirado pelas musas e rivalizando com os gregos, eternizar os altos feitos do povo romano, sentiu-se Lucrécio transportado pelo pensamento de ser o primeiro a explicar aos romanos os segredos da criação. Animado pela esperança de imortal renome, percorre, no domínio das Piérides, uma região que nenhum pé havia pisado antes dele; alegra-se por ir tirar a sua água de uma fonte virgem, por colher flores desconhecidas e por tecer com elas para si próprio uma coroa que nunca teve semelhante na fronte de um mortal (I, 922 e segs.). Salta aos olhos que, para expor com clareza e graça um assunto tão difícil, era necessária uma arte sem igual. Tinha o poeta consciência das dificuldades que o seu tema apresentava. É por isso que ele emprega todos os meios não só para se fazer ouvir mas também para agradar. Assim como se unta de mel o bordo da taça em que se lançou uma bebida amarga mas salutar, para fazê-la tomar às crianças, mundo". Na pintura das paixões e da loucura humanas, Lucrécio chega muitas vezes ao tom da sátira, mas dele se afasta pela elevação das suas observações penetrantes e profundas, assim como pela generosidade serena que nele denota a simpatia dum conselheiro sincero mais do que a ironia e a exaltação do moralista. Assim, Lucrécio fala da avareza e da ambição como dum fenômeno que se produziu na sua altura na marcha regular da civilização. "Antes que fosse encontrado o ouro eram tudo a beleza e a força. Mas depois os homens mais fortes e mais belos prestam homenagem ao rico; para quem governa a sua vida segundo a verdadeira razão, é um tesouro para o homem o resignar-se a viver com pouco, porque deste pouco raríssimas vezes se tem falta. Mas quer-se ser ilustre e poderoso, para estabelecer a sua fortuna sobre fundamentos duradouros e passar na opulência uma vida sem cuidados: esperança vã! As lutas dos homens para atingir o cume das honras tornaram perigosa a estrada. A inveja, atingindo-os como um raio, precipita-os por vezes miseravelmente no Tártaro. É por isso que mais vale obedecer e viver em paz que querer possuir e comandar reinos. Deixa-os, portanto, perder o seu trabalho e seus suores de sangue lutando na estreita vereda da ambição, visto que não sentem senão pelo gosto de outrem e mais regram os seus apetites pelas opiniões do mundo do que por seus próprios sentidos. Isto é assim e sempre o será, como sempre o foi; a inveja, semelhante ao raio, consome os cimos e tudo aquilo que ultrapassa o nível comum." (V, 1111 e segs.) O talento poético do autor mostra-se na sua luz mais graciosa quando, para animar o seu assunto ou lhe dar relevo, vai buscar à vida e à natureza os exemplos que ora esboça em algumas pinceladas, ora pinta em descrições completas. Dá provas, neste caso, de profundo sentimento da natureza, que observa com amor até nas menores coisas. Quer mostrar que na multidão infinita das criaturas cada ser tem, no entanto, a sua estatura e a sua forma individuais: "Como poderia de outro modo reconhecer a mãe seu filho e o filho sua mãe? Muitas vezes um vitelo cai morrendo diante do altar sob a faca do sacrificador, enquanto a mãe a que roubaram o filho percorre o verde campo, examinando no solo o sinal dos pés forcados; lança os seus olhares para todos os lados na esperança de avistar o filho que perdeu, faz ressoar o bosque com as suas queixas incessantes e freqüentemente retorna ao estábulo, atormentada pelo desejo de o rever. Nem as ervas saborosas, nem a água da corrente, nem os outros vitelos que pastam pelo prado, podem alegrá-la ou distraí-la" (II, 349 e segs.). Com que finura não soube o poeta pintar dois quadros diferentes, um campestre e o outro militar, para mostrar ao leitor que massas em movimento, vistas de longe, aparecem como pontos imóveis? Sobre a colina, são os carneiros que pastam e procuram de longe a longe as ervas brilhantes de orvalho, são os jogos foliões dos cordeiros saciados; do outro lado, as fortes legiões manobram em pleno campo com suas armas, resplandecentes; o solo ressoa sob os seus passos; as montanhas repercutem as sonoras vozes de comando, os cavaleiros volteiam em roda e de repente atravessam os campos a todo galope (II, 317 e segs.). As emanações da cor são demonstradas pelo reflexo dos véus de púrpura que no teatro flutuam entre os mastros a que estão presos. A cena e as bancadas ficam inundadas por sua luz ridente (IV, 73 e segs.). Lucrécio pinta com predileção os fatos que todos