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Guias e Dicas
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relatorio Sabonete, Provas de Antropologia

Comunidade Quilombola

Tipologia: Provas

2015

Compartilhado em 14/04/2015

eduardo-rocha-43
eduardo-rocha-43 🇧🇷

4.8

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Baixe relatorio Sabonete e outras Provas em PDF para Antropologia, somente na Docsity! MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA-INCRA SUPERINTENDÊNCIA REGIONAL NO PIAUÍ – SR(24) DIVISÃO DE ORDENAMENTO DA ESTRUTURA FUNDIÁRIA - SR(24)DOEF MUNICÍPIO: ISAÍAS COELHO EQUIPE TÉCNICA : Eduardo Campos Rocha – Antropólogo/INCRA Paulo Gustavo de Alencar - Engenheiro Agrônomo /INCRA Teresina, (PI), abril de 2008 2 ÍNDICE I. INTRODUÇÃO a) Explicitação dos conceitos essenciais trabalhados no relatório........................................................03 b) Contextualização das condições de trabalho de campo e de elaboração do relatório.......................04 II. DADOS GERAIS a) informações gerais sobre o grupo auto-identificado como remanescente das comunidades dos quilombos: denominação, localização e formas de acesso, disposição espacial, aspectos demográficos, sociais e de infraestrutura..........................................................................................06 b) Identificação da comunidade e território b.01) Denominação do território.......................................................................................................09 b.02) Localização / coordenadas.......................................................................................................09 b.03) Limites e confrontantes............................................................................................................09 b.04) Localidades que compões o território......................................................................................09 b.05) Título de domínio....................................................................................................................09 b.06) Área medida e perímetro.........................................................................................................10 b.07) Número de módulos fiscais.....................................................................................................10 b.08) Valor do módulo Fiscal (MF) .................................................................................................10 b.09) Fração mínima de parcelamento (FMP) .................................................................................10 b.10) Cadastro do imóvel do SNCR..................................................................................................11 b.11) Localização e vias de acesso....................................................................................................11 c) Caracterização do município c.01) Município.................................................................................................................................11 c.02) Localização..............................................................................................................................11 c.03) Aspectos socioeconômicos......................................................................................................12 c.04) Aspectos fisiográficos..............................................................................................................12 c.05) Geologia...................................................................................................................................13 c.06) Recursos Hidrícos....................................................................................................................13 a) Águas superficiais................................................................................................................13 b) Água Subterrâneas...............................................................................................................14 d) Situação fundiária.............................................................................................................................14 III. HISTÓRICO DA OCUPAÇÃO a) histórico da ocupação territorial com base na memória do grupo envolvido e depoimentos de eventuais informantes externos.................................................................................................19 b) levantamento e análise de eventuais fontes documentais e bibliográficas existentes sobre a história do grupo e do seu território...........................................................................................39 c) conflitos existentes junto ao coletivo de moradores no território..............................................46 d) Indicar o patrimônio cultural da comunidade, constituído de seus bens materiais e imateriais com relevância na construção de sua identidade e memória.....................................................46 e) levantar e analisar os processos de expropriação e impactos sofridos pelo grupo..........................................................................................................................................47 f) análise da situação da ocupação territorial atual do grupo tendo em vista as alterações e impactos havidos ao longo de sua história................................................................................52 IV. ORGANIZAÇÃO SOCIAL a) Identificação e caracterização dos sinais diacríticos da identidade étnica racial do grupo...............52 V - DIAGNÓSTICO AGRO-AMBIENTAL VI – SUGESTÕES PARA O ETNODESENVOLVIMENTO..............................................................................74 VII – CONCLUSÃO: ÁREA PROPOSTA............................................................................................................75 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................................................................77 5 Citando Caldas, “a força da História (sua dignidade) não está em “haver acontecido”, em ser “baseada em fatos”, mas em ser uma forma elementar de discurso (que manipula socialmente o tempo) e que pode manter essa consciência (ética e política exatamente por ser epistemológica) no centro do seu sistema dando suporte a outros discursos e práticas. Nessa manipulação estão várias questões como a verdade, a realidade, o valor, o sentido. Por isso a História não é “simplesmente uma escrita”, mesmo sendo exclusivamente isso. Como essa escrita é manipulação profunda do tempo, suas conseqüências deixam de fazer parte somente das redes escriturais e tomam parte da própria forma do ser social, das suas decisões, ações e interioridades. A verdade em História advém de vários círculos de suporte e crença que se interpenetram e se confirmam entre si. A escrita dessa “verdade” não se faz sobre esses círculos, mas neles, com eles, para eles, sugando deles partes da sua própria certeza e objetividade, parte daquela “certeza íntima” que “sabe” com segurança que “realmente aconteceu”. Grande parte da “substância” da História advém dessa crença encadeada e sem consciência para seu funcionamento”. Um dos conceitos-chave nessa construção é o de transcriação (Meihy, 1990). A noção de transcrição perpassa todo o trajeto de procedimentos desde a nossa primeira inserção em campo, passando pelas entrevistas, pelas transcrições, pela textualização até os processos de leitura interpretativa: é posição diante do conjunto, desse material que estamos caracterizando a História Oral. É concepção e visão de mundo, não somente de como se produz um texto, mas sobre o fundamento da própria realidade e de como podemos compreendê-la sendo, portanto, parte inextirpável da própria estrutura interpretativa. Essa concepção entende a “realidade social” como redes transparentes de ficcionalidade viva e o indivíduo como um momento irredutível dessas redes polimensionais, escapando de qualquer possibilidade de construção prepotentemente monofônica. A noção de transcriação quer dizer ação criativa geral em busca das ficcionalidades pessoais (que poderão numa extrapolação controlada atingirem também grupos e coletividades) e seus devires e, como horizonte, o presente como nossa matéria, nossa ficcionalidade na construção do RTID. O primeiro contato com a comunidade ocorreu na escola municipal que fica à margem da rodovia que liga os municípios de Isaías Coelho a Simplício Mendes e é anexa ao território reivindicado. A escola era então utilizada pelas crianças da comunidade e de outras localidades, onde eram ministradas aulas do ensino fundamental. Em nossa última inserção em campo em novembro de 2007, enquanto finalizávamos a coleta de dados junto a comunidade, recebemos a informação de que a escola fora fechada durante o ano de 2007, e que as crianças, “se quisessem estudar”, teriam de se deslocar até a sede do município. A informação do fechamento da escola pudemos constatar in loco. Após a primeira reunião, em agosto de 2006 e ao longo dos trabalhos nas Comunidades de Volta do Campo Grande e Fazenda Nova pudemos ampliar a rede de relacionamentos junto à comunidade de Sabonete e também na região. Entretanto, a diminuição no ritmo dos trabalhos de campo ocasionadas por eventos na capital e mobilizações funcionais-reivindicatórias induziram um acirramento das disputas entre os grupos antagonistas dentro do território do Sabonete/Catuaba. Não houve um retorno aos trabalhos de campo até o mês de novembro de 2007 e a situação, segundo relatos repassados por telefone, vem se agravando dia-a-dia. Ainda que ações administrativas estivessem em curso na capital é no campo que os embates se dão literalmente. Os processos de contra-informação veiculadas pelo Doutor Mauriz demandaram por um lado a ação permanente da comunidade em buscar as informações sobre o andamento do processo junto ao INCRA em Teresina. Enquanto buscava minar as forças de coesão interna da comunidade, o que o Dr. Mauriz promoveu foi a ampliação e o reforço daqueles que buscavam no resgate de seu território, contando a cada 6 dia com o apoio de vizinhos ao território que, esclarecidos ao longo dos debates, compreendiam a importância do resgate histórico que ali acontecia.. O Dr. Mauriz protocolou ainda vasta documentação junto a essa autarquia, abriu processos no âmbito da Justiça Federal e do Ministério Público. Vários foram as partes arroladas pelo Dr. Mauriz dentre elas o próprio Incra, a Fundação Palmares e servidores federais. É, portanto, nesse contexto que o Serviço de Regularização Quilombola desenvolveu suas atividades, tendo o presente relatório sido construído com o apoio e a inspiração daqueles que não se acovardam e tem compromisso com a garantia do direito de acesso à terra, com o cumprimento dos Títulos Legais e que buscam a verdadeira paz no campo. II - Dados Gerais a) informações gerais sobre o grupo auto-identificado como remanescente das comunidades dos quilombos: denominação, localização e formas de acesso, disposição espacial, aspectos demográficos, sociais e de infraestrutura Existe uma discussão sobre a denominação “Sabonete”. Alguns mais velhos recordam que, na denominação do território, existiam três referências distintas. A primeira e muito antiga era de “Lagoa dos homens”, por conta de dois cadáveres encontrados em local não precisado. A versão nos foi apresentada por Dona Iracema moradora do Catuaba. Uma segunda denominação era “Lagoa da Extrema”, pois era justamente onde se reconhecia a antiga divisa (extrema) dos municípios de Isaías Coelho e Campinas do Piauí. Essa versão nos foi contada por Dona Lurdinha que mora no Sabonete. Esta divisão foi deslocada em meados dos Anos 60, quando do planejamento e início das obras da BR-020. E uma terceira denominação que ainda hoje é usada, que é a de “Catuaba”. Quem nos trouxe mais clareza para entender a aproprioação do nome “Sabonete” foi a professora na ex-escola na comunidade, Dona Nair. Incra: Desde quando a questão da Comunidade de Sabonete está na vida da senhora? Digo, no dia-a-dia da senhora. Desde o seu casamento? D. Nair: É não. Meus avós moravam aqui: José Juscelino de Carvalho e Emília Moura de Carvalho. Inclusive o nome do colégio alí é em nome dele. Essa região aqui do Sabonete, essa daqui é toda da nossa família. Aí pegaram e botaram esse outro lado aí pra colherem alguma coisa aí. Mas não tem nada haver. De um lado é Catuaba e o outro é Lagoa da Extrema. Tem uma lagoa lá perto da Maria Isabel que é da Extrema porque era a extrema de Isaías Coelho e Campinas. Incra: Que mudou depois os limites por conta da mudança da estrada né? D. Nair: É, foi! No caso, Lurdinha é da Lagoa da Extrema. Incra: E quando foi que o povo mudou o nome, que o pessoal juntou o Catuaba e Lagoa da Extrema e formou o Sabonete? D. Nair: Foi quando formou a associação. Não espera ainda. Não foi nem quando formou a associação. Fundamos a associação em 99... Aí combinou de ser tudo Sabonete. Pra vê se arrumava alguma coisa, algum projeto. 