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Guias e Dicas
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Capitalismo Global - Jeffry A. Frieden, Notas de estudo de Economia

Globalização

Tipologia: Notas de estudo

2017

Compartilhado em 20/07/2017

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Baixe Capitalismo Global - Jeffry A. Frieden e outras Notas de estudo em PDF para Economia, somente na Docsity! Magistral. Um dos livros mais claros e abrangentes ja escritos sobre a história do capitalismo moderno. New Vork Times a [aa A. Frieden ori TES cito política do século xx | Global 4 NA ZAHAR RR ta e 7 Oto TrI TES To História econômica e política do século XX a Jeffry A. Frieden Obstáculos ao desenvolvimento 5. Problemas da economia global Comércio livre ou comércio justo? Vencedores e perdedores do comércio A prata ameaça o ouro O trabalho e a ordem clássica Era dourada ou manchada? II. Tudo se desmorona, 1914-1939 6. “Tudo o que é sólido desmancha no ar...” As consequências econômicas da Grande Guerra Reconstrução da Europa A extraordinária década de 1920 O isolamento dos Estados Unidos Um mundo reconstruído? Em direção ao vazio 7. O mundo de amanhã As novas indústrias As novas corporações As novas empresas multinacionais Mecanização no campo As novas sociedades Avanços e recuos 8. O colapso da ordem estabelecida O fim do boom Ouro e crise Das trevas Abaixo o antigo... 9. Em direção à autarquia A autossuficiência semi-industrial Schacht e os nazistas reconstroem a Alemanha As políticas econômicas autárquicas A Europa se volta para a direita Socialismo em um só país O desenvolvimento se volta para dentro A alternativa autárquica 10. A construção da social-democracia Social-democracia na Suécia e nos Estados Unidos Keynes e a social-democracia Trabalho, capital e social-democracia Social-democracia e cooperação internacional Das cinzas III. Juntos novamente, 1939-1973 11. A reconstrução do Oriente e do Ocidente Os Estados Unidos à frente A tarefa urgente Dean Acheson, presente na criação Os Estados Unidos e a reconstrução da Europa A União Soviética forma um bloco Dois argumentos 12. O sistema de Bretton Woods em ação A aceleração do crescimento no pós-guerra Jean Monnet e os Estados Unidos da Europa Bretton Woods e o comércio A ordem monetária de Bretton Woods Bretton Woods e os investimentos internacionais Bretton Woods e o Estado do bem-estar social O sucesso de Bretton Woods 13. Descolonização e desenvolvimento Industrialização por substituição de importações A corrida para a independência ISI, teoria e prática Nehru e a industrialização da Índia O Terceiro Mundo adota a ISI A proliferação moderna da indústria 14. Socialismo em muitos países A expansão do mundo socialista A divisão do mundo socialista O caminho chinês Socialismo no Terceiro Mundo Um futuro socialista? 15. O fim de Bretton Woods O compromisso se desfaz Desafios ao comércio e aos investimentos A crise na substituição de importações A estagnação do socialismo O fim de uma era IV. Globalização, 1973-2000 16. Crise e mudança O choque do petróleo e outros choques O contrachoque de Volcker Globalismo Regionalismo e globalismo Crises financeiras globais e nacionais 17. A vitória dos globalizantes Novas tecnologias, novas ideias Interesses globalizantes George Soros cria mercados Comércio sem barreiras 18. Os que correram atrás Produção global e especialização nacional Crescimento via exportações nos extremos da Europa e da Ásia O Leste asiático e da América Latina seguem o exemplo O sociólogo marxista assume o poder A Europa oriental se une à ocidental A nova divisão internacional do trabalho 19. Os que ficaram para trás A decepção causada pela transição e reformas Desastres do desenvolvimento A jornada da Zâmbia A catástrofe africana Calamidade, privação e desespero 20. Capitalismo global em apuros Fragilidade financeira e a trindade impossível “As três palavras mais temidas” Mercados globais: desgovernados ou indesejados? Conclusão Notas ideias oferecidas pelos economistas conservadores, defensores do livre-mercado dos dias de hoje. Ele é bem ciente – como antes dele eram Marx, Schumpeter e Keynes – de que o capitalismo por natureza gera tanto perdedores quanto vencedores. Suas opiniões sobre o desemprego em massa de 1930 são bastante sóbrias e a análise da “catástrofe africana” dos dias atuais (ver Capítulo 19) é profundamente entristecedora. Acima de tudo, Frieden é sábio o suficiente para não concluir esta grande pesquisa de forma suprema e presunçosa, mas sim propor diversas perguntas sérias sobre a economia do nosso mundo, que flui oscilante pela primeira década do século XXI. Como consequência, o leitor terminará este livro não apenas impressionado pelo arranjo de conhecimentos e análises, mas também um tanto perturbado com as perspectivas para o campo do comércio, das finanças e dos mercados. O fim deste livro com certeza nos leva a um estado de profunda reflexão. Os ventos criativos de Schumpeter ainda não cessaram. O mérito de Capitalismo global está em nos lembrar de que o nosso sistema de trocas econômicas traz tanto riscos quanto muitos benefícios. PAUL KENNEDY Prefácio As economias nacionais estão hoje mais abertas umas às outras do que nunca. Com o comércio internacional atingindo um nível sem precedentes, muito do que consumimos é importado, e muito do que produzimos é exportado. A atividade empresarial envia imensas quantidades de capital para outras nações. Em alguns países, mais da metade dos investimentos vêm de fora. Milhões de pessoas migram a cada ano em busca de trabalho. Produtores, fazendeiros, mineradores, banqueiros e comerciantes devem pensar de forma global sobre cada decisão econômica com a qual se deparam. Tecnologias, movimentos artísticos, práticas empresariais, tendências musicais, moda e modismos atingem todas as esquinas do mundo desenvolvido de forma mais ou menos instantânea. Economia global e cultura formam uma rede quase homogênea na qual as fronteiras nacionais são cada vez mais irrelevantes para o comércio, os investimentos, as finanças e outras atividades econômicas. Atualmente, muitos são os que se referem à globalização como um processo tão inevitável quanto irreversível. Após décadas de integração econômica internacional, muitos dos centros econômicos mundiais consideram o capitalismo global o estado natural das coisas, certos de que ele continuará por um futuro próximo, ou até mesmo para sempre. A situação na virada do século XIX para o XX parecia bastante semelhante. No início dos anos 1900, a integração econômica internacional era encarada como uma verdade absoluta. Essa foi a norma que por 60 anos conduziu a liderança econômica mundial, do Reino Unido, e que por 40 anos regeu as outras principais nações industriais e agrícolas. Relações de livre- comércio, finanças internacionais, investimentos e imigrações internacionais sem obstáculos e uma ordem monetária comum sob o padrão-ouro foram, por gerações, os princípios organizadores do mundo moderno. Mas foram necessários apenas alguns meses para que toda a estrutura da globalização entrasse em colapso. A Primeira Guerra Mundial estourou em agosto de 1914 e arrasou as fundações preexistentes da ordem econômica global. Durante anos, os líderes econômicos e políticos do mundo tentaram, sem sucesso, restaurar a economia internacional pré-1914. A ordem internacional se desintegrou e implodiu brutalmente na Grande Depressão de 1930 e na Segunda Guerra Mundial. A globalização foi uma escolha, não um fato. Por décadas, o capitalismo global parecia intocado em seus princípios básicos, mas a Primeira Guerra Mundial mostrou que havia uma série de questões nessa longa e tortuosa trajetória. A globalização degringolou tão rapidamente que seus participantes não tiveram a chance de impedir o colapso. A ordem internacional, cujos componentes econômicos, políticos, sociais e culturais definiram o mundo por décadas antes de 1914, desapareceu completamente. Por 80 anos, após 1914, a integração econômica global existiu apenas na imaginação de teóricos e historiadores. No decorrer da década de 1920, as tentativas de reconstruir a economia mundial anterior fracassaram por diversas vezes. Em 1930, as nações do mundo se esquivaram das conexões econômicas internacionais em busca de autossuficiência. Após a Segunda Guerra Mundial, o mundo comunista recusou o capitalismo global por princípio, enquanto o mundo em desenvolvimento o rejeitou na prática. Durante as décadas de 1950 e 1960, as nações industriais da Europa ocidental, a América do Norte e o Japão rumaram em direção a laços econômicos mais fortes, mas os governos continuavam a controlar a maior parte do comércio, dos investimentos e da imigração. Somente após 20 anos de crises e turbulências, no início da década de 1990, foi que as nações em desenvolvimento se voltaram para o exterior, os países comunistas abandonaram a economia planificada em favor dos mercados internacionais e os Estados industrializados se livraram de boa parte do controle prévio às relações econômicas do globo. Era o retorno triunfal da globalização. Assim como ocorreu há 100 anos, muitos agora tomam a economia mundial integrada como um fato. Referem-se a ela como o estado natural das coisas e esperam que esse modelo dure para sempre. No entanto, as bases sobre as quais o capitalismo global se ergue atualmente não são muito diferentes das de 1900, e o potencial para um rompimento é tão presente nos dias de hoje quanto era naquela época. A globalização continua a ser uma escolha, não um fato. É uma opção feita por governos que, de forma consciente, decidem reduzir as barreiras do comércio e dos investimentos, adotar novas políticas em relação ao capital e às finanças internacionais e traçar novos caminhos econômicos. As decisões tomadas por cada governo estão interconectadas. As finanças internacionais, o comércio internacional e as relações monetárias internacionais dependem da ação conjunta de governos nacionais ao redor do mundo. Políticas domésticas e relações entre governos são a fonte da globalização e determinam sua duração. A globalização necessita do apoio dos governos, que para tal precisam de apoio político doméstico. As questões econômicas internacionais dependem do respaldo político das nações poderosas e de grupos de poder dentro desses países. A economia mundial integrada vigente