podem ver todos os dias e experimentar por si próprios: a dança e os combates das partículas de poeira num raio de sol (II, 114 e segs.); o esplendor do sol nascente e o claro canto dos pássaros (II, 144 e segs.); a borda do mar colorida pelas conchas variegadas (II, 374 e segs.); a ilusão dos navegadores que julgam que as colinas e as árvores fogem diante deles, o erro das crianças que, depois de terem andado à roda, pensam que os tetos ameaçam cair e que as colunas, como as paredes, giram à sua volta (IV, 385 e segs.); as formas fantásticas das nuvens (IV, 134 e segs.); o efeito do vinho (III, 474 e segs.) — em resumo, uma abundância inesgotável de imagens encantadoras dá sua graça à vasta construção da obra. Querem-se pinturas mais graciosas e acentos mais sonoros? Eis os timbales e os címbalos, eis o tilintar das armas dos curetas, que ressoam no cortejo da deusa frígia, mãe dos deuses, quando o ídolo, colocado num carro puxado por leões, rodeado de servidores fanáticos, vai de cidade a cidade, saudado pelas oferendas e pelas rosas da multidão devota. O poeta livre-pensador pinta ironicamente, com brilhantes cores, estes delírios, para explicação de cujas origens recorre às alegorias dos poetas gregos (II, 600 e segs.). Das fábulas dos gregos, naturalmente, nada aceita; por isso, delas só fala de longe a longe e para as rejeitar, como ao mito de Faetonte (V, 397 e segs.). Mas o coração se lhe abre quando narra as modestas origens do canto pastoril nos tempos primitivos e inocentes, quando pinta, as alegres reuniões de camponeses em que nasceram o canto e a dança, a ironia e a conversação (V, 1377 e segs.). Depois, quando se considera a marcha do mundo, o desenvolvimento da humanidade, a decadência dos costumes, então domina a nota melancólica, comum a tantos poetas e pensadores da Antigüidade. O mundo, segundo Lucrécio, já envelhece, e torna-se menor. A terra está esgotada, já não produz senão criaturas raquíticas, e os campos exigem dos animais e dos homens um trabalho forçado. O velho lavrador, sacudindo a cabeça, queixa-se de que foi inútil a obra de seus braços; compara o presente com o passado e exalta a felicidade dos antepassados (II, 1150 e segs.). A fecundidade luxuriante da natureza, excitada pela chuva que o Éter (pater Aether) derrama no seio da Terra, nossa mãe comum, é admiravelmente pintada: "Elevam-se do solo as brilhantes searas, os ramos verdejam nas árvores e por si próprios crescem e dão frutos; é de lá que tira seu alimento a raça humana, é de lá que as cidades florescentes se adornam de uma seara de crianças e que por toda parte as florestas cheias de folhagem ressoam ao canto de novos pássaros; os rebanhos saciados repousam nos abundantes pastos, o alvo liquido do leite corre das tetas cheias, e os filhotes recém-nascidos, embriagados com esta bebida generosa, saltam pela tenra erva, com as pernas ainda fracas. Assim, nada se perde na natureza, mas uma coisa engendra a outra e da morte de um sai a vida de outro" (I, 250 e segs.). O primeiro vagido da criança que vem à luz mistura-se às lamentações da agonia; e jamais noite sucedeu ao dia, jamais aurora seguiu-se à noite, sem que tenham ouvido vagidos queixosos, misturados às lamentações, companheiras da morte e dos negros funerais (II, 569 e segs.). bastantes pormenores. Os grandes poetas gregos não devem ter ficado estranhos a um homem da cultura de Lucrécio; abstém-se, todavia, de nomear isoladamente a uns ou outros e desdenha enfeitar-se com as brilhantes palhetas de seus tesouros. Dos próprios romanos apenas cita seu digno precursor Ênio, cujos Anais lhe ofereciam um modelo clássico para a língua poética em geral e, para as expressões particulares, um vocabulário rico e substancial. A grandiosa empresa de Lucrécio exigia um estilo de solene dignidade, que trazia consigo o emprego de palavras e de formas arcaicas, tanto mais que o verso adquiria com isso uma sonoridade mais majestosa. Mas para dominar assunto tão difícil, com uma língua que de modo algum estava adaptada a este novo gênero, era preciso uma força criadora de espécie rara, e o poeta bem sabia as dificuldades enormes que tinha de vencer (I, 136 e segs.). Só a tradução dos termos técnicos gregos já era tarefa difícil e por vezes impossível. Raramente aconteceu ao poeta desanimar nesta parte do seu trabalho; de resto, não teme as palavras gregas, que são de uso geral e que todos compreendem; pelo