7 Incra: Então o nome Sabonete era prá ficar mais fácil prá todo mundo conseguir algum benefício? D. Nair: Eu também consentí e fui levada. Eu mesmo atuei pro nome ser todo de Sabonete. Agora tá atrapalhando. O pessoal de lá querendo o lado de cá. Incra: O que tem de diferente do pessoal de lá com os de cá? D. Nair: A diferença é só de família mesmo. Do lado de lá são mais moreno. Do lado de cá só mora nóis aqui de outra família. Eu sou branca. Eu não sou dessa cor. E a diferença é essa daí. Das família de lá são mais moreno. Mas dizem que o maior negro que teve aí é o Luís de Anjo, que mora ali na Lagoa do Meio. Aí eu não sei. Ele é um vermelho do cabelo duro. Aí eu não sei mais dele. Muito depois fomos entender a ter conhecimento da história de Luís de Anjo, através de um de seus descendentes, Senhor Sabinão. Essa história virá mais adiante e é de fundamental importância para se compreender o processo de expropriação vivenciado pela comunidade desde o início do século passado. Nossos contatos com Dona Nair sofreram, ao longo dos trabalhos de campo, várias mudanças no que se refere a receptividade quando ela era procurada por nossa equipe. Somente em um último contato, quando ela se mostrava mais receptiva, pudemos realizar a entrevista. Como se percebe, ela transmitiu sua impressão de que a Comunidade do Sabonete estava reivindicando “todo o Sabonete”, o que não é verdade. O que percebemos na região foi que o impacto inicial provocado pela visibilidade conquistada pela comunidade quilombola, atraindo várias equipes em viaturas oficiais do INCRA, Polícia Federal (em determinado momento), INTERPI e ainda, nossos diálogos no sentido de captar histórias e relatos do passado contados pelos antigos da região, causaram uma série de mal-entendidos, principalmente pelas ações de contra-informação promovidas pelo Doutor Mauriz. Ele utilizava-se de aparato midiático disponível e ao fato fato de ser credor de grande penetração e credibilidade em toda a região. O Dr. Mauriz quis crer, em suas discussões sobre o “CASO SABONETE”, que as fronteiras territoriais reivindicadas estava muito além daquelas onde realizávamos pesquisa e buscávamos informação. Conforme consta no Processo INTERPI nº 0262/07 (pgs. 167 a 170), em que o Procurador Chefe do INTERPI Dr. Raimundo Marlon Reis de Freitas, com o “DE ACORDO” do Diretor-Geral, Dr. Francisco Guedes Alcoforado Filho, concluindo pelo cancelamento do CCDRU – Contrato de Concessão Real de Uso - , emitido em 02 de maio de 2005, com registro fundiário nº 1279, Livro Fundiário 15-Aa, folha 04, em nome de José Santana Mauriz, município de Simplício Mendes – PI, emitido indevidamente, posto que não cumpriu os requisitos legais, no corpo do despacho, afirma o excelentíssimo procurador que, “...o Sr. José Santana Mauriz causou tumulto nos trabalhos da equipe técnica e ..., está obstaculando o andamento normal dos trabalhos3”. Mais adiante teremos oportunidade de exemplificar outros casos onde o Dr. Mauriz demonstrou os limites entendidos por ele no que se refere a defesa da posse da gleba Catuaba. A definição do território quilombola foi feita à partir de reuniões realizadas na Escola da Comunidade e espaço para realização de festas. Foram realizadas ainda visitas domiciliares para levantamento de aspectos históricos e informações geográficas (divisas, variantes, acidentes geográficos, limites de datas, etc.), nas residências, sempre levando em consideração a noção de territorialidade da própria comunidade. Além da equipe técnica 3 Grifo nosso. 10 processo de registro da Data Poções e Campo Grande em nome do Governo do Estado do Piauí, através do INTERPI. No item “D” (Situação Fundiária) é apresentada a situação histórica e a atual de domínio das território em estudo. b.06. Área medida e perímetro Foi apontado como sendo o território da comunidade uma área de 1.962,2469 hectares com um perímetro de 25.704,74 metros. Entretanto, devido a uma ação de interdito proibitório movida pelo Sr. Mauriz, a área efetivamente caracterizada foi de 1.844,3842 hectares (sem considerar a gleba denominada Catuaba). A área do território quilombola da Sabonete foi definida a partir de cercas, becos e estradas que delimitam o território de respeito apontados pela comunidade. Após a definição dos limites, o grupo foi consultado através da apresentação de mapas e explicações acerca de cada um dos pontos levantados e apontados por eles como sendo os “limites do território pretendido”. O território em estudo limita-se com outras comunidades, algumas com indícios de serem remanescentes de quilombos, como é o caso da Território Quilombola de Salinas. Foto 01 – Limite – “beco”. b.07. Número de módulos fiscais 26,35 módulos (com base na área efetivamente caraciterizada). b.08. Valor do Módulo Fiscal (MF) O Módulo Fiscal dos municípios de Isaías Coelho e Campinas do Piauí é de 70,0000 hectares. b.09. Fração Mínima de Parcelamento (FMP) A FMP dos municípios de Isaías Coelho e Campinas do Piauí é de 4,0000 hectares (zona de pecuária 4). 11 b.10. Cadastro do imóvel no SNCR O território ainda não é individualizado como imóvel rural, e portanto, não é cadastrado no Sistema Nacional de Cadastro Rural. Existem, entretanto, muitas posses de terras cadastradas, tanto no SNCR, quanto na Receita Federal (para fins de Imposto Territorial Rural), além de 03 áreas tituladas definitivamente e 01 com concessão de uso. b.11. Localização e vias de acesso A principal via de acesso para o território, à partir da sede municipal de Isaías Coelho, se dá pela rodovia estadual que liga Isaías Coelho a Simplício Mendes (com pavimentação tipo piçarra), por onde percorre-se 5,0 Km até o Gojoba, no limite leste do território e mais 08 Km até a escola que serve à Comunidade Quilombola de Sabonete. Outros acessos são feitos pela BR-020 para o município de Simplício Mendes (pavimentação tipo piçarra). A situação em relação à localização e acesso pode ser considerada muito boa. Foto 02: Ponte sobre o Rio Canindé na BR-020 Foto 03: Ponte sobre o Rio Canindé na BR-020 c) CARACTERIZAÇÃO DO MUNICÍPIO E REGIÃO. c.01) Município Isaias Coelho c.02) Localização O município está localizado na microrregião do Alto Médio Canindé, compreendendo uma área irregular de 740,32 km2, tendo como limites ao norte os municípios de Vera Mendes, ao sul Conceição do Canindé e Simplício Mendes, a leste Vera Mendes, Patos do Piauí e Jacobina do Piauí, e a oeste Campinas do Piauí e Simplício Mendes. A sede municipal tem as coordenadas geográficas de 07º44’16” de latitude sul e 41º40’33” de longitude oeste de Greenwich e dista cerca de 407 km de Teresina. 12 Foto 04: Reunião com secretários municipais c.03) Aspectos Socioeconômicos Os dados socioeconômicos relativos ao município foram obtidos a partir de pesquisa nos sites do IBGE (www.ibge.gov.br) e do Governo do Estado do Piauí (www.pi.gov.br). O município foi criado pela Lei nº 2.549 de 09/12/1963. A população total, segundo o Censo 2000 do IBGE, é de 7.658 habitantes e uma densidade demográfica de 10,35 hab/km2, onde 77,89% das pessoas estão na zona rural. Com relação a educação, 63,7% da população acima de 10 anos de idade são alfabetizadas. A sede do município dispõe de energia elétrica distribuída pela Companhia Energética do Piauí S/A - CEPISA, terminais telefônicos atendidos pela TELEMAR Norte Leste S/A, agência de correios e telégrafos, e escola de ensino fundamental. A agricultura praticada no município é baseada na produção sazonal de arroz, feijão, mandioca e milho. Os trabalhos de campo (levantamento de informações) foram precedidos de reuniões com o secretáriado municipal, quando tivemos oportunidade de expor as circunstâncias do trabalho, os aspectos legais e quais eram os objetivos esperados (foto 04). O serviço de coleta de lixo é feito regularmente pela prefeitura na zona urbana, todavia os detritos são despejados sem o devido tratamento ou separação no que se refere ao lixo hospitalar. Tudo é depositado a céu aberto, no alto de uma colina e à beira da rodovia, de onde se tem uma bela vista da sede do município (fotos 05 e 06). Foto 05: local de depósito do lixo da cidade. Ao fundo a sede do município Foto 06: detalhe do “cinturão verde” que circunda o lixão da cidade e retém parcialmente a dispersão eólica c.04) Aspectos fisiográficos As condições climáticas do município de Isaías Coelho (com altitude da sede a 260 m acima do nível do mar) apresentam temperaturas mínimas de 25oC e máximas de 38oC, com clima semi-úmido e quente. Ocasionalmente, chuvas intensas, com máximas em 24 horas. A precipitação pluviométrica média anual é definida no Regime Equatorial Continental, com isoietas anuais entre 800 a 1.400 mm e trimestres janeiro-fevereiro-março e dezembro-janeiro-fevereiro como os mais chuvosos. Os meses de janeiro, fevereiro e março constituem o trimestre mais úmido. Estas informações foram obtidas a partir do Perfil dos Municípios (IBGE – CEPRO, 1998) e Levantamento Exploratório - Reconhecimento de solos do Estado do Piauí (1986). Os solos da região são provenientes da alteração de arenitos, siltitos, conglomerado, folhelhos e basalto. Compreendem solos litólicos, álicos e distróficos, de textura média, pouco desenvolvidos, rasos a muito rasos, fase pedregosa, com floresta 15 da Mocha4, por Carta Régia de 13 de agosto de 1741, que o mesmo “demarcasse, pessoalmente as terras que haviam pertencido ao falecido Mafrense”. Após a morte de Domingos Afonso Mafrense, que ocorreu em 1711, as terras foram “herdadas” pelos Jesuítas (o Reverendo Padre João Antônio Andreoni, Reitor da Companhia de Jesus na cidade da Bahia havia sido nomeado por Mafrense como seu legatário). Ainda segundo Sampaio (1963), “os jesuítas compraram, ainda, outras fazendas e datas, nas adjacências das terras deixadas por Domingos Afonso Mafrense, aumentando, assim, as suas propriedades. Esses padres exerciam a maior influência nesse vasto domínio, onde se aproveitavam do trabalho absoluto de 700 pessoas, aproximadamente, entre escravos e índios domesticados, que lhes rendiam a máxima obediência, até quando se deu o atentado contra a vida do rei D. José I, atribuído aos Jesuítas”. Esse acontecimento deu origem a expropriação das propriedades e bens pessoais dos Jesuítas, através de uma seqüência de atos da Coroa Portuguesa que reverteu para o Tesouro Real, além de outros bens, as terras dos jesuítas situadas na Capitania do Piauí, motivo pelo qual essas glebas passaram a ser conhecidas como “Fazendas do Fisco”. Sampaio (1963), cita que “de acordo com um inventário oficial, realizado em 1782, as fazendas que haviam pertencido aos Jesuítas, e, mais tarde, formaram as três Inspeções ou Departamentos denominados PIAUÍ, NAZARETH e CANINDÉ, possuíam 489 escravos, 1.010 cavalos, 1.816 bestas e 50.670 cabeças de gado vacum. Em 1822, o número de escravos atingiu a 686, os cavalares aumentaram para 6.640, e o gado somava 45.643 cabeças” (grifo nosso). Com a proclamação da independência do Brasil, em 7 de setembro de 1.822, as propriedades das citadas Inspeções ou Departamentos passaram ao patrimônio da nação brasileira e ficaram sob administração do Departamento da Fazenda “que as inspecionava e arrecadava as suas rendas, por intermédio de secções da Fazenda Nacional” (Sampaio, 1963). Com o casamento da Princesa D. Januária Maria, irmã de D. Pedro II, Imperador do Brasil, em 26 de janeiro de 1844, algumas dessas fazendas (entre elas as que formavam a Inspeção ou Departamento do Canindé) foram escolhidas como parte do dote imperial estabelecido em contrato para esse fim. Segundo Sampaio (1963), “de acordo com o art. VII, § 2o, do citado contrato, as doze fazendas denominadas ILHA, POBRE, BAIXA DOS VEADOS, SÍTIO, TRANQUEIRA, POÇÕES, SACO, SAQUINHO, CASTELO, BURITI, CAMPO GRANDE e CAMPO LARGO, que na data do dote, constituíam a Inspeção ou departamento do CANINDÉ, faziam parte do mesmo” (grifo nosso). As Datas de Sesmarias grifadas no parágrafo anterior, denominada Poções e Campo Grande, foi destinada mais tarde para compor o território do município de Isaías Coelho e Campinas do Piauí, municípios onde localizam-se o território quilombola objeto do presente estudo, conforme o Leis Estadual que criam os referidos municípios. No contrato matrimonial ficou estabelecido que a ditas terras, bem como todo o patrimônio que D. Januária Maria recebera de dote, reverteriam ao patrimônio da nação se não houvesse descendentes ou se o casal resolvesse “construir domicilio definitivo fora do império, o que de fato, aconteceu, mais tarde, quando partiram para a Europa, onde resolveram fixar residência” (Sampaio, 1963). Desta forma as fazendas do departamento do Canindé, voltaram novamente ao patrimônio da nação, bem como voltaram a ser administradas pela Fazenda Nacional. Essas Fazendas passaram a ser administradas por Delegados da Fazenda, que tinham a incubência de cobrar a renda anual e assegurar a sua boa administração. Entretanto, 4 Mocha era a sede do Governo da Capitania do Piauí, denominação dada, à epoca, a atual cidade de Oeiras. 16 segundo Sampaio (1963), “não obstante serem mais severas e positivas as instruções do governo, as fazendas não prosperavam, sob essa direção administrativa, e os políticos locais tiravam vantagem das mesmas, no interesse de seus partidários, sempre sequiosos de obterem uma situação, com a idéia única de explorá-las em seu próprio benefício”. Para evitar prejuízos com a diminuição das rendas anuais e o desaparecimento do gado, o Parlamento Nacional votou três leis, que autorizavam a venda ou arrendamento de muitas propriedades nacionais, inclusive muitas fazendas situadas na Inspeção Canindé, as que mais interessam no caso em tela. As fazendas da Inspeção Canindé em conjunto com parte da Inspeção Nazareth, foram objeto do Contrato de Concessão firmado em 26 de abril de 1889, entre o Governo e o Dr. Antônio José de Sampaio, local onde funcionou importante estabelecimento rural, além de importante fábrica de manteiga e queijo, movida à vapor, cujo o prédio em ruínas, situado no centro de Campinas do Piauí é testemunho do vigor econômico que gozava à região naquela época. Mais tarde, já na Constituição Federal de 1946, as terras das Fazendas Nacionais que não foram vendidas a diversos particulares, foram transferidas ao patrimônio do Governo do Estado do Piauí, conforme o Art. 7o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: “Art. 7º. Passam à propriedade do Estado do Piauí as fazendas de gado do domínio da União, situadas no território daquele Estado e remanescentes do confisco dos jesuítas no período colonial”. Entretanto, no caso da Data Poções, situada no município de Isaías Coelho, o Governo do Estado do Piauí só veio a requerer as suas matrículas no ano de 1981, através do Instituto de Terras do Piauí – INTERPI, Autarquia Estadual criada pela Lei No 3.783, de 16 de dezembro de 1980, conforme cópia integral do processo juntada às fls. 08/28. A certidão de registro de imóvel encontra-se acostada às fls. 07. Após a matrícula em nome do Governo do Estado várias glebas foram tituladas individual e aleatoriamente, muitas vezes sem priorizar os descendentes dos antigos ocupantes das referidas glebas, como é o caso da Comunidade Negra Rural Sabonete e adjacências. A maioria das famílias da Comunidade Negra Quilombola de Sabonete já são detentoras da posse da maior parte dos território em estudo, mas a ausência da titulação contribuiu para que a comunidade deixasse de acessar diversas políticas públicas, principalmente as políticas de crédito rural, que só com o advento do Pronaf, passaram a ser acessadas pelos agricultores “com terras não documentadas”. No território em questão foram encontradas 03 (três) áreas com titulações individuais definitivas, além de 03 (duas) posses de não-quilombolas (intrusões de posseiros sem títulos). O “vago” temporário das áreas do território de uso comum, que permaneceram matriculadas em nome do Governo do Estado do Piauí, contribuiu para que pessoas estranhas à Comunidade se apossassem de glebas, principalmente por meio de compra dos “serviços” de antigos moradores Na Tabela 01, apresentamos a situação fundiária atual do Território Quilombola Sabonete. Das 03 (três) glebas com titulação definitiva, 02 (duas) foram destinadas a pessoas da Comunidade Quilombola de Sabonete, ou a pessoas com relações muito estreitas com as mesmas, como é o caso do Sr. Belmiro José de Carvalho. 