antes de 1914 necessitava de ações dos governos para se sustentar. Quando essas políticas se tornaram impopulares, não puderam mais ser mantidas, e com elas desmoronou a ordem econômica internacional. A economia global de hoje também depende dos pilares políticos domésticos gerados por decisões nacionais. O que deve ser feito em relação à economia mundial? A globalização contemporânea é inevitável? É desejável? Durará para sempre? Sabemos agora que a percepção que se tinha do capitalismo global de 1900 era enganosa. À aparente estabilidade do início do século XX, seguiram-se décadas de conflitos e de grandes mudanças. Hoje, a ordem econômica internacional também parece segura, mas dentro de uma perspectiva histórica isso pode significar apenas um breve interlúdio. As forças que deram forma à economia do século XX continuam a influenciar a versão atual da globalização e decidirão o seu destino. classes e as regiões fabris da Grã-Bretanha desenvolveram uma antipatia pelo mercantilismo e um forte desejo pelo livre-comércio. À medida que a City de Londres se tornava o centro financeiro mundial, ela adicionava a sua influência a outros interessados no livre-comércio. Os banqueiros internacionais da Grã- Bretanha tinham um forte motivo para abrir os mercados do país aos estrangeiros. Afinal, os estrangeiros eram seus clientes. O acesso dos norte-americanos ou argentinos ao próspero mercado britânico tornaria mais fácil o pagamento das dívidas desses países com Londres. Os interesses financeiros e industriais organizaram um ataque conjunto ao que o antimercantilista ferrenho Adam Smith chamou de “o sórdido e maligno expediente do sistema mercantil”.2 Em 1820, esses mecanismos mercantilistas “malignos” já enfrentavam desafios constantes. Os opositores ao mercantilismo se focaram nas Corn Laws, taxas impostas à importação de grãos (milho, em termos britânicos) durante as Guerras Napoleônicas, o que aumentou de forma substancial o preço doméstico do produto. Os fazendeiros britânicos, no entanto, estavam ávidos para manter as restrições à importação de produtos agrícolas. Eles se apoiavam nas altíssimas tarifas impostas aos grãos por essas leis e argumentavam que a revogação delas seria um desastre para a agricultura da nação. Os defensores de tais leis invocaram o desejo de serem autossuficientes na produção de alimentos, a importância da produção agrícola para o estilo de vida britânico e os dolorosos ajustes que a enxurrada de grãos baratos imporia. Os que pregavam o livre- comércio se ativeram aos benefícios do acesso a produtos de baixo custo, especialmente a comida barata que a revogação das Corn Laws traria. Os fazendeiros protecionistas lutavam contra os fabricantes e banqueiros que defendiam o livre-comércio. Os defensores do livre-comércio venceram, mas não sem antes travarem uma guerra dolorosa e prolongada. A derrota do mercantilismo exigiu reformas importantes nas instituições políticas britânicas, mudanças no sistema eleitoral, redução na influência das zonas rurais e o aumento do poder das cidades e de seus residentes de classe média. Mesmo com a reforma eleitoral implantada, o resultado final dos votos em 1846 e 1847 foi extremamente apertado e rachou o Partido Conservador. Poucos anos depois, o Parlamento removeu os últimos vestígios do controle mercantilista britânico no comércio exterior. Quando a Grã-Bretanha, a economia mais importante do mundo, descartou o mercantilismo, os outros países se depararam com novas opções. Os problemas políticos da era mercantil – alianças militares e monopólios – abriram caminho para os grandes debates do século XIX, sobre como, e se, os países deveriam participar do mercado global. Com a Grã- Bretanha liberalizando o comércio, muitos dos clientes e fornecedores do país fizeram o mesmo. Em 1860, a França se juntou à Grã-Bretanha em um abrangente tratado comercial que liberalizou o comércio entre os dois países e conduziu grande parte do restante da Europa nessa mesma direção. Quando os Estados Germânicos seguiram rumo à unificação em 1871, criaram uma área de livre-comércio e depois abriram seus mercados para o resto do mundo. Muitos dos governos do Novo Mundo também liberalizaram o comércio, assim como fizeram as possessões coloniais remanescentes das potências europeias adeptas do livre intercâmbio de mercadorias. O mercantilismo morreu e a ordem do dia era a integração aos mercados mundiais. No decorrer do século XIX, o comércio dos países avançados cresceu de duas a três vezes mais rápido que suas economias. No fim do período, a parcela da atividade comercial na economia mundial era sete ou oito vezes maior do que no início do século.3 Os transportes e as comunicações também se desenvolveram de forma substancial. Na época da Batalha de Waterloo, as viagens de longa distância e os meios de transporte e de comunicação eram todos muito caros e lentos. Até o fim do século XIX, telégrafos, telefones, navios a vapor e ferrovias substituíram cavalos, pombos, mensageiros e barcos a vela. As estradas de ferro, principal avanço para o transporte terrestre desde os tempos dos gregos, modificaram a velocidade e o custo do frete de cargas por terra. O navio a vapor revolucionou o envio transoceânico, reduzindo a travessia do Atlântico de mais de um mês, em 1816, para menos de uma semana em 1896. Além disso, os navios a vapor podiam viajar mais rápido, carregar mais carga e operar com menos custos que os barcos a vela. As novas tecnologias expandiram o mercado efetivo da maioria dos produtos, reduzindo para poucos dias a distância entre todo o mundo moderno. Em 1830, o custo para transportar via terrestre uma tonelada de carga por cerca de 480 quilômetros era de mais de 30 dólares – do centro da Pensilvânia a Nova York, de Berlim a Bonn, de Lyon a Paris – e outros dez dólares para enviá-la pelo Atlântico. Este era um gasto proibitivo para os produtos pesados, como trigo ou barras de ferro; uma tonelada de cada produto custava quase os mesmos 40 dólares do transporte, por terra ou mar, dessa quantidade de mercadoria. Assim, antes de meados do século XIX, a maioria dos produtos comercializados de forma internacional era extremamente cara, leve e não perecível: especiarias, tecidos finos, metais preciosos e produtos agrícolas com uma alta relação custo/peso, como algodão e tabaco. No século XIX, as ferrovias reduziram em 4/5 o custo do transporte terrestre, e o navio a vapor reduziu em mais de 2/3. Para se transportar uma tonelada de carga por terra pelos mesmos 480 quilômetros, o custo agora era de cinco dólares em vez de trinta, em terra, e três dólares em vez de dez para cruzar o Atlântico. O preço médio do transporte dessa tonelada de produtos do interior dos Estados Unidos até a Inglaterra diminuiu de 40 para oito dólares, de quase o mesmo preço da tonelada de trigo ou barra de ferro para 1/5 de seu valor. A revolução nos transportes aumentou em 20 vezes a capacidade do envio de mercadorias durante o século XIX.4 A Europa inundou o mundo com manufaturados ao mesmo tempo que era inundada pelos produtos agrícolas e matérias-primas das pradarias e pampas, da Amazônia e da Austrália. Com as novas tecnologias nos meios de transporte e o triunfo do livre-comércio britânico, o mundo dos mercantilismos militarizados nacionais abriu espaço para um mercado verdadeiramente internacional. A velha ordem defendida com armas em Waterloo terminou e fora substituída por um novo capitalismo global. A força dominante passou a ser o mercado, não o monarca. Por telégrafo e telefone, as notícias corriam o mundo em minutos, não mais em semanas ou meses. Investidores, de Londres a Paris, passando por Nova York, Buenos Aires ou Tóquio, teciam uma rede de capital global quase homogênea. Desde a batalha de Waterloo, o mundo mudava em todas as dimensões: políticas, tecnológicas, financeiras e diplomáticas. Da prata ao ouro O padrão-ouro se tornou o princípio organizador do capitalismo global durante o século XIX. Por centenas de anos antes de 1800, a maioria dos países utilizava o ouro e a prata como moedas intercambiáveis. Os mercadores preferiam a prata, o cobre e outros metais baratos para as transações locais, e o ouro, mais valioso, para as internacionais. Em 1917, no entanto, Sir Isaac Newton, master of the mint, o cargo mais alto na Casa da Moeda Britânica – a Royal Mint – padronizou a moeda inglesa e pôs o país, na prática, no padrão-ouro (senão também na teoria; a prata continuava a ser legalmente oferecida mas deixou de ser usada). O Reino Unido era praticamente o único país monometálico. A nação se desviou do padrão- ouro, temporariamente, apenas uma vez após as Guerras Napoleônicas. Quase todos os outros Estados eram bimetálicos e utilizavam tanto o ouro quanto a prata. Centenas de anos de utilização mista de ouro e prata chegaram abruptamente ao fim na década de 1870. Novas descobertas reduziram o preço da prata e desestabilizaram o câmbio entre as duas moedas de modo que os governos teriam de modificar a taxa ou optar por um dos metais. Enquanto isso, como o comércio e os investimentos internacionais cresciam, o ouro, meio internacional de troca, se tornou mais atraente que a prata, moeda doméstica. Por fim, o status da Grã-Bretanha como líder do mercado global atraiu outros países para a utilização do mesmo sistema monetário. Na década de 1870, as principais nações industriais aderiram ao padrão-ouro. Quando o governo de uma nação adotava o sistema, comprometia-se a trocar sua moeda por ouro a uma taxa preestabelecida. A moeda do país se tornava equivalente ao ouro e podia ser trocada a uma taxa fixa pela de qualquer outro Estado que também tivesse adotado o mesmo padrão. A Alemanha adotou o padrão-ouro em 1872, a Escandinávia em 1873, a Holanda em 1875, a Bélgica, a França e a Suíça em 1878 e os Estados Unidos em 1879. Enquanto em 1871 apenas a Grã-Bretanha e algumas de suas colônias (e Portugal, aliado do país) haviam adotado o sistema, em 1879 a maior parte do mundo industrial seguia o padrão-ouro. Com a situação na qual as principais moedas do planeta podem ser diretamente convertidas em ouro a taxas fixas, o mundo industrial basicamente compartilhava de uma moeda corrente internacional. De fato, para os Estados que adotaram o padrão, o ouro era a moeda global comum, mas com nomes distintos – marco, franco, libra, dólar – em países diferentes. O dinheiro