contrário, prefere-as bastantes vezes por causa do seu colorido especial. Em suma, é necessário sempre levar a crédito de Lucrécio o esforço que lhe impuseram os defeitos constatados e assinalados por ele na língua nacional (I, 139; III, 260), isto é, a pobreza e a falta de maleabilidade. Ainda que na parte abstrata da sua exposição, onde nada mais faz do que traduzir penosamente idéias estrangeiras, seja algumas vezes seco e duro, e se deixe mesmo arrastar à prolixidade e à monotonia, sabe contudo temperar a aridez das idéias, quando tal é possível, com um dito brilhante, expressivo ou emocionado. Mas, quando encontra oportunidade de fazer falar o seu próprio gênio, a língua eleva-se com a inspiração até a magnificência e corre como um largo rio. Até por vezes a plenitude se torna exuberância, mas não é sem que o poeta o saiba nem contra o seu desejo. Com os sentidos e o espírito mergulhados nas vivas fontes da natureza, quer ele, mesmo na expressão, não lhe ficar inferior. Não gosta de deixar um substantivo sem epíteto pitoresco ou de ornato, emprega de bom grado a figura chamada etimológica, junta sinônimos, repete os verbos e proposições inteiras, em resumo, faz todo o possível para realçar a idéia e colocá-la em pleno relevo. As figuras de som, como por exemplo a aliteração e outras, que ele preza porque estão mais de acordo com o caráter da obra, sustentam as amplificações para que são feitas. São enormes os progressos do estilo e da versificação, se o comparamos com Ênio; no entanto, o verso de Lucrécio não conhece ainda as delicadezas de uma arte perfeita. Apesar da rudeza e da monotonia, é harmonioso e másculo. A importância do poema, sob o ponto de vista do estilo, é provada pela funda influência que exerceu sobre a língua poética dos sucessores de Lucrécio. Virgílio, sobretudo, dá-lhe testemunho de uma veneração discreta, mas cheia de amor; estuda-o constantemente e faz-lhe a honra de o imitar como a seu mestre. Esta homenagem prova e caracteriza muito mais o mérito do precursor do que o magro elogio de Quintiliano sobre a elegância de seu estilo, ou do que a ênfase de Ovídio tocando a trombeta para predizer aos versos do sublime poeta uma glória tão duradoura quanto o mundo. O entusiasmo pelo estudo científico da natureza, a paixão de compreender o Universo, eis aí os sentimentos que Lucrécio' imprimiu aos poetas de grande envergadura que vieram depois; e foi graças a ele que tomaram como seu ideal atingir os cimos mais altos desta ciência. DA NATUREZA LIVRO I Ó mãe dos Enéadas, 11F1 prazer dos homens e dos deuses, ó Vênus criadora, que por sob os astros errantes povoas o navegado mar e as terras férteis em searas, por teu intermédio se concebe todo o gênero de seres vivos e, nascendo, contempla a luz do sol: por isso de ti fogem os ventos, ó deusa; de ti, mal tu chegas, se afastam as nuvens do céu; e a ti oferece a terra diligente as suaves flores, para ti sorriem os plainos do mar e o céu em paz resplandece inundado de luz. Apenas reaparece o aspecto primaveril dos dias e o sopro criador do Favônio, já livre, ganha forças, primeiro te celebram e à tua vinda, ó deusa, as aves do ar, pela tua força abaladas no mais íntimo do peito; depois, os animais bravios e os rebanhos saltam pelos ledos pastos e atravessam a nado as rápidas correntes: todos, possessos do teu encanto e desejo, te seguem, aonde tu os queiras levar. Finalmente, pelos mares e pelos montes e pelos rios impetuosos, e pelos frondosos lares das aves, e pelos campos virentes, a todos incutindo no peito o brando amor, tu consegues que desejem propagar-se no tempo, por meio da geração. Visto que sozinha vais governando a natureza e que, sem ti, nada surge nas divinas margens da luz e nada se faz de amável e alegre, eu te procuro, ó deusa, para que me ajudes a escrever o poema que, sobre a natureza das coisas, tento compor para o nosso Mêmio, a quem tu, ó deusa, sempre quiseste conceder todas as qualidades, para que excedesse aos outros. Dá pois a meus versos, ó Vênus divina, teu perpétuo encanto. Faze, entretanto, que, por mares e por terras, tranqüilos se aplaquem os feros trabalhos militares; só tu podes obter para os mortais a branda paz, visto que é 1 Apesar da opinião de Lucrécio acerca dos deuses, a invocação a Vênus explica-se facilmente pelo fato de a deusa aparecer como uma das divindades protetoras da família dos Mêmios. A muitos leitores deve ela ter surgido como