Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

agrofloresta - aprendendo - a-produzir - com - a-natureza, Notas de estudo de Engenharia Florestal

Ensinamentos para um futuro policultor

Tipologia: Notas de estudo

2014

Compartilhado em 04/07/2014

thiago-de-assis-tavares-2
thiago-de-assis-tavares-2 🇧🇷

5

(4)

3 documentos

Pré-visualização parcial do texto

Baixe agrofloresta - aprendendo - a-produzir - com - a-natureza e outras Notas de estudo em PDF para Engenharia Florestal, somente na Docsity! AGROFLORESTA APRENDENDO À PRODUZIR COM À NATUREZA PRETA) se X Walter Steenbock Fabiane Machado Vezzani Ilustrações de Claudio Leme Walter Steenbock Fabiane Machado Vezzani Ilustrações de Claudio Leme agrofloresta aprendendo a produzir com a natureza 1ª edição Curitiba Fabiane Machado Vezzani 2013 Sobre nos Walter Steenbock Engenheiro Agrônomo, Mestre e Doutor em Recursos Genéticos Vege- tais pela Universidade Federal de Santa Catarina. Analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, atuando na Co- ordenação Regional do Instituto no Sul do Brasil. Desenvolve pesquisas na área de sistemas agroflorestais e manejo de populações naturais de plan- tas. Email: walter.steenbock@icmbio.gov.br Fabiane Machado Vezzani Engenheira Agrônoma, Mestre e Doutora em Ciência do Solo pela Uni- versidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora do Departamento de Solos e Engenharia Agrícola e docente permanente do Programa de Pós- -Graduação em Ciência do Solo da Universidade Federal do Paraná. Atua na área de Manejo Ecológico do Solo e desenvolve pesquisas no tema Qualida- de do Solo. Email: vezzani@ufpr.br Claudio Leme Ferreira Artista gráfico e músico. Atua na comunicação de projetos socioam- bientais e em atividades relacionadas à diversidade cultural e espiritual. Email: clauleme@yahoo.com.br sumario Apresentação Parte 1 Sistemas vivos 12 Sistemas agroflorestais como sistemas vivos 22 O papel da fotossíntese 26 A busca pela eficiência fotossintética nos sistemas agroflorestais 33 O papel da sucessão ecológica 40 O uso do conhecimento da sucessão ecológica na prática agroflorestal 50 O solo como resultado da prática agroflorestal 54 O manejo do solo agroflorestal 69 Os caminhos da biodiversidade 75 O manejo da biodiversidade em sistemas agroflorestais 81 Parte 2 Linhas gerais para a prática agroflorestal 90 1. Identificando o espaço para a prática agroflorestal 91 2. Implantando uma agrofloresta 97 3. Manejo inicial do capim e das espécies de ciclo curto 121 4. Manejo de agroflorestas maduras 127 4.1 Poda de estratificação 131 4.2 Poda de frutificação 133 4.3 Poda de eliminação 134 4.4 Cuidados na poda 135 5. “Completando” agroflorestas 137 6. Renovação da agrofloresta 138 9 A concepção geológica, climática, biogeográfica, evolutiva e ecologi- camente dinâmica da biodiversidade indica que, mais que a preservação das espécies ou comunidades de forma isolada, o objetivo central da con- servação biológica é possibilitar a continuidade dos processos evolutivos e ecológicos (Pickett & Rozzi, 2000). Richard Primack, um dos mais expoentes representantes da biologia da conservação atual, em conjunto com outros colegas, descreve que, se pensarmos metaforicamente que a vida é como a música e esperarmos que a música siga vibrando, então não devemos pretender guardar os instrumentos musicais em vitrines e evitar que sejam tocados por seres humanos, mas sim devemos estimular que os músicos possam tocar delicadamente as cordas em um quarteto, reverberar os tam- bores e respirar com as flautas, mantendo o movimento musical adequado ao tempo. É com essa perspectiva que se trará a biodiversidade em nível de genes, populações, espécies, comunidades biológicas, ecossistemas e regiões (Rozzi et al., 2001). Fazer agrofloresta, nesta metáfora, é perceber e tocar a música. A prática agroflorestal envolve captar e entender como os processos vi- tais, os ciclos biogeoquímicos e as relações ecológicas estão acontecendo, identificando como potencializá-los para o aumento de fertilidade, produti- vidade e biodiversidade naquele espaço. Essa identificação deve recorrer, sem dúvida, ao uso de conhecimentos acumulados, tanto a partir da prática acadêmica quanto a partir da prática produtiva – ou seja, ao uso do conhecimento científico e do saber ecológico local. Mas, essa identificação envolve também, com igual importância, o “perguntar” ao ambiente o que ele está fazendo no rumo do incremento de fertilidade e biodiversidade. Assim, fazer agrofloresta consiste em trazer as ferramentas do conhecimento para utilizá-las nos processos naturais daquele espaço, naquele momento, em um movimento constante e balan- ceado entre percepção e prática. Em outras palavras, fazer agrofloresta é manter um diálogo constante com o ambiente natural, conversando com seus processos e relações, perguntando o que é mais adequado ao seu fluxo 10 e, ao trazer sua contribuição a este fluxo, receber dele a produção de ali- mentos. Assim, fazer agrofloresta é, também, educar-se ambientalmente. Este livro traz alguns conceitos de ecologia, discutindo sua aplicação na prática agroflorestal. Não parte, entretanto, de hipóteses da aplicação desses conceitos, mas, principalmente, de “trazer ao papel”, ainda que de forma fragmentada, a aplicabilidade desses conceitos, experienciada, espe- cialmente, por agricultores familiares associados à Cooperafloresta (Asso- ciação de Agricultores Agroflorestais de Barra do Turvo - SP e Adrianópolis - PR). Há quase duas décadas, agricultores e técnicos destes municípios, no Alto Vale do Rio Ribeira, entre Paraná e São Paulo, vêm produzindo ali- mentos em conjunto com o incremento de fertilidade e conservação do solo, de biodiversidade, de autonomia e de segurança alimentar, por meio da agrofloresta. Hoje, nessa região, mais de uma centena de famílias têm na prática agroflorestal sua opção de produção e reprodução familiar, de- monstrando, assim, esse caminho. Na primeira parte deste livro, apresentam-se e discutem-se conceitos ecológicos de forma contextualizada com a prática agroflorestal. Na se- gunda parte, descreve-se, brevemente, como as famílias agricultoras da Cooperafloresta fazem isso. Longe da pretensão de detalhar profundamente os conceitos, e mais longe ainda da pretensão de descrever todos os aspectos relacionados à prática agroflorestal, pretende-se que este livro possa ajudar estudantes, agricultores e professores a utilizarem a agrofloresta como caminho, ou como música. Parte 1 14 constitui um ecossistema. São redes dentro de redes. E nessa organização é que se forma a “rede alimentar” do planeta (e do Universo...). Figura 1. Representação esquemática do padrão de rede no espectro de moléculas a organismos superiores. O aspecto dos sistemas vivos serem abertos está baseado em que os organismos para manterem-se vivos precisam alimentar-se de um fluxo contínuo de energia e matéria assimiladas do ambiente. E é desta forma que os sistemas vivos são abertos do ponto de vista energético e material, fazendo uso de um fluxo constante de energia e matéria para produzir, reparar e perpetuar a si mesmos. Todos os organismos vivos produzem dejetos continuamente, e esse fluxo de energia e matéria (alimento e excre- ção) estabelece o lugar que eles ocupam na rede alimentar. Dito de outra 15 forma, nesse fluxo, o que cada um precisa e libera define o seu lugar na rede alimentar, como mostra a Figura 2. Nesse sentindo, Capra (2005) afirmou: “Os limites entre esses sistemas não são limites de separação, mas limites de identidade; todos os sistemas vivos comunicam-se uns com os outros e partilham seus recursos, transpondo limites”. Em um ecossistema, as trocas de energia e matéria são sustentadas por uma “cooperação generalizada” (Capra, 2005). Figura 2. Representação esquemática de uma rede alimentar. O fluxo constante de energia e matéria que caracteriza os sistemas vivos faz com que estes sistemas estejam sempre longe do equilíbrio ter- modinâmico. Relembrando a termodinâmica clássica, os sistemas são clas- 16 sificados em isolados, aqueles que não trocam energia nem matéria com o meio; fechados, aqueles que trocam energia, mas não trocam matéria com o meio; e os abertos, que trocam energia e matéria com o meio. A defini- ção de “equilíbrio” de um sistema é oriunda da termodinâmica clássica e é tida como o ponto de mínima produção de energia livre que um sistema fechado alcança. Observe a Figura 3, que representa a energia livre de uma reação química (energia livre de Gibbs), definida como um sistema fechado na termodinâmica clássica. O ponto de “equilíbrio” é atingido quando todos os reagentes reagiram e produziram os produtos. A energia livre era máxi- ma no início da reação, antes de os reagentes serem misturados, e atingiu um valor mínimo, quando todo o produto foi formado. A partir do ponto de equilíbrio, a reação cessa. Portanto, o equilíbrio termodinâmico é um estado característico de sistemas fechados, no qual o sistema, após receber uma quantidade de energia e matéria, tende para um estado estacionário, onde não ocorrem mais alterações nas concentrações dos reagentes nem dos produtos. Como os sistemas abertos recebem, continuamente, um fluxo de energia e matéria, o equilíbrio nos sistemas vivos nunca é atingido. Figura 3. Representação esquemática da variação da energia livre de Gibbs (EL) durante a reação entre reagentes (reag) transformando em produtos (prod) e indicando o ponto de “equilíbrio” em sistema fechado (uma reação química). Fonte: adaptado de Russel (1994). 