fixado em ouro investido pelos alemães no Japão ou pelos belgas no Canadá era devolvido em montantes equivalentes de dinheiro fixado em ouro. Os preços acordados não flutuavam, uma vez que as taxas de câmbio eram fixas. Sob o padrão-ouro, tais taxas para trocas entre a libra e o marco, o franco e o dólar, e outras moedas, eram fixadas por tanto tempo que, como é dito, nas escolas as crianças as sabiam de cor, por serem tão estáveis quanto a tabuada. A previsibilidade do padrão-ouro facilitou o comércio, os empréstimos, os investimentos, a migração e os pagamentos internacionais. Banqueiros e investidores se sentiam seguros com as dívidas sendo pagas em quantidades equivalentes de ouro e com a obtenção de lucros nas moedas correntes fixadas no metal. Outras forças também facilitavam as finanças internacionais. Com o desenvolvimento do telégrafo, a informação podia ser transmitida de forma instantânea de qualquer área desenvolvida a investidores em Londres, Paris ou Berlim. O jornalismo financeiro se tornou internacional, com acontecimentos passados em Buenos Aires estampados, no dia seguinte, nas primeiras páginas dos jornais de Londres ou Paris. Os investimentos internacionais dispararam. Cidadãos dos países ricos investiram grandes porções de suas economias no exterior. Os investimentos estrangeiros, amplamente feitos por geopolíticas para exacerbar atritos adormecidos.11 Na década de 1890, as sombras da guerra já pareciam estar por toda parte. Tropas francesas cruzaram o Sudão em marcha até Fashoda, reivindicando territórios que os britânicos alegavam ser de sua propriedade. O aventureiro britânico L. Starr Jameson liderou um ataque repentino ao Transvaal, a gota d’água que desencadeou a Guerra dos Bôeres. Tropas etíopes e italianas se enfrentaram de forma dura nas montanhas da Etiópia, assim como britânicos e soldados ashantis na África ocidental. Japão, Rússia e as potências europeias disputavam posições no Extremo Oriente, enquanto insurgentes nas Filipinas espanholas e nos locais colonizados pela Companhia Holandesa das Índias Orientais lutavam pela independência de suas ilhas. No Ocidente, as atividades dos norte-americanos baseados em Cuba que lutavam pela liberdade da ilha suscitaram o fantasma dos distúrbios políticos no Caribe e acirraram as já tensas relações entre norte-americanos e espanhóis. No fim do século XIX, os acontecimentos pareciam ameaçar a essência do capitalismo global. Tudo era questionado: o livre-comércio, o padrão-ouro, as finanças internacionais e até mesmo a paz entre as grandes potências. Em todo o mundo, vozes ecoavam pela proteção do comércio, e contra o ouro e a integração econômica. A cada nova crise, desencadeavam-se novos conflitos violentos de interesses e ideias. parte I Os últimos e melhores anos da Era de Ouro, 1896-1914 1 Capitalismo global triunfante Quando a primavera de 1896 chegava às Grandes Planícies norte-americanas, os fazendeiros enfrentavam temerosos o período do plantio. O valor dos produtos agrícolas continuava a cair. O bushela do trigo, que por décadas havia se estabilizado em um dólar, chegou ao fim de 1982 valendo menos de 90 centavos, em 1893 custava por volta de 75 centavos e no fim de 1894 mal podia ser vendido a 60 centavos. No fim do inverno de 1895-1896, o preço do bushel foi abaixo dos 50 centavos. Nas Dakotas, e em outras regiões remotas, isso significava que o valor pago aos fazendeiros era cerca de 30 centavos, apenas 1/3 do que eles esperavam receber. Enquanto os preços agrícolas despencavam, os insumos que os produtores agrícolas necessitavam estavam mais caros do que nunca. Os valores de maquinário, ferramentas e fertilizantes permaneciam altos. Os custos do transporte terrestre se mantiveram estáveis e até subiram. O preço dos empréstimos seguia da mesma forma, sem demonstrar piedade aos fazendeiros, que ganhavam metade ou 1/3 do que recebiam quando pediram o dinheiro emprestado. Desamparados, os produtores agrícolas norte-americanos organizaram o primeiro verdadeiro movimento de massa. O Movimento Populista e seu Partido elegeram centenas de legisladores estaduais, dezenas de senadores federais e membros no Congresso de todas as regiões agrícolas de sul e oeste do país. Em 1892, o candidato à Presidência pelo partido recebeu mais de um milhão de votos. O programa populista exigia primeiramente, e acima de tudo, que os Estados Unidos abandonassem o padrão-ouro. A plataforma do partido denunciava que sob o padrão-ouro “o fornecimento de moeda se resumia, propositadamente, a engordar a usura, levar empresas à falência e escravizar a indústria”.1 A solução para aquilo, o que os populistas chamavam de “a questão do dinheiro”, era se livrar do esquema liderado pelos britânicos para enriquecer os banqueiros, investidores e comerciantes internacionais à custa de produtos provenientes da agricultura e da mineração. Em vez disso, os Estados Unidos deveriam abandonar o ouro e adotar a prata a uma taxa de câmbio desvalorizada, o que aumentaria os preços agrícolas e reduziria os juros. Com a piora nas condições agrícolas, os fazendeiros norte-americanos prestaram atenção às sugestões da ativista populista Mary Elizabeth Lease, de “produzir menos trigo e mais confusão”. Com raiva, os produtores agrícolas atacavam os defensores do ouro, cuja insistência por um padrão global estava destruindo a existência dos fazendeiros. Milhares deles clamavam pela alternativa do padrão prata, a salvação para os produtores agrícolas e mineiros. O Partido Democrata, então no poder, não podia ignorar a concorrência dos populistas. O presidente Grover Cleeveland fora um fiel defensor do padrão-ouro, mas agora seu Partido declínio dos preços dos produtos significava o mesmo que um aumento no valor do metal. Quando os preços de um bushel de trigo caíram de um dólar-ouro para meio dólar-ouro, o mesmo dólar-ouro podia comprar duas vezes mais trigo. O preço baixo dos produtos acarretava alto preço do ouro, e tal preço alto era um bom motivo para se procurar mais do metal. Exploradores percorreram o mundo e começaram a fazer novas descobertas importantes no fim da década de 1880. A corrida pelo ouro se dava de forma sucessiva, da África do Sul à Austrália passando por Yukon e pelo oeste norte-americano; e no fim da década de 1890, o novo estoque mundial de ouro era duas vezes maior do que o da década anterior. Quando o novo suprimento de ouro foi despejado nas reservas financeiras, o valor do metal diminuiu. Já que ouro era dinheiro, um declínio no valor do ouro era o mesmo que um aumento no preço dos produtos; uma redução pela metade no valor do metal significava a duplicação dos preços dos produtos em termos de taxa-ouro. Dessa forma, novas reservas de ouro levaram a um aumento generalizado dos preços. Enquanto os preços aumentavam após 1896, o ouro se tornou menos objeto de controvérsias políticas, e países que o evitavam aderiram a ele – o Japão e a Rússia em 1897; a Argentina em 1899; o Império Austro-Húngaro em 1902; o México em 1905; o Brasil em 1906; a Tailândia em 1908. Até mesmo a Índia, que adotava a prata havia séculos, foi empurrada pelos britânicos para uma variação do padrão-ouro, um processo complicado que inspirou um trecho da peça escrita por Oscar Wilde em 1895, A importância de ser prudente. A pudica Srta. Prism dá instruções à sua pupila Cecily: “O capítulo sobre a baixa da rupia pode ser omitido. É demasiado sensacionalista. Até mesmo esses problemas monetários têm seu lado melodramático.”7 Em 1908, a China e a Pérsia eram os únicos países que praticavam alguma importação a permanecer fora do padrão-ouro. O padrão-ouro era central para a integração econômica internacional. Gerava uma previsibilidade e uma estabilidade que facilitavam muito o comércio, os investimentos, as finanças, a migração e as viagens internacionais. Empresários, investidores e imigrantes não precisavam se preocupar com mudanças nas taxas de câmbio, com controles monetários nem com qualquer outro impedimento à movimentação de dinheiro ao redor do mundo. O impacto no comércio foi substancial; estima-se que a adoção do padrão-ouro nesse período tenha aumentado cerca de 30% a 70% o comércio entre dois países quaisquer.8 O padrão-ouro era mais importante para as finanças internacionais do que para o comércio. Os financistas internacionais julgavam a adoção do padrão-ouro uma obrigação dos membros bem-comportados da economia mundial clássica; um sinal de que um país era economicamente confiável.9 Os investidores tinham bons motivos para focar no compromisso dos governos com o padrão-ouro. Manter-se no padrão poderia ser difícil e, sobretudo, exigiria conter uma certa resistência política. Os investidores sabiam que um governo que desejasse, e fosse capaz de, superar a oposição ao ouro provavelmente também honraria a dívida externa, mesmo diante de protestos domésticos. Como viria a ser também anos mais tarde, especialistas financeiros britânicos e norte-americanos – ou o Fundo Monetário Internacional – davam garantias aos emprestadores aprovando políticas governamentais. Dessa forma, para um país qualquer, ser membro do “clube do ouro” já de início lhe conferia uma certa bênção. O padrão-ouro significava integridade financeira por exigir dos governos políticas econômicas que se ajustassem às pressões da economia global. A adesão ao ouro forçava as economias nacionais ao ajuste quando elas gastavam além do que podiam. Se uma nação abrisse um déficit ao importar mais do que exportar, gastaria uma quantidade de dinheiro – ou seja, de ouro – superior ao montante recebido com as vendas internacionais para pagar pelas importações. Com a saída de ouro do país, a oferta interna de dinheiro diminuiria, assim como o poder de compra da nação. Isso reduziria a demanda e dificultaria as vendas dos produtores nacionais, que precisariam reduzir os preços e forçar uma queda nos salários. Dessa forma, pelo próprio funcionamento do padrão-ouro, o país que gastasse mais do que recebesse estaria fadado a reduzir os preços e salários, a gastar menos e a produzir de forma mais barata. Se o processo se desse de maneira constante, logo a economia reagiria. Assim que os salários e preços caíssem, os estrangeiros comprariam mais produtos desse país e os locais adquiririam menos bens de fora. Portanto, o preço dos importados diminuiria e as exportações cresceriam, devolvendo o equilíbrio