17 No caso dos posseiros não quilombolas, todos residem fora do Território da Comunidade Negra Remanescente de Quilombos de Sabonete e ergueram cercas com o objetivo implantar atividade pecuária e “assegurar” suas posses. Não foram erguidas casas e, na época do levantamento, fomos informados que as áreas encontravam-se sem uso. As demais pessoas da comunidade não têm acessos a essas glebas, seja para o trânsito normal, ou para retirada de madeira e caça de subsistência. Ocupante Local Situação fundiária Condição identitária Maria de Lourdes Sobrinho Lagoa da Extrema Título Definitivo Quilombola José Xavier da Silva Sabonete Título Definitivo Quilombola José Raimundo Sabonete Título Definitivo Quilombola José Santana de Mauriz Catuaba Concessão de Uso Não Quilombola Osterno Lages Posse não caracterizada Não encontrado No que se refere a distribuição das casas no território, essa obedece uma configuração onde percebe-se claramente a integração dos moradores com o rio Canindé, fonte de abastecimento d’água e através do qual as roças são cuidadas. A vida se reproduz ao longo do rio. Quem fica longe do leito do rio não é por demais distante. É também ali onde se aproveitam os baixões para plantar os “legumes5”. Foto 07 – Vista geral do Sabonete. Em primeiro plano técnico do INCRA. Foto 08 – Baixão com roçado de milho A foto 09 reproduz uma imagem de satélite capturada pelo serviço GOOGLE EARTH6 e tendo assinalados vários pontos capturados durante nossa estada em campo com equipamento de GPS, marca GARMIN, modelo e-Trex, com margem de erro variando entre 5 e 7 metros. Pode-se perceber que a disposição das casas é feita ao longo do Rio Canindé conforme afirmamos. A linha vermelha que vai do ponto da casa “079” até o ponto “R- Can1”, que representa a ponte sobre o Rio Canindé, marca a BR 020. A BR 020 segue reta, não tendo sido traçada. A partir do ponto “R-Can1”passando pelos pontos “091” e “094”, até os pontos “Sabone” e “064”, é mostrado (em azul), segmento da estrada que liga a comunidade ao município de Isaias Coelho. 5 De maneira geral usa-se o termo “legumes” para designar vários tipos de plantio como feijão e milho p.e. 6 Fonte: MAPLINK/TeleAtlas, Europa Technologies e Image TerraMetrics, todos disponíveis na internet: http://earth.google.com, acessado em 11.12.2007. Tabela 01 - Situação Fundiária Atual 20 Sr. Benedito: Tem. Ela tem parente. Porque uma filha dela chamada Bonifaça ..morreu em cinqüenta e três (1953), com cento e quinze anos. Incra: Durava, né?Era um povo que durava... Sr. Benedito: É. Morreu com cento e quinze anos. Ela deixou ainda tataraneto dela aí. Incra: Quem é os tataranetos dela? Da geração dela? Sr. Benedito: Da geração dela aí... Incra: É. Que vem vindo dela? Sr. Benedito: Que vem vindo dela né? Eu vou lhe dizer quem é...Da Bonifaça...Era o Luis de Anjo. Que Anjo era neto de Bonifaça e teve essa Lidiane, que é bisneta. Bonifaça era avó de Anjo, mãe de Isaac, e avó de Anjo. Incra: Mas se ela veio pra cá, lá das Porções aqui pro Sabonete, era cativa não, era? Sr. Benedito: Era, não! Era daqui dos... era daqui dos...Porções, Nêgo Nacional cativo, era nêgo do Governo [risos] Incra: Então, negro do Governo não era cativo. Sr. Benedito: Não era cativo...Os nêgos aqui do Governo não era cativo. Era escravizado assim: os administrador davam mais direito pros ricos do que pros nêgos, mais os nêgos não era cativo. Agora, através disso, assim meu pai me dizia, que depois que foi liberto, aqueles nêgos que era dos particular que foi cativo e que foi liberado, foram também encostando por aqui, que aqui era uma vida mais livre, porque lá, eles saíram do cativeiro, mas ficavam sujeitos ao proprietário deles. E aqui, eles chegavam e eram dono da terra. Incra: A gente vê que ali nas Aroeiras o pessoal é mais negro mesmo. Sr. Benedito: Pois é, e lá tem um bocado de parente meu, nas Aroeiras, olhe ali... Incra: Tem outro lugar que tenha mais negros, do que nas Aroeiras? Sr. Benedito: Olhe, o lugar de mais nêgo, é nas Fazenda Véia. Mas esses nêgo se espalharam muito. Porque cê vê. Vocês andaram ali pela Volta (Volta do Campo Grande)? Incra: Andamos. Sr. Benedito: Pois aqueles nêgo ali da Volta são tudo aqui da Fazenda Nova. É ali das Fazenda Nova. São tudo daqui, dos Porções, Campo Grande, tudo daí. É porque foi espalhando. É tudo dessa descendência. Porque aqui, olhe, eu alcancei meu pai dizendo, ele dizendo: “Olhe, meu filho, aqui tinha casa, tinha moradia aqui nos Porções e na Fazenda Nova e no Campo Grande”. Olhe, pro cê vê, aqui nessa cidadezinha (Isaias Coelho) aqui, eu arcancei cinco casas, aqui. Incra: Não era uma cidade. 21 Sr. Benedito: Só tinha cinco casas, e eu arcancei meu pai contando, aqui era um deserto! Aqui era um deserto, tinha casa nos Porções e ia ter na Fazenda Nova. Mais uma vez surgem os nomes de Isaac e Anjo Isaac, ancestrais do Sr. Sabino. Todos, mais adiante, serão fundamentais para se fechar o círculo da história construída nas vozes, na oralidade e nos documentos. Em outra entrevista, agora com o Senhor Casimiro, ele nos aponta a continuação da história de ocupação do Sabonete (Catuaba), nos anos que antecederam imediatamente a soltura do cativeiro. Incra: Quem é que comandava essas fazendas? Tinha só a Poção ou tinha outras? Sr. Casimiro: Tinha a Poção, tinha a Campo Grande e tinha a Fazenda Nova. Num era demarcada não. Era tudo data do Estado mesmo. Incra: Quem tomava de conta? Sr. Casimiro: Rapaz, tinha essas pessoas aí. Quem comandava essas fazenda tudo era um senhor Coronelo Angelo8. Esse era muito perverso. Ele fazia toda perversidade. Já aqui mesmo na Fazenda Poção tinha um cara que já era mandado dele. Aquelas casa ele cansô de derribá. Levantava aquelas casinha de taipa e ele mandava derribá. Se fizesse uma casa sem pedir o Fiscal, prá botar uma rocinha tinha que pedir o fiscal se não pedisse e botasse, era destruído. Incra: O senhor lembra do fogão9? Sr. Casimiro: Lembro. Meu pai pagou muito fogão. Incra: E esse povo que tava aí? O senhor sabe de onde veio? Sr. Casimiro: Só lembro que meu pai contava que a vó dele (escrava Merenga), foi das escrava aqui mesmo na Poção. Inté minha mãe falava assim, que o meu pai, porque aquelas negra escrava paria do próprio viveiro. Só que as muié, aquelas sinhá que chamava, mandava matá as criança, porque era filho do esposo delas. Daquela negra criada deles. As vezes, escapava um ou outro. Meu avô mesmo. Que é esse. A minha bisavó, que era vó do meu pai, nasceu nos escravo, o cara lá chamava Joaquim Eugênio. Que inté minha mãe falava assim: “Ó, o teu avô por parte de teu pai, era filho desse Joaquim Eugênio. Só que quando ele nasceu 8 Em visita a cova do Coronel Ângelo ouvimos o relato de que, “para ele (Coronel Ângelo) não fugir daí donde ele tá, os padre véio mandaram botar essa grade em aí em volta”. A grade ainda hoje protege a população das “perversidades” do Coronel Ângelo, caso ele “tente fugir”. 9 Fogão, foro ou laudêmio (nome técnico) é uma criação que remonta aos tempos coloniais, quando a totalidade das terras brasileiras pertenciam à Coroa portuguesa, que tinha interesse em promover a colonização do país, distribuindo porções do território nacional a quem se dispusesse a cultivá-las. Em troca, cobrava uma contribuição, que pode ser comparada a um pedágio, por estes quinhões, que passaram a ser classificados como terras aforadas. 22 FOTO 11 – Sr. Casimiro e seu vizinho capinam a roça de feijão. já tinha libertado (uma referência à Lei do Ventre Livre- 1872). Ela engravidou nesse tempo que tava lá com ele, mas quando o menino nasceu já era solto do cativeiro. Ela chamava ele era Coelho10. Aí ela dizia: O nariz do seu avô era bem afiladinho. Agora, dos outros, era tudo parrado. Incra: E como é que diferenciava os que eram filho de Coelho e os que não era? Sr. Casimiro: Em sendo filho de Coelho, já nascia mais clarinho. Porque era tudo negô véio preto como os dizê da história. Nascia assim nariz afilado, o cabelo já mais,.., num era aquele cabelo agarrado. Incra: Quem era o Joaquim Eugênio? Sr. Casimiro: Era dos comandante de tomá de conta de Nego. Mandante num sabe? Comprava. Que aqui eles comprava das mãos uns dos outros assim como hoje compra boi. Comprava uma partida: “Tãn11! Eu quero tantos negô”. Era compradô e vendedô de negô. Naquelas época as terras era deles mesmo. Era dos Coronéis. Quem não tinha direito a nada era negô. Só tinha direito de trabalha e apanhá. Eu sei que meu pai contava que tinha um banco grande prá amarrá os negô. Eu ainda cheguei a conhecer o banco que está lá no município de Simplício Mendes, num lugar chamado Favela... Naqueles tempos uma casa coberta de telha, uma casa feita assim de tijolo (apontando para sua própria casa), era só dos meus senhores. Da fala dos senhores Casimiro e Benedito, temos a visão de quem há gerações experimenta a opressão e o situar dos negros da região em uma condição inferior, quando assim são reconhecidos, ou se reconhecem. A perversidade do “Coronel” da região, que detinha o poder de vida e morte com os escravos. Os abusos sexuais enfrentados pelas mulheres negras. E como se não bastassem os estupros e a gestação de um filho que já se sabia, nasceria bastardo, teriam ainda de enfrentar a fúria enciumada das “sinhás” que friamente matavam os filhos que as negras gestavam. Não era um filho. Ainda que causasse prejuízo, não era mais um escravo. Era a prova da traição do marido. E mais, os castigos impostos aos negros, recordados todos na representação de “um banco onde se amarravam os negros”. A obrigatoriedade de pagar para usar a terra do Estado e a impossibilidade de criar gado para os negros e licença concedida apenas aos brancos, que ainda podiam utilizar o pasto das Fazendas Nacionais, terras públicas, em benefício próprio. 10 Ainda hoje utiliza-se a designação “Coelho”, aqueles que tem a pele mais alva. 11 Onomatopéia apresentada com o gesto de quem entrega um montante de dinheiro. 25 relevantes da história do grupo foram captadas durante as incursões em campo e a base da pesquisa histórica apresentada significou os esforços empreendidos pelo antropólogo Carlos Alexandre B. Plínio dos Santos quando da apresentação de seu relatório antropológico, teses de Mestrado e Doutorado acerca da Comunidade Quilombola do Tapuio. Contribuiram também os trabalhos de pesquisa da Professora Tanya Brandão da UFPE e do Professor Solimar Oliveira Lima da UFPI. Foto 15 – No vão poder-se-ia realizar vistorias na parte inferior das composições. Foto 16 – Dona Isabel e seus irmãos, e hoje as crianças, sempre utilizaram as instalações em brincadeiras A história do Piauí inicia-se justamente pela busca e conquista de novas terras para o empreendimento pecuário Após embates dos pecuarias com produtores de cana-de- açucar da capitânia de Pernambuco, uma lei obriga os pecuaristas a buscarem novas frentes para o gado, liberando as terras para o plantio da cana (FURTADO,2002). Utilizando mão- de-obra escrava os pecuaristas “conquistam” o que hoje é o estado do Piauí. A bibliografia utilizada está relacionada ao final do relatório. Difícil imaginar como os livros didáticos utilizados nas escolas do país simplesmente ignoram tamanha importância na formação de um povo e de um estado da federação. Todo o processo de colonização do que hoje é o estado do Piauí começa objetivado pela exploração e conquista de terras da nova colônia portuguesa. A Coroa portuguesa, em 1621, constituiu o Estado do Maranhão e Grão- Pará13, unidade administrativa separada do Brasil e ligada diretamente a Lisboa. Posteriormente, os portugueses começaram a escravizar os indígenas dessa grande área. Observa-se, por meio da documentação da época, principalmente os relatórios dos Presidentes da Província, que no território que é hoje identificado como Estado do Piauí existiram, antes e durante o processo de colonização, numerosas etnias. O levantamento mais antigo que se refere aos índios do Piauí é datado de 1697 (Mott,1985:112). Em “Descrição do sertão do Piauí”, remetida ao Ilmo. e Rvm. Frei Francisco de Lima, Bispo de Pernambuco, o padre Miguel de Carvalho relaciona os principais acidentes geográficos desta região “recém- descoberta”, acompanhando a enumeração de todas as fazendas de gado situadas nas diferentes ribeiras e olhos d’água. Conclui o trabalho o arrolamento dos “nomes dos Tapuias que têm guerra com os moradores da nossa freguesia de N. Senhora da Vitória”. O Pe. Carvalho apresentou a seguinte distribuição espacial dos diferentes grupos tribais conhecidos: 13 O Estado do Maranhão e Grão-Pará criado englobava toda a Amazônia portuguesa, o Maranhão, o Piauí e o Ceará (hoje Estados do Amazonas, Pará, Roraima, Amapá, Acre, Maranhão, Piauí e Ceará). 