uma contradição cora as idéias do poeta sobre os deuses; e é possivelmente a esse motivo que se pode atribuir o aparecimento nos manuscritos, depois da invocação, da parte do Livro II em que Lucrécio atribui a causas naturais tudo o que acontece no mundo. Como sugere Ernout, quis-se tornar bem patente a contradição entre os dois passos. No entanto, talvez essa contradição não exista na realidade: Vênus pode ser, como Baco ou Netuno, ou Ceres, que no Livro II são apontados por Lucrécio, o "nome poético" de uma força natural. De qualquer modo, a abertura do poema é um dos trechos que mais depõem a favor da sensibilidade e da eloqüência de Lucrécio e como tal tem sido considerado por todos os críticos. ganhariam valor e resistiriam à religião e à ameaça dos vates; mas não há, agora, nenhuma razão nem possibilidade alguma de se resistir, visto que são penas eternas as que se têm de temer depois da morte. Não se sabe, com efeito, qual seja a natureza da alma: se nasce conosco ou, pelo contrário, se se introduz nos corpos; se perece ao mesmo tempo que eles, desfeita pela morte, ou vê as trevas de Orco e os vastos abismos; se, por vontade divina, se introduz em outros seres vivos, como disse o nosso Ênio, que foi o primeiro a trazer do ameno Hélicon uma coroa de perene folhagem, cuja glória se espalharia entre as gentes de Itália. No entanto, Ênio também claramente expõe, em versos eternos," que há lugares certos do Aqueronte onde ficam, não as nossas almas e os nossos corpos, mas umas como sombras de estranha palidez; e diz que de lá lhe falou da natureza das coisas, depois de haver derramado lágrimas amargas, o sempre glorioso Homero. E é por tudo isto que devemos não só tratar dos fenômenos celestes, saber por que motivo se dão os movimentos do Sol e da Lua, e que força produz os fenômenos da Terra, mas ver sobretudo, com sagaz inteligência, donde provém a alma e qual é a sua natureza e quais são essas coisas que, vindo ao encontro da gente acordada, mas abalada pela doença ou mergulhada no sono, aterrorizam os espíritos, dando-nos a ilusão de que estão diante de nós, e os podemos ouvir, aqueles cujos ossos tocados pela morte se encontram recobertos de terra. E também não ignoro que é bem difícil explicar em versos latinos16F6 as obscuras descobertas dos gregos, sobretudo porque se faz mister empregar palavras novas, dada a pobreza da língua e a novidade do assunto. Mas o teu valor e o prazer que espero tirar da tua doce amizade levam-me a suportar qualquer trabalho e induzem-me a passar em claro as noites tranqüilas, procurando em que termos e em que verso poderei levar ao teu espírito claras luzes com que possas penetrar profundamente os fatos e fenômenos ocultos. 6 A dificuldade de expor em latim as idéias ou doutrinas dos gregos foi várias vezes apontada pelos escritores romanos; efetivamente, não só não possuía a língua latina, por sua natureza, a maleabilidade e a capacidade de expressão do grego, como também lhe faltava a longa tradição filosófica que tinha afeiçoado a língua grega à formulação do abstrato; e as subseqüentes possibilidades do latim, nunca, apesar de tudo, muito vastas, foram devidas aos esforços obstinados de tradutores como Andronico ou Névio ou de quase tradutores como Ênio, Plauto e o próprio Lucrécio. Ora, é preciso que afugentem este temor e estas trevas do espírito, não os raios do Sol nem os dardos lúcidos do dia, mas o espetáculo da natureza e as suas leis. E, para início, tomaremos como base que não há coisa alguma que tenha jamais surgido do nada por qualquer ação divina. De fato, o terror oprime todos os mortais, apenas porque vêem operar-se no céu e na terra muitas coisas de que não podem de nenhum modo perceber as causas, e cuja origem atribuem a um poder dos deuses. Assim, logo que assentemos em que nada se pode criar do nada,17F7 veremos mais claramente o nosso objetivo, e donde podem nascer as coisas e de que modo pode tudo acontecer sem a intervenção dos deuses. Realmente, se fosse possível nascer do nada, tudo poderia nascer de tudo, e coisa alguma teria necessidade de semente. Poderiam surgir homens do mar, romper da terra a família dos peixes escamosos e as aves precipitarem-se do céu; e os rebanhos, os outros animais e toda a espécie de feras ocupariam, dado o acaso da origem, as terras cultivadas e os desertos. Por seu lado, as árvores não teriam sempre os mesmos frutos: mudariam de um tempo a outro e