19 decomposição, quando a magnitude de energia e matéria que passa pelo sistema diminui e, através da corrente de relações não lineares entre os elementos, um novo estado de ordem emerge, porém com menor quantida- de de energia e matéria retida. Quando isso ocorre, o andamento do fluxo resulta no surgimento de estados de ordem em níveis energéticos sucessi- vamente mais baixos, que se caracterizam pela crescente simplicidade da estrutura e das suas formas de comportamento, resultado de relações sim- ples entre os elementos e de baixa quantidade de energia e matéria retida. O sistema tende à decomposição (Vezzani & Mielniczuk, 2011). Figura 6. Representação esquemática do caminho seguido pelo sistema (linha contínua), que se auto-organiza em estados de ordem (indicados por letras e números) em diferentes níveis de complexidade em função do fluxo de energia e matéria. Essa representação também ilus- tra o comportamento do sistema solo-plantas-organismos, onde partículas minerais, maté- ria orgânica e raízes formam agregados de estrutura cada vez mais complexa (estado de ordem a3) ou cada vez mais simples (estado de ordem b3), conforme será detalhado adiante (ver Figura 20). Fonte: em analogia a Prigogine (1996). Andamento do fluxo de energia e matéria N ív el d e co m pl ex id ad e Desenvolvimento Decomposição 20 Em cada estado de ordem nos distintos níveis de complexidade, surgem as propriedades emergentes. As propriedades emergentes do sistema são a manifestação das relações não lineares entre os elementos que compõem cada estado de ordem. À medida que aumenta o nível de complexidade, a estrutura se torna mais diversificada e complexa, e maior quantidade de energia e matéria é retida (veja o estado de ordem a3 na Figura 6). O au- mento no número de elementos do sistema gera aumento nas relações não lineares, o que irá refletir no aumento das suas propriedades emergentes. Portanto, em nível de complexidade alto, as propriedades emergentes são em maior número, capacitando o sistema a funcionar em situações diversas e, dessa forma, manter a sua integridade frente a perturbações. Por outro lado, nos sistemas de estrutura mais simples (estado b3 na Figura 6), o nú- mero e a função das propriedades emergentes são baixos, e o sistema tem menor capacidade de manter sua integridade. Entendendo esses três aspectos do funcionamento dos sistemas vivos – fechados na organização, abertos no fluxo e capacidade de auto-organiza- ção –, fica clara a definição de Prigogine quando ele afirma que os sistemas vivos são Estruturas Dissipativas (Prigogine, 1996; 2002; Prigogine & Sten- gers, 1992; 1997), porque a mesma energia que dissipa o sistema (aquela que passa pela rede de relações não lineares através do fluxo) é a energia que gera ordem. A ordem e a desordem estão constantemente presentes nos sistemas vivos, gerando desenvolvimento ou decomposição. Portanto, as redes vivas criam ou recriam a si mesmas continuamente mediante a transformação ou a substituição dos seus componentes (Ca- pra, 2005). Este processo de autogeração ou autocriação foi definido por Maturana & Varela (2001) como autopoiese, no qual a definição sistêmica da vida encontra seus principais fundamentos. Os sistemas vivos sofrem mudanças estruturais contínuas ao mesmo tempo em que preservam seus padrões de organização em redes de relações e constituem-se a si mesmos. A característica de autopoiese dos sistemas vivos é o que os difere clara- mente dos sistemas não vivos, ou seja, os sistemas vivos têm a capacidade 21 de reproduzirem a si mesmos! Por isso, o fenômeno da vida tem de ser compreendido como uma pro- priedade do sistema como um todo (Capra, 2005). A vida só existe pelo re- sultado das relações entre os seus componentes, cada um executando sua função, o que permite que os demais componentes se mantenham ativos também. E essa característica extrapola para a relação do sistema vivo com o meio. O meio é resultado das relações com os sistemas vivos, e os sistemas vivos são resultados das relações com o meio, como nos dizem Lovelock e Margulis na Teoria de Gaia. 24 existam. É a vida funcionando! O aprendizado das várias espécies, ao longo da evolução, tem sido “se localizar” neste processo. Cada uma tem seu nicho ecológico, ou seja, um espaço onde a luz, a temperatura, a umidade, a relação com outras espécies e tantas outras condições são adequadas a ela. Ao estar ali, por sua vez, “funcionando”, cada indivíduo de cada espécie produz substâncias e condições adequadas para outros organismos. Isso possibilita a vida coletiva, a constante cria- ção de novas formas de adaptação e, consequentemente, a ampliação da biodiversidade. Fazer agrofloresta é identificar as estruturas e os mecanismos de fun- cionamento da vida no local de fazer agricultura, “ocupando o nicho” huma- no por meio do manejo agroflorestal e orientando o sistema para a produ- ção de alimentos e outros produtos em meio à produção de biodiversidade e da troca entre os seres vivos. A Figura 8 demonstra essa lógica. Figura 8. Representação esquemática da configuração de um sistema agroflorestal. O sistema agroflorestal é, portanto, um sistema vivo e, como tal, a sua configuração é na forma de redes dentro de redes; onde ocorrem os fluxos de energia e matéria, movidos pela energia solar; onde os elementos que compõem o sistema estão numa cooperação generalizada, interligados por alianças e parcerias; onde a diversidade imprime maior capacidade de fun- cionamento e orienta para a manutenção de um estado estável, mantendo (e até melhorando) a função do ecossistema. 26 O papel da fotossintese Como vimos, todo sistema vivo possui um fluxo contínuo de energia e matéria. Esse fluxo inicia com a fotossíntese. A fotossíntese é o processo em que as plantas (e algumas bactérias) utilizam a energia luminosa proveniente de parte da radiação solar que chega à superfície da Terra e a transformam em energia química. Durante esse processo, as plantas captam CO2 da atmosfera e absorvem nutrientes e água do solo, produzindo a sua matéria. Então, a produção de matéria vegetal da parte aérea das plantas (troncos, galhos, folhas, frutos e semen- tes), das raízes e exsudatos (compostos orgânicos liberados pelas raízes) é oriunda da energia solar, que promove o início das cadeias alimentares do planeta Terra. Figura 9. Representação esquemática do processo de fotossíntese. Portanto, a matéria de todas as formas vivas, no planeta, existe por causa da fotossíntese. A fotossíntese se constitui, fundamentalmente, na 29 edáficos. Bem estruturado, o solo permite a infiltração e a manutenção de água em seus microporos e nos lençóis freáticos. Durante um período de chuva, portanto, parte da água é mantida nos próprios vegetais e parte é acumulada no solo. Em um período de déficit de água, essa água acumulada pode ser usada pelas plantas, mantendo o processo de fotossíntese, ou realocada para a atmosfera (Pianka, 1994). A estrutura florestal também influencia a forma da incidência de luz, determinando a eficiência fotossintética. A intensidade de luz varia com a altura da floresta. Árvores altas, com as copas no dossel, recebem incidên- cia total de radiação solar, enquanto árvores mais baixas e arbustos rece- bem progressivamente menos luz. Semelhante ao que ocorre com a chuva, em florestas bem densas, menos de 1% da luz solar chega diretamente ao solo (Figura 10). Figura 10A. Percentagem de luz que chega às plantas. Fonte: adaptado de Pianka (1994). 30 Figura 10B. Percentagem de gotas de chuva que chegam diretamente ao solo em uma floresta tropical. A variação de luz que chega a cada planta influencia, também, o próprio gasto de energia para receber essa luz. Apesar de uma árvore do dossel ter mais energia solar disponível do que uma erva próxima ao solo, a árvore precisa despender muito mais energia para os tecidos de suporte (madeira) do que a erva. Ao mesmo tempo, plantas do sub-bosque são, frequentemen- te, muito mais tolerantes à sombra e capazes de fazer fotossíntese em me- nores taxas de incidência luminosa. Assim, cada espécie vegetal, com sua estratégia de crescimento e forma de vida, apresenta seus próprios custos e benefícios (Pianka, 1994). Em uma floresta tropical, além do gradiente vertical de incidência lu- minosa e de água da chuva, existe também uma variação espacial, ou hori- zontal, destes fatores. Isso porque a formação natural de clareiras, nestas florestas, é muito frequente. As clareiras são formadas, geralmente, por quedas naturais de árvores e, por vezes, a partir de incêndios. Quando isso 31 acontece, há uma maior entrada de luz na clareira do que no restante da floresta. Em termos gerais, isso aumenta a taxa de produtividade primária nas clareiras, ou seja, a velocidade em que o carbono originado da atmos- fera é transformado em matéria vegetal. Isso ocorre porque há mais fixação de carbono atmosférico em forma de tecidos vegetais do que a produção de gás carbônico, via respiração, pelas plantas. É neste momento que vá- rias plântulas que estavam recebendo pouca luz passam a crescer mais rapidamente, e que muitas sementes presentes no solo são estimuladas a germinar, em função do aumento da temperatura do solo. A formação de clareiras é o principal “motor” de fixação de carbono, via fotossíntese, nas florestas tropicais, pois, na medida em que uma nova for- mação florestal vai se estabelecendo, uma grande quantidade de gás carbô- nico vai sendo fixado na forma de tecidos vegetais (matéria vegetal). Porções de florestas maduras têm um saldo praticamente nulo entre a quantidade de carbono fixada e a quantidade de carbono emitida, a partir de sua respiração. Em estudo realizado em 25 florestas tropicais “maduras”, Clark (2002) identi- ficou que esse saldo é, em média, de apenas 0,3 mg C ha-1ano-1. Não obstante as clareiras variarem em seu tamanho, o fato de ocorre- rem em meio a uma floresta permite, apesar do aumento de luz e chuva no solo da clareira, que haja uma cobertura florestal em formação, mantendo- -se, em nível espacial maior, as características florestais. A partir das últimas décadas do século XX, vários trabalhos passaram a identificar que a formação de clareiras em florestas tropicais é de fato muito mais comum do que se imaginava, ocupando grandes percentagens de áreas das florestas e com períodos de rotação (tempo para uma clareira voltar a ser clareira) relativamente curtos (Brokaw, 1985; Martínez-Ramos et al., 1988; Oliveira, 1997). Desde então, vem sendo cada vez mais aceita a concepção de florestas tropicais como mosaicos de clareiras, de diferentes idades e tamanhos. Isso contribui fortemente para o aumento da biodiversi- dade em nível regional, considerando a variação de adaptações das espécies às diferentes condições de luminosidade, temperatura, umidade e demais 34 capoeiras tendem a ser muito mais férteis e mais fáceis de se tornarem “completas”. Isso porque há um acúmulo de matéria vegetal nas capoei- ras, proveniente da produtividade primária, que, se bem manejado, pode se constituir em potencialização da produtividade das agroflorestas implanta- das posteriormente nessas áreas. O manejo agroflorestal, na Cooperafloresta, tem estabelecido um uso do solo em que são mantidos quatro hectares de capoeiras para um hectare de agrofloresta (as agroflorestas se constituem em 21,5% da área constituída pelo somatório de áreas de agroflorestas e capoeiras). Assim, no sistema agroflorestal praticado pelos associados da Cooperafloresta, existem dois mecanismos, um formador de agrofloresta e outro de capoeira que, rotacio- nados ao longo do tempo no espaço das propriedades, ocupam hoje 74% da paisagem das áreas das famílias agricultoras (Steenbock et al., 2013a). É notória, nessa forma de manejo, a semelhança com a dinâmica de clareiras – principal processo de otimização da produtividade primária (ma- téria vegetal produzida pela fotossíntese) nas florestas tropicais. Brokaw (1985) identificou, em floresta tropical, que as clareiras, originadas por que- da de parte de árvore, por uma ou por várias árvores, somavam 25% da área total da floresta (Tabela 1). Tabela 1. Área e frequência de tipos de clareiras em florestas tropicais. Fonte: adaptado de Brokaw (1985). Oliveira (1997), revisando diferentes trabalhos, caracterizou o tempo médio de rotação – o período em que uma clareira tende a