26 1. AROACHIZES: moram nas cabeceiras do Parnaíba 2. CARAPOTANGAS: moram na mesma parte 3. AROQUANGUIRAS: moram em um riacho Savauhi, que entra no rio Parnaíba 4. PRECATIS: moram no riacho Irussuí, que entra no Parnaíba 5. ACURUÁS: moram nas cabeceiras do Goruguca 6. RODELEIROS: moram na mesma parte e peljam com rodelas 7. BEIÇUDOS: moram na mesma parte e têm beiços tão grandes que no de baixo metem um botoque tamanho como uma grande laranja 8. BOCOREIMAS: moram num riacho que se mete no Goruguca 9. CUPEQUACAS: moram em um riacho que entra no Parnaíba 10. CUPICHERES: moram na mesma parte e têm cabelo muito comprido 11. GUTAMES: moram no rio Mearim 12. GOIIÁS: moram na mesma parte 13. ANICUÁS: moram nas cabeceiras do Rio Preto, comem brancos 14. ARANHÊS: moram no rio Parnaíba 15. CORERÁS: moram num riacho que se mete no Parnaíba 16. AIITETUS: moram abaixo dos Corerás 17. ABETIRAS: moram mais abaixo 18. BEIRTÊS: moram na mesma parte 19. GOARAS: moram no rio Parnaíba 20. MACAMASUS: moram no Moni e Iguará 21. NONGAZES: moram num riacho que entra no rio Parnaíba e comem brancos 22. TRAMAMBÉS: moram junto da barra do Parnaíba, têm pazes com os brancos 23. ANASSUS e ALONGAS: moram com os caboclos na Serra da Guapaba, para a qual se retiraram com medo dos brancos 24. ARUAS: moram no riacho de S. Victor, têm paz com os brancos 25. UBATÊS: moram na mesma parte 26. MEATÃS: moram na mesma parte 27. CORSIAS: moram no rio Goruguea 28. LANCEIROS: moram na mesma parte 29. ARAIÊS: moram nas cabeceiras do rio Piauí 30. ACUMÊS: moram na mesma parte 31. GOARATIZES: moram na cabeceira do rio Canindé 32. JAICÓS: moram na mesma parte 33. JENDOIS: moram junto a serra do Araripe 34. ICÓS: moram na mesma parte, têm barbas grandes 35. URIUS: moram na serra do Araripe 36. CUPINHARÓS: moram no rio Canindé, e são os que têm feito maiores danos nesta povoação e; 37. PRECATIZES, que se enterram debaixo da terra para fazerem esperas aos brancos, e com a barriga amarrada, com cordas, correm mais que cavalos, e não tocam a terra senão com as pontas dos pés”. Assim, simultaneamente ao povoamento, ocorreram a expulsão e o aniquilamento dos índios pela guerra da colonização. O processo de colonização desenrolou- se sob a égide da extinção das etnias que habitavam o Piauí. Na época do devassamento da região, os grupos indígenas foram os primeiros a serem escravizados, eram utilizados 27 geralmente como guias, e nos arraiais tinham a função de cultivar gêneros alimentícios necessários à subsistência do terço14 sertanista. Tendo como objetivo a expulsão dos índios e a entrada de atividades rentáveis para a Coroa portuguesa, entre os anos de 1658 a 1659, o governador da Capitania de Pernambuco, André Vidal de Negreiros concedeu às famílias Garcia Ávila (representavam a Casa da Torre15) e Pereira, 50 léguas de terras para criação de gado ao longo do rio São Francisco, áreas do atual Estado da Bahia. A pecuária16, em grande medida, foi responsável pela ocupação do sertão nordestino. As sesmarias concedidas para esta atividade eram, em geral, maiores que as das atividades agrícolas e formaram grandes latifúndios. Com a intenção de assegurar o domínio das regiões conquistadas e concretizar seu aproveitamento econômico, em 12 de outubro de 1676, Domingos Afonso Mafrense, Julião Afonso Serra, Francisco Dias de Ávila e Bernardo Pereira Gago foram os primeiros a receber sesmarias17 nas margens do rio Gurguéia no Piauí, as quais perfaziam um total de 40 léguas de extensão e foram doadas18 pelo governador de Pernambuco. Ao todo foram 360.000 hectares para cada um dos requerentes, que representa 5,7% do atual território piauiense. Em 30 de janeiro e 7 de outubro de 1681, o governador de Pernambuco concede novamente novas sesmarias a Domingos Afonso Mafrense, nas margens do rio Parnaíba e na região de Parnaguá. Em 13 de outubro, desse mesmo ano, o governador de Pernambuco concede, outra vez, nova sesmaria a Mafrense, dessa vez nas margens do rio Gurguéia e Paraim, e outras léguas nas margens do rio Tranqueira. Em dezembro de 1686, foi concedida outra sesmaria a Mafrense nas margens do rio Parnaíba que começava na aldeia dos índios Aranis e se estendia até a última aldeia dos índios Amoipiras e pela parte sul até a serra do Araripe. No ano de 1686, por causa do “Ciclo do Gado”, já era grande o número de sesmarias concedidas no Piauí. Em 1695, por ato régio de D. Pedro II, o território do Piauí foi desmembrado da jurisdição de Pernambuco, ficando sob a jurisdição do governo da capitania do Maranhão. Em 1697, apenas um ano após a criação de sua primeira freguesia, contavam-se 129 fazendas de gado vacum19 que se localizavam às margens de 33 rios, ribeiras lagoas e olhos d’água (Mott:1985,46). O padre jesuíta Miguel de Carvalho, afirmou que o estado do Piauí era composto somente de fazendas de gado neste período e com pouquíssimos moradores, nelas viviam um homem branco com um negro escravo e em outras haviam um número maior de escravos. As fazendas se localizavam perto de riachos e a distância entre elas era geralmente de mais duas léguas (citado em Santos:2004,15). 14 Nos séculos XVI e XVII terço significava a unidade correspondente ao atual regimento de infantaria, adotada pelos exércitos espanhol e português, e existente no período colonial no Brasil 15 A casa da Torre foi fundada por Garcia de Ávila, sertanista português, criador de gado. Este estendia sua autoridade sobre todo o nordeste baiano. 16 Por causa das brigas constantes entre criadores de gado e plantadores de cana-de-açúcar, em alguns casos chegando a assassinatos, o Rei D. Pedro II, por meio da Carta Régia de 1701, determinou que os criadores de gado retirassem seus rebanhos, no prazo de um mês, para o sertão. 17 O instituto das sesmarias foi criado em Portugal, nos fins do século XIV, para solucionar uma crise de abastecimento. As terras portuguesas ainda marcadas pelo sistema feudal eram, na maioria, apropriadas e tinham senhorios, que em muitos casos não as cultivavam nem arrendavam. O objetivo básico da legislação era acabar com a ociosidade das terras, obrigando ao cultivo sob pena de perda de domínio. 18 O procedimento para obtenção de uma sesmaria começava com uma petição do solicitante ao capitão-mor, este remetia o pedido à Câmara Municipal do distrito para que investigasse se a área solicitada era devoluta ou não; em caso afirmativo, o juiz de sesmarias mandava medir e demarcar a terra e entregava a carta de sesmaria. Depois disso, faltavam apenas o registro e a confirmação pelo Rei. 19 Segundo Francisco da Silveira Bueno (1985: 1176), vacum quer dizer o gado de um modo geral, ou seja, que compreende os bovinos (vacas, bois e novilhos) 30 Em toda Província do Piauí haviam, 536 fazendas, com uma população de 14.342 habitantes, assim distribuídos: Oeiras (3.615 hab/169 fazendas); Valença (1.485 hab/52 fazendas); Marvão (1.059 hab/39 fazendas); Campo Maior (1.867 hab/86 fazendas); Parnaíba (2.368 hab); Jerumenha (697 hab/51 fazendas); Parnaguá (902 hab/55 fazendas) e Piracuruca (2.349 hab/84 fazendas) (Mott,1985:98). Do total de habitantes, 64% eram pessoas livres e 36% eram de pessoas escravas. Na linguagem desse primeiro censo os índios não eram mais escravos, eram aldeados25, ou seja, nem livres nem escravos (Falci: 1995). Na segunda metade do século XVIII, haviam em média 4,2 pessoas para cada casa na zona urbana. O escravo representava 1,6 para cada residência e seu trabalho limitava- se ao setor doméstico. Porém, é na zona rural que a presença dos escravos era mais acentuada, havia uma média de 19,1 escravo por fazenda, que além da criação de gado, trabalhavam também no cultivo de alguns gêneros agrícolas, como cana-de-açúcar, para obtenção do açúcar, rapadura e cachaça. Deve-se destacar a importância do testamento de Domingos Afonso Sertão. Peça fundamental para se compreender e estudar a situação e estrutura fundiária do Estado do Piauí em sua complexidade histórica, o documento é revelador dos caminhos da Companhia de Jesus no Brasil. Coube a Companhia de Jesus zelar os enormes latifundios deixados por Mafrense em 1711. Um fato que movimentou a vida política da Capitania do Piauí em 1759 foi a expulsão dos Jesuítas. Acusada de atentar contra a vida de D. José I, rei de Portugal26, teve a Companhia todos os bens confiscados pela Coroa portuguesa, eram fazendas, gados e escravos. No Piauí, este patrimônio para ser administrado foi dividido em três departamentos: Canindé, Nazaré e Piauí. Cada departamento tinha um número de fazendas, gados e escravos. Os escravos das fazendas foram denominados de “escravos do fisco” e as fazendas foram chamadas posteriormente de “Fazendas Nacionais”27, dentre elas: Algodões, Baixa dos Veados, Boqueirão, Brejo de Santo Inácio, Brejo de São João, Buriti, Caxé, Cachoeira, Cajazeira, Campo Grande, Campo Largo, Castelo, Cataréns, Fazenda Grande, Ilha, Inxu, Julião, Lagoa de São João Mocambo, Nazaré, Olho D’água, Pobre, poções de Baixo, Poções de Cima, Milhan, Emparedado, Saco do Rei, Cabrobó, São Romão, Riacho dos Bois, Água Verde entre outras tantas incluindo gado, cavalos e escravos africanos e que passaram a chamar-se “escravos da nação” (Rocha: 1994,66). Tal idéia de pertencimento ainda hoje está presente nas falas das comunidades da região. É comum ouvirmos relatos afirmando ser a comunidade descendente dos escravos da nação, em oposição aos escravos da parte. Julgavam, os escravos da nação, serem superiores aos escravos de particulares alegando que o senhor deles era o próprio rei enquanto os escravos de parte, de particulares. Porém nem mesmo a Lei Áurea igualou os negros da região. Mesmo alforriados, os escravos da nação eram obrigados a ficar cinco anos 25 Segundo Miridan Britto Knox Falci (1995: 35), os aldeamentos existentes eram: Aldeia de S. João do Sende, em Oeiras; Aldeia de S. Gonçalo, em Amarante; Aldeia dos Jaicós, na freguesia de Oeiras, e muitas outras. 26 Segundo Costa (1974: 135), Dom José I foi ferido com dois tiros, noite de 03/11/1758, quando saía da casa da marquesa de Távora, sua amante. O marquês de Pombal incriminou o duque de Aveiro, os dois marqueses de Távora e respectivas esposas, o conde de Atouguia e Dom José Maria Távora. A velha marquesa Leonor foi discípula do jesuíta padre Malagrida, inimigo de Pombal e nos seus salões se concentrava a nobreza descontente com a política pombalina. A amante do rei era casada com um filho dos Távoras. Pombal conseguiu inculpar essas personalidades, de forma pouco regular. Os depoimentos acusaram também a companhia de Jesus. Criou-se um tribunal para julgá-los. Foram condenados à morte e executados. A história registra o fato como o processo dos Távoras. 27 Afirma Claudete Maria Miranda Dias (2000: 385), que todas as fazendas dos jesuítas herdadas de Afonso Mafrense em 1711, então em número de 39, foram seqüestradas, e transformadas em Fazendas Nacionais, que posteriormente se transformaram em Fazendas Estaduais com a Constituição de 1946. 31 sob inspeção do governo. Já os de parte, quando sabiam da notícia, em grande número embrenhavam-se na caatinga conforme relatos dos antigos. Retomando a história em seu momento anterior ao processo de alforria com a Lei Áurea, as fugas dos escravos e a formação de quilombos28 em algumas localidades do Piauí, o governador da capitania teve que, em 11 de novembro de 1760, por meio de Portaria, nomear Manuel do Espírito Santo capitão-do-mato do distrito da vila da Mocha (Oeiras), a fim de extinguir os diversos mocambos e quilombos, que existiam no mencionado distrito. A preocupação dos proprietários com as fugas de seus escravos era muito grande, pois o valor de cada escravo adulto (16 a 40 anos) girava em torno de 100$000 réis. Apenas a titulo de informação os valores praticados para o gado vacum era de 2$500 réis por cabeça. O valor do escravo29 correspondia a 40 bois (Brandão: 1995). Das 11.993 pessoas de toda a província, os escravos representavam mais de 60% da população, ou seja, eram 4.644 pessoas, presentes em todas as freguesias da Província do Piauí. A capital da província tinha a maior concentração de escravos, dos 3.615 habitantes mais de 40% eram escravos. O menor número estava localizado em Paranaíba, eram 8 pessoas livres e 11 pessoas escravas. Localidade População Livre População Escrava Total Oeiras 2.066 1.549 3.615 Valença 872 613 1.329 Marvão 771 288 1.059 Campo Maior 1.248 619 1.867 Parnaíba 8 11 19 Piracuruca 1.747 602 2.349 Jerumenha 371 326 697 Parnaguá 266 636 902 Total 7.349 4.644 11.993 Fonte: (Costa, 1974: 155). Alguns documentos oficiais do Século XVIII encontrados no Arquivo Público do Piauí30, relatam a existência de fugas de escravos e de quilombos no Piauí. Um desses documentos de 02/10/1769 é uma carta do governo da capitania ao tenente Francisco da Cunha e Silva Castelo Branco. Na carta, o governo dá permissão para que o tenente reunisse gente suficiente para recuperar seus escravos fugidos e que se encontravam “nos matos do 28 O conceito de quilombo, segundo Ronaldo Vainfas (2000: 494), data do período colonial e foi elaborado pelo Conselho Ultramarino, em 1740. Descreve como quilombo toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem achem pilões nele. No Brasil, os termos mais comuns para nomear as comunidades de negros fugidos foram quilombo ou mocambo. 29 Em 1885 por força da Lei nº 3.270, Saraiva Cotegipe de 28 de setembro, foi estabelecida uma tabela de preços para todos os escravos do Império. 30 1) Coleção Escravidão, 6 volumes; 2) Documentos produzidos pelas Juntas de Classificação de Escravos por Manumissão; Códices de Registro de Passaportes/1874 a 1879; Códices do Rol dos Culpados, 1863/1869; Códices de Correição, Oeiras, 1808/1812; Códices de Lançamentos de Bilhetes da Casa de Feira, Oeiras, 1850/1855; Códices de Correspondência da Secretaria da Presidência com diversas autoridades da Província, 1866/1868; Códices de Registro de Ordens da tesouraria de Fazenda ao Inspetor da Fazendas Nacionais, Departamento de Nazaré, 1841/1846; Códices de Exposição da C. de Doentes, 1879. Tabela 03 – Total da população em 1762 no Piauí 32 Parnaíba”. O governo recomenda cautela para evitar prejuízos às pessoas que o acompanhasse (Educandário Stª Mª Goretti: 1990). Odilon Nunes (1975: 128) nos relata que, em 04 de março de 1775, foi encaminhada, pelo governo da capitania, uma carta ao General de Estado que descrevia as circunstâncias em que se encontrava a capitania do Piauí. Esse documento faz referência aos quilombos na região da vila de Campo Maior e pede que se combata os quilombos de escravos fugidos nas matas do rio Poty. Em outra carta, de 07 de junho de 1775, do governo da capitania agora ao capitão-mor Manoel Alves de Araújo, faz-se referência a alguns quilombos na mata que correm da barra do rio Poty para o rio Estanhado, aponta que os quilombolas estão causando danos às fazendas vizinhas. Na carta existem instruções para a formação de uma tropa para destruir os quilombos e manda restituir aos donos os escravos aprisionados com vida. Aqueles pertencentes a senhores residentes fora da capitania devem ser entregues ao juiz dos ausentes (Educandário Stª Mª Goretti: 1990). Em 13 de abril de 1778 foi encaminhada uma carta, encontrada sem o destinatário, assinada por Manoel Alves de Araújo, da localidade de Campo Maior. A carta faz um relato sobre a existência de dois quilombos situados nas matas do rio Parnaíba, com casas e roças. Nas roças e vazantes plantam fumo, com ele trocam por chumbo e alguns vestuários, acrescenta o documento que os quilombolas furtam os negros de seus senhores. Refere-se ainda este documento a uma frustrada incursão contra os quilombos e pede ao desconhecido destinatário que combata o tal mal que é a “ruína da freguesia” (Educandário Stª Mª Goretti: 1990). Os documentos acima deixam claro que, entre 1769 e 1778 foram grandes os indícios da existência de quilombos no Piauí. Segundo Brandão (1999: 162), a documentação concernente ao século XVIII faz referência a muitos quilombos organizados no Piauí, embora não se tenha notícia de quilombos representativos em termos de