todas elas poderiam produzir todos. Com efeito, não havendo em coisa alguma elementos geradores, como poderia ter cada ser sua mãe determinada? Mas, como todos se formam por sementes certas, só nascem e chegam às margens da luz no lugar em que existam a matéria e os corpos elementares que lhe são próprios; por isso, não pode tudo nascer de tudo: cada ser determinado tem em si possibilidades próprias. Mais ainda: por que motivo veríamos aparecer as rosas pela força da primavera, as searas pela do calor, a vinha pela do outono, se não fosse que, depois de se terem juntado no tempo conveniente os germes determinados, aparece todo o ser criado na altura em que chega o seu tempo e a terra, cheia de vida, traz às margens da luz, com toda a segurança, os seus tenros produtos? 7 O ponto fundamental que Lucrécio afirma neste passo é o de que "nada pode vir do nada", o que exclui automaticamente a idéia de uma criação divina; de fato, os deuses, para criar o mundo, ou teriam de o criar de si próprios, o que daria, se pudéssemos salvar as dificuldades internas da explicação, uma forma de panteísmo, ou teriam de o criar a partir de um nada como que exterior a si mesmos. Lucrécio não fala da dificuldade filosófica, ou pelo menos teológica, que haveria nesta última idéia: um não divino limitaria o divino que, portanto, não seria divino; limita-se a provar que nada pode vir do nada pelos dados da experiência e por uma espécie de redução ao absurdo, mas por uma redução ao absurdo quase com aspectos caricaturais, o que vem de a pôr no plano do concreto, procedimento que estava bem de acordo com as linhas gerais da mentalidade romana. É evidente que, se surgissem do nada, repentinamente apareceriam, em lugar incerto e em estações desencontradas, porque não haveria elemento nenhum que pudesse, por ser desfavorável o tempo, ver-se impedido de união geradora. E também não seria necessário nenhum tempo para se reunirem as sementes e crescerem os seres, se do nada pudessem surgir; de meninos pequenos se fariam de relance homens na força da idade e da terra sairiam as árvores já formadas. Sabe-se, porém, que nada disto acontece: tudo cresce pouco a pouco, como é natural, e de elementos determinados; e tudo o que vai crescendo se mantém na sua espécie. Por aí se pode ver que tudo se desenvolve sobre matéria própria e dela se alimenta. A isto acresce que sem as chuvas regulares não pode a terra produzir os frutos que são fonte de alegria, nem pode a natureza, privada de alimento, propagar as raças de animais e conservar a vida; e é mais fácil admitir que existe um grande número de corpos comuns a muitos seres, como acontece com os elementos das palavras, do que a possibilidade de haver alguma coisa que não tenha princípio. Finalmente, por que razão não poderia a natureza ter feito homens tão grandes que pudessem passar a vau o oceano, separar com as mãos os altos montes e ultrapassar, vivendo, muitos séculos de vida, se não fosse porque há uma quantidade determinada de matéria para tudo o que se gera e dela se compõe tudo o que surge? Tem de se admitir que nada pode nascer do nada, porque toda criatura precisa de algum germe para que depois lhe seja possível elevar-se nas suaves auras do ar. Além de tudo, se vemos os lugares cultivados valerem mais do que os incultos e restituírem às mãos frutos melhores, é porque a terra contém, com toda certeza, os germes das coisas, e somos nós quem, revolvendo com o arado as fecundas glebas e amanhando a terra, os fazemos eclodir. Se eles não existissem, tudo, sem o nosso trabalho, se tornaria, até espontaneamente, muito melhor ainda. Acrescente-se a isto que a natureza faz voltar todos os corpos aos seus elementos, mas nada aniquila inteiramente;18F8 se alguma coisa estivesse sujeita a 8 É evidente que, se nada pode vir do nada, alguma coisa tem sempre de existir para que outra apareça: nada, portanto, pode voltar inteiramente ao nada; tudo o que desaparece se transforma noutro ser. É também assim que devem ir os ventos assoprando: mal, como um rio violento, se abatem sobre qualquer lugar, levam tudo à sua frente, tudo arruínam com seus crebros ataques; ou então arrebatam as coisas, voltejando, e levam-nas em giros de turbilhão. Não há, pois, dúvida alguma de que são os ventos corpos invisíveis, visto que se descobre serem êmulos, pelas características e pelos feitos, dos grandes rios que têm corpo visível. Depois, sabemos dos