voltar a ser 35 clareira após o crescimento florestal – em 125 anos, em florestas tropicais. Portanto, a rotação entre clareiras e florestas em estágios sucessionais mais avançados, nas florestas tropicais e nos sistemas agroflorestais, é um elemento definidor de ambas as formações. Associado à rotação de agroflorestas em meio a áreas florestais, o manejo agroflorestal, para ser produtivo nos vários estratos verticais da floresta, envolve plantios bastante densos, o que potencializa a fotossíntese e a produtividade. Nestes plantios, agricultores associados à Cooperafloresta vêm utili- zando a metodologia de implantação de canteiros agroflorestais, separa- dos por faixas destinadas ao cultivo de gramíneas, que desempenham a função de captar energia solar nas etapas iniciais da sucessão ecológica, quando a estrutura florestal propriamente dita ainda não está formada. A poda frequente dessas gramíneas e a deposição do material podado nos canteiros favorece o acúmulo de energia e matéria vegetal no sistema. Na medida em que as espécies plantadas vão se desenvolvendo, ou- tras espécies provenientes das áreas florestais vizinhas se estabelecem na agrofloresta, também fixando gás carbônico da atmosfera. Para garantir a entrada de luz nos vários estratos da agrofloresta, são feitas podas fre- quentes, tanto das espécies plantadas quanto das espécies originadas de regeneração natural. A poda, portanto, promove o incremento das espécies do sub-bosque, de forma ainda mais intensa do que em florestas nativas. Procurando cobrir o solo adequadamente, seja distribuindo e deposi- tando cuidadosamente o material podado no solo, seja mantendo plantios densos e estratificados, cria-se uma proteção do solo à incidência direta de luz e das gotas de chuva. Por outro lado, a promoção da estrutura multiestratificada da agroflo- resta cria um ambiente propício para a manutenção de elevada umidade relativa do ar em seu interior, bem como para a redução dos ventos. O resultado desse manejo é a otimização da água, do gás carbônico e da luz – ou seja, da fotossíntese e da produtividade primária (matéria vege- tal) – no sistema agroflorestal. 36 Agroflorestas conduzidas sob este tipo de manejo, no âmbito da Coope- rafloresta, fixam nas plantas e no solo, em média, 6,6 toneladas de carbono da atmosfera por hectare por ano (Steenbock et al., 2013c). Agroflorestas de 15 anos manejadas desde 1991 de forma semelhante no Litoral Norte do Rio Grande do Sul, a Região de Torres, através de uma intervenção da organização denominada Centro Ecológico, com apoio da Pastoral Rural da Igreja Católica, apresentaram 100 toneladas de carbono por hectare de estoque de carbono acumulado (MMA/Centro Ecológico, 2013). É importante abordar aqui sobre o comportamento da energia nos ecossistemas. A energia no planeta Terra segue duas leis da termodinâ- mica. A primeira lei diz que toda a energia pode ser transformada de uma forma para outra, mas não pode ser criada, nem destruída. E a segunda lei diz que em toda transformação ocorre dissipação de energia na forma de energia térmica (calor). Então, nos ecossistemas, a energia move-se cons- tantemente de um lugar para outro, através da cadeia alimentar, e muda de forma (Gliessman, 2000). Ela entra como energia solar e é convertida em energia química, através da fotossíntese, e armazenada na matéria ve- getal. Quando os organismos utilizam essa energia para crescer, mover-se, reproduzir-se, a maior parte dela é transformada em energia térmica, que não fica mais disponível para ser utilizada, ou seja, ela é perdida na forma de calor. Sendo assim, os sistemas agrícolas que têm a capacidade de fazer melhor uso da energia são mais eficientes. Sabe-se que quanto maior for o uso de energia biológica, maior será a eficiência de uso de energia dos sistemas de produção agrícola. Gliessman (2000) classificou as fontes de energia para produção de alimentos, confor- me apresentado na Figura 11. 39 grande ecossistema Terra, pois, mesmo saindo do ecossistema alvo, o car- bono e os nutrientes são utilizados em outros ecossistemas. Diferentemente da energia, que entra na forma de energia solar (radiação solar) e que, após transformada em calor, não é recuperada para os ecossistemas. A eficiência do fluxo de matéria nos sistemas agroflorestais ocorre pela complexidade das relações não lineares entre os componentes (minerais do solo, plantas e organismos). Nessa complexidade de relações, a matéria é transferida de um componente para outro. Por isso que, quanto mais comple- xa e diversa é a estrutura de um sistema de produção agrícola, mais compo- nentes ele possui, gerando condições para os nutrientes permanecerem mais tempo no sistema. Ressalta-se que, no caso das agroflorestas, essa com- plexidade é produto do manejo que promove a riqueza de espécies vegetais, otimizando a fixação do carbono e do nitrogênio atmosférico (como o plantio adensado, a poda e o incremento da biota no solo), resultando em proprieda- des que capacitam o sistema a fazer melhor uso da energia e matéria. Portanto, a estrutura e o funcionamento dos sistemas agroflorestais geram propriedades emergentes que promovem alta eficiência fotossintéti- ca no uso da energia e dos nutrientes. Além disso, é essencial ressaltar que as propriedades emergentes dos sistemas agroflorestais capacitam-lhes a executar os serviços ecossistêmicos. Segundo a Câmara de Avaliação Ecossistêmica do Milênio (Millenium Ecosystem Assessment), os serviços ecossistêmicos são “os benefícios que as pessoas obtêm dos ecossistemas” (MEA, 2005). Ou seja, a nossa saúde e o nosso bem-estar dependem dos serviços fornecidos pelos ecossistemas. São serviços de abastecimento de alimentos, água, fibras e madeira; serviços de regulação do clima, de enchentes, doenças, resíduos e qualidade da água; serviços culturais, que fornecem benefícios de recreação, estéticos e espirituais; e serviços de su- porte, como formação do solo, fotossíntese e ciclagem de nutrientes. A própria Câmara conclui que “a espécie humana é fundamentalmente dependente do flu- xo dos serviços ecossistêmicos” (MEA, 2005). Neste fluxo, diferentes processos têm papéis fundamentais que procuram ser valorizados na prática agroflorestal. 40 O papel da sucessao ecologica Tendo a fotossíntese como biotecnologia de produção de matéria vege- tal, a vida se adaptou e se adapta constantemente para ocupar diferentes espaços, com toda a variação de combinações de condições de luminosida- de, temperatura, umidade, disponibilidade de nutrientes, relações ecológi- cas e tantas outras. Cada espécie se adapta melhor a cada combinação destas condições. Estas combinações são denominadas de nichos ecológicos. Em um ambien- te natural, se ocorrer determinado nicho ecológico, espécies que ocupem adequadamente este nicho encontrarão condições apropriadas para seu desenvolvimento. A bracatinga (Mimosa scabrella Benth.), por exemplo, é uma árvore que se adaptou às condições de clareiras do ecossistema de Floresta Ombró- fila Mista, ou Floresta de Araucária. Quando se forma uma clareira em florestas desse ecossistema, a temperatura do solo se eleva, quebrando a dormência das sementes da espécie que se encontram no solo. A árvore cresce aceleradamente, contribuindo para fechar rapidamente a clareira e criar condições para as outras espécies florestais se desenvolverem. A partir de poucos anos de vida, a árvore já produz floradas anuais em grande intensidade, fornecendo alimento para uma grande quantidade de insetos, que chegam à clareira e polinizam também outras espécies. Todo ano, são produzidas muitas sementes, que vão formando o banco de se- mentes do solo. As árvores de bracatinga morrem entre vinte e vinte e cinco anos, mas o banco de sementes originado desse curto período fará com que, quando uma nova clareira se abrir, mesmo que décadas depois, a bracatinga encontre seu espaço e cumpra seu papel nas relações ecológi- cas e processos vitais daquela floresta, ou seja, ocupe seu nicho ecológico (Steenbock, 2009). Existe uma forte relação entre a biodiversidade e a variação de nichos ecológicos. Quanto mais espécies convivendo, maior a quantidade de ni- 41 chos formados. Quanto maior a variação entre os nichos, mais pressão de seleção para a geração de variabilidade genética das espécies, e conse- quentemente mais biodiversidade (Figura 12). Assim, a heterogeneidade ambiental proporciona às espécies a coexistência em meio à biodiversi- dade, porque elas podem se especializar em diferentes partes do espaço de nicho (Ricklefs, 2003). Por outro lado, as substâncias produzidas pelas espécies, as condições diferenciais de umidade, luminosidade e outras ca- racterísticas geradas a partir de sua presença no ambiente determinam a formação de novos nichos. Usando novamente o exemplo da bracatinga, o fato de a espécie produzir floradas abundantes, logo após o inverno (perío- do de menor oferta de recursos tróficos aos insetos polinizadores), contribui para o estabelecimento de nichos ecológicos para estes insetos, entre tan- tas outras relações; o fato de as raízes da espécie apresentarem associa- ções com bactérias fixadoras de nitrogênio gera condições adequadas para várias espécies da micro e mesofauna do solo; e assim por diante. Figura 12. Representação esquemática da relação entre nichos ecológicos e biodiversidade. Em um ambiente natural, portanto, cada nicho vai aparecendo na me- dida em que o espaço vai sendo ocupado por diferentes espécies. A este 44 mente, menor nas espécies secundárias do que nas espécies pioneiras. Porém, as espécies secundárias permanecem na área por décadas, fornecendo alimento e abrigo para um fauna diversificada. Em muitos casos, a polinização e a dispersão de sementes é feita por grupos de espécies característicos a arquitetura e a cor das flores e a forma e a consistência dos frutos, entre outras características, são direcionadas para a polinização e a dispersão de sementes por determina- das espécies animais, que acabam “preferindo” essas a outras plantas. Assim, a estratégia de vida das espécies secundárias se baseia na rela- ção mais próxima com determinadas espécies animais e na adaptação mais refinada ao nicho em que cada planta se insere, mantendo-se mais esparsas na paisagem e ocupando, com suas populações, diferentes ambientes. Finalmente, as espécies climácicas são aquelas que tendem a se adap- tar a ambientes que “já foram trabalhados” pelas espécies pioneiras e pe- las espécies secundárias. Assim, são espécies que vivem em ambientes mais sombreados e onde o solo apresenta maior quantidade de matéria orgânica. Ocorrem, com maior frequência, em fundos de vale, em matas ciliares. Seu crescimento é relativamente lento, e árvores climácicas adultas chegam a ter de 30 a 45 metros de altura, ocupando em geral o dossel (ou “teto”) da flores- ta. Chegam a viver por mais de 100 anos, havendo uma tendência de produzi- rem frutos adaptados à alimentação por mamíferos e servindo como suporte para uma grande quantidade de espécies epífitas. Em geral, produzem uma grande variabilidade de compostos secundários, que têm função de defesa contra o ataque de parasitas ou predadores. Por esse motivo, garantem sua sobrevivência em densidades variadas e em meio a populações de parasitas e herbívoros (Budowski, 1965; Kageyama & Gandara, 2000). Considerando a existência da sucessão ecológica, um espaço de uma floresta apresenta, a cada momento, determinadas plantas de espécies mais velhas (geralmente, aquelas mais adaptadas ao momento anterior da sucessão), ocupando frequentemente estratos mais altos, e espécies em di- ferentes estratos do sub-bosque, em distintas fases de suas vidas. Há, por- tanto, uma diversidade vertical de espécies na floresta. Além disso, como as 45 florestas se constituem em mosaicos de clareiras de diferentes tamanhos e idades, há também uma diversidade horizontal de espécies, gerando e sendo produto de conjuntos de nichos diferentes na área da floresta como um todo. Tanto a diversidade vertical quanto a diversidade horizontal são influenciadas pela diversidade de condições de solo, relevo, hidrografia, ge- ologia e tantas outras condições abióticas. Estes diferentes fatores contri- buem para a imensa biodiversidade das florestas tropicais. Uma vez que a existência dos nichos ecológicos é dinâmica, ou seja, um nicho não existe o tempo todo e nem no mesmo espaço sempre, as plantas evoluíram para produzir uma grande quantidade de sementes e múltiplas estratégias de dispersão das mesmas. As angiospermas, ramo mais evoluí- do entre as plantas, em geral fazem isso muito bem. Isso porque nem todas as sementes produzidas atingirão o solo, e nem todas as que atingirem o solo encontrarão condições imediatas para ger- minar. Lambers et al. (1998) propõem que, para que haja a ocorrência de uma espécie, são importantes três filtros: o filtro histórico, que age sobre as razões históricas que determinam se uma espécie pode se dispersar para uma determinada área; o filtro fisiológico, que permite que apenas as espécies com um aparato fisiológico apropriado possam germinar, crescer, sobreviver e reproduzir em um dado ambiente; e o filtro biológico, que eli- mina espécies capazes de sobreviver em um dado ambiente, mas que não são capazes de suportar as interações com a biota local. Como normalmente as sementes apresentam estruturas de proteção e de relativo isolamento com o meio exterior, o banco de sementes dos solos, em ambiente natural, é geralmente muito rico em espécies, especialmente espé- cies pioneiras, aguardando nichos ecológicos adequados para sua germinação. Hall & Swaine (1980) registraram, em Ghana, cerca de 100 espécies flo- restais no banco de sementes, sendo 88% de espécies pioneiras. Garwood (1989), revisando trabalhos realizados em florestas tropicais da Malásia, Costa Rica e Venezuela, caracterizou a ocorrência de uma média de 300 se- mentes/m2 de solo, de diferentes espécies. Em bracatingais no sul do Brasil, 46 Carpanezzi (1997) identificou de 90 a 190 sementes da espécie/m2 de solo. Na medida em que existe uma grande relação entre a ocorrência das espécies e a ocorrência de seus nichos, pode-se conceber a sucessão ecoló- gica também como uma sucessão de nichos, como demonstrado na Figura 13. Seguindo esse raciocínio, uma vez que a formação de nichos é dinâmica e dependente da presença de conjuntos de espécies, pode-se conceber a su- cessão ecológica também como a sucessão de consórcios de espécies, ou uma sucessão de situações em que determinadas espécies conseguem con- viver bem umas com as outras, em encontros interespecíficos. Neste sentido, Hurlbert (1971) propôs que o conhecimento das probabilidades de encontros interespecíficos de cada espécie se constitui em uma ferramenta básica para o entendimento da estabilidade e da sucessão ecológica de uma comunidade. Não há, portanto, em ambientes naturais, uma separação completa en- tre as etapas da sucessão, se considerarmos essas etapas como “retratos” em que um determinado conjunto de espécies está presente. Há sim um fluxo contínuo, um “filme”, no qual as espécies vão desempenhando diferen- tes papéis no processo de sucessão ao longo de sua vida. Em uma floresta tropical, por exemplo, por mais que logo após a formação de uma clareira predominem as espécies pioneiras e que estas em seguida ocupem o dos- sel, abaixo delas já estarão plântulas de espécies secundárias e plântulas de espécies climácicas. Após um certo período de tempo, as pioneiras vão deixando o ambiente, pois seu nicho vai desaparecendo e novos nichos já estão formados, contando com a sua participação. Cada espaço da floresta contém um consórcio de espécies, com dife- rentes características ou síndromes adaptativas, em diferentes idades. É muito importante considerar que cada indivíduo de árvore adulta não apa- rece adulto, mas sim foi ocupando seu nicho (o qual inclusive pode variar bastante) ao longo de seu desenvolvimento. A não consideração dessa observação pode gerar caracterizações e práticas equivocadas. A araucária (Araucaria angustifolia (Bertol.) Kuntze), por exemplo, por vezes tem sido caracterizada na literatura como espécie 49 Após o trabalho de aceleramento da sucessão ecológica realizado pelas espécies facilitadoras, a sua saída do sistema, após novos nichos criados, não é instantânea. Espécies que facilitaram as formações de novos nichos podem permanecer ainda alguns anos no sistema, saindo aos poucos, ape- sar de não mais estarem determinando fortemente a formação de novos nichos. Para ilustrar este aspecto, podemos fazer também outra compara- ção, a partir da química: assim como na termoquímica estuda-se o “calor la- tente”, que se constitui na manutenção constante de temperatura enquanto uma substância está se transformando do estado sólido para o líquido, ou do líquido para o gasoso, na sucessão ecológica existe o trabalho das pró- prias espécies, especialmente das espécies facilitadoras, que vai deixando de existir gradativamente, enquanto outras espécies facilitadoras vão pas- sando a atuar nos novos nichos formados. Voltando ainda ao exemplo da bracatinga, podemos dizer que ela é uma espécie facilitadora no período inicial da sucessão, em uma clareira aberta. Ao apresentar grande densidade, crescimento rápido e elevada produção de flores e de sementes, contribui para o estabelecimento de várias rela- ções ecológicas. Decorridos em torno de vinte anos, novos nichos foram criados e sua função como espécie facilitadora não tem mais sentido. Ela vai saindo aos poucos do sistema, o que ocorre a partir da senescência e morte gradativa dos indivíduos da população, durante um período que pode durar mais uma década. Neste período, outras espécies facilitadoras vão passando a atuar; é a saída da bracatinga – e não as relações ecológicas que seus indivíduos vivos mantêm – que se constitui na sua contribuição à sucessão ecológica. 50 O uso do conhecimento da sucessao ecologica na pratica agroflorestal Na prática agroflorestal, o foco está no direcionamento aos processos necessários para que a agrofloresta se estabeleça. O manejo da sucessão ecológica é um desses direcionamentos. No texto de Ernst Götsch de 1992, intitulado Natural sucession of species in Agroforestry and in soil recovery, ele descreve o seu próprio caminho na construção desta concepção de que o sucesso de um sistema agroflorestal está no seu mecanismo de estabelecimento e manejo, e não tanto em seus elementos estruturais. Este texto já tem mais de vinte anos e, ao longo desse período de tempo, Ernst desenvolveu várias técnicas para o manejo agroflorestal. Entretanto, o documento é muito valioso para ilustrar o de- senvolvimento da percepção da importância do uso do conhecimento da sucessão ecológica na prática agroflorestal. Quando esteve na Costa Rica (entre 1979 e 1982), Ernst desenvolveu um programa de reflorestamento, utilizando a estratégia de cultivo em aleias (alley-croping). Foram plantadas linhas de espécies arbóreas leguminosas, como leucena, ingá e eritrina, alternadas com linhas de árvores frutíferas, como banana, caimito, zapote, etc. O espaço entre as linhas foi utilizado para culturas anuais (milho, feijão, mandioca e hortaliças). Na medida em que era necessário o uso de fertilizantes, a partir do segundo ou terceiro ano, as árvores inibiam o crescimento das culturas anuais, sem substituir as mesmas em termos de produtividade. Então, ele passou a combinar apenas quatro frutíferas arbóreas (ba- nana, cacau, abacate e pupunha) com eritrina, ingá e outras leguminosas para sombreamento. Apesar deste sistema ter funcionado relativamente bem em solos ricos, tanto na Costa Rica quanto em Itabuna, no sul da Bahia (Brasil), ele não funcionou em solos pobres, de pastagens abandonadas dessa região. Tentou-se, então, trabalhar para a melhoria destes solos empobrecidos, 51 plantando primeiramente espécies pioneiras (mandioca, eritrina e ingá) que vão bem em solos pobres do sul da Bahia. Entretanto, somente a mandio- ca se estabeleceu, tendo se desenvolvido muito pouco. Um grande número de espécies pioneiras nativas, porém, cresceu vigorosamente nestas áreas. Ernst conta que, por isso, passou a fazer uma seleção dessas plantas que eram eliminadas – retirou apenas as gramíneas, herbáceas e trepadeiras que já haviam amadurecido ou que haviam sido substituídas por espécies cultivadas. Todas as outras ervas nativas, árvores e palmeiras foram au- torizadas a crescer e cumprir sua função importante na melhoria do solo. As plantas cultivadas passaram a crescer bem na presença de espécies nativas. Essa percepção possibilitou o desenvolvimento da prática que ele passou a denominar capina seletiva (Götsch, 1992). Aqui, é importante relembrar os filtros propostos por Lambers et al. (1998), descritos anteriormente. Muito embora as espécies plantadas por Ernst, neste relato, sejam classificadas como pioneiras, isso não significa que seriam estas as pioneiras que se desenvolveriam bem naquele solo, nos nichos ecológicos existentes naquele momento e sob toda a combinação de condições de fertilidade, relevo, insolação e demais fatores abióticos. A percepção das espécies pioneiras que de fato tinham condições de desen- volvimento naquela área específica, por meio de suas estratégias reprodu- tivas características - ou seja, as espécies que ali passaram pelos filtros de Lambers et al. (1998) -, foi fundamental para o enriquecimento da área. A partir de então, Ernst procurou tirar o máximo proveito do potencial biológico e genético da flora e da fauna que ocorriam espontaneamente na área. Muitas plantas espontâneas nativas são, se bem manejadas, excelen- tes plantas companheiras. Quando jovens, elas estimulam o crescimento das espécies cultivadas e afastam pragas e doenças. Elas também prote- gem e melhoram o solo, ou indiretamente, corrigem o seu pH. Além disso, estas espécies aumentam a matéria orgânica do solo, constituindo uma fonte valiosa de substâncias fertilizantes (Götsch, 1992). Em outras pala- vras, a ocorrência natural das populações de espécies pioneiras nativas, na 54 O solo como resultado da pratica agroflorestal O solo é um sistema vivo resultante das relações não lineares entre os minerais, os organismos edáficos e as plantas (Vezzani & Mielniczuk, 2011). As relações entre os componentes do solo são estabelecidas à medida que a energia e a matéria contidas nos vegetais servem de alimento para os organismos do solo. Ao utilizarem essa energia e matéria e excretando re- síduos, os organismos fazem fluir tanto a energia como a matéria e, com esse fluxo, o sistema solo se mantém e evolui (Vezzani & Mielniczuk, 2011) e, através das relações não lineares, proporcionam condições para as agro- florestas se manterem e evoluírem. Como sistema vivo, o solo reflete as práticas agrícolas e as relações que ocorrem no manejo das plantas. Ao manejar uma agrofloresta, o ho- mem está manejando o fluxo de energia e matéria que conduz todo o sis- tema para a complexificação da estrutura, se proporcionar o aumento na magnitude e diminuição da velocidade do fluxo; ou para a simplificação, se proporcionar a diminuição da magnitude e aumento da velocidade do fluxo, como foi visto na descrição da Figura 6. Os responsáveis por fazer o fluxo ocorrer neste grande sistema solo- -plantas-organismos são os organismos edáficos, que compreendem os microrganismos (bactérias, actinomicetos, fungos, algas, protozoários, ví- rus) e a fauna (ácaros, nematoides, aranhas, insetos, formigas, minhocas, centopeias, caramujos, camundongos). O número de organismos no solo é expressivo, conforme demonstrado na Tabela 2. 55 Tabela 2. Estimativa de número e de matéria viva de alguns organis- mos de um solo não cultivado sob condições tropicais. Dados apresen- tados em Lopes Assad (1997). Em relação ao tamanho do corpo, existem três grandes grupos de orga- nismos edáficos decompositores, que são aqueles que utilizam as plantas como fonte de alimento. Essa classificação foi apresentada por Lopes As- sad (1997) e está reproduzida na Tabela 3. 56 Tabela 3. Classificação dos organismos edáficos decompositores em função do tamanho do corpo. Fonte: adaptado de Lopes Assad (1997). A principal função dos três grupos é regular a dinâmica do carbono, que se traduz no fluxo de energia e matéria no sistema, pois, como uma rede alimentar, alguns servem de alimento para outros e com isso a energia e a matéria oriundas da fotossíntese passam através do sistema. Os macrorganismos alimentam-se diretamente dos resíduos vegetais e movimentam-se no solo, e, como consequência, são capazes de construir poros. Os mesorganismos alimentam-se dos microrganismos e habitam os espaços porosos do solo, muitas vezes formados pelos macrorganismos. E os microrganismos também alimentam-se dos próprios microrganismos e de compostos orgânicos. Portanto, formam uma rede alimentar, e, por isso, to- dos os grupos regulam o fluxo de energia e matéria oriundo da fotossíntese. Sendo assim, a ausência de um grupo compromete o andamento do fluxo, o que pode causar prejuízo e decomposição do sistema, pois as agro- florestas necessitam do fluxo para continuarem vivas. Para que o fluxo seja mantido na mesma magnitude e velocidade, a fonte de energia e matéria, que é a produção de matéria vegetal pela fotos- síntese, precisa ser mantida, conforme discutido anteriormente. Mas não somente a fonte deve ser mantida, a variedade da fonte alimentar também é fundamental. Cada grupo de organismos é responsável pelo uso de um composto específico. Veja as reações de decomposição de alguns compos- tos orgânicos vegetais na Figura 16. 59 Tabela 4. Tempo de residência dos compartimentos da matéria orgâ- nica do solo. Fonte: adaptado de Duxbury et al. (1989). As folhas, as raízes e os exsudatos são constituídos de compostos orgâ- nicos de estrutura química mais simples, o que facilita a sua utilização pelos organismos do solo. Por esse motivo, apenas em alguns meses, folhas, raí- zes e exsudatos já são consumidos, e parte do carbono contido nesses com- postos é incorporado à biomassa microbiana, outra parte torna-se matéria orgânica humificada, e ainda há liberação de CO2 para atmosfera, como subproduto do processo de decomposição, e disponibilidade de nutrientes no solo, que poderão ser consumidos pelos microrganismos e/ou absorvido pelas plantas. A dinâmica entre os compartimentos da matéria orgânica está demonstrada na Figura 17. Percebe-se claramente, nesse processo, que os compartimentos da matéria orgânica estão interligados e depen- dentes um dos outros. Como todo sistema vivo, a matéria orgânica do solo é resultado das relações não lineares entre os seus componentes. 60 Figura 17. Representação esquemática da dinâmica da transformação da matéria orgânica do solo entre os diferentes compartimentos. O compartimento resistente à decomposição é composto por ma- terial vegetal de estrutura orgânica mais complexa. Essas estruturas vegetais podem perdurar por vários meses na superfície do solo. É im- portante ressaltar aqui os galhos e os troncos oriundos do manejo das agroflorestas, que nessa dinâmica não são considerados matéria orgâ- nica do solo, pois permanecem por muito tempo na superfície do solo em processo de fragmentação dos seus tecidos pela fauna edáfica e só depois, então, iniciarão o processo de decomposição pela biomassa microbiana. A biomassa microbiana necessita de compostos orgânicos como fonte de energia e carbono para a sua atividade e seu desenvolvimento. Ao utili- zar carbono de todos os demais compartimentos, os microrganismos incor- poram carbono na sua biomassa, constituindo-se, então, um dos comparti- mentos da matéria orgânica do solo. Além disso, ressaltamos, novamente, que a biomassa microbiana é o compartimento que faz circular a energia e 61 a matéria no sistema solo-plantas-organismos. O ciclo de vida dos organis- mos é curto e rapidamente a população é renovada. O compartimento da matéria orgânica particulada é constituído por partes do tecido vegetal ou animal de fácil ou de resistente decomposi- ção. A superfície desse material é colonizada pela população microbiana, que libera mucilagens e exsudatos como subprodutos desse processo de decomposição das extremidades. Estes produtos do metabolismo microbia- no, produzidos sobre a superfície da matéria orgânica particulada em de- composição, interagem com as partículas minerais isoladas ou agregadas do solo, formando verdadeiras cápsulas de material orgânico incrustado com minerais e/ou agregados. Em função de a interação organomineral ser extremamente forte e o tamanho dos poros formados nesse processo ser menor que o diâmetro do corpo dos microrganismos (o que impede o acesso ao material pelos decompositores), o material orgânico permanece no sistema. O compartimento da matéria orgânica particulada permanece estável até algum momento que um organismo consegue penetrar no es- paço restrito formado pela interação organomineral ao redor do material orgânico. Portanto, como a decomposição da matéria orgânica particulada depende da dinâmica da vida no sistema, não é possível estimar o seu tem- po de permanência no solo. Quando ocorre a entrada de organismos no interior da matéria orgânica particulada, o processo de decomposição é finalizado e o caminho do carbo- no segue o mesmo que é para as folhas, raízes e restos de organismos, ou seja, parte transforma-se em biomassa microbiana, parte transforma-se em matéria orgânica humificada, parte em nutrientes e parte em CO2, como mostra a Figura 17. A matéria orgânica particulada tem papel importante nas relações entre os compartimentos da matéria orgânica do solo. Ela promove a manutenção da atividade biológica, por ser fonte prontamente disponível de energia e carbono (quando a microbiota consegue acessá-la), e, por conseguinte, do fluxo de energia e matéria e ciclagem de nutrientes. Além disso, a matéria 64 um tamanho em torno de 0,25 mm. Durante essa etapa, há aumento da complexidade da estrutura, pois à medida que aumenta o tamanho do agre- gado, aumenta o número de constituintes do mesmo. O material orgânico oriundo do crescimento radicular, dos organismos edáficos e dos resíduos vegetais adicionados na superfície em função da poda é o agente estrutu- rante desses agregados. Sendo assim, essas estruturas são constituídas por minerais do solo, moléculas orgânicas e nutrientes, que estão interagin- do tanto com os minerais como com a matéria orgânica. A formação de estruturas do solo maiores (maiores que 0,25 mm), mais complexas e diversificadas ocorre devido, principalmente, à ação mecânica das raízes e das hifas de fungos rizosféricos (e todo o ambiente resultante dessa interação) no entrelaçamento das unidades menores. As raízes, ao de- senvolverem-se e se manterem ativas, extraindo solução do solo e exsudando compostos orgânicos, somado aos fungos rizosféricos associados, principal- mente fungos micorrízicos do tipo vesicular-arbuscular e fungos saprofíticos, executam a ação de entrelaçar mecanicamente os agregados menores do solo. O ambiente gerado em torno do sistema radicular é altamente rico em compostos orgânicos de fácil utilização pelos organismos edáficos, propician- do a estabilização dos macroagregados e o desenvolvimento da vida no solo, a qual é responsável pelas reações bioquímicas de ciclagem e disponibilidade de nutrientes. Dessa forma, os macroagregados são formados por minerais, mi- crorganismos, compostos orgânicos e inorgânicos e partes de tecido vegetal e de macrorganismos numa rede de relações não lineares, com alta quantidade de energia e matéria retida na forma de compostos orgânicos, caracterizando o nível de complexidade alto (Vezzani & Mielniczuk, 2011). 65 Figura 18. Representação esquemática da auto-organização do sistema solo-plantas-organis- mos em agroflorestas, indicando os estados de ordem em diferentes níveis de complexidade. 66 É importante ressaltar que, no início do processo de estabelecimento agroflorestal (estado 1 na Figura 18), a quantidade de matéria vegetal da parte aérea e raízes produzida ainda é pequena e, consequentemente, a magnitude do fluxo de energia e matéria que entra no sistema solo é pe- quena. Outro aspecto importante neste estágio inicial da sucessão é o perfil de solo utilizado pelas plantas, e, consequentemente, organismos. Como as plantas são de baixo porte, o sistema radicular é mais superficial e o estí- mulo à biota edáfica e as trocas/relações entre os componentes do sistema solo-plantas-organismos se restringem à camada mais superficial. Portanto, o fluxo de energia e matéria que inicia na fotossíntese é a fonte geradora de organização e complexidade da estrutura do sistema solo-plantas-organismos. A interação entre os componentes do solo, das plantas e dos organismos é que resulta a construção de um sistema de pro- dução complexo e capaz de cumprir as funções ecossistêmicas. Como visto anteriormente, em cada nível de complexidade da estrutura surgem as propriedades emergentes (Vezzani & Mielniczuk, 2011). No caso das agroflorestas, o estado 1 na Figura 18 é quando as plantas presentes estão em início de desenvolvimento, onde a magnitude do fluxo de energia e matéria não é alto e o sistema radicular das plantas ainda é incipiente. Com esses componentes, as relações não lineares expressam maior presen- ça de microagregados, que possuem na sua estrutura microporos, os quais são capazes de reter a água no solo. Nessa condição, a matéria orgânica está presente, apesar de não estar em conteúdo tão elevado. De qualquer forma, ela está exercendo suas funções de retenção/absorção de nutrien- tes; retenção e/ou complexação de compostos que podem ser prejudiciais ao sistema e ao ambiente no entorno; e fonte de energia e matéria (alimen- to) para os organismos edáficos. O estado 2 na Figura 18 caracteriza-se pelo aumento da riqueza e uso de diferentes estratos de luz pela vegetação, o que reflete no aumento da riqueza e estratos de uso do perfil do solo também. Estruturas de solo mais complexas são formadas como resultado da complexidade do sistema radi- 69 O manejo do solo agroflorestal O manejo do solo agroflorestal deve refletir a prática de todos os as- pectos teóricos que abordamos até aqui neste livro. Por isso, nesse momen- to, vamos recapitular, brevemente, o que vimos. A energia e a matéria contida nos vegetais servem de alimento para os organismos do solo, então, busca-se, na agrofloresta, contribuir para a formação da rede de relações não lineares entre estes componentes. Ao utilizarem essa energia e matéria e excretando resíduos, os organismos fazem fluir tanto a energia como a matéria e, com esse fluxo, o sistema agroflorestal se mantém e evolui. Neste processo, a ausência de um grupo de organismos compromete o andamento do fluxo. Como as agroflorestas, assim como os sistemas vivos, para manterem-se necessitam do fluxo para continuarem vivas, o compro- metimento do fluxo pode causar prejuízo e decomposição do sistema. Para que o fluxo de energia e matéria nos sistemas agroflorestais ocor- ra em magnitude e velocidade adequadas, é preciso promover e estimular a diversidade do cultivo de plantas. A maior riqueza vegetal promovida pelas agroflorestas proporciona a diversificação dos organismos vivos presen- tes e dos sistemas radiculares, que variam amplamente em arquitetura, magnitude, fisiologia, compostos exsudatos e associações com organismos. Nesse sentido, atuam de forma diferenciada nos processos ecológicos en- tre minerais do solo, plantas e organismos, favorecendo a dinâmica da es- trutura biológica, física e química do sistema. Sendo assim, a diversidade potencializa as relações não lineares entre os componentes e, consequen- temente, a formação de estrutura do sistema mais complexa tanto acima como abaixo da superfície do solo. Neste aspecto, é importante ressaltar o perfil de uso do solo nos sis- temas agroflorestais. A estratificação vertical das plantas cultivadas em associação transfere o uso vertical para a profundidade do solo explorada. E, sendo assim, o fluxo de energia e matéria no sistema ocorre em maior 70 área vertical, proporcionando que os processos ecológicos ocorram em per- fil maior e potencializando o uso eficiente dos recursos do meio. As árvores, por apresentarem sistema radicular mais profundo que as culturas anuais, absorvem quantidades significativas de nutrientes do sub- solo, que são depositadas sobre a superfície do solo via folhas e galhos ca- ídos, ou poda ou morte das raízes superficiais (Glover & Beer, 1986; Young, 1989; Garrity et al., 1995). Este processo de translocação aumenta o esto- que de nutrientes disponíveis nas camadas menos profundas do solo. Assim, levando em conta os aspectos já discutidos, é importante ainda considerar que, em uma agrofloresta diversificada, o conjunto de raízes das diferentes plantas forma um compartimento especializado em solubilizar e acessar diferentes nutrientes para o sistema e contribuir para a estrutura- ção física e para a vida do solo. A cobertura e a proteção do solo nas agroflorestas é uma premissa importante para garantir a elevada umidade relativa do ar e a estrutura do solo, bem como para reduzir ao máximo a erosão. Dessa forma, procura-se movimentar o mínimo possível o solo, mantendo e amplificando os nichos ecológicos dos organismos edáficos e, consequentemente, a liberação de nutrientes para a sustentação da agrofloresta. Para este incremento, a prá- tica frequente e intensa da poda é fundamental. Nas agroflorestas, todo o material podado é cuidadosamente picado e disposto sobre o solo, procurando otimizar o contato entre este material e a superfície. Com isso, a degradação da matéria vegetal é facilitada, contri- buindo para a maior velocidade da sucessão ecológica do que nas clareiras de florestas nativas. Nas clareiras, a queda de árvores ou galhos não reflete imediatamente no contato entre estes materiais e o solo, levando muito mais tempo para que sejam utilizados pelos organismos edáficos. A estrutura multiestratificada de raízes, a elevada densidade de plantas, a poda frequente e a disposição cuidadosa do material podado na superfície promovem condições adequadas para o incremento da matéria orgânica no solo agroflorestal. Esta, além da importância como reservatório de nutrien- 71 tes e de seu papel na ciclagem de nutrientes, cumpre a função fundamental de ser fornecedora de energia e matéria para toda a vida do solo, que, com sua atividade, transformam gradativamente o ecossistema, fazendo emer- gir novas estruturas com propriedades emergentes mais complexas. Penereiro (1999) avaliou essa transformação do solo, comparando pro- priedades edáficas em duas áreas em um mesmo tipo de solo, declividade semelhante e na mesma fazenda, no sul da Bahia. Ambas as áreas eram pastos degradados 12 anos antes desse estudo. Em uma das áreas, foi implantada agrofloresta, e na outra ocorreu regeneração natural, que, no momento do estudo, estava em estágio médio de regeneração (capoeirão). Apesar de as quantidades de matéria orgânica não diferirem entre as áre- as, os dados relativos aos teores de acidez e de nutrientes variaram signi- ficativamente, o que indica que houve diferença na natureza e/ou na dinâ- mica de decomposição do material vegetal. Na agrofloresta, o pH (em H2O), que mede a acidez do solo, determinado na camada de 0 e 5 cm, foi de 5,6, enquanto que na área de capoeira, foi de 5,3. Na camada de 5 a 20 cm, a agrofloresta apresentou pH de 5,4, e a capoeira, de 5,0. Os teores de cálcio e magnésio foram significativamente superiores na agrofloresta. Porém, o elemento que teve a variação mais surpreendente entre as duas áreas foi o fósforo, cujo teor na agrofloresta se apresentou, aproximadamente, sete vezes maior na camada de 0 a 5 cm, e cerca de quatro vezes maior na camada de 5 a 20 cm. Discutindo esses resultados, a autora coloca que no ciclo do fósforo o papel dos microrganismos é fundamental, mineralizando as reservas de fósforo orgânico, dissolvendo fontes insolúveis de fosfatos inorgânicos e captando fósforo solúvel em regiões não alcançadas pelas raízes, transferindo-o para as plantas. A ocorrência de compostos orgânicos no solo (por exemplo, certos oxalatos) também pode ser importante nesse processo, já que promovem a quelação do ferro, reduzindo a disponibilidade desse elemento para reagir com o fósforo (Jordan, 1990). Lima (1994), da mesma forma, encontrou maiores teores de fósforo em sistemas agroflorestais da várzea amazônica do que em áreas de roça. 74 Além, é claro, de as raízes adicionarem energia e carbono para os orga- nismos do solo em camadas mais profundas, o que favorece a atividade biológica e a incorporação de carbono em profundidade. Na camada de 0 a 60 cm, que, no caso desse Neossolo Regolítico é todo o perfil do solo, o estoque de carbono não variou, sendo que as agroflores- tas de 5 anos apresentaram 123 toneladas por hectare, as de 10 anos apre- sentaram 125 toneladas por hectare, e as áreas em regeneração natural, 122 toneladas por hectare (Schwiderke, 2013). Porém, o estoque de fósforo em agroflorestas de 5 anos de idade foi de 19,5 kg ha-1 e em agroflorestas de 10 anos foi de 20,9 kg ha-1, enquanto as áreas de regeneração natural por 10 anos foi de 16,6 kg ha-1 (Schwiderke, 2013). Esses dados são interes- santes, pois existe retirada de matéria vegetal das agroflorestas na forma de produtos para consumo e venda e, mesmo assim, o estoque de carbono se mantém em nível similar às áreas de regeneração natural, onde não há retirada de carbono na forma de produtos vegetais. Além disso, de forma análoga aos estudos de Lima (1994) e de Penereiro (1999), citados acima, é importante notar a importância da dinâmica do fósforo no solo das agro- florestas. Com os mesmos estoques de matéria orgânica, o conteúdo de fósforo é relativamente maior no solo sob o manejo agroflorestal. Na medida em que as propriedades biológicas, físicas e químicas do solo são interdependentes (Vezzani & Mielniczuk, 2011), é importante no- tar a similaridade dos ambientes de solo entre agroflorestas e florestas nativas em regeneração identificadas nos levantamentos realizados. Os resultados indicam justamente que o manejo do solo agroflorestal, ten- do como premissa os aspectos ecológicos apresentados anteriormente, torna possível a produção de alimentos em harmonia com os processos de sucessão natural e o fluxo de energia e matéria no solo, confirmando a proposição sobre a capacidade dos sistemas agroflorestais como sistemas de produção sustentáveis. 75 Os caminhos da biodiversidade Na prática agroflorestal, o manejo da luz, da fotossíntese, da poda e do solo tem como “produto” uma grande variabilidade de organismos vivos, ou seja, uma grande biodiversidade. Assim, entender mais detalhadamente alguns processos vitais associados à biodiversidade é fundamental para este manejo. Há aproximadamente 3,5 bilhões de anos, surgiram as primeiras formas de vida na Terra. O estabelecimento de estruturas para codificar a organi- zação da matéria e sua replicação gerou a possibilidade da vida se manter. Modificações nas estruturas de codificação passaram a gerar organizações celulares diferentes. Apesar de muitas dessas organizações não terem so- brevivido ou se replicado, aquelas que apresentavam alguma vantagem quanto à adaptação ao ambiente de algum nicho passaram a compor o quadro de biodiversidade cada vez maior ao longo do tempo. Atualmente, o número de espécies, em termos planetários, é de aproxi- madamente 1,8 milhão de organismos diferentes, considerando somente os já classificados pelo homem (Heywood & Watson, 1997). Para que haja diversidade, há necessidade de defeitos aleatórios nos có- digos genéticos (DNA e RNA), chamados de mutações. Em princípio, estes de- feitos são prejudiciais ao funcionamento daquela forma de vida. Entretanto, caso a mutação gere alguma condição que favoreça a adaptação ambiental – ou adaptação a algum novo nicho –, existe uma tendência de reprodução e continuidade da forma de vida em questão. Variações ambientais repre- sentam variações de possibilidades de adaptação. Assim, conforme colocado anteriormente, existe uma forte relação entre a biodiversidade e a variação de nichos ecológicos. Quanto mais espécies convivendo, maior a quantidade de nichos formados, e, quanto mais nichos, mais variabilidade. É em florestas tropicais que essa variabilidade é mais perceptível. Ali, a maior incidência de energia solar promove maior fotossíntese total e, consequentemente, maior produtividade primária, ou seja, maior produção 76 de matéria vegetal. Quanto mais matéria vegetal, mais energia, e maior a capacidade de sustentação de um grande número de espécies. Quanto maior a complexidade estrutural das florestas, maior a diversidade. Além disso, as maiores temperaturas e umidade nos trópicos geram condições favoráveis para o crescimento e a sobrevivência de numerosas espécies, e as taxas de fertilização cruzada são maiores nas plantas tropicais do que em zonas temperadas (Pianka, 1966; Ricklefs, 2003). Independentemente das regiões do planeta, entretanto, por trás da gran- de variabilidade de espécies existe sempre a contribuição dos mais variados ambientes. Agindo por dentro dessa grande variabilidade de espécies, existe uma imensa variabilidade genética, como uma “fábrica de variação”, possi- bilitando condições para a adaptação das espécies a diferentes nichos e, em médio prazo, promovendo o estabelecimento de novas espécies. É em função destes aspectos que, hoje, o termo biodiversidade não é considerado apenas como um indicador do número de espécies. Envolve, além da diversidade de espécies, a diversidade genética e a diversidade de comunidades e ecossistemas (WRI/IUCN/UNEP, 1992). A diversidade genética não depende só de mutações e da seleção dos diferentes ambientes para se estabelecer. Variações geradas por mutação em um determinado indivíduo podem ser levadas a outro indivíduo da mes- ma espécie ou a outros locais, por meio da migração dessa variação. Esta migração é também conhecida como fluxo gênico. Nos vegetais, a poli- nização e a dispersão de sementes são os principais responsáveis pelo fluxo gênico e é, dessa forma, que variações genéticas têm mais chance de se manifestarem e manterem seus efeitos, podendo ser selecionadas em diferentes ambientes. Em florestas tropicais, a maior parte do fluxo gênico dos vegetais de- pende da contribuição de animais envolvidos na polinização e dispersão de sementes. Para contribuir com estes processos, os animais se alimentam de estruturas vegetais (frutos, néctar, pólen, etc.), possibilitando sua própria sobrevivência, reprodução e variabilidade. 79 sendo atualmente conhecida como “simbiogênese” (Capra, 2005). Em um nível mais amplo, a “ajuda mútua” gera efeitos imprescindíveis à vida coletiva. Sem insetos, por exemplo, realizando polinizações e predações, ou sem aves, morcegos e roedores dispersando sementes, provavelmente não haveria a exuberância das florestas tropicais. Sem bactérias fixadoras de nitrogênio, a formação de proteínas nos organismos terrestres seria inviável. Sem florestas tropicais, ou sem os organismos dessas florestas, as con- dições climáticas seriam completamente diferentes e inadequadas à exis- tência da vida. Isso porque a “ajuda mútua” entre os componentes da biodi- versidade foi moldando, ao longo de bilhões de anos, as proporções exatas dos diferentes gases na atmosfera, o que por sua vez regula as condições adequadas de umidade, temperatura, luminosidade e de tantos outros fato- res abióticos, em proporções e níveis precisos para a biodiversidade conti- nuar existindo e evoluindo (Lovelock, 1988). A biodiversidade, portanto, não é constituída somente pelas diferentes estruturas genéticas, de espécies e de comunidades e ecossistemas. As dife- rentes formas e estruturas dependem de uma imensa e variada quantidade de relações e processos vitais, que foram moldando e sendo moldados pela vida nos últimos 3,5 bilhões de anos. Conforme colocado no início desse livro, Rozzi et al. (2006) fazem uma analogia da conservação da biodiversidade com a música, indicando que, para que haja uma sinfonia, não bastam os instrumentos, é preciso que eles sejam tocados em um conjunto harmônico. Utilizando outra analogia, ainda que menos poética, pode-se colocar que sem “softwares” de nada adiantariam os “hardwares” na informatização. Em meio a essa imensa complexidade, infelizmente, a influência hu- mana tem sido em geral de desarmonia na orquestra da vida no planeta. Na história de 3,5 bilhões de anos de vida na Terra, os efeitos da presença humana passaram a ser mais expressivos nos últimos 10.000 anos e, espe- cialmente, nos dois últimos séculos, após a Revolução Industrial. Em outras palavras, temos tocado sons distorcidos em uma sinfonia que vinha harmô- nica por muito tempo. 80 A drástica redução e modificação de habitats, a poluição, a sobre-explo- ração de recursos naturais e a disseminação de doenças têm sido aponta- das como os principais fatores de redução da biodiversidade (Noss & Csuti, 1997). O primeiro deles é, de longe, o mais impactante. Além dos efeitos diretos da destruição de ambientes naturais sobre a biodiversidade, quando são realizados desmatamentos ou outras formas de destruição de habitats, ocorre também a fragmentação das paisagens naturais. A fragmentação tende a interromper justamente a força microevolutiva mais efetiva para a promoção da biodiversidade – a migração ou fluxo gênico. O efeito da fragmentação vai além das áreas desmatadas, influen- ciando os fragmentos florestais adentro pelo chamado “efeito de borda”. Ou seja, a variação de insolação, ventos, umidade, ciclos biogeoquímicos e relações ecológicas, criada na borda entre os fragmentos e as áreas des- matadas, pode influenciar fortemente a biodiversidade no interior dos frag- mentos que restam (Laurance et al., 2002). Na primeira década do século XXI, mais de 13 milhões de hectares de florestas foram convertidos para outros usos no mundo (FAO, 2011). A ex- tinção de espécies, hoje, é da ordem de 100 a 1.000 vezes maior do que em qualquer período geológico (May et al., 1995; Myers & Knoll, 2001). Assim, atualmente, as espécies têm sido extintas em um índice muito maior do que o de geração de novas espécies (Pimm & Raven, 2000). Além dis- so, justamente em função da importância da “ajuda mútua” entre os seres vivos, muitas vezes a redução de densidades populacionais ou a extinção de determinada espécie, em uma comunidade, afeta várias outras. Se, em uma floresta tropical, uma população de bromélias é dizimada, por exemplo, perdem-se muitos pequenos ecossistemas, já que o acúmulo de água entre suas folhas é berço de várias espécies de anfíbios e de invertebrados; se uma população de palmiteiros (Euterpe edulis Mart.) é retirada, uma grande quantidade de alimento, em forma de pólen e frutos, deixa de existir na co- munidade, colocando em risco várias espécies animais que dele dependem. 81 O manejo da biodiversidade em sistemas agroflorestais Considerando que a existência das diferentes formas vivas, em nível genético, de organismos e de paisagem, são consequência da atuação das forças microevolutivas, de processos vitais e de relações ecológicas, o “fa- zer agroflorestal” busca aprender e reproduzir possibilidades para essa atu- ação, conscientemente. Em meio à otimização de condições para a amplificação da biodiver- sidade, em conjunto com a amplificação da complexidade da estrutura e da fertilidade do solo e dos nichos ecológicos, é que se geram produtos de interesse para autoconsumo ou comercialização. Conforme colocado anteriormente, já há algum tempo se sabe que uma das causas da maior biodiversidade nos trópicos é a maior produtividade pri- mária nestas regiões (Pianka, 1966). Quanto mais fotossíntese, mais matéria vegetal. Quanto mais matéria vegetal, maior a disponibilidade de energia para sustentar uma maior variabilidade e quantidade de organismos. É por este motivo que se busca a otimização da produtividade primária, desde o início da implantação de uma agrofloresta. O plantio de faixas de gramíneas entre os canteiros agroflorestais (ver Parte 2 desse livro) tem a função principal de “alimentar” a biodiversidade agroflorestal em seus primeiros anos. Quando se faz o manejo da poda, em agroflorestas mais maduras, o objetivo é “fabricar comida” para a agrofloresta. O material po- dado é cuidadosamente ofertado ao solo, e a planta podada produzirá mais matéria vegetal, que será novamente utilizada em uma nova poda. Este manejo está alinhado com os processos de dissipação de energia que ge- ram auto-organização da vida, como abordamos anteriormente. É a energia dissipada pela prática da poda que gera condições para o sistema comple- xificar a estrutura e evoluir em funcionalidade. Outro conhecimento já consagrado na literatura científica é a relação entre a estratificação do ambiente florestal e a biodiversidade – quanto 84 ocupar diferentes estratos e serão manejadas para diferentes usos, a biodi- versidade das agroflorestas é incrementada a partir da promoção de plantas úteis ao processo sucessional e ao incremento da diversidade funcional, que germinam naturalmente na área. Em outras palavras, “cabem” nas agroflores- tas tanto as plantas que foram plantadas quanto aquelas que vêm da regene- ração natural, muitas das quais são cuidadas e promovidas intencionalmente. Nas agroflorestas de agricultores associados à Cooperafloresta, foram identificadas 194 espécies de plantas arbustivas ou arbóreas, pertencentes a 59 famílias botânicas. Oitenta e nove por cento destas espécies são de ocorrência natural no domínio fitogeográfico do bioma Mata Atlântica, de acordo com o banco de dados do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (Ste- enbock et al., 2013b). Nestas agroflorestas, além de haver elevada diversi- dade vegetal, as plantas que formam esta diversidade apresentam elevada densidade, sendo em média 6.400 plantas por hectare. Em alguns estudos realizados em áreas de florestas secundárias nativas na região do bioma Mata Atlântica (capoeiras e capoeirões de diferentes idades) e que usa- ram metodologias e quantidade de área estudada parecidas com a usada no levantamento citado, foram identificadas, em geral, de 80 a quase 200 espécies, em densidades variando entre 1.000 a 3.000 plantas por hectare (Torezan, 1995; Siminski et al., 2011). Assim, a diversidade de espécies de plantas nas agroflorestas do Alto Vale do Ribeira é semelhante ou maior do que em florestas secundárias nativas, no bioma Mata Atlântica. Além disso, as agroflorestas tendem a apresentar maior densidade de plantas. Essas características, em conjunto com outros aspectos relacionados ao manejo das agroflorestas, já comen- tados neste livro, fazem das agroflorestas sistemas produtivos com alta taxa de fixação do carbono atmosférico e crescente evolução da fertilidade do solo. Nesta evolução, em todas as fases, os proces- sos de dissipação de energia e auto-organização da matéria se complementam em níveis crescentes de complexidade, como demonstra a Figura 19. 85 Figura 19. Evolução do número de espécies e de plantas por hectare (ha) e da quantidade de carbono (toneladas de C por hectare – ton C/ha) na vegetação em agroflorestas (AF) de agricultores associados à Cooperafloresta, ressaltando a complementariedade dos proces- sos de dissipação de energia e auto-organização do sistema em todas as fases de desen- volvimento das agroflorestas. Fonte: Steenbock et al. (2013c). 86 É importante lembrar aqui que, apesar de essas agroflorestas se cons- tituírem na base da produção, da segurança alimentar e da renda dos agri- cultores associados à Cooperafloresta, a cobertura mais comum do solo das propriedades são capoeiras (florestas secundárias em estágio inicial e médio de regeneração), de diferentes tamanhos e idades. Conforme já colocado, de acordo com os relatos dos agricultores da Cooperafloresta, agroflorestas implantadas em áreas de capoeiras tendem a ser muito mais férteis e mais fáceis de se tornarem “completas”. Por outro lado, os agricultores identificam, nas capoeiras, espaços de produção de sementes que serão, naturalmente, dispersas para as agro- florestas. Também identificam, nestas áreas, espaços de vida de animais importantes para as agroflorestas, especialmente pássaros e abelhas, que trazem sementes e contribuem na polinização. Estas características são consideradas importantes para o aumento da diversidade e da produção das agroflorestas. Além disso, vários agricultores afirmam que semeiam nas capoeiras diferentes espécies, especialmente o palmito Juçara (Euterpe edulis), e, eventualmente, manejam espécies que ficam próximas às trilhas da propriedade (Steenbock et al., 2013a). Deixar as capoeiras crescerem e enriquecê-las com “espécies facilita- doras”, portanto, faz parte de fazer agrofloresta, seja para manter matrizes, seja como fonte de fertilidade e espécies para uso futuro em agroflorestas a serem implantadas. Aqui, é importante destacar o fato de que manter agroflorestas e ca- poeiras mescladas na propriedade, formando um mosaico de áreas ma- nejadas e em regeneração, respectivamente, e de diferentes idades e tamanhos, é estratégia fundamental para a permanência do sistema de produção. É favorecer a dinâmica entre os processos de dissipação de energia e auto-organização, que geram vida, complexidade e evolução às agroflorestas. Na experiência agroflorestal, faz-se um “efeito de borda ao contrário”: agroflorestas e capoeiras, ao serem mantidas em um mosaico de áreas, contribuem umas com as outras com sementes, pólen, proteção Parte 2 90 Linhas gerais para a pratica agroflorestal Na primeira parte deste livro, foram discutidos brevemente alguns con- ceitos relacionados à ecologia, de forma aplicada à prática agroflorestal. Os conceitos são a base, a estrutura, de qualquer prática, norteando as ações. Entretanto, conceitos são diferentes de receitas, e não há receita para o manejo agroflorestal. Estão embutidos na prática agroflorestal o conhe- cimento e a percepção da dinâmica ecológica, que se constitui na busca constante do diálogo com a natureza no processo de intervenção. O fato de não haver receitas, entretanto, não pode ser pretexto para não implantar uma agrofloresta por falta de método. Com base nessa pre- missa, o texto a seguir traz alguns aspectos relacionados ao método de implantação e manejo agroflorestal, baseado na experiência das famílias agricultoras e dos técnicos da Cooperafloresta, em Barra do Turvo (SP) e Adrianópolis (PR), Alto Vale do Rio Ribeira, em região de ocorrência do Bio- ma Mata Atlântica. Apesar de essa experiência já estar quase completando duas décadas, ela está em constante renovação, descobrindo sempre novas possibilidades de práticas de manejo. Por outro lado, a riqueza dessa experiência é muito maior do que é possível registrar em poucas páginas. Assim, o texto a seguir, que aborda seis aspectos da prática agroflo- restal, não pode ser considerado uma referência completa de um proces- so produtivo consagrado, mas um roteiro geral, contendo apenas alguns aspectos importantes, a partir de uma experiência acumulada na prática agroflorestal. 91 1. Identificando o espaço para a pratica agroflorestal No processo de diálogo com o ambiente, o fazer agroflorestal não exige do mesmo um espaço diferenciado. Antes de tudo, é preciso perceber o que fazer em cada espaço. Para isso, é importante identificar características do solo, do relevo, do clima e da vegetação no local onde se implantará a agrofloresta. Nessa identificação, a questão central é compreender o que os processos vitais estão fazendo – e com que ferramentas – para o incre- mento de fertilidade e diversidade. Este incremento é realizado de forma coordenada, cooperativa e sequencial pelos consórcios de seres vivos que ocorrem em cada espaço. Cada consórcio tem aptidão máxima para viver e melhorar o ambiente na etapa em que ocorre naturalmente, durante a jornada da vida em direção à maior fertilidade e biodiversidade. Assim, a identificação da vegetação, em diferentes combinações, a par- tir das variações de características de solo e de relevo, é essencial. Nas etapas iniciais da sucessão ecológica, a pequena capacidade de ar- mazenar água e a falta de minerais no solo que regulam a atividade vegetal não possibilitam a captação máxima de energia solar nem mesmo se fos- se possível serem disponibilizados nutrientes em quantidades suficientes. Nestas condições, a produção de matéria vegetal de baixa digestibilidade pelos microrganismos é condição imprescindível para o acúmulo da matéria orgânica que possibilitará o aumento da capacidade produtiva do ambiente. As plantas típicas destes consórcios e etapas produzem justamente este tipo de matéria vegetal, que se caracteriza por elevada quantidade de car- bono em relação à quantidade de nitrogênio (Figura 21). 94 Em locais onde há maior quantidade de água no solo, os consórcios tam- bém se diferenciam, exibindo espécies herbáceas e arbustivas, frequente- mente, com folhas maiores e criando condições para o aparecimento de ár- vores mais rapidamente, desde que não haja condições de excesso de água, impedindo a presença de ar no solo. Quando há este excesso, são outros os consórcios, e o aparecimento de espécies arbóreas é, em geral, mais lento. A orientação do relevo em relação ao sol também determina variações nos consórcios de plantas. Locais em que há maior exposição à luz do sol (em várias regiões, chamados de “face”) tendem a apresentar processos sucessio- nais mais acelerados, pois têm mais acesso à energia solar e à fotossíntese. Locais mais sombreados, que recebem menor incidência luminosa (chamados de “contraface”), tendem a apresentar consórcios e espécies diferentes, e uma velocidade menor de sucessão destes consórcios (Figura 23). Figura 23. Variação de consórcios de diferentes estágios sucessionais na paisagem, em função de diferentes exposições do relevo à incidência de luz solar. 95 No processo de perceber os diferentes consórcios de plantas que exis- tem em cada local, identificar o histórico de uso da área também é funda- mental. Estágios iniciais de sucessão em uma clareira, por exemplo, apre- sentam espécies e consórcios bem diferentes do que estágios iniciais de sucessão em áreas agrícolas. Nestas últimas, muitas vezes o uso do fogo, de agrotóxicos e/ou de máquinas pesadas terão “forçado” a desestrutura- ção e a redução da fertilidade do solo, exigindo o trabalho mais intenso e por mais tempo de gramíneas, samambaias e asteráceas para a ativação da vida microbiana do solo e para o aparecimento de espécies adaptadas a estágios sucessionais mais avançados. Em uma clareira na floresta, as características edáficas e de umidade, assim como a riqueza do banco de sementes no solo, determinam uma maior velocidade de sucessão e carac- terísticas diferenciadas nos consórcios. Agroflorestas implantadas em áreas que anteriormente eram florestas, ainda que em estágios iniciais de sucessão, tendem a ser muito mais produ- tivas e biodiversas, especialmente nos primeiros anos, do que agroflorestas implantadas sobre áreas que eram pastagens ou lavouras. Em levantamen- tos fitossociológicos realizados em agroflorestas no âmbito da Cooperaflo- resta, essa diferença pôde ser percebida comparando-se duas agroflores- tas, conduzidas por agricultores diferentes, porém próximas uma da outra, com o mesmo tipo de solo e declividade e relevo semelhante. Ambas foram avaliadas com 6 anos de idade. Uma delas foi implantada diretamente so- bre pastagem e a outra foi implantada sobre uma capoeira (floresta em regeneração) de 8 anos de idade, que cresceu sobre a pastagem, após a retirada do gado. A agrofloresta implantada sobre a capoeira apresentava muito maior estoque de carbono e incremento anual de carbono, além de uma grande quantidade de espécies nativas sob manejo de poda e rebrota. Além disso, a agrofloresta implantada diretamente sobre a pastagem tam- bém exigia muito mais trabalho de poda e deposição do material podado sobre o solo para o incremento da fertilidade (Steenbock et al., 2013b). Assim como o histórico de uso, a proximidade da área em que vai se 96 implantar uma agrofloresta a áreas florestais também influencia fortemen- te a disponibilidade de sementes e propágulos que irão se estabelecer, fa- vorecendo o processo sucessional e incrementando a fertilidade. Além destas condições, a exposição maior ou menor da área à incidên- cia de ventos influencia diretamente na manutenção da umidade no ar e no solo, o que afeta também a velocidade de sucessão e as características dos consórcios. Portanto, “perguntar ao ambiente” as características de cada consórcio, em cada local, é fundamental para a implantação da prática agroflorestal, definindo especialmente onde e de que forma começar. Além de obter respostas no próprio ambiente, é importante “perguntar ao conhecimento ecológico local” tudo o que for possível, no sentido de entender as ferramentas dos processos vitais em cada região, reconhe- cendo que este tipo de pergunta é feito constantemente por quem vive em relação mais direta com o ambiente natural. Agricultores em geral detêm um enorme conhecimento sobre os consórcios de plantas que ocorrem na região, sobre a adaptação de cada espécie cultivada a cada tipo de solo ou de relevo e sobre suas relações ecológicas, entre tantos outros saberes. Resgatar e promover este saber, na prática agroflorestal, é fundamental.
Docsity logo



Copyright © 2024 Ladybird Srl - Via Leonardo da Vinci 16, 10126, Torino, Italy - VAT 10816460017 - All rights reserved