quantidade de seus componentes, esses núcleos formados por escravos foragidos implicavam sérias conseqüências econômicas e sociais. Na região do que hoje é município de Campinas do Piauí, relata Rocha (1994:107) que “nos grotões do Ligeiro, próximo ao Emparedado, que eram cheios de garrancheira, unhas-de-gato, favelas, tudo quanto era pau-de-espinho ficava a quinta de Zacarias. Ali era couto de escravos fugidos e dos agregados corridos das fazendas. Ali vivia como bicho bruto, vestido de couro. Dominava os bichos e as caças. Zacarias foi muito falado. Os capitães de mato que tentavam ir buscar escravos fugidos, se não eram atacados por onça ou cobra, perdiam o rumo, não acertavam nem a entrada nem com a saída da Quinta. Lugar de alegria e festa, altas horas da noite só se ouvia os tambores de couro de anta e o sapateado dos escravos fugidos”. Desde outubro de 2007, o território em questão pertence a Comunidade Quilombola da Volta do Campo Grande de forma definitiva em atendimento a legislação Estadual. A historiografia tradicional apontam que a sociedade piauiense agiu de modo brando com seus escravos em virtude da pseudo liberdade que estes tinham no cativeiro. Defende-se que, vivendo os escravos montados a cavalo e correndo pelas campinas atrás do gado, alimentavam-se com mais fartura, sua vida escrava teriam sido mais folgada do que a dos escravos das grandes unidades de produção voltadas para a exportação da cana-de-açúcar e do café. Todavia a escravidão no Piauí não pode ser analisada apenas pela atividade pastoril. O escravo estava envolvido num universo mais amplo de relações sociais com dominadores e dominados, relações essas pautadas na coerção e uso da violência. A sociedade piauiense encarregava-se de identificar os cativos e reafirmar sua condição, lembrando-lhes quem era seu senhor e controlando-lhes as atividades. Os relatos e vestígios das condições de trabalho e de castigos estão presentes na lembrança de como eram usados 35 abastecia de carne grande parte dos mercados no Brasil. Somente em 1811 o Piauí foi separado do Maranhão, passando a ser administrado politicamente por governadores. Também nesse mesmo ano o ouvidor Dom Luís de Oliveira realizou um inventário nas 35 fazendas dos jesuítas expulsos do Brasil, elas continham 489 escravos negros, o que perfazia cerca de 14 escravos por fazenda35. Em 1825, novo inventário é realizado, desta vez o número de escravos chegava a 773, o que apresentava uma estimativa de 22 escravos por fazenda36 (Costa: 1974). No ano de 1826, a Província possuía 84.273 habitantes, praticamente um terço dessa população era constituído por escravos, ou seja, 25.012 habitantes. Desses escravos, 76,33% eram negros. Em relação à sociedade como um todo, os negros (livres e escravos) representavam 29,67%, o que dava um percentual semelhante ao da população branca livre, que detinha 25,60% da população total, com 21.584 indivíduos. Porém, o maior número de pessoas era formado pelos mestiços chamados pelo censo de pardos, que representavam 44,77% da população, sendo que os livres, dentro desse total, compunham 37,87% e os cativos, 7,02%. O restante da população era formada pelos negros livres - 6,82% do total (Falci: 1995). O que pode ser percebido é que a razão de homens livres para os escravos era de 3, o que significa dizer que para cada 3 homens livres havia um escravo. Outro dado interessante, no censo de 1826 é a significativa presença de mulheres. Elas representavam 47,40% da população sendo que as escravas perfaziam um total de 13,88%, e as livres 33,52%. O censo também aponta que 74% das crianças escravas entre 0 a 4 anos eram de cor negra e 25% de cor parda (Falci: 1995). A morte do escravo, seja recém-nascido ou adulto, era um duro golpe financeiro para o seu proprietário. Outro fator que o atingia financeiramente eram as fugas e estas eram constantes. Na segunda metade do Século XIX, vários anúncios de negros fugidos eram colocados nos jornais da época no Piauí. Por meio desses anúncios se tem idéia dos castigos que eram infligidos aos escravos. Abaixo dois desses anúncios expostos, em 13 de setembro de 1857, no jornal ‘Conciliador Piauiense’. “Em 1846 ou 1847 fugiu o meu escravo Antônio Isidoro, cabra de estatura regular, de idade pouco mais ou menos de 50 anos. Tem pouca barba, olhos encarniçados, panos pretos no rosto, e além desses sinais que não tenho de memória tem um dos dedos grandes de um pé rachado de um talho de machado, e debaixo de um dos braços, sobre as costelas, tem o sinal de uma facada. É, além disso, rendido de uma virilha e sinais de relho nas nádegas e nas costas (Chaves,1998: 190)”. Em outro anúncio, agora sobre uma escrava, seu proprietário descreve com minúcia os traços e as marcas dos castigos impostos a ela. “Em 1848 fugiu uma mulata de nome Maria Isabel, idade de 40 anos pouco mais ou menos, dos sinais abaixo declarados, e conduzindo 35 Segundo Costa (1974: 138), além dos escravos as fazendas possuíam: 1.010 cavalos, 1.860 bestas e 50.670 cabeças de gado vacum, avaliadas em 179:787$000. 36 Falci (1995) afirma que em 1843, por ordem do governo imperial, foram levados para trabalharem no Rio de Janeiro 150 casais de escravos tirados das fazendas nacionais. 36 consigo uma cabrinha, com 6 mêses pouco mais ou menos, ainda pagã, tendo esta uma cabeça grande, olhos grandes e arregalados, nariz chato. Os sinais da mulata são os seguintes: cabelos crespos, um tanto miúda, testa estreita, porém com as entradas largas, as pontas das orelhas grossas e um tanto desapregadas, olhos pequenos e fundos, maçãs altas, nariz pequeno e grosso, beiços grossos e arroxeados, boca regular, pescoço curto e fino para o corpo (é gorda), cangote pelado. Nas costas abaixo do talho da camisa37 tem um pequeno sinal de relho. Sobre um dos peitos tem dois sinais: um redondo, de fogo; outro comprido sendo este de relho. Numa das mãos o dedo furabolo tem uma unha rachada ao comprido. A dentadura de cima quase toda podre. E com falta de alguns dentes. As pernas grossas até a junta. Pés grandes e chatos. Os dedos grandes dos pés menores que os companheiros. E se já não apagaram, terá alguns sinais de relho nas nádegas. Para o tempo, pode ter mais alguma cria. É também tecelona e rendeira (Chaves: 1993, 68)”. Mesmo com as severas punições e sendo caçados por capitães-do-mato, as fugas dos escravos eram constantes, como podemos observar no anúncio, de 05 de janeiro de 1861, no jornal ‘Expectador’: “Escravo fugido: Fugiu no dia 8 de outubro de 1860 um mulato de nome Francisco, Macilento, tem pouca barba, espadaúdo; levou calça e camisa de algodão azul. Tendo furtado uma porção de roupa, pode usar de camisa de mandapolão fina com pregas, e calças de brim branco. Tem como sinal distintivo a orelha esquerda rasgada e com taco tirado (Chaves, 1993: 68)”. O jornal ‘O Piauí’, de 19 de novembro de 1867, traz em suas estampas o seguinte anúncio: “Fugiu da Fazenda Boa Vista no dia 11 de maio de 1867, o escravo Paulo, crioulo alto, cheio de corpo, com cicatrizes de fogo da cintura para baixo e com falta dos dedos dos pés”. O mesmo jornal, em 21 de abril de 1868, anuncia que: “Fugiu no mês de março de 1868 do sítio do baixo assinado o escravo Quintiliano, mulato, olhos, barba e cabelos castanhos, estatura regular, cheio de corpo. Tem cicatrizes de relho pelas costas” (Chaves, 1993: 68). Os maltratos para com os escravos eram constantes nas fazendas do Piauí, as marcas deixadas pelos senhores de escravos serviam como sinais que, como percebido nos anúncios, podiam ser utilizados para a sua identificação. Nem os escravos idosos eram poupados da violência, fazendo com que estes, sem nenhuma condição física, tentassem a fuga. Segundo o jornal ‘A Imprensa’, de março de 1866, “Fugiu no dia 30 de agosto de 1865, da cidade de Teresina, Província do Piauí, a escrava Silvéria, já idosa, bem preta, 37 A camisa era uma blusa larga parecendo bata que era usada sobre a saia (Falci: 1997). 37 seca de corpo e delgada, bem esmaltada”. Seca de corpo, que na linguagem popular da época, significa tísica, tuberculosa. O corpo, enquanto um suporte de significados, possibilita uma leitura como se pode observar nos anúncios de fuga de escravos. Ele, o corpo, é a marca registrada da diferença entre a sociedade escravagista e a sociedade escrava. A cor, as marcas e os aspectos físicos que caracterizam o corpo do escravo, juntamente com sua vestimenta, são características que de certa forma são utilizadas como “estratégias” de distinção construídas e manipuladas pela sociedade escravagista para se diferenciarem do escravo negro que consideram inferior. As características de diferenciação construídas sobre o corpo também são fatores de distinção identitária, como coloca Bourdieu (1995) “a identidade social está na diferença, e a diferença é afirmada contra aquilo que está mais perto, que representa a maior ameaça”. Segundo Monsenhor Chaves (1993:74) a mortandade entre escravos era grande. Nas fazendas e nos sítios eles não tinham dormida conveniente, nem roupa suficiente que os cobrisse. “Já sendo pouco cuidadosos de si, nem mesmo procuravam evitar o que lhes fazia mal. Pelo contrário, desejavam as moléstias para terem algum descanso. E todas elas eram devidas ao mau tratamento”. O sobrenome para o indivíduo “livre”, indica a procedência da filiação, ou seja, de que família o indivíduo procede. Já para o escravo a lógica não seria esta, pois ele só tem o nome. Seu sobrenome é a sua condição de escravo. Sua procedência é a escravidão, sua família é a escravidão. Ocorre também no sobrenome uma memória de origem, a memória da família. O escravo não tendo sobrenome nega-se a ele a memória de sua família, ou de sua origem, ficando apenas a memória da condição de ser escravo. Clóvis Moura nos lembra que: “O negro vem de um processo de colonização centenária que o coloca, coincidentemente, como negro. O negro foi desarticulado durante a escravidão, desarticulado no grupo- família, foi todo fragmentado. As línguas também foram desarticuladas, os grupos étnicos foram redistribuídos. O colonizador tentou desarticular todas as culturas negras. O escravo sequer sabia a sua ancestralidade africana. Nenhum negro no Brasil sabe, porque os nomes de origem dos negros foram tirados e colocava-se o nome do senhor”(Alfaya,1981). Evento importante na história dos quilombos no Piauí, ocorreu no ano de 1871 em que foi assinado o decreto nº 2.040 declarando isentos da escravatura os nascidos, desta data em diante, de mulher escrava, lei conhecida por Ventre-Livre38. Em seu Artigo 6º - § 1º, eram considerados livres também: Os escravos pertencentes à nação, dando-lhes o govêrno a ocupação que julgar conveniente. Com isso, foram alforriados das Fazendas Nacionais no Piauí o total de 1.261 escravos, sendo 357 do departamento de São João do Piauí, 363 do departamento de Nossa Senhora de Nazaré e 541 do departamento Canindé.Em 1874 depois das libertações acima e de vários escravos serem traficados para a região cafeeira, o Piauí possuía 23.434 escravos, que compreendia aproximadamente 11,6% da população de todo Piauí (Brandão: 1999). Esse número veio a diminuir mais ainda por meio da lei nº 3.270, de 28 de setembro de 1885, que alforriou os maiores de 60 anos de idade. Foram libertados no Piauí, 105 homens e 81 mulheres, entre 60 e 65 anos e 125 homens e 79 mulheres, maiores de 65 anos (Bastos; 1994). Segundo dados censitários realizados no Piauí em 1882, em todo o Piauí haviam 21.691 escravos, distribuídos em 24 localidades. As principais localidades 38 De acordo com Falci (1995), cada pároco foi obrigado, por esta lei, a ter livros especiais para o registro dos nascimentos dos filhos de escravas, cuja omissão sujeitaria o pároco à multa de 100$000 réis (Art. 8, parágrafo 4 da Lei nº 2.040). 40 nacional, era nacional. Aqui da extrema da Conceição vai inté Oeiras era Nacional. O Sr. Casimiro nos relata exatamente como ocorria durante a temporada da invernada. Os Mauriz vinham com seu gado da região dos Moreiras e usavam as terras das Fazendas Nacionais para engordar seu gado. Um outro gado pertencente a nação também dividia a região, entretanto a produção do gado nacional deveria ser toda dirigida para a fábrica de laticínios localizada em Campinas do Piauí. Enquanto os fazendeiros da região engordavam seu gado e ampliavam seu plantel, a fábrica do governo parou de funcionar em 1945 por falta de matéria-prima (leite). Todo o gado nacional simplesmente desapareceu e ainda hoje não se tem notícia. O edifício da fábrica, aguarda o tombamento do IPHAN, ou de suas paredes. Foto 17 – Trabalhadores na escadaria da fábrica de laticínios Foto 18 – Fábrica de laticínios atualmente Os relatos nos levavam a construção de dois círculos da história que deveriam se encontrar. O primeiro ligado a ocupação da região pelos negros, e o segundo a chegada dos Mauriz. Sabíamos que os negros já estavam por ali há pelo menos 150 anos desde a implantação das fazendas de gado de Domingos Mafrense. A questão estava em precisar a data de chegada na região dos primeiros membros da família Mauriz. Em nossa pesquisa de campo, nos deparamos com Dona Inês Vaqueira (foto 21), irmã de Dona Iracema, que é a mãe de Noca, que vem a ser o atual administrador do Doutor Mauriz no Catuaba. Dona Inês mesmo tendo sido vítima de recente derrame, nos apontou de que forma poderíamos desvendar a questão. Sua cerimônia de batismo fora oficializada pelo Padre Antônio e registrada no livro paroquial (fotos 25 e 28). Foto 19 – Nossos pequenos guias até a Igreja do Tamboril Foto 20 - Nossos guias aproveitam a sombra da ruina 41 Durante anos, todas as crianças nascidas na região do Tamboril (hoje município de Isaias Coelho), eram batizadas durante as desobrigas do Padre Antônio Cardoso de Vasconcelos, que tinha data anual de visita à comunidade próximo ao mês de julho de cada ano. Assim os registros das desobrigas realizadas na Igreja do Tamboril iniciaram-se a partir do ano de 1922. Bastava então pesquisar no livro de batismo da capela do Tamboril e constatar quando foi que os Mauriz chegaram à região e começaram a frequentar as cerimônias. Visitamos as ruínas da antiga igreja Santana do Tamboril (fotos 19 e 20, 22 a 24) onde ainda encontramos restos de paredes, um antigo engenho, a base para colocação da cruz e um cemitério abandonado, tudo cercado por muros de pedra “do começo do mundo”, conforme nos declarou o Senhor Sabino Mendes da Silva, o Sabinão, nascido no Catuaba em 01/01/1924, a época terras de seu pai, Manoel Mendes da Silva. Anterior ao Sr. Manoel a posse era de seu avô paterno Anjo de Isaac e antes de seu bisavô Isaac Mendes, que vem a ser neto de Bonifácia, filha de Cândida, a primeira moradora do CATUABA. Enfim, encontramos e podíamos documentar toda a história de ocupação do Catuaba e relacionar todos os fatos revelados até então. Foto 21 – Dona Ignês Vaqueira ainda mora ao lado das ruínas da antiga igreja do Tamboril Foto 22 - Nossos pequenos guias, dois representantes da CECOQ e o técnico João Carlos junto aos restos de um engenho, tendo ao fundo as ruínas da igreja do Tamboril As peças que pudemos relacionar com a trajetória do grupo quilombola e da família Mauriz fomos encontrar nos arquivos da Igreja Nossa Senhora da Vitória, em Oeiras. Fomos recebidos pelo pároco José Gildásio de Sousa Silva que nos franqueou pesquisa em todos os documentos ali arquivados39. Restaram ainda inúmeros documentos que não pudemos ter acesso e dos quais somos sabedores de sua importância no contexto histórico da escravidão no Piauí, cito: aqueles arquivados no Museu da cidade de Picos e os da sede da Diocese no municípío de Floriano. Acreditamos que uma ampliação, caso seja necessária, na busca de documentos, poderiam seguir tais indicações. Quanto à documentação encontrada em Oeiras, nossa busca se deu incialmente por conta da referência encontrada em campo no que concerne as desobrigas40 empreendidas 39 Gostaria de agradecer o Pe. Gildásio pela atenção e em especial a Senhora Rosa Dantas, secretária paroquial que nos garantiu o entendimento necessário dos livros e das escritas, quase paleográficas (foto 22). 