vários odores dos seres e, no entanto, não os vemos chegar-nos ao nariz; e não contemplamos os ardentes calores, nem conseguimos, com os olhos, dar pelo frio, nem costumamos enxergar as vozes; todavia, é evidente que tudo isto é de natureza material, porque pode impressionar os sentidos: nada pode tocar e ser tocado se não é corpo material. Por fim, as roupas penduradas à beira da costa onde se quebram as vagas enchem-se de umidade e secam, se as expomos ao sol; contudo, não se vê de que modo se deposita a água, nem, por outro lado, como desaparece com o calor: é que o líquido se divide em pequenas partículas que os olhos de nenhum modo podem ver. Da mesma sorte, depois de muitas revoluções do Sol, gasta-se por debaixo, pelo uso, o anel que se traz no dedo, escava a pedra a queda de uma gota de água, a recurvada relha do arado, apesar de ser de ferro, diminui nos regos, e todos vemos como as lajes de pedra das estradas se adelgaçam sob os pés da multidão; ao pé das portas, as estátuas de bronze mostram a mão direita gasta pelo toque dos transeuntes que as saúdam. Vemos, portanto, que estes objetos diminuem à força do uso; mas a vivida natureza impede-nos de ver de que maneira e em que tempo desaparecem os corpos. Finalmente, nenhum olhar, por mais agudo e atento, pode perceber o que vão a pouco e pouco juntando a cada ser a natureza e os dias, nem se pode distinguir o que perdem a cada instante as coisas que envelhecem pelo tempo ou de fraqueza, ou as rochas que, mergulhadas no oceano, são roídas pelo úmido sal. No entanto, nem todas as coisas são, por sua natureza, completamente cheias de matéria; o vazio existe.20F10 Ser-te-á de grande utilidade sabê-lo; evitará que erres, duvidando, e andes sempre à busca das essências supremas e não confies nas minhas palavras. Há, pois, um espaço intato, vazio, desocupado. Se o não houvesse, de nenhum modo os corpos se poderiam mover, porque a propriedade fundamental dos corpos, que é a de se opor e resistir, estaria em toda parte e sempre; nada poderia, por conseqüência, mover-se para a frente, porque nenhuma coisa tomaria a iniciativa de se deslocar. Mas agora, pelos mares e pelas terras, e pelo alto do céu, vemos, com os nossos próprios olhos, deslocarem-se, de muitas maneiras e com várias leis, corpos que, a não haver espaço vazio, não somente careceriam deste inquieto movimento, como também não poderiam de modo algum ter aparecido, porque, por toda parte, se teria mantido em repouso a matéria concentrada. Além de tudo, embora os corpos pareçam sólidos, pode ver-se, pelo que vou dizer, que há espaços vazios na substância. Mana o fluido líquido das águas pelas pedras das cavernas, e tudo aí chora gotas abundantes. Dispersa-se o alimento por todo o corpo dos animais. Crescem as árvores e dão seu fruto na estação própria, porque o alimento se difunde por todas elas, desde o mais profundo das raízes, através dos troncos e de todos os ramos. Passam as vozes pelas paredes e voam através das portas das casas, corre até os ossos o frio que enregela. Ora, se os corpos não tivessem vazios, absolutamente impossível seria explicar de que maneira tudo isto poderia atravessá-los. Enfim, por que razão vemos algumas coisas pesarem mais do que as outras, sendo das mesmas dimensões? Se houvesse tanta matéria num floco de lã como num pedaço de chumbo, é evidente que deveria pesar o mesmo, visto que é próprio da matéria exercer uma pressão de cima para baixo, ao passo que, por sua própria natureza, o vazio não tem peso. Portanto, aquilo que tem o mesmo 10 Se tudo o que existe como corpo é material e se há movimento desses corpos materiais, tem de haver um espaço vago onde esse movimento se exerça; a existência de espaço vazio ou de vácuo é demonstrada, portanto, segundo Lucrécio, pela existência de movimento. Não lhe ocorreu sequer admitir, como o fez Zenão de Eléia, a impossibilidade do movimento material; de resto, se o admitisse, não poderia mais defender a sua hipótese de um mundo formado de átomos materiais. A ingenuidade filosófica de Lucrécio, como a de todos os materialistas do seu tipo, tem de se contentar com os dados dos sentidos, sob pena de que lhe rua todo o edifício ideológico. tamanho e é mais leve mostra, sem dúvida alguma, que tem mais espaço vazio; e o que é mais pesado indica ter mais quantidade de matéria e menos vazio dentro de si. É, assim, verdadeiro o que buscávamos com sagaz razão: existe, misturado