ao Estado. O padrão-ouro agia como um regulador metálico, impondo restrições aos salários e aos preços. Na década de 1750, o filósofo escocês David Hume identificou esse processo regulador, que recebeu o nome de “modelo de fluxo de moedas metálicas”, uma vez que mudanças nos preços levavam a fluxos específicos de moeda (ouro) que tendiam a forçar os preços e as economias a recuperar o equilíbrio. Qualquer país no padrão-ouro que gastasse mais do que ganhasse (ou pudesse pegar emprestado) seria forçado, pela forma como o sistema operava, a inverter esse quadro; reduzir gastos e salários, retomando o equilíbrio. Os governos do padrão-ouro privilegiavam os laços internacionais em detrimento das demandas internas, impondo austeridade e cortes de salários a uma população relutante, a fim de aderir ao regime. Isso fez do padrão-ouro o teste de fogo que os investidores internacionais utilizavam para julgar o grau de confiabilidade financeira de governos nacionais.10 O estímulo do padrão-ouro ao comércio, investimentos e migração internacionais foi ajudado por avanços tecnológicos nas áreas de transportes e comunicações, por condições macroeconômicas geralmente favoráveis, e pela atmosfera pacífica entre as grandes potências. Todos esses fatores permitiram que as economias do mundo ficassem cada vez mais intimamente integradas à medida que a Era de Ouro avançava. A utilização de ferrovias e navios a vapor, ambos já em curso em 1870, se expandiu ainda mais rapidamente a partir desse momento. Houve uma corrida extraordinária para a construção de ferrovias em regiões subdesenvolvidas nas décadas que precederam 1914. Em 1870, a imensidão da América Latina, Rússia, Canadá, Austrália, África do Sul e Índia contava com quase a mesma quilometragem de linhas férreas que a Grã-Bretanha. Em 1913, o tamanho da malha ferroviária dessas regiões já era dez vezes maior do que a da Grã-Bretanha. A Argentina, sozinha, passou de umas poucas centenas de quilômetros de ferrovias para um sistema mais extenso que o britânico.11 O desenvolvimento de turbinas a vapor na década de 1890 aumentou a velocidade dos navios e, posteriormente, novas embarcações movidas a petróleo, com sistema de combustão de diesel, passaram a competir com a energia a vapor. O desenvolvimento do sistema de refrigeração fez com que, pela primeira vez, o transporte de produtos perecíveis fosse possível, permitindo que a Argentina exportasse carne resfriada e Honduras, banana. Todos esses adventos reduziram, de forma dramática, o tempo e os custos para se levar esses produtos aos mercados. Nos 20 anos que precederam 1914, o custo do envio transoceânico de produtos à Grã-Bretanha caiu em 1/3, ao passo que, em média, os preços dos produtos exportados cresceram na mesma proporção. Empurrado pelos avanços nos meios de transporte, o comércio internacional, que em 1896 correspondia a menos de 8 bilhões de dólares, passou a atingir mais de 18 bilhões em 1913. Mesmo com as correções devido à inflação, esse valor era quase o dobro. Para a maior parte dos produtos havia algo como um mercado mundial integrado, de forma que os preços se tornavam mais parecidos com o passar do tempo – mesmo entre os países separados por milhares de quilômetros. O trigo e o ferro são bons exemplos. Em 1870, esses dois produtos significavam custos quase proibitivos para o comércio, o que resultava em grandes diferenças de preços dos dois produtos entre os países. O trigo, que em Chicago custava US$ 100, valia 158 em Liverpool. De forma semelhante, o ferro-gusa na Filadélfia custava 85% a mais do que em Londres. Em 1913, o aperfeiçoamento tecnológico havia reduzido os custos dos transportes e padronizado os preços. Agora, o preço do trigo era apenas 16% mais alto em Liverpool do que em Chicago, e o ferro-gusa custava somente 19% a mais na Filadélfia do que em Londres. Os preços das commodities mais importantes do mundo convergiram em Sydney e Chicago, Odessa e Buenos Aires.12 Em momentos anteriores, quando o comércio internacional era caro e incerto, não participar dele tinha poucos custos. Era fácil abdicar das oportunidades comerciais que eram arriscadas e periféricas. Mas quando o transporte internacional evoluiu de barcaças e barcos a vela para ferrovias e navios a vapor, os produtores tinham mais incentivos para exportar e os consumidores para importar. Os custos do isolamento aumentavam à medida que a abertura se expandia. Ao mesmo tempo, o telégrafo mundial significava uma transmissão instantânea de informação de qualquer área dotada de algum avanço para os bancos de investimentos e comerciantes de Londres, Paris e Berlim. O desenvolvimento do telefone, que era bem mais conveniente que o telégrafo, facilitou enormemente as telecomunicações. Os investidores expandiram os interesses globais, e os investimentos internacionais cresceram ainda mais rápido que o comércio mundial, atingindo 44 bilhões de dólares às vésperas da Primeira Guerra Mundial. Grande parte do rápido crescimento das regiões em desenvolvimento, como os Estados Unidos e a Austrália, foi financiada por investidores estrangeiros. Os estrangeiros eram responsáveis por mais de 1/3 dos investimentos recebidos pelo Canadá e por volta de 3/4 dos destinados a alguns países da América Latina. Em 1913, os investidores de fora eram donos de 1/5 da economia australiana e de metade da atividade econômica argentina. O fluxo de dinheiro vindo de outros lugares não era apenas importante para os países em rápido crescimento que utilizavam o capital, mas também era fundamental para as economias europeias que faziam esses investimentos. No começo do século XX, os investimentos externos eram os responsáveis por algo em torno de 1/4 a 1/3 da riqueza das principais potências.13 A imigração internacional também disparou. Milhares de pessoas tomaram conhecimento das dinâmicas regiões do Novo Mundo, assim como de outros lugares, e deixaram as cidades pobres da Europa e da Ásia. Na primeira década do século, a emigração atingiu 3% da população de Grã-Bretanha, Itália e Suécia, 5% dos cidadãos espanhóis e 7% dos portugueses. Do lado receptor, os imigrantes nessa década formavam 6% da população norte- americana, 13% da canadense e surpreendentes 43% da população argentina. Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, grandes parcelas dos habitantes das economias que mais cresciam no mundo eram formadas por imigrantes. Na verdade, metade dos 1,3 milhão de moradores de ou fossem menos qualificados, mas porque as terras alemãs eram pouco adequadas ao cultivo de grãos. Da mesma forma, o fato de a produtividade do trabalho norte-americano em 1913 ser duas vezes e meia mais alta do que a dos italianos não significava que um trabalhador norte-americano trabalhasse duas vezes e meia mais do que um trabalhador italiano. Se esse fosse o caso, por que milhões de italianos teriam ido para os Estados Unidos trabalhar? Isso quer dizer que em uma hora um trabalhador norte-americano produzia duas vezes e meia a mais do que um trabalhador italiano devido ao capital bem mais abundante à disposição de cada trabalhador. De fato, o número de máquinas ao dispor dos trabalhadores nos Estados Unidos em 1913 era três vezes maior até mesmo do que na Grã-Bretanha, líder industrial do mundo.18 Os economistas clássicos enfatizavam que especialização requer acesso a grandes mercados. Adam Smith e seus colegas argumentavam que restringir as possibilidades de oferta e demanda retardava o crescimento econômico, desafiando assim o pensamento mercantilista, que por sua vez tentava limitar o acesso aos mercados. Um vilarejo isolado do resto do mundo e forçado à autossuficiência precisa produzir tudo o que necessita. Entretanto, se esse vilarejo fizer parte de um mercado maior, nacional ou global, ele pode se especializar no que sabe fazer de melhor. Os produtores precisam de mercados amplos para se especializarem; a divisão do trabalho depende do tamanho do mercado. Mercados globais levam à especialização global. Smith deve ter ficado ainda mais certo de suas ideias ao ver que à medida que os países se comprometiam com a economia global e ganhavam acesso a mercados, imediatamente começavam a se especializar. As ideias dele eram confirmadas pela experiência de dezenas de regiões. Países com acesso a mercados mais extensos se especializavam. Com a especialização a produtividade aumentava, da mesma forma que o crescimento e o desenvolvimento de suas economias. A divisão internacional do trabalho das décadas que precederam a Primeira Guerra Mundial transformou continentes inteiros. Novas áreas agrícolas e mineradoras extraordinárias foram atraídas pelos mercados mundiais, inundando a Europa com comida e matéria-prima a preços baixos. Produtos industriais inovadores e baratos brotavam das fábricas europeias e iam para regiões que sempre contaram com o artesanato. Países que antes cultivavam todos os seus alimentos passaram a importar grande parte destes. As regiões nas quais seus habitantes se vestiam com tecidos produzidos de forma artesanal e utilizavam ferramentas feitas à mão passaram a utilizar tecidos de algodão mais baratos feitos em máquinas e equipamentos manufaturados. Cidades e regiões inteiras concentravam seus esforços na extração de minério de ferro, na fabricação de tecidos, no cultivo de arroz ou na produção de trilhos para ferrovias, enviando esses produtos para o resto do mundo em busca de mercados. Do ponto de vista global, o processo funcionava perfeitamente. Trabalho e capital circulavam pelo mundo, indo de onde produziam menos para onde produziam mais. Camponeses poloneses ou portugueses improdutivos, que não podiam competir com os produtores de grãos argentinos e canadenses, viravam trabalhadores urbanos produtivos em Varsóvia e Lisboa ou emigravam, tornando-se operários produtivos nas fábricas de Toronto ou trabalhadores do campo nos pampas. Capitalistas buscavam regiões ao redor do mundo onde seus investimentos gerassem mais lucro. Abdicavam da construção de mais uma ferrovia ou usina de geração de energia na Inglaterra por algum projeto novo e ousado no Quênia. Efeitos iguais podiam ser sentidos mesmo sem a movimentação de pessoas e de dinheiro, simplesmente por meio do comércio. Um país com excesso de trabalhadores podia enviar emigrantes para áreas de colonização recente ou empregar a mão de obra barata em fábricas que produziam