40 Desobriga marca o cumprimento da obrigação do pároco em visitar seu rebanho dentro de determinado período. Normalmente ocorria de ano em ano coincidindo com o festejo da padroeira da localidade. Desobrigava ainda os fiéis de deslocarem-se até a sede para o cumprimento das obrigações prescritas pela religião católica, p.e. confessar-se e comungar uma vez ao ano. Durante a desobriga os padres celebravam missas, conferiam os sacramentos como confissão, casamentos, primeira comunhão e no caso de nossa pesquisa, o mais importante, realizavam os batizados. 42 pelo Padre Antônio Cardoso de Vasconcelos, pároco entre as décadas de 30 e 50 do século passado. Naquele tempo o município-sede da região era Oeiras. Simplício Mendes ainda era localidade e Isaías Coelho era conhecida por Tamboril. Foto 23 - Pedras apontam local de sepultamento Foto 24 – Muro de pedra cerca toda área da antiga Igreja do Tamboril. Nossa pesquisa seguiu precisamente do ano de 1922 até dezembro de 1935 e não encontramos qualquer criança batizada cujos pais tivessem o sobrenome Mauriz. Conferindo nome por nome de todas as crianças batizadas, sua filiação e seus padrinhos registrados nos livros paroquiais, encontramos a primeira referência ao sobrenome Mauriz datada de 28/07/1928, quando Benedicto de Sant’anna Mauriz (avô de José de Santana Mauriz) e Quelidônia da Silva Mauriz são padrinhos de batismo da criança por nome Raul, filho de Raimundo Rodrigues de Souza e Jovina Maria Cavalcante. Foto 25 – Dona Rosa nos guia pelos registros da paróquia Foto 26 - O cuidado com a história Depois, aos 06 de julho de 1930, conforme registrado no Livro 41 pg. 27- verso, é registrado o batismo da criança por nome de Venâncio, filho de José Barbosa dos Prazeres e Isabel Francisca da Costa, tendo como padrinhos Benedicto Sant’anna Mauriz e Queledônia da Silva Mauriz. No mesmo Livro 41, dessa vez aos 30 de agosto de 1933 era 45 como “sabedô” implica em recontar a mesma história, a mesma versão com os mesmos detalhes, sem alteração, sem mudanças. Incra: Como é que chegou os Mauriz aí? Senhor Benedito: Os Mauriz chegou aí? Incra: Porque os Mauriz estão hoje situados ali no Catuaba. Senhor Benedito: Pois é, mas os Mauriz chegou ali... aí eu vou lhe dar os detalhes dos Mauriz. São muito influentes, mas num era deles (o Catuaba). Que hoje eles tão ali hoje..eu vou lhe explicar como é que hoje eles estão ali... Incra: Como é? Senhor Benedito: Ali, naquele tempo daqueles fazendeiros das fazenda particular pedia pros administrador um local pra fazer um retiro pra amansação de vaca no inverno. Você sabe o que é amansação de vaca no inverno? Incra: Não, como é? Senhor Benedito: Quem tem aquela vacaria e mora em lugar que não é bom de leite. Então, essas fazendas aqui de primeiro tinha muito pasto, o capim era dessa altura aqui. Era pouca terra cercada. Aí, eles pedia agregacia esses administrador pra fazer um retiro, chama-se retiro, pra quando fosse em janeiro, trazer a vacaria pra passar janeiro, fevereiro e março. Quando era em abril, voltava de novo pra lá. Incra: Pra lá onde? Onde que era? Senhor Benedito: Lá pras fazendas deles Incra: Onde era, o senhor sabe? Senhor Benedito: Nos Moreira. Ali, onde hoje é de Agnaldo, ali era um retiro do meu padrinho Orlando Mauriz41. Ele era meu padrinho e eu ia no inverno. Era só mesmo o curral? O curral e um cercadinho de botar bezerro. Ali eles passavam uns três mês ali, quando era em abril, eles voltava com a vacaria lá pro Moreira. E ali, onde é de José Santana, era outro retiro do irmão de meu padrinho Orlando, que era Benedito Mauriz, avô dele, de José Santana. Também era dois rumozim de casa de palha e um cercadinho qualquer, daqueles cercados de olho d’água. Ele ia no inverno e passava três...três mês, quando era em abril, também ia pro Moreira, que ele tinha propriedade lá no Moreira. Era assim desse jeito. Incra: Aí foram se achegando? Senhor Benedito: Aí, Benedito Mauriz, morreu. Antonio Mauriz, tomou de conta, ficou ali, cercou aquela beira de rio...o que eu sei dizer daquilo ali, é isso aí. Foi desse jeito 41 Não tivemos acesso a certidão de batismo do Senhor Benedito, mas sua afirmativa comprova a relação empreendida pelos Mauriz na criação, com a população negra local, de relações de compradrio bastante comuns entre os poderosos da região nordestina com o grupo de trabalhadores que lhe servia. A quantidade de “afilhados” dos Mauriz demonstra a destacada e importante projeção social e econômica dos Mauriz. 46 aí. Isso que eu tô lhe dizendo aqui, essas palavras que eu tô lhe dizendo aqui, pode escrever até aqui pra riba pro céu. Foto 33 – Vista da lagoa de São José, apartir de onde foi a casa do Sr. Antônio Mauriz, pai do Dr. Mauriz Foto 34 – Antiga casa do Antônio Mauriz nos Moreiras. Atualmente mora uma de suas ex-companheiras, Dona Sônia A fala do Senhor Benedito além da questão de chegada dos Mauriz na região, apresenta uma mudança radical promovida no trato da terra que foi a introdução da CERCA. A fala é marcada por dois momentos distintos: antes e depois da chegada dos Mauriz. Antes, “era pouca terra cercada”, depois “tomou de conta,..., cercou a beira do rio”. No início da apresentação do relatório, descrevemos a importância do rio na vida das pessoas que vivem no Sabonete (Catuaba). A providência primeira dos Mauriz foi impedir o acesso das pessoas à beira do rio. c) Conflitos existentes junto ao coletivo de moradores no território Ao adentrarmos no território reivindicado pela comunidade do Sabonete/Catuaba, tivemos de inicialmente proceder um levantamento das ameaças anteriormente comunicadas pela Coordenação Quilombola. A notícia de que “haveria uma caixa de balas para a equipe do INCRA”, foi seguida da necessidade da presença de equipe específica de investigação da Polícia Federal no sentido de garantir a integridade dos membros da equipe. Os conflitos alí existentes são anteriores a chegada do Programa Quilombola. Um dos mais antigos pontos de tensão está plantado à margem do Rio Canindé, dentro do território do Sabonete/Catuaba. As inúmeras demonstrações da capacidade de mobilização e de deturpação dos fatos, manipulação das informações promovidas pelo Dr. Mauriz são um entrave ao avanço do programa na região, extrapolando os limites da área da qual ele detém um interdito proibitório, convertido em AGRAVO RETIDO em 24 de outubro de 2007 pelo Juiz Federal César Augusto Bearsi do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em que são partes o INCRA e José Santana Mauriz como agravante e agravado respectivamente. A atuação da Procuradoria Federal especializada será de fundamental importância no desenrolar do processo. Recomendamos a máxima atenção da Procuradoria em proceder, junto às instâncias cabéveis, a defesa dos interesses da Comunidade Quilombola de Sabonete/Catuaba. d) Indicar o patrimônio cultural da comunidade, constituído de seus bens materiais e imateriais com relevância na construção de sua identidade e memória Excetuando a referência ao “banco de amarrar negros”, não foram apontadas pela comunidade quaisquer indícios de bens materiais ou imateriais que contribuíssem na 47 construção de uma relação direta com a escravidão. Novas e detalhadas observações, sem dúvida, deverão ser empreendidas no sentido de buscar evidências de tais ocorrências do ponto de vista de procura de sinais diacríticos de uma pretendida ancestralidade quilombola, dúvidas quanto o passado escravo da comunidade quilombola do Sabonete já fartamente demonstrado ao longo desse RTID. Desde 2004, quando da visita do mobilizador cultural da CECOQ (Coordenação Estadual Quilombola), Sr. KINA, a comunidade vem recebendo, de forma não contínua a visita de jovens dedicados que ministram aulas de capoeira para as crianças da comunidade, gratuitamente. Outras manifestações culturais são objeto de levantamento pelo IPHAN que desenvolve na região trabalho de catalogação do patrimônioo cultural das comunidades quilombolas. O projeto, ainda em andamento, já recebeu prêmios nacionais e as comunidades de Volta do Campo Grande e Curral Velho foram vencedoras do concurso nacional de Mestres de Ofício com suas manifestações de dança e batuque. A comunidade quilombola de Salinas, vizinha ao território, é referência estadual com seu Samba de Cumbuca. A comunidade de Sabonete vem redescobrindo suas verdadeiras origens apartir da luta pela terra. O reduzido tempo destinado a pesquisa de campo para elaboração de presente relatório, diferentemente do que se pressume, não foi suficiente para garantir o descurtinar das manifestações sabidamente existentes. Como no caso da Comunidade quilombola da Volta do Campo Grande, quando somente após 6 meses de permanente contato com o grupo é que nos foi sendo apresentado sua maior riqueza cultural. e) levantar e analisar os processos de expropriação e impactos sofridos pelo grupo Não bastassem as inúmeras histórias reveladas pela comunidade sobre os desmandos e o processo de cercamento das terras no Catuaba iniciados com a chegada dos Mauriz no século passado, os postes e mourões são constantemente mudados de lugar, sempre ampliando as áreas reservadas para os Mauriz. Quando da entrevista com Dona Carmelita, um momento tenso foi quando ela, aos prantos, pedia que pudesse ser autorizado que seu filho voltasse as cercas “para onde eram”, e que ele “continuasse nas terras”. Ela não entendia o porquê tamanha vontade em cercar e ampliar as áreas por parte de seu filho, o Dr. Mauriz. O fato já foi motivo de queixas à polícia. A comunidade já cortou arrames do Dr. Mauriz que sempre contou com seu poder econômico e conhecimentos jurídicos para manter as novas áreas que conseguisse ocupar. Foto 35 – D. Maura nos aponta a cerca que ficou na frente de sua casa Foto 36 – No alto do morro e sozinha, D. Maura enfrentou os contratados do Dr. Mauriz O caso de Dona Maura chega a ser vergonhoso (fotos 35 a 38). O último cercamento de beira de rio promovida pelo Dr. Mauriz, passou uma linha de arames há menos de 10 metros da casa de Dona Maura. Além disso, o morro onde estão o olho d’água e cisternas naturais de acumular água foram alvos de uma tentativa de cercamento, sendo que 50 Incra: E esse povo todo tava situado ali antes do Benedito chegar. Sabino: Tudo situado ali. Incra: Antes do Benedito chegar? Sabino: Antes do Benedito chegar. Agora quando ele foi chegando... Incra: Num chegou duma vez né? Sabino: Num chegou duma vez. Morando no Moreira, mas amansando aí pelo inverno né? Incra: De janeiro a abril mais ou menos. Ou de Dezembro. Sabino: Isso. Quando eles soltavam as vacas, gado da fazenda junto aí pra fazer a amansação, pra criar o gado. O gado aí era uns campos bom, nesse tempo era bom o bezerro era formado, a vaca era pra outro né? É o benefício. Aí foi criando um beneficio, mas um beneficio, soltava a vaca prum canto. Porque sempre tinha mato, se soltava os animais e os animais, tinha pinheiro de mansar cavalo. É no pinheiro que cria pasto. Hoje não cria mais. Incra: A natureza mudou muito né? Sabino: A natureza mudou muito Incra: Tinha muita cerca nessa época ou não? Sabino: Não, não tinha não. Incra: Tinha cerca não. Sabino: Não. Só tinha cerca quem tinha poder. Só tinha cerca quem foi entrando de pouquinho, fazendo umas rocinhas pequenas e crescendo, crescendo,crescendo, crescendo, e assim já tomou o mundo. Incra: Isso aí o senhor pode dizer um nome pra mim quem é que é desse jeito? Sabino: Não, isso aí eu não posso dizer, são que tem os poderes. Incra: Os poderosos. Sabino: Os poderosos. Foi crescendo, foi crescendo, foi crescendo e hoje tem pessoas aí que tem o mundo e o pobre não tem aonde tirar uma carga de madeira, pra tampar o buraco da roça. Incra: Quando tem roça né? Sabino: É. É mesmo, quando tem roça. Incra: Quando tem o direito de ter uma roçazinha. Sabino: Pois aí tem umas pessoas que tem muito, devido os poderes né? Entrou aí tomo a frente, aí é tudo atravessado, é tudo uma atrás do outro, é tudo uma administração mal determinada, a administração do estado é mal determinada e precisava ter um limite, mas hoje não tem, tudo atravessado do lado pro outro, é um na frente do outro e aqui eu sou dono e quem tem mais o poder, diz aqui eu sou dono e você não entra, então o pau come. E aí nós fica nessa luta toda. É bala quem resolve. 51 Para encerrar, os depoimentos sobre o caso do Catuaba: a declaração do Dr. Mauriz Incra: O senhor comprou pedaço de alguém nos últimos tempos? Algum serviço? Terra não, porque ninguém é dono dessas terras aqui. Aqui é tudo do governo. Dr. Mauriz: Não, eu não comprei serviço recente de ninguém não, eu não me lembro de ter comprado não. Incra: Qual foi a última vez que o senhor comprou, o senhor lembra a última vez que o senhor comprou? Dr. Mauriz: Não, lembro não. Incra: Mas o senhor já comprou algum dia na sua vida? Dr. Mauriz: Já comprei uma roçazinha Incra: Já? Dr. Mauriz: Praqueles lados ali de baixo já comprei uma roçazinha Incra: O senhor lembra de quem? Dr. Mauriz: Eu sei que eu comprei, mas não vem ao caso assim não. Incra: O senhor não lembra ou prefere não. Dr. Mauriz: Eu comprei mas não é o caso de envolver na sua pesquisa não. Incra: Esse pedaço que o senhor comprou era já anexo a esse pedaço que o senhor tinha título de concessão, não tem mais né? Dr. Mauriz: Era sim, vizinho. Incra: Vizinho. O senhor anexou? Dr. Mauriz: Comprei lá Incra: Foi mais de um? Dr. Mauriz: Não, eu não me recordo bem assim não. Incra: Mas o senhor já comprou? Dr. Mauriz: Já comprei. Incra: Normal né? Uma prática normal assim. Dr. Mauriz: Ás vezes é. Já dei muito dinheiro, quando tinha e quando não tinha. Todo mundo tem um vício, como tem de beber? Pois eu tenho um vício as pessoas de minha simpatia, se eu tiver cem reais no bolso e ela tiver precisando eu dou. Incra: Tá certo. Dr. Mauriz: É um vício meu. Referente às terras reivindicadas como posse pelo senhor José Santana Mauriz, aos quilombolas é garantido o direito àquela parte de seu território dando-lhe a destinação que o grupo julgar apropriado. Assim deve-se proceder orientados pelo Parecer do Procurador da República, Dr. Daniel Sarmento referente ao cumprimento do Art. 68 da ADCT: Assim, diante desta afetação constitucional, os proprietários particulares não podem reivindicar a posse da terra, ou buscar a sua 52 proteção possessória contra os quilombolas antes da desapropriação ou da imissão provisória na posse pelo Poder Público. Diante da privação da posse da terra, gerada pela sua ocupação pela comunidade quilombola, o máximo que estes proprietários podem fazer é postular o recebimento de indenização do Poder Público, tal como ocorre na desapropriação indireta. Já os remanescentes de quilombos, ao inverso, podem se valer de todos os instrumentos processuais adequados à efetivação e à proteção do seu direito à posse do território étnico, mesmo antes da desapropriação, e até independentemente dela, contra o proprietário ou contra terceiros. Parecer “A GARANTIA DO DIREITO À POSSE DOS REMANESCENTES DE QUILOMBOS ANTES DA DESAPROPRIAÇÃO”, Rio de Janeiro, 09 de outubro de 2006 - Procurador da República, Dr. Daniel Sarmento f) análise da situação da ocupação territorial atual do grupo tendo em vista as alterações e impactos havidos ao longo de sua história. As áreas atualmente ocupadas pelos demandantes quilombolas e outros ali encontrados formam um território onde a prática de ocupação obedece a uma lógica de transmissão hereditária, tendo alguns indivíduos conseguido título definitivo, emitido pelo INTERPI, da área que ocupa. O mapa com a situação fundiária está anexo ao processo. IV - Organização Social a) identificação e análise das formas de construção e critérios do pertencimento e fronteiras sociais do grupo Nesse ponto, é apropriado o uso dos termos e definições apontados por ARNS e SILVA, e transcrevo, para não correr o risco de perder algum detalhe garantidor de um entendimento suficiente das formas e critérios delineadores das fronterias sociais e que, em um contexto organizacional são riquíssimos e suficientes para sua compreensão. “O termo comunidade tem sido freqüentemente utilizado por sociólogos para caracterizar uma forma fundamental de agrupamento primário. Embora haja uma ampla variedade na compreensão do conceito, ora opondo-o à sociedade (Tönnies), ora limitando-o a grupos pequenos (Chinoy), ora opondo espontaneidade à construção racional (Mac Iver), a maioria dos autores se refere a uma idéia de todo que Weber denomina ‘sentimento de nós’. Para este autor, comunidade se refere “a uma relação social quando e na medida em que a atitude na ação social(...) repousa no sentimento subjetivo dos participantes de pertencer (afetiva ou tradicionalmente) ao mesmo grupo.” ( Weber, 1972, p.25). Weber afirma, ainda, que o fato de pertencerem ao mesmo grupo não cria per se uma comunidade. Este sentido de comunidade é construído, e embora seja tido em muitas situações como antítese de luta, o autor lembra que mesmo as 55 V - DIAGNÓSTICO AGRO-AMBIENTAL V.01. Vegetação A cobertura vegetal predominante no imóvel, segundo o Sistema Fitogeográfico Brasileiro (IBGE), é caracterizada pelo domínio da Savana-Estépica Arborizada (Caatinga Hipoxerófila), onde encontramos várias espécies de interesse econômico, seja pelo seu potencial forrageiro (Camaratuba, Favela, Carqueija, Catingueira, Imbuzeiro, Jurema, Juazeiro, Marmeleiro, Mandacaru, Mororó, etc ), ou para desenvolvimento da apicultura, ou pelo potencial extrativista e madereiro para confecção de mourões, estacas, varas, e madeiramento para construções rústicas (esteios, linhas, caibros e ripas), etc. (Aroeira, Angico, Amarelo, Imburana, Birro, etc.), ou pelo seu uso na alimentação humana (Imbuzeiro, Favela, etc), na produção de medicamentos naturais e ornamentação. Chama a atenção a concentração de Imbuzeiros no Território Quilombola de Sabonete. Encontra-se também no vale do Rio Canindé a Floresta Ciliar com presença de Carnaúba. O uso dos recursos florestais pela Comunidade é feito de acordo com o sistema de produção adotado, sendo que as áreas com matas ciliares (baixões) foram praticamente eliminadas para a implantação de cultivos anuais (milho, feijão e arroz), são preservados apenas poucos juazeiros, além do extrato herbáceo anual. As áreas de chapadas planas (com latossolos e areias quartzosas) ainda são pouco exploradas, salvo pequenas áreas desmatadas para produção de mandioca, caju e feijão. Também servem de pastagem natural no período chuvoso e como reserva de produtos florestais. Foto 41: Vegetação de Caatinga Foto 42: Imbuzeiro (Umbuzeiro). 56 Foto 43 – Mata ciliar com carnaúba. A preservação dos recursos florestais, na área de reserva, é tido como “código disciplinar” para boa convivência na comunidade, mas as atividades de caça e retirada de madeira são permitidas e bem vistas, mas desde que obedeçam certas regras, ou seja, para o consumo interno da Comunidade. Percebe-se claramente a preocupação com a preservação dos recursos florestais, notadamente com preservação das madeiras (para estacas, cercas e mourões), pois em muitas unidades produtivas encontram-se reservas florestais (onde não se realiza cortes rasos), com o objetivo de “guardar” madeira, principalmente, para construção de cercas. Família Nome científico Nome vulgar Amaranthaceae Amaranthus virides L. Bredo Anacardiaceae Anacardium microcarpum Ducke Cajueiro Anacardiaceae Spondias tuberosa Arruda Imbuzeiro Anacardiaceae Astrononium urundeuva Aroeira Arecaceae Copernicia prunifera (Miller) H.E. Moore Carnaúba Apocynaceae Aspidosperma sp. Pereiro Asclepiadaceae Metastelma sp. Cole Acanthaceae Ruellia asperula (Nees) Lindau Melosa Bignoniaceae Jacaranda sp. Caroba Bignoniaceae Mansea hirsuta sp. Alho-bravo/ Cipó-de-alho Bignoniaceae Neojobertia candolleana Cipó-de-Jacu Bignoniaceae Tabebuia sp. Pau-d’arco Bombacaceae Pseudobombax simplicifolium A. Robuns Imburuçu Boraginaceae Heliotropium tiarioides Cham. Crista-de-galo Burseraceae Bursera leptophoeos Mart. Imburana-de-Cambão Cactaceae Cereus jamacaru DC. Mandacaru Cactaceae Melocactus bahiensis Wandera Coroa-de-frade Cactaceae Opuntia cf. inamoena K. Schum. Quipá Cactaceae Cephalocereus piauhyensis Facheiro Cactaceae Pilocereus cf. gounellei Weber Xique-xique Caesalpinaceae Bauhinia sp. Miroró Caesalpinaceae Bauhinia sp. Pé-de-bode Caesalpinaceae Bocoa decipiens Cowan Cipó-branco Caesalpinaceae Apuleta Leiocarpa Amarelo Caesalpinaceae Caesalpinia bracteosa Tul. Catingueira/ Pau-de-rato Caesalpinaceae Caesalpinia ferrea Mart. Pau-ferro Tabela 05: Espécies vegetais levantadas no território da comunidade remanescente de quilombo da Sabonete 57 Família Nome científico Nome vulgar Caesalpinaceae Caesalpinia microphylla Mart. Arranca-estribo Caesalpinaceae Cassia excelsa Schrad. Canafístula Caesalpinaceae Cassia latistipula Benth. Vassourinha-preta Caesalpinaceae Cassia occidentalis L. Fedegoso Caesalpinaceae Cassia tora L. Mata-pasto Caesalpinaceae Caesalpinia Microphylla Mart. ex Dom Catinga-de-porco Caesalpinaceae Cenostigma gordnerianum Tul Canela-de-velho Caesalpinaceae Copaifera langdorsffii Desf. Pau-d’óleo Caesalpinaceae Copaifera sp. Cangalheiro Caesalpinaceae Diptychandra epunctata Tul Birro Caesalpinaceae Hymenaea sp. Jatobá Caesalpinaceae Poeppigia procera Presl. Var. conferta Benth. Caracu Caesalpinaceae Swartzia flamengii Raddi var. Jacarandá Capparaceae Capparis flexuosa Blume ex Hassk. Feijão-de-boi Capparaceae Cleome spinosa L. Muçambe Capparaceae Cleome tapia L. Trapia Caryocarataceae Cariocar Coriaceum Wittm Pequizeiro Celastraceae Salacia sp. Cipó Chrysoblanaceae Licania sp. Oiticica Chenopodiaceae Chenopodium Ambrosioides L. Mastruz, mentruz Combretaceae Combretum leprosum Mart. Ex. Eichl. Mofumbo Combretaceae Combretum sp. Farinha-seca Convolvulaceae Ipomoea spp. Jitiranas Convolvulaceae Operculina sp. Batata-de-purga Convolvulaceae Salsa Combretaceae Terminalia Kuhlmani Alwan & Stace Araçá Cucurbitaceae Luffa operculata Cogn. Cabacinha/ Bucha-paulista Cucurbitaceae Cucumis anguria Maxixe Cucurbitaceae Momordica charantia L. São-Caetano Ehretiaceae Cordia leucocephala Moric. Moleque-duro Ehretiaceae Cordia cf. piauhiensis Fresen Grão-de-galo Ehretiaceae Cordia trichotoma Vell. ex Steud. Frei Jorge Erythroxylaceae Erythroxylum sp. Catuaba Erythroxylaceae Erythroxylum sp. Comida-de-veado Erythroxylaceae Erythroxylum sp. Rompe-gibão Euphorbiaceae Argythammia gardnerii Muell. Arg. Quipá-de-folha Euphorbiaceae Cnidoscolus phyllacantus (Muell. Arg.) Pax. et K. Hoffman Favela Euphorbiaceae Cnidoscolus sp. Cansanção Euphorbiaceae Croton argyrophylloides Muell. Arg. Vassourinha Euphorbiaceae Croton sp. Velame Euphorbiaceae Croton sonderianus Muell. Arg. Marmeleiro Euphorbiaceae Croton cf. Sonderianus Pax & Hoff. Canelinha/ Mulatinha Euphorbiaceae Croton sp. Malva-preta Euphorbiaceae Croton sp. Manjericão Euphorbiaceae Croton sp. Quebra-facão Euphorbiaceae Jatropha sp. Pinhão Euphorbiaceae Manihot sp. Maniçoba Euphorbiaceae Phyllanthus niruri L. Quebra-pedra Euphorbiaceae Sapium sp. Pau-de-leite/ Pau-de-candeia Euphorbiaceae Tragia sp. Urtiga Euphorbiaceae Ricinus communis (L. em) M. Arg. Mamona Fabaceae Cratylia mollis Mart. ex Benth. Camaratuba Labiateae Hiptis sp. (L.) Poit. Bamburral Malvaceae Bogenhardia tiubae (K. Schum.) H. Mont. Malva-visguenta 60 Ordem Nome científico Nome vulgar Serpentes Waglerophis merremii Wagler Boipeva Chelonia Phrynops sp. Cágado Crocodilia Caiman crocodilus Jacaré Ordem Nome científico Nome vulgar Artiodactyla Tayassu tajacu Linnaeus Caititu Carnivora Felis yaguaroundi Geoffroy Jaguarundi/ Gato vermelho Carnivora Felis tigrina Scherener Gato macambira Carnivora Felis pardalis Jaguatirica/ Gato verdadeiro Carnivora Felis wiedii Gato maracajá Carnivora Dusicyon thous Linnaeus Raposa Carnivora Dusicyon vetulus Raposa Carnivora Conepatus semistriatus Cangambá Edentada Dasypus novemcinctus Linnaeus Tatu-verdadeiro Edentada Dasypus septencinctus Linnaeus Tatu-china Edentada Euphractus sexcinctus Wagler Tatu-peba Edentada Tolypeutes tricinctus Illiger Tatu-bola Edentada Tamandua tetradactyla Linnaeus Lapixó/ mixila Marsupialia Didelphis albiventer Saruê Primata Callithrix jacchus Zoinho Primata Cebus apella Goodwin Capuchinho Primata Alouatta caraya Lacépede Guariba Rodentia Dasyprocta cf. prymnolopha Cotia Rodentia Cunniculus paca Paca Rodentia Kerodon rupestris Wied Mocó Rodentia Galea spixii Wagler Preá Rodentia Trichomys apereoides Lund Rabudo Rodentia Oryzomis subflavus Wagner Rato Rodentia Calomys callosus Renger Catita Família Nome científico Emballonuridae Peropteryx macrotis Wagner Noctilionidae Noctilio leporinus Linnaeus Noctilionidae Noctilio albiventer Spix Mormoopidae Pteronotus parnellii Gray Phyllostomidae Micronycteris minuta Gervais Phyllostomidae Tonatia bidens Spix Phyllostomidae Mimon bennetii Gray Phyllostomidae Phyllostomus discolor wagner Phyllostomidae Phyllostomus hastatus Pallas Tabela 08: Principais representantes da classe Mammalia Tabela 09: Principais espécies de Chiroptera 61 Família Nome científico Phyllostomidae Trachops cirhosus Spix Glossophaginae Glossophaga soricina Pallas Glossophaginae Lonchophylla sp. Thomas Carolinae Carollia perspicillata Linnaeus Sturnirinae Sturnira lilium E. Geoffroy Stenodermatinae Chiroderma villosum Stenodermatinae Artibeus planirostris Spix Stenodermatinae Artibeus lituratus Olfers Desmodontinae Desmodus rotundus E. Geoffroy Desmodontinae Diphylla ecaudata Furipteridae Furipterus horrens Vespertilionidae Histiotus sp. Gervais Vespertilionidae Myotis nigricans Schinz Mollossidae Mollosus mollosus Pallas Mollossidae Nictinomus laticaudatus E. Geoffroy Família Nome científico Nome vulgar Tinamidae Crypturellus parvirostris Nambú chororó Tinamidae Crypturellus tataupa Nambú chitã Tinamidae Crypturellus noctivagus Zabelê Tinamidae Nothura boraquira Codorniz Podicipedidae Podiceps Dominicus Mergulhão Phalacrocoridae Phalacrocorax olivaceus Biguá Ardeidae Ardea cocoi Garça morena Ardeidae Casmerodius albus Garça-branca-grande Ardeidae Egretta thula Garça-branca-pequena Ardeidae Butorides striatus Socózinho Ardeidae Bubulcus ibis Garça boiadeira Ardeidae Syrigma sibilatrix Maria faceira Ardeidae Nycticorax nycticorax Socó dorminhoco Ardeidae Tigrisoma lineatum Socó-boi Ardeidae Ixobrychus involucris Socó beija-flor Ciconidae Mycteria americana Jaburu/ Cabeça seca Anatidae Dendrocygna viduata Marrecas Anatidae Dendrocygna autumnalis Irerê Anatidae Amazonetta brasiliensis Marreca cabocla Anatidae Cairina moschata Marreca pé-vermelho Cathartidae Sarcoramphus papa Urubu-rei (raro) Cathartidae Coragyps atratus Urubu preto Cathartidae Cathartes aura Urubu caçador Cathartidae Cathartes burrovianus Urubu de cabeça amarela Accipitridae Heterospizias meridionalis Gavião caboclo Tabela 10: Principais espécies da classe Ave 62 Família Nome científico Nome vulgar Accipitridae Buteo magnirostris Gavião pinhé Accipitridae Buteo brachyurus Gavião de barriga branca Falconidae Micrastur ruficollis Gavião caburé Falconidae Herpetotheres cachinnans Acauã Falconidae Milvago chimachima Carrapateiro Falconidae Polyborus plancus Carcará Falconidae Falco sparverius Quiri-quiri Cracidae Penelope superciliaris Jacu-pemba Cracidae Penelope jacucaca Jacu-caca Aramidae Aramus guarauna Carão Rallidae Aramides cajanea Três potes Rallidae Laterallus melanophaius Pinto do brejo Rallidae Gallinula chloropus Frango d’água Rallidae Porphyrula martinica Frango d’água azul Cariamidae Cariama cristata Seriema Jacanidae Jacana jacana Jaçanã Charadriidae Vanellus chilensis Teu-teu Columbidae Columba picazuro Asa branca Columbidae Zenaida auriculata Avoante Columbidae Columbina minuta Rolinha asa canela Columbidae Columbina talpacoti Rolinha caldo de feijão Columbidae Columbina picui Rolinha Columbidae Claravis pretiosa Rola azul Columbidae Scardafella squammata Fogo apagou Columbidae Leptotila verreauxi Juriti Psitacidae Ara chloroptera Arara vermelha Psitacidae Aratinga leucophtalma Periquito Psitacidae Aratinga cactorum Periquito Psitacidae Forpus xanthopterygius Tuim Psitacidae Amazona aestiva Papagaio Cuculidae Coccyzus melacoryphus Papa lagarto Cuculidae Piaya cayana Alma de gato Cuculidae Crotophaga ani Anu preto Cuculidae Crotophaga major Anu coroca Cuculidae Guira guira Anu branco Cuculidae Tapera naevia Sem fim Tytonidae Tyto alba Coruja de igreja Strigidae Otus choliba Corujinha Strigidae Glaucidium brasilianum Caburé Nyctibiidae Nyctibius griseus Mãe-da-lua Caprimulgidae Nyctidromus albicollis Bacurau Caprimulgidae Hydropsalis brasiliana Curiango tesoura Apodidae Streptoprocne zonaris Andorinha de coleira Apodidae Streptoprocne biscutata Andorinha de coleira falha Trogonidae Trogon curucui Surucuá de barriga vermelha Galbulidae Galbula ruficauda Bicos de agulha 65 Foto 48 – Áreas onduladas ocupadas com pastagem. V.04. Descrição e classificação do relevo O relevo do território é bastante movimentado, com predomínio do relevo suave ondulado a ondulado, mas ocorrem todas as classes de declividade desde a Classe A (fraca) até a Classe G (escarpada). V.05. Classes de capacidade de uso das terras Com base nos tipos de intensidade do uso, nos graus de limitação de uso e na natureza de limitação, as terras do território foram classificadas no Sistema de Capacidade de Uso, com predomínio das classes IV e VI. CAPACIDADE DE USO % DA ÁREA ÁREA (ha) III 10,00 184,4385 IV 40,00 737,7537 VI 21,50 396,5426 VII 20,00 368,8768 VIII 8,50 156,7726 T O T A L 100 1.844,3842 Abaixo segue as descrições das classes e subclasses de capacidade de uso encontradas no imóvel, segundo o Manual para Levantamento Utilitário do Meio Físico e Classificação de Terras no Sistema de Capacidade de Uso. (Lepsch et alli, 1991): Classe III - São terras próprias para lavouras em geral mas que, quando cultivadas sem cuidados especiais, ficam sujeitas a severos riscos de depauperamento, principalmente no caso de culturas anuais. Requerem medidas intensas e complexas de conservação de solo, a fim de poderem ser cultivadas segura e permanentemente, com produção média e elevada, de culturas anuais adaptadas. IIIc: terras praticamente planas a suavemente onduladas, com moderadas limitações climáticas, como escassez de água em regiões semi-áridas. As terras incluídas nessa subclasse estão restritas às áreas de baixões com solos mais férteis e mais úmidos que a Tabela 11: Distribuição das terras no sistema de capacidade de uso (estimativa com base n área efetivamente caracterizada – sem a gleba Catuaba). 66 maioria dos solos da região, normalmente utilizadas para o cultivo de subsistência, e o principal fator limitante é a seca edafológica média. Classe IV - São terras que tem riscos ou limitações permanentes muito severas quando usadas com culturas anuais. Os solos podem ter fertilidade natural boa ou razoável, mas não são adequados para cultivos intensivos e contínuos. Em algumas regiões, onde a escassez de chuvas seja muito sentida, de tal maneira a não serem seguras sem irrigação, as terras deverão ser classificadas na classe IV. Subclasse IVc – Terras com limitação climática moderada a severa, ocasionando períodos prolongados de seca, não sendo possíveis colheitas em anos muito secos. Foram enquadrados nesta subclasse parte da associação R 16 com ARGISSOLOS VERMELHOS-AMARELOS, sendo os principais fatores limitantes foram seca edafológica longa, pedregosidade, profundidade efetiva rasa e riscos de erosão. Classe VI – terras impróprias para culturas anuais, mas que podem ser usadas para produção de certos cultivos permanentes úteis, como pastagens, florestas artificiais e, em alguns casos, mesmo para algumas culturas permanentes protetoras do solo, desde que adequadamente manejadas. Normalmente as limitações que se apresentam, são em razão da declividade excessiva ou pequena profundidade do solo, ou presença de pedras impedindo o emprego de máquinas agrícolas. Nas regiões semi-áridas, a excassez de umidade, muita vezes, é a principal razão para o enquadramento da terra na classe VI. Subclasse VI s – terras constituídas por solos rasos ou, ainda, com pedregosidade (30-50 %) e/ou rochas expostas na superfície. No caso em tela as terras incluídas nessa subclasse estão localizadas nas área onduladas com solos rasos, muito pedregosos e seca edafológica muito longa (parte da associação de SOLOS LITÓLICOS + ARGISSOLO VERMELHO-AMARELO CONCRECIONÁRIO). Classe VII – Terras que por serem sujeitas a muitas limitações permanentes, além de serem impróprias para lavouras, apresentam severas limitações, mesmo para certas culturas pemanentes protetoras do solo, sendo seu uso restrito para pastagem e reflorestamento com cuidados especiais. Sendo altamente susceptíveis de danificação, exigem severas restrições de uso, com práticas especias. Normalmente, são muito íngrimes, erodidas, pedregosas ou com solos muito rasos, ou ainda com deficiência de água muito grande. Subclasse VII s – terras pedregosas (mais de 50 % de pedregosidade), com associações rochosas, solos rasos a muito rasos ou, ainda, com a agravante de serem constituídas por solos de baixa capacidade de retenção de água. Essas subclasses estão normalmente localizadas em parte da associação de SOLOS LITÓLICOS + ARGISSOLO VERMELHO-AMARELO CONCRECIONÁRIO. Classe VIII – Terras impróprias para serem utilizadas com qualquer tipo de cultivo, inclusive o de florestas comerciais ou para produção de qualquer outra forma de vegetação permanente de valor econômico. Prestam-se apenas para proteção e abrigo da fauna e flora silvestre, para fins de recreação e turismo ou de armazenamento de água em açudes. Foram enquadradas nesta classe as faixas de terras com vegetação ao longo dos cursos d’ água apropriadas para preservação permanente (proteção contra erosão, assoreamento, etc.), bem como as áreas ocupadas com lagoas e sua faixas de preservação, áreas com relevo escarpado e afloramentos rochosos. 67 V.06. Recursos hídricos O território localiza-se na região semi-árida, mas é cortado pelo Rio Canindé, num trecho a jusante da Barragem da Pedra Redonda em Conceição do Canindé, que mantém-se perenizado mesmo no longo período de estiagem. Foto 49: Rio Canindé. Foto 50: Lagoa ao lado do Rio Canindé. Foto 51: Caldeirão (Na montanha rochosa). Foto 52: Rio Canindé. Foto 53: Cisterna de placas (numeração do P1MC no detalhe). Foto 54: Cisterna de placa ao lado de residência. 70 Foto 61: Colméias em produção. Foto 62: Abelha índigena. DISTRIBUIÇÃO DAS ÁREAS Área (ha) Indicador de restrição Área colhida (ha) Resp. pela exploração I – ÁREAS DE PASTAGEM Tipo de pastagem Vegetação nativa - pastagem natural Pastagem plantada (pisoteio e corte) 1.625,1063 4,9674 SR SR Posseiros Posseiros II – ÁREAS DE USO AGRÍCOLA Tipo de culturas Culturas temporárias Culturas permanentes 37,5071 SR SR Posseiros Posseiros III- ÁREAS COM OUTROS USOS Áreas inaproveitáveis Estradas e linhas de transmissão Lagoa 115,7329 59,0119 4,6162 INAP INAP IV – ÁREAS COM RESTRIÇÃO Área de Preservação Permanente 12,7944 PP V – ÁREAS SEM USO Vegetação nativa – aproveitável não utilizada SR T O T A L 1.844,3842 OBS: SR = sem restrição; RL = Reserva Legal Averbada; PP = Preservação Permanente; INAP =Inaproveitável. As áreas de preservação permanente correspondem as faixas de proteção ao longo dos riachos e lagoas, e nas encostas de morros, conforme determina o Código Florestal. V.09. Identificação das benfeitorias - Cercas de arame farpado com número de fios variáveis; - Cercas de faxina e varas com arame farpado; - Cercas de pedras; - Pastagem plantada com capim de pisoteio andropogon; Tabela 12: Uso atual do Território Quilombola de Sabonete (área efetivamente caracterizada). 71 - Pastagem plantadas com capim elefante napier; - Cisternas de placas; - Barreiros de terra; - Poços cacimbões; - Casas de posseiros construídas, geralmente, em alvenaria de tijolo comum e cobertura de telha comum; - Vários currais de madeira roliça; - 01 escola; - Estradas internas. O Território Quilombola de Sabonete é cortado pela BR-020 e por uma Linha de Transmissão da Chesf. Foto 63: Rede de distribuição da Chesf. Foto 64: Cercas de faxina. Foto 65: Cerca de varas com arame farpado. Foto 66: Curral de madeira roliça. V.10. Fragilidades ambientais Conforme caracterização já detalhada nos itens 9.1 a 9.5, o território em estudo localiza-se em região semi-árida (conhecida no Nordeste como polígono das secas), de bioma de caatinga, ecossitema caracterizado pela sua fragilidade ambiental, originada, principalmente, pela escassez e a distribuição irregular das precipitações pluviométricas. De modo geral, a Caatinga tem sido descrita na literatura como pobre e de pouca importância biológica. Porém, levantamentos recentes mostram que esse ecossistema possui significativo número de espécies endêmicas, ou seja, que ocorre apenas nessa região, e que devem ser consideradas como patrimônio biológico de valor inestimável (Sampaio et al, 72 2002, citado por CONSELHO NACIONAL DA RESERVA DA BIOSFERA DA CAATINGA, 2004). Algumas características da região onde localiza-se o Território Quilombola de Sabonete, tais como, o alto índice de aridez, a ação das chuvas, concentradas e torrenciais, cumuladas com ação dos ventos, de velocidade excessiva, a existência de classes de solos com grande suscetibilidade à erosão (Argissolos Vermelho-Amarelos e Neossolos Litólicos), situados em áreas com relevo ondulado e com muita pedregosidade, associados a fatores culturais, tais como, atividade pecuária com pastoreio sem controle (superpastoreio sem rotatividade), o não uso de técnicas conservacionistas de solos, os desmatamentos em áreas inclinadas, aliados ao tempo de ocupação (longo período de uso com pastagens desde à época imperial), tem submetido parte das terras a riscos de erosão e degradação ambiental. Entretanto, diferente da região, que tem uma tendência à desertificação (observa-se com facilidade terras erodidas e muitas vezes sem cobertura vegetal), no Território de Sabonete não observou-se áreas com problemas graves de erosão. V.11. Passivo ambiental Os impactos positivos da agropecuária como oferta de alimentos e produtos essenciais à vida humana, geração de empregos e fixação do homem no campo são evidentes e de grande importância para a sociedade. No entanto, a agropecuária se utiliza e/ou interfere nos recursos naturais podendo provocar impactos ambientais negativos, sendo considerada uma atividade potencialmente degradadora e/ou poluidora do meio ambiente (FERREIRA, 2000, citado por VIDAL, 2006). Os principais problemas ambientais encontrados no Território Quilombola de Sabonete são: - Território reduzido para o números de famílias residentes; - Empobrecimento dos ecossistema e perda da produtividade dos solos; - Desmatamento em área muito inclinadas através de queimadas para a implantação de pastagens sem a utilização de práticas conservacionistas (em áreas com solos muito suscetíveis à erosão); - Desmatamento das matas ciliares, ocasionando assoreamento dos corpos d’água; - Retirada de madeira sem planejamento florestal adequado; - Ocorrência alta de vetores da Doença de Chagas, resultante da alta infestação de barbeiro e das moradias sem reboco. Abaixo, segue a lista de ocorrências de problemas ambientais, conforme exigência da Resolução No 289/2001, do CONAMA, assinalados de acordo com a situação detectada: (sim) Erosão; (sim) Compactação de solos; (sim) Assoreamento; (sim) Salinização dos solos; (não) Alagamento dos solos; (não) Obstrução de cursos d’água; (não) Diminuição da vazão de corpos d’água em níveis críticos; (sim) Inundações temporárias (baixões); (não) Comprometimento da vazão de água subterrânea; 75 agronômica e ambiental, bem como no levantamento fundiário realizado in loco e no Cartório de Registro de Imóveis das Comarcas de Simplício Mendes, Oeiras e Isaías Coelho. A proposta delimitação apresentada pelo Grupo Técnico atende aos requisitos estabelecidos pelos artigos 68, 215 e 216, Ato das disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição Federal, pelo Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003 e, Lei Estadual No 5.595, 01 de agosto de 2006 . A terra dos remanescentes de Quilombo do Sabonete ora identificada e delimitada está localizada no espaço que os quilombolas reconhecem como território ancestral, que a habitam e usam produtivamente de forma permanente e imemorial. Ela contém ainda as áreas imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao bem estar e à reprodução física e cultural dessa população quilombola, segundo seus usos, costumes e tradições. O acesso irrestrito a toda área do quilombo do Sabonete significa ainda, a possibilidade de manterem para si e para seus descendentes um espaço físico, um “habitat” natural, onde realizam vida social, em comunidade, onde estruturam a organização econômica e política da sociedade. Como garantia de segurança produtiva, o Estado deverá providenciar a ampliação da atual área ocupada pela Comunidade, propondo uma nova área para plantio o mais breve possível, de maneira a integrar as várias comunidades da região. É de extrema importância que o artigo 216 da constituição seja aplicado nesta comunidade de remanescente do Quilombo Sabonete, ou seja, que sejam reconhecidos como integrantes do patrimônio cultural brasileiro, assim como os bens de natureza material e imaterial nos termos norteadores do Programa. Com base na reivindicação dos quilombolas, nos Artigos 68, 215 e 216, Ato das disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição Federal, no Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003 e, na Lei Estadual No 5.595, de 01 de agosto de 2006, recomendamos que a área dos remanescentes da Comunidade do Sabonete seja titulada e que seu patrimônio material e imaterial sejam tombados, pois são reminiscências históricas quilombolas. Teresina,(PI), 08 de abril de 2008. 76 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUIAR, R.B. & GOMES, J.R.C. Projeto Cadastro de Fontes de Abastecimento por Água Subterrânea. Estado do Piauí. Diagnóstico do Município de Fartura do Piauí. 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