aos corpos, aquilo a que chamamos vazio. E agora vejo-me obrigado a prevenir o que alguns pensam quanto a este assuntos para que não possas desviar-te da verdade. Dizem eles que, se as ondas cedem perante os esforços dos peixes escamosos e lhes abrem líquidos caminhos, é porque os peixes deixam atrás de si espaços aonde podem confluir as águas que se desviaram. Assim também se podem mover as outras coisas, umas por entre as outras, e mudar de lugar, embora tudo esteja cheio. Mas tudo isto assenta sobre um raciocínio falso. De fato, como poderiam os escamosos peixes avançar se as ondas lhes não dessem espaço? E como poderiam refluir as águas se os peixes não pudessem mexer-se? Por conseguinte, ou têm Se se privar todos os corpos de movimento, ou tem de se admitir que há vazio misturado às coisas e que dele toma cada corpo a possibilidade de se mover. Por fim: se dois corpos planos, depois de se chocarem, se afastam de salto, bruscamente, é . fora de dúvida que o ar ocupará todo o vazio que fica entre os dois corpos. Mas este ar, qualquer que seja a velocidade com que se precipitem as correntes, não poderá encher todo o espaço num só instante: é fatal que primeiro ocupe um certo lugar e se apodere depois de todo o resto. E é um erro imaginar alguém por acaso que se deve à condensação do ar o que sucede quando os corpos se afastam; efetivamente, surge um vazio que nunca houve antes e enche-se o vazio que antes houve; nem o ar pode adensar-se de tal modo, e, mesmo que pudesse, não conseguiria sem vazio, creio eu, concentrar-se sobre si próprio e reunir em um só lugar todas as suas partes. Por isso, e apesar da grande demora causada pelas tuas objeções, terás de confessar que há vazio nas coisas. Posso ainda, pela menção de muitos argumentos, dar mais seguranças às minhas palavras: mas a um espírito sagaz bastam estas ligeiras indicações; por elas poderás com segurança conhecer o resto. Assim como Os corpos são em parte formados pelos elementos e em parte pelo que resulta da reunião destes elementos: o que é elemento, nada o pode destruir; tudo venceu pela sua solidez. Entretanto, parece difícil de aceitar que haja nos corpos alguma coisa toda sólida; o fogo do céu atravessa paredes de casas exatamente como os gritos e os sons; o ferro incandesce no lume e despedaçam-se as rochas com a violência do fervente vapor; a dureza do ouro cede, abalada pelo calor; a rigidez do bronze se liquefaz, vencida pela chama; o calor e o frio penetrante se infiltram pela prata, visto que os sentimos a um e outro quando temos na mão uma taça e se deita de cima, segundo o uso, o orvalho das águas; nada no Universo parece sólido nas coisas. Mas, visto que temos de ir seguindo o raciocínio exato e a natureza, deixa que em poucos versos mostremos que há coisas sólidas e eternas, que ensinemos serem os germes os elementos dos corpos; é deles que se compõe tudo o que existe de criado. Em primeiro lugar 22F12 e em virtude de se ter estabelecido que é dupla e diferente a natureza dos dois elementos — a matéria e o espaço em que tudo sucede —, é evidente que cada um deles existe por si próprio e puro. Com efeito, em todo lugar por que se estende o espaço a que chamamos vácuo não há matéria alguma; por outro lado, em todo lugar em que existe matéria não pode haver nenhum vácuo ou vazio. Portanto, os corpos primeiros são matéria sólida e sem vazio. Além disso, visto existir o vácuo em todas as coisas criadas, é fatal que haja em torno matéria sólida, e, pensando bem, não se poderia aceitar que qualquer corpo incluísse e escondesse em sua matéria o vácuo, se não se admitisse que existe qualquer coisa de sólido que o contém. Ora, não há nada que possa conter o vácuo dos corpos a não ser o agregado da matéria; portanto, pode ser eterna a matéria, que se compõe de elementos sólidos, embora todo o resto se desfaça. 12 No que se segue, até a refutação da doutrina de Heráclito, Lucrécio de certo modo não faz mais do que repetir ou ampliar algumas das noções já expostas; parece que a insistência era uma das características da escola epicurista e nem de outro modo se poderia explicar que o mestre tivesse escrito centenas de trabalhos sobre um acervo de idéias tão limitado e simples; mas em Lucrécio a facilidade na repetição deve provir também de uma característica comum aos romanos, a de não saber passar com discrição e ligeireza sobre cada um dos temas que tinham a tratar; dir-se-ia que sentem sempre certa desconfiança perante a capacidade intelectiva e retentiva do auditor ou do leitor. Mas também, se não houvesse coisa alguma a que pudéssemos chamar vácuo, tudo seria sólido; e, ao inverso, se não houvesse quaisquer corpos que enchessem o espaço ocupado, tudo o que há constaria apenas de vácuo, de vazio. É, portanto, evidente que a matéria e o vazio se misturam e se separam alternativamente, pois o mundo não é inteiramente cheio nem inteiramente vazio. Há, conseqüentemente, certos corpos que podem interromper, enchendo-o, o espaço vago, e corpos, como já demonstramos um pouco acima, que não podem ser desfeitos por nenhum choque vindo de fora, nem despedaçar-se por terem sido penetrados por outro corpo, nem cair em ruínas por outro qualquer motivo, porquanto sem vácuo nada pode ser esmagado, nem quebrado, nem cortado e dividido em dois pedaços, nem apanhar umidade, ou o agudo frio ou o penetrante fogo que tudo destroem; e. quanto mais vazio se contém num corpo, tanto mais profundamente o atacam e arruínam estas coisas. Se, por conseqüência, e conforme ensinei, são os elementos compactos sem vazio, é força que sejam eternos; além de tudo, se a matéria não fosse eterna, já há muito tempo haveriam todas as coisas volvido ao nada, e do nada teria renascido tudo o que vemos. Mas, como já antes demonstrei que nada pode ser criado do nada e que nada do que surgiu pode voltar ao nada, devem ser de matéria imperecível os elementos a que tem, no fim de tudo, de voltar a matéria para que possa bastar à renovação das coisas. São, portanto, os elementos, sólidos e simples, nem de outro modo poderiam, conservando-se através das idades, ter renovado tudo desde tempos infinitos. Finalmente, se a natureza não tivesse posto nenhum termo ao despedaçar das coisas, os elementos da matéria estariam de tal maneira gastos pelo rolar do tempo que nada do que é formado por eles poderia, a partir de certa época, chegar ao supremo final da sua existência. De fato, vemos que todo corpo pode ser mais depressa destruído do que refeito: assim, tudo o que a longa e infinita duração dos dias de todo o tempo já decorrido tivesse quebrado, dispersado, aniquilado, jamais poderia ser reconstruído pelo tempo restante. Ora, é evidente que foi marcado um fim certo à destruição das coisas, porque vemos que tudo se refaz e que, simultaneamente, foi, por geração, fixado às coisas certo tempo para que possam atingir a flor da idade. Acresce a isto que, embora os elementos naturais sejam absolutamente compactos, se podem, no entanto, explicar todos os corpos que são brandos, o ar, a água, a terra, os vapores, e de que maneira se fazem todas as coisas, e que força as gera, pois que o vazio está misturado nos corpos. Mas se, pelo contrário, fossem moles os elementos materiais, não se poderia explicar como é possível criarem-se as duras pedras e o ferro; com efeito, toda a natureza careceria dos seus princípios fundamentais. Por conseguinte, os elementos têm a força de sua compacta simplicidade: resistência e dureza. E, se supusermos que não há nenhum termo à destruição dos corpos, é, todavia, necessário que tenham existido por toda a eternidade elementos naturais, que tenham ficado até agora livres de todo o perigo. Se, porém, é frágil a sua natureza, é inaceitável que se tenham mantido eternamente, apesar dos inumeráveis choques sofridos pelos tempos afora. Finalmente, visto haver em cada espécie, para todas as coisas, um limite ao crescimento e à existência, e estar estabelecido por leis naturais o que podem e não podem fazer, e nada se mudar, antes se conservar idêntico, até o ponto de as aves variegadas manterem no corpo, de geração em geração, os sinais da sua espécie, devem, por força, ter em si um imutável elemento de matéria. Se os princípios das coisas pudessem ser vencidos e modificados de qualquer modo, haveria incerteza quanto ao que pode e ao que não pode nascer e quanto às leis que limitam, com exatidão, o poder de cada coisa, e lhe marcam o fim, e não poderiam as gerações ter reproduzido tantas vezes a natureza, os costumes, a vida, os movimentos dos pais. Porém há mais: como existe um termo supremo para os elementos que os nossos sentidos já não podem discernir, é evidente que não constam de partes e que o seu tamanho é mínimo; nunca estiveram nem poderão estar isolados, porquanto cada um é parte e elemento de outros e a eles se vêm juntar, por ordem,