manufaturados a serem mandados para essas mesmas regiões. Enviar trabalhadores da Itália para a Austrália tinha efeito similar a enviar produtos cuja manufatura era intensiva em mão de obra: trabalhadores italianos eram empregados de uma forma mais produtiva, e a Austrália passava a ter acesso a mão de obra barata de forma direta ou indireta. A especialização não era fácil, tampouco sem custos. O processo transformava economias e sociedades e, com frequência, destruía as formas tradicionais de vida. A especialização agrícola – a abertura dos pampas e pradarias que inundava o mercado mundial com grãos baratos – gerou uma grave crise na agricultura europeia. Produtores agrícolas europeus destituídos de suas terras eram despejados nas cidades para trabalhar em fábricas repugnantes. Outros se mudavam para regiões do Novo Mundo ou para outras áreas de colonização recente, as quais haviam desencadeado o problema. Os agricultores que não conseguiam sobreviver na Itália ou na Suécia podiam tentar a sorte nos estados de São Paulo ou do Minnessota. As dezenas de milhares de produtores agrícolas forçados a deixar o campo em direção à cidade, ou a cruzar o oceano para as novas terras, com frequência encontravam pobreza, discriminação, doença e isolamento, em vez da tão esperada prosperidade. A nova divisão internacional do trabalho separou famílias, vilarejos e países, forçando o despedaçamento de sociedades tradicionais coesas. Por mais doloroso que tivesse sido esse processo, a integração econômica e a especialização tornaram tanto o Velho quanto o Novo Mundo mais eficientes. Os agricultores europeus que não podiam competir passaram a desempenhar novas atividades. Eram mais produtivos nas fábricas europeias do que em suas terras relativamente pobres. Caso tivessem permanecido na atividade agrícola, eram mais produtivos no Novo Mundo que no Velho. Em todo o planeta, os agricultores e trabalhadores deslocados sofreram, mas, provavelmente, ao menos seus filhos e netos usufruíram de melhores condições. Essa divisão global do trabalho aumentou a produtividade tanto em termos nacionais quanto internacionais. Seria pouco provável que fosse de outra maneira: a otimização das formas de utilização do trabalho e do capital, por definição, aumentaria a produtividade. Os agricultores miseráveis da Alemanha Oriental e do sul da Itália foram para as modernas fábricas de Berlim ou Chicago. O interior da Argentina e o do Canadá, recém-acessíveis aos mercados mundiais, se transformaram de regiões indígenas de caça nos melhores campos de trigo do planeta. Pessoas, fábricas e campos produziam mais. Os ganhos aumentaram e as economias cresceram. Na Era de Ouro, os benefícios do intercâmbio econômico internacional proporcionaram os ganhos advindos da especialização. Sem acesso à imigração entre os países e através dos oceanos, os agricultores teriam ficado presos às suas terras inférteis. Sem o acesso a um mercado mundial, os mineradores sul-africanos e os criadores de gado australianos não teriam onde vender seus produtos. Sem o comércio e as finanças internacionais para enviar, garantir, fornecer e gerenciar, Londres teria se tornado o centro nevrálgico de apenas uma pequena ilha, e não do mundo todo. O mundo intercambiava equipamentos para máquinas por alimentos, cobre por tecido e títulos estrangeiros por aço, e os produtores e compradores de peças, alimentos, cobre, tecido, títulos estrangeiros e aço lucravam. Descontentes com o globalismo O fato de a Era de Ouro ter abandonado o mercantilismo parecia amplamente justificável. A profunda rejeição à época dominada pelo amplo controle dos governos sobre a economia trouxe benefícios significativos. Livre-comércio, movimentação de capitais e imigração reduziram o controle estatal. O padrão-ouro pressupunha que os governos autorizassem a livre conversão de dinheiro em ouro e vice-versa, o que permitira, ao invés de impedir, os ajustes econômicos domésticos. Certamente, os governos intervinham, com frequência e de forma coerciva, para garantir o direito de propriedade privada dos investidores e comerciantes. Mas a ideologia e a ordem do dia alardeavam um governo que não fosse além de salvaguardar as operações do mercado. Entretanto, abaixo da superfície já havia tensões e abusos no capitalismo global pré-1914. Uma das fontes de insatisfação era a subjugação de povos e nações pobres. Mesmo que governos na Europa, nos Estados Unidos e no Japão celebrassem o poder do mercado, eles usavam forças de diferentes tipos – artilharia, canhoneiras, infantaria – para dominar centenas de milhões de novas colônias na África, Ásia e América Latina. Outro problema era que nem todo mundo se beneficiava da integração econômica global. Muitas sociedades tradicionais se estagnaram ou se desintegraram. Mesmo nas regiões do mundo que mais cresciam, os frutos do crescimento não eram distribuídos de forma justa. Sociedades que abandonavam as atividades econômicas menos produtivas com frequência também abandonavam aqueles que estavam presos a elas. É de fácil entendimento a lógica por trás do abandono do cultivo do trigo em terras medíocres ou do fechamento de tecelagens artesanais pouco eficientes frente à abertura das prósperas planícies dos Estados Unidos e dos pampas, ou à disponibilidade de tecidos melhores e mais baratos feitos à máquina. Mas o que seria feito dos camponeses e tecelões cujas terras e habilidades não tinham mais valor, cujas formas tradicionais de vida não eram mais possíveis? A integração econômica gerou uma enorme tensão naqueles que produziam o que não podia mais competir com as mercadorias dos novos líderes mundiais. Os consumidores não precisavam mais dos grãos europeus, dos emprestadores latino-americanos, do artesanato chinês nem dos tecidos indianos. Indústrias, regiões e classes inteiras tornaram-se dispensáveis, e entre os que estavam do lado perdedor da especialização e da integração econômica havia menos disposição em aceitar um governo pouco ativo que não fazia nada para aliviar seu sofrimento. O entusiasmo com a Era de Ouro do capitalismo global não foi universal. Tanto os mercados abertos quanto o pagamento das dívidas aos estrangeiros e o padrão-ouro implicavam sacrifícios, normalmente da parte dos mais pobres e fracos. Raramente, esses sacrifícios eram feitos por vontade própria. Mesmo nos países que estavam crescendo havia resíduos de conflitos sociais e políticos nos requisitos e pré-requisitos nacionais para a integração econômica. Também houve países inteiros que adotaram uma atitude cautelosa ou hostil em relação aos laços econômicos mundiais, e governos que restringiram e regularam de perto o comércio e os investimentos internacionais. O capitalismo global do fim do século XIX e início do XX foi quase inteiramente bom para o crescimento global, para as economias da maior parte dos países e, até mesmo, para a renda da maioria das pessoas. Mas não foi igualmente bom para todos e foi ruim para muitos. tempo, os Estados pareciam ansiosos para se qualificarem à afiliação. Muitos europeus partiam do princípio de que sempre haveria um amplo apoio econômico, político e intelectual à integração econômica internacional. Mas, pela experiência, sabemos que esses anos dourados da globalização não eram o estado natural das coisas. As exigências para a participação no clube dos globalizadores se tornaram pesadas demais para a maioria das nações, inclusive para alguns dos membros fundadores. Como, então, essa era de integração econômica se sustentou por tanto tempo? Apoio intelectual à Era de Ouro Antes de 1914, quase todos os que eram politicamente importantes, nos países economicamente importantes, acreditavam que seus governos deveriam privilegiar os laços econômicos com o exterior. Os compromissos com a economia internacional eram tarefas governamentais mais importantes do que o desemprego na indústria ou a aflição dos agricultores. Poucos líderes políticos acreditavam que os governos podiam ou deviam fazer algo pelas empresas nacionais, pela falta de trabalho ou pela pobreza. De fato, muitos dos defensores ortodoxos do sistema argumentavam que uma intervenção substancial do Estado nos mercados interferiria no curso natural do padrão-ouro. Acreditavam que seguro- desemprego, ajuda a agricultores em apuros e programas sociais extensivos aos pobres impediriam os ajustes exigidos pelo padrão-ouro; tais programas evitariam que os salários e preços caíssem, como era necessário para manter a economia em equilíbrio. No entanto, os governos eram importantes, uma vez que controlavam as relações financeiras, a moeda e o comércio entre as nações. Os governos também aplicavam o direito de propriedade, interna e externamente, o que era uma forma de garantir aos seus cidadãos os benefícios da economia global. De forma semelhante, as classes governantes, tanto das nações pobres quanto das industrializadas, fizeram o possível para provar sua integridade econômica, mas pouco contribuíram para o gerenciamento da economia doméstica. Os proponentes do globalismo da Era de Ouro geralmente atribuíam o sucesso da época às suas ideias iluminadas – como membros de um clube exclusivo que justificam o fascínio exercido pela associação às qualidades de seus participantes, e não pelos benefícios materiais trazidos com a participação. De forma precisa, as novas políticas de abertura seguiram os preceitos do liberalismo como exposto pelos economistas clássicos britânicos. Os sucessores de Adam Smith aplicaram à economia internacional as ideias do pensador sobre os benefícios da especialização e aprimoraram o seu argumento contra o mercantilismo. O banqueiro londrino David Ricardo foi o mais influente teórico clássico do comércio internacional e se concentrou na comparação dos custos dos produtos dentro dos países e entre eles. É dele o famoso exemplo elaborado com base nas relações econômicas anglo- portuguesas. A tese de Ricardo tem início em um mundo sem comércio. Se a Inglaterra produz tecidos de forma mais eficiente que vinho, o tecido inglês será barato em relação ao vinho do país. Se Portugal produz vinho de forma mais eficiente que tecido, então o vinho português será barato em relação ao tecido português. Se os dois países se abrirem ao comércio, eles comprariam no exterior o que lá é mais barato: os ingleses comprariam o vinho de Portugal e os portugueses adquiririam os tecidos da Inglaterra. Ricardo acrescentou que a Inglaterra deveria comprar todo o vinho que consumisse de Portugal, que por sua vez deveria adquirir todo o seu tecido da Inglaterra. Dessa forma, cada país poderia se concentrar naquilo que poderia produzir mais barato. Essa vantagem comparativa ricardiana pressupõe que os países devem produzir aquilo que melhor sabem – não em comparação com outros países, mas o que fazem de melhor em relação a outras atividades que desempenham. Mesmo que a produção tanto de vinho quanto de tecidos da Inglaterra fosse melhor que a de Portugal, o país deveria continuar produzindo apenas tecidos e comprando todo o seu vinho de Portugal. A comparação contida no termo refere-se às atividades desempenhadas dentro de uma nação (agricultura inglesa e manufatura inglesa), e não entre as nações (agricultura inglesa e agricultura portuguesa). A teoria das vantagens comparativas aplica os princípios da especialização aos países. Assim como as pessoas, as nações devem se concentrar naquilo que fazem melhor, independente do quão bem os outros realizem a mesma atividade. Dizer que um indivíduo deve se especializar no que faz melhor não diz nada sobre como as habilidades desse indivíduo se comparam com as aptidões de outros. Um excelente chef que também lava bem a louça deve continuar contratando alguém para lavar os pratos, mesmo que seja alguém medíocre, já que o tempo do cozinheiro é melhor gasto no fogão do que na pia. Um carpinteiro experiente deve contratar um trabalhador menos especializado para cortar e lixar a madeira, mesmo que o próprio carpinteiro desempenhe essas atividades melhor. O mesmo se aplica às regiões: se as terras do Iowa são melhores para o cultivo de milho do que para a criação de gado leiteiro, então os trabalhadores rurais do Iowa devem se especializar em produzir milho e os de Wisconsin, laticínios. Da mesma forma, as nações ganham mais ao exportar o que produzem de forma mais eficiente e importar os melhores produtos dos outros países. O princípio da vantagem comparativa tem claras implicações no livre-comércio. Uma vez que um país sempre se beneficia ao seguir as suas vantagens comparativas, e as barreiras comerciais impedem que ele seja capaz de fazê-lo, a proteção comercial nunca é benéfica à economia como um todo. Políticas governamentais que evitam a importação simplesmente forçam os países a produzir mercadorias fora de suas vantagens comparativas. Proteção comercial aumenta o preço das importações e diminui a eficiência da produção doméstica. A economia política clássica aboliu o pensamento mercantilista anterior. Os mercantilistas desejavam restringir as importações e encorajar as exportações para estimular a economia nacional. Os economistas clássicos pensavam de outra forma: importações são os lucros do comércio ao passo que exportações são os custos. Importar permitia que as nações concentrassem sua energia produtiva, gerando o que elas sabiam fazer melhor. Há um claro paralelo entre essa teoria e o funcionamento de uma pequena propriedade rural. A família “exporta” (vende seus produtos) para poder “importar” (adquirir os bens e serviços de que precisa). Uma propriedade familiar que deseja maximizar as importações precisa, portanto, ganhar mais; e a melhor forma de aumentar os ganhos é por meio da produção daquilo que lhe é mais eficiente. Os economistas clássicos mostraram que da mesma forma que os agricultores, os trabalhadores e as firmas ganham ao se especializarem e ao comercializarem o máximo possível, o que também se aplica aos países. O livre-comércio leva um país a seguir suas vantagens comparativas, o que é a melhor política possível – mesmo se adotada unilateralmente. Na década de 1850, a Grã-Bretanha, o berço da teoria econômica clássica, já havia abraçado com entusiasmo o padrão-ouro e o comércio, a movimentação de capitais e a imigração sem barreiras. O resto do mundo fez o mesmo nos 60 anos seguintes com graus variados de entusiasmo. A economia política clássica venceu na esfera intelectual. No entanto, as ideias clássicas sozinhas não foram a causa da era de abertura econômica global. Sobretudo, os argumentos contra a intervenção governamental no comércio e investimentos além-fronteiras são muito antigos. Adam Smith destruiu o pensamento mercantilista em 1776; David Ricardo, junto com David Mill e Robert Torrens, formulou toda a teoria das vantagens comparativas antes de 1820.3 Mesmo assim, apenas em 1846 o Parlamento britânico aboliu as principais tarifas agrícolas do país, as Corn Laws. Outros países fizeram o mesmo, mas apenas de forma parcial e gradual. O período glorioso do livre- comércio europeu veio cem anos após Smith ter demonstrado o quão desejável seria essa atividade. Na verdade, os países não seguiam os princípios econômicos clássicos de forma estrita, e os argumentos intelectuais mais fortes eram os menos obedecidos. O caso da teoria do livre- comércio foi o mais predominante, mas, de fato, apenas a Grã-Bretanha e os Países Baixos praticavam o livre-comércio; todos os outros governos eram protecionistas, em maior ou menor grau.4 Quase todos os países, por outro lado, acataram o padrão-ouro ou aspiravam fazê-lo, apesar da fraqueza da base teórica do argumento em prol do sistema. Com efeito, muitos economistas clássicos se referiam ao compromisso com o ouro como algo que ia pouco além de um fetiche por metais preciosos. O poder teórico das ideias clássicas não garantiu a adoção de políticas clássicas. Além disso, apesar do triunfo de tais teorias, as políticas da Era de Ouro não perduraram. Após esse momento seguiu-se um período de 30 anos sem que os governos retomassem os níveis anteriores de integração econômica. Governos e cidadãos não poderiam ter optado pela abertura apenas por acreditarem na superioridade e no poder intelectual de sua base teórica, a menos que essa opção tivesse sido causada por um quadro de amnésia coletiva. A teoria econômica clássica, assim como a neoclássica que passou a vigorar após esse momento e continua até os dias de hoje, fornece argumentos poderosos contra as restrições à livre movimentação de capital, produtos e pessoas. Países seguiram, e continuam a seguir, esses princípios em graus bastante diversos, e a orientação geral do mundo em relação à integração econômica tem variado tremendamente. Havia algo além de ideias operando. Nathan Mayer Rothschild, 1840-1915 Os poderosos defendiam seus interesses conduzindo, de país a país, a abertura da economia mundial. Nathan Mayer Rothschild foi uma figura política e economicamente central para a Era de Ouro.5 Sua vida acompanhou o período: nascido em 1840, a poucos anos da abolição das Corn Laws, ele morreu em 1915, quando a economia global se desintegrava sob o peso da Primeira Guerra Mundial. Mayer Amschel Rothschild criou a Casa Rothschild em Frankfurt no fim do século XVIII. Mandou, então, seus cinco filhos para outras capitais europeias; logo o banco estaria estabelecido em Viena, Nápoles, Paris e Londres. Assim como ocorrera com muitos outros potências econômicas. A crise se iniciou como um pânico financeiro nos Estados Unidos, mas rapidamente se transformou em uma desconfiança generalizada. A corrida norte-americana aos bancos assustou os investidores de todo o mundo. O correspondente em Berlim da Economist escreveu: Os preços flutuam, para cima e para baixo, sob a maldição dos telegramas norte-americanos, e quando outras influências entram em cena para de alguma forma elevarem os preços, elas são logo obliteradas por novas preocupações com a situação nos Estados Unidos.8 Nathan Mayer Rothschild foi certeiro em culpar a política norte-americana pela crise, mas à medida que a questão se aprofundava, isso se tornava irrelevante. Rothschild, que era o presidenteb do Banco da Inglaterra, acreditava que as autoridades deveriam cooperar a fim de acalmar os mercados. Ele lembrou a seus primos franceses “o quão íntimas e necessárias eram as ligações entre os países”. Era crucial assegurar que o “Banco da França e outros [agissem] de forma generosa nestas ocasiões”. Rothschild persuadiu seus companheiros, dos quais um fazia parte da diretoria do Banco da França, a estimular seus governos a se unirem ao Banco da Inglaterra para resolver a crise. O Banco da França, de fato, emprestou dezenas de milhões de francos ao Banco da Inglaterra para ajudá-lo a contornar a turbulência financeira, assim como o fizeram as autoridades alemães. A rede de interesses econômicos dos Rothschild ajudou a garantir os esforços multinacionais, organizados pelos formuladores de políticas, para estabilizar os mercados financeiros e manter o padrão-ouro.9 É evidente que os Rothschild eram fervorosos defensores do comércio mundial. Do outro lado do Canal da Mancha, Alphonse, o cunhado de Nathan, estava preocupado com a França, achando que o país “morreria sufocado pelo protecionismo” e afirmou aos cada vez mais poderosos políticos socialistas que “o melhor do socialismo é a livre troca da produção internacional”.10 Até o fim da vida de Nathan Rothschild, sua ortodoxia em relação ao livre- comércio se suavizaria um pouco, não por qualquer adesão à causa protecionista, mas sim devido aos meandros das políticas do Partido Conservador. Até o início do século XX, muitos dos industriais membros do Partido Conservador se tornariam favoráveis à concessão de algum tipo de preferência comercial ao Império colonial da Grã-Bretanha. O plano para a preferência imperial foi liderado pelo prefeito de Birmingham, Joseph Chamberlain, um ex- fabricante de parafusos e poderoso líder do Partido Conservador. Como conservador convicto, Rothschild tinha grande interesse em manter a unidade do partido e lutou para que este adotasse alguns dos programas de Chamberlain. Não obstante, o compromisso de Rothschild com a integração econômica perdurou até o fim de sua vida. Rothschild trabalhou de forma incansável na Europa e no Novo Mundo para manter o mercado financeiro global acessível e estável. Ele também financiou empreitadas ambiciosas no sul da África, a fim de atrair novos investimentos para o mercado mundial. Há tempos os Rothschild se interessavam pela riqueza mineral da região. De fato, o interesse deles em metais preciosos ia muito além do apoio ao padrão-ouro. Os Rothschild da Inglaterra e da França investiam pesado na prata e no mercúrio da Espanha, nos rubis de Burma, no ouro da Venezuela, no níquel da Austrália e de Nova Caledônia, no cobre do México e de Montana e no petróleo da Rússia. No entanto, o subsolo mais lucrativo de todos parecia estar na África do Sul. À medida que o preço do ouro aumentou em relação aos outros bens durante a Grande Depressão de 1873-1896, exploradores de todos os lugares buscaram novas minas. Nenhuma descoberta fora tão importante como a de Witwatersrand, na África do Sul, que viria a se tornar a região de maior produção de ouro do mundo. As descobertas em Rand, como a região era chamada, e o desenvolvimento de novas tecnologias para extração em terras profundas tornaram a África do Sul a maior produtora mundial de ouro. Nathan Mayer Rothschild e seus parceiros começaram a participar da extração desde o início da descoberta, por meio de sua empresa de exploração. Quase ao mesmo tempo em que acumulavam lucros nos campos de ouro sul-africanos, os Rothschild ganhavam terreno nas lucrativas minas de diamante da região.11 O filho de Nathan Rothschild se uniu a Cecil Rhodes, um dos mais ricos magnatas da mineração de diamantes da região. Juntos, os dois controlavam 98% da produção de diamantes da África do Sul por meio de sua empresa, a De Beers Mining Company. Rothschild se vangloriava de que a história do esforço deles em conjunto com a De Beers era “simplesmente um conto de fadas” e se maravilhava por ter alcançado “praticamente o monopólio na produção de diamantes”.12 Rhodes tinha ambições maiores. Economicamente, ele cobiçava uma porção maior dos campos de ouro da área. Politicamente, Rhodes, o primeiro-ministro da Colônia do Cabo após 1890, queria trazer as áreas ricas em ouro da África do Sul para o controle britânico. Os obstáculos dele eram os governos do Estado Livre de Orange e Transvaal (na parte norte do que hoje em dia é a África do Sul), duas repúblicas independentes governadas pelos africâneres, descendentes dos colonizadores holandeses, os quais eram hostis ou indiferentes aos interesses dos mineradores, tanto britânicos quanto de outras nacionalidades. Nathan Mayer e os outros Rothschild se encontravam em uma situação difícil no sul da África. Por um lado, tinham interesses substanciais nas minas de ouro do Transvaal, uma área controlada pelos africâneres, e desejavam manter relações cordiais com o governo local. Por outro lado, eles teriam preferido um governo mais amigável – até mesmo uma extensão da britânica Colônia do Cabo ao sul – no controle da sua lucrativa propriedade. Para que a situação ficasse ainda mais complexa, Rothschild tinha ligações estreitas com Cecil Rhodes, o qual tinha planos definidos para as duas repúblicas africâneres. Assim como os Rothschild, o Ministério das Relações Exteriores britânico era forçado a uma combinação de ameaças aos africâneres e esforços para acalmá-los. Rothschild e os outros investidores prefeririam uma solução corporativa, mas o conflito de interesses e pessoas em questão fez com que isso fosse impossível. Os mineradores britânicos e outros colonos invadiram o Transvaal e o governo africâner se viu cercado por estrangeiros hostis. Rhodes, governando a contígua colônia britânica, lutava por seus sonhos imperiais fomentando o conflito com os africâneres. Nos lívidos dias de 1895, L. Starr Jameson, sócio de Rhodes, liderou um pequeno grupo de homens armados para depor o governo do Transvaal. O ataque foi um fracasso vergonhoso e Rhodes foi obrigado a renunciar, mas pôs africâneres e britânicos em uma rota de colisão que culminou na Guerra dos Bôeres, em 1899. Em 1902, meio milhão de soldados britânicos já haviam forçado toda a África do Sul a se submeter ao controle do Império, mas a um custo alto. A guerra foi difícil e longa. O fato de os britânicos terem maltratado os civis africâneres gerou comoção mundial, e a colonização que se seguiu deixou o governo da União da África do Sul sob o controle efetivo da comunidade africâner do país. Cecil Rhodes e Nathan Mayer Rothschild não realizaram todos os seus sonhos em relação à África do Sul. Rhodes morreu antes do fim da Guerra dos Boêres, e seus planos para a construção de uma estrada de ferro ligando a Cidade do Cabo ao Cairo permaneceu na fantasia. A África do Sul pertencia agora à Grã-Bretanha, mas os africâneres, inimigos de Rhodes, controlavam o governo. Rothschild esteve perto de ser bem-sucedido mantendo intactos os interesses da família em relação ao ouro e aos diamantes. Mas as consequências políticas da guerra foram sérias. Rothschild escreveu a Rhodes: A comoção neste país [está] altamente presente no momento em relação a tudo ligado à guerra, e há uma considerável inclinação, nos dois lados da dinastia, a jogar a culpa pelo que tem acontecido nos ombros dos capitalistas e dos interessados na mineração sul-africana.13 O descontentamento popular com a Guerra dos Boêres, o envolvimento de Joseph Chamberlain como Ministro das Colônias e as insinuações de uma conexão entre a empreitada militar e os ganhos financeiros ajudou a condenar o Partido Conservador de Nathan Rothschild a uma celebrada derrota nas eleições gerais de 1906. Uma empresa e uma família tão envolvidas na política e na economia globais não podiam ignorar que derrotas viriam. No entanto, os Rothschild foram extraordinariamente longe. Essa foi a primeira família de capital internacional, e Nathan Mayer Rothschild foi, indiscutivelmente, o indivíduo mais poderoso do mundo por várias décadas. Os Rothschild usaram a fortuna e influência política para apoiar a integração econômica global e extraíram enormes benefícios financeiros da vitória mundial pela abertura econômica. O comércio internacional, o padrão-ouro e os investimentos internacionais foram se fortalecendo pouco a pouco, bem como os Rothschild. Os partidários do livre-comércio Assim como os Rothschild, um poderoso emaranhado de interesses se beneficiou das relações econômicas internacionais e lutou por mais liberdade no comércio mundial. Até mesmo David Ricardo, o grande teórico do argumento das vantagens comparativas para o livre-comércio, era um ativista político que debatia as medidas econômicas britânicas. Com efeito, Ricardo vinha da comunidade financeira, um dos mais importantes grupos pelo livre-comércio do Reino Unido. Banqueiros e investidores internacionais queriam que seus países se abrissem às importações, permitindo aos devedores ganhar dinheiro para pagar suas dívidas. Os produtores para a exportação constituíam outro influente grupo favorável à integração global. Eles apoiavam a liberalização do comércio, o que disponibilizava insumos mais baratos para a produção. Tal fato diminuiria os gastos dos produtores e os tornaria mais aptos a competir nos mercados mundiais. Isso se aplicava a qualquer exportação, fosse ela o algodão cru da Lousiana ou os tecidos feitos de algodão de Lancashire. Os fazendeiros que exportavam queriam ser capazes de importar equipamentos, maquinário e fertilizantes baratos, assim como os fabricantes que vendiam para o exterior queriam poder importar algodão barato. Barreiras protecionistas impostas aos seus insumos apenas prejudicavam a competitividade das empresas ou fazendas que lutavam pelos mercados mundiais. Os exportadores também abominavam a proteção porque barreiras ao comércio eram um convite políticas nos Estados Unidos era dominada pelos protecionistas. A visão deles não era extremada. Eles estavam contentes pelo fato de os produtores agrícolas e os mineradores norte-americanos venderem o que pudessem no exterior, e pelos estrangeiros investirem o que quisessem nos Estados Unidos, mas insistiam em reservar a maior parte do mercado nacional de manufaturados para eles mesmos. A opção pelo fechamento não seguiu livre de desafios. Os agroexportadores de algodão e tabaco do sul e os banqueiros anglófilos do nordeste resistiram ao protecionismo dos industrialistas, da mesma forma que o Partido Democrata. Mas, como ocorreu na China, apenas após a eleição de 1912, que levou Woodrow Wilson à Presidência, é que os democratas prevaleceram. Apesar de algumas exceções, a Era de Ouro foi caracterizada por uma liberalização sem precedentes. Grupos importantes dos países tinham ligações mais livres do que em qualquer época, antes ou depois daquele momento. Esse grupo de países incluía os bastiões tradicionais do livre-comércio: a Grã-Bretanha, a Holanda e a Bélgica. As nações industriais menores tendiam a evitar o protecionismo comercial, uma vez que os benefícios do livre-comércio eram maiores para os países com um mercado nacional limitado. Os países em desenvolvimento mais pobres também rumavam em direção ao livre- comércio. Alguns deles eram incapazes de resistir à pressão das potências, tanto das europeias como as de outras regiões, para que abrissem os seus mercados. Na realidade, muitas nações extremamente pobres quase não tinham o que proteger; produziam matérias- primas e bens agrícolas para exportação e fabricavam poucos, ou nenhum, manufaturados. A Pérsia e o Sião,c por exemplo, eram quase tão abertos ao comércio quanto a Grã-Bretanha ou a Holanda. Por fim, as colônias não tinham outra escolha que não permitir o livre-comércio com a metrópole. As colônias britânicas e holandesas eram forçadas a seguir as diretrizes britânicas ou holandesas por comércio livre. Mas aqui também havia exceções. Os territórios britânicos autogovernados (conhecidos, de forma menos elegante, como os domínios brancos: Canadá, Austrália, Nova Zelândia e África do Sul) usufruíam de uma independência efetiva e determinavam muitas de suas políticas comerciais. A Índia lutou pela autonomia tarifária e, por fim, a conquistou. Em todos esses casos, a opção foi por um protecionismo maior do que teria permitido o livre-comércio britânico. As principais potências coloniais, por outro lado, concordaram em liberar o comércio na Bacia do Congo. Ironicamente, a política comercial alemã para as colônias era menos protecionista do que para seu mercado interno. Dificilmente as colônias serviriam como uma propaganda da livre escolha pelo livre-comércio, mas muitas delas, no entanto, compartilhavam da tendência global em direção à integração comercial. O poder político era a chave para o triunfo da abertura econômica. Sem dúvida, a abertura comercial contou com a assistência da solidez intelectual, da estabilidade macroeconômica e dos avanços tecnológicos, mas sua verdadeira fonte fora o poder político daqueles que se beneficiavam dela. Os defensores do livre-comércio venceram a batalha política doméstica, permitindo que o intercâmbio comercial internacional crescesse bem mais rápido do que a produção, e cada vez mais países rumavam para a fabricação de bens a serem exportados e para o consumo de importados. Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, o comércio internacional era quase duas vezes mais importante para a economia do mundo do que havia sido 14 anos antes. Os adeptos dos pilares dourados Os proponentes do padrão-ouro internacional estavam tão ocupados e cheios de compromissos quanto os defensores do livre-comércio. A comunidade financeira mundial contava com o sistema monetário internacional vigente para manter próximos credores e tomadores de empréstimos, investidores e seus investimentos, e para salvaguardar os contratos e propriedades além-fronteiras. Ao lado dos poderosos interesses financeiros estavam as empresas que gerenciavam o comércio internacional, os seguros do envio de cargas e outras atividades similares. A maioria dos fabricantes voltados para a exportação também fazia parte do bloco defensor do ouro, já que um sistema estável de pagamentos propiciava um mercado próspero para seus produtos. Grupos de interesse poderosos fora do centro financeiro europeu também defendiam o padrão-ouro a fim de proteger seus objetivos. Tomadores de empréstimos e seus credores dependiam do capital europeu e consideravam o ouro essencial para que o dinheiro continuasse a fluir. Banqueiros norte-americanos, de August Belmont a J.P. Morgan, defendiam o ouro com veemência, uma vez que gerenciavam grande parte dos investimentos europeus nos Estados Unidos. Aqueles em áreas de colonização recente, nas colônias e no mundo em desenvolvimento, que geralmente dependiam do comércio, de pagamentos, do transporte de mercadorias e de outros serviços de ordem internacional para viver, também advogavam pelo padrão-ouro. Os partidários de sistemas financeiros alternativos – principalmente da moeda lastreada na prata ou apenas do papel-moeda – lançavam críticas contínuas ao padrão-ouro. Muitos países de peso alternavam a adoção e o abandono do padrão-ouro. Apenas após 1896, quando os preços começaram a subir, é que a adesão ao sistema tornou-se praticamente universal. A adoção do ouro gerava custos substanciais. O governo que se comprometesse a fixar sua moeda no ouro não podia utilizar políticas monetárias, como desvalorizar a moeda ou reduzir a taxa de juros, para contornar dificuldades econômicas domésticas. As regras do jogo do padrão-ouro – livre conversão da moeda em ouro, permitindo que os salários e preços internos variassem livremente para cima e para baixo de modo a manter o valor em ouro da moeda – exigiam que os governos abdicassem de políticas monetárias proativas, mesmo quando as justificativas para tais políticas fossem de ordem local. A pressão para o abandono do ouro parecia ser grande, principalmente diante do pânico dos bancos, do desemprego em massa e da turbulência social. Havia uma legião de inimigos da moeda fixa no ouro, e, em tempos difíceis, esse número aumentava. Os principais adversários do ouro eram os que ganhariam mais com a desvalorização ou com uma flexibilidade monetária maior. Em muitos casos, uma desvalorização aumentaria o preço dos produtos agrícolas e dos minérios, aliviaria o ônus real da dívida e reduziria o desemprego. Mas o ouro tornava a desvalorização algo impossível. A adoção do ouro facilitava o acesso a mercados, capital e investimentos estrangeiros, mas restringia a habilidade dos governos de reagir a dificuldades econômicas. Era preciso pôr de um lado da balança os benefícios de um câmbio previsível e do acesso ao capital estrangeiro e, do outro, os custos gerados pela abdicação da ferramenta política mais poderosa de que os governos dispunham. Tornavase difícil a avaliação das vantagens econômicas trazidas pelo padrão diante dos sacrifícios domésticos. Mesmo nos dias de hoje, não é unânime entre os acadêmicos a opinião de que o padrão-ouro foi uma boa opção. Defensores e opositores se enfrentavam no campo de batalha político, em um conflito que se tornava ainda mais amargo porque os que mais se beneficiavam do padrão-ouro não eram os mesmos que arcavam com os custos gerados pela adesão. Manter os Estados Unidos, a Rússia ou o Brasil sob o padrão-ouro significava benefícios para alguns e malefícios para outros, e a polêmica política parecia não ajudar. Por todo o mundo, os defensores do ouro e os que a ele se opunham travavam a “batalha dos padrões”. Geralmente, essa era uma luta dos produtores agrícolas, que desejavam uma moeda desvalorizada, contra os interesses internacionalistas, que por sua vez queriam a estabilidade de uma moeda fixada no ouro. O resultado dessa briga dependia da força dos interesses e de sua representatividade. Os interesses pró-ouro nos países desenvolvidos eram particularmente importantes devido a uma elite financeira e comercial influente que defendia o metal; e até mesmo nos países democráticos, os produtores agrícolas, mineradores, devedores e trabalhadores não eram páreo para os que respaldavam o ouro. Nos países em desenvolvimento, a situação era diferente. Os proprietários de terras e mineradores dominavam muitas dessas nações oligárquicas, e devido aos interesses dos setores primários – agricultura e matérias-primas – ao longo do período de depressão, a maior parte desses países passou mais tempo fora do que dentro do regime. Os dois lados se enfrentaram de forma violenta nos campos de batalha altamente politizados dos Estados Unidos, país que abrigava de um lado produtores agrícolas e mineradores poderosos e, de outro, uma comunidade financeira igualmente forte –, além de uma democracia eleitoral em funcionamento. Dadas as controvérsias quanto ao comércio e ao padrão-ouro, é surpreendente a forma como a economia internacional se manteve tão integrada por tantas décadas até 1914. De modo geral, e impressionante, o comércio mundial se manteve aberto apesar das pressões protecionistas. Isso se aplicava não apenas aos países extremamente pobres e às colônias, mas também a algumas das potências industriais mais poderosas do mundo. E mesmo com as dificuldades impostas pela adesão ao ouro, quase todas as grandes nações permaneceram nesse sistema por décadas, até a Primeira Guerra Mundial. Redes globais para uma economia global Conexões econômicas, políticas e sociais poderosas, além das fronteiras e dos oceanos, uniam os defensores da integração da economia global na Era de Ouro. Em muitos países, os partidários do livre-comércio e os defensores do padrão-ouro se apoiavam e se encorajavam mutuamente. Em termos de políticas comerciais, as importações de um país tinham uma clara relação com as exportações de outro. Os exportadores britânicos de bens industriais queriam o algodão e o cobre sul-americanos, ao passo que os produtores agrícolas e mineradores sul- americanos desejavam o maquinário para agricultura e mineração dos britânicos. O comércio entre britânicos e argentinos, ou chilenos, fazia com que os argentinos, ou chilenos, dessem apoio à entrada de produtos britânicos. A preocupação com as retaliações também unia os defensores do livre-comércio da Europa e da América do Sul: os fabricantes europeus tinham esperança de que as políticas comerciais de seus países levassem a uma abertura pelo Atlântico, enquanto os exportadores de produtos agrícolas e de mineração da América do Sul aconselhar os devedores sobre como deveriam gerenciar suas economias. Esse conselho muitas vezes era a adoção do padrão-ouro. Quando as dívidas se agravavam, comitês de credores supervisionavam as renegociações, o que em geral incluía programas para a adesão ao padrão-ouro. Além do comércio, uma das principais fontes de energia do padrão-ouro era o extraordinário poder da Grã-Bretanha. Ludwig Bamberger, banqueiro e político que ajudou a implantar o padrão-ouro na Alemanha, disse certa vez: “Não optamos pelo ouro porque ouro é ouro, mas porque a Grã-Bretanha é a Grã-Bretanha.”19 O ouro melhorou o acesso à rede financeira britânica, e, na virada do século, Londres era responsável por quase metade de todos os investimentos internacionais. A confiança no capital britânico era uma boa razão para que nações em desenvolvimento ao redor do mundo seguissem a liderança inglesa. Já que o Reino Unido tecera uma rede econômica internacional tendo Londres como centro, era natural que os participantes fossem atraídos para um sistema monetário britânico fixado no ouro. Quanto mais países adotassem o ouro, maiores seriam os incentivos para que outros se mantivessem, ou entrassem, no padrão. Para um país, ser um dos muitos a adotar o sistema bimetálico ou o papel-moeda não era muito prejudicial, mas ser o único fora do sistema implicava o risco de rebaixamento à segunda classe da economia global. Na década de 1890, o comércio, o dinheiro e as finanças internacionais já operavam como um circulo virtuoso. À medida que o comércio mundial crescia, surgiam mais grupos de exportadores, e as exportações se tornavam mais importantes para eles. Quanto mais importantes se tornavam os mercados externos para os produtores domésticos, mais eles relutavam em aceitar o risco de retaliações gerado pelas tarifas nacionais. Quanto mais ampla e atrativa era a variedade de produtos disponíveis no mercado internacional, mais insistente tornava-se a demanda pelo acesso a tais benefícios do comércio. Esse fato se aplicava até mesmo aos países altamente protecionistas. Com o crescimento das exportações de matérias- primas e de produtos agrícolas dos Estados Unidos, a hostilidade dos fazendeiros e mineradores do sul e do oeste em relação ao protecionismo comercial se tornou mais acirrada e profunda. Possivelmente, muitos fabricantes se beneficiaram do sistema comercial mundial aberto. Entre 1890 e 1910, a participação dos manufaturados norte-americanos, cujas exportações representavam 5% dos ganhos do país, cresceu dramaticamente de 1/4 para 2/3 dessa economia nacional.20 Em 1910, o país foi pressionado a abolir o quase embargo que impunha às importações de manufaturados. A mudança se refletia na política norte-americana que passou a fortalecer os democratas, que advogavam pelo livre-comércio; e até mesmo o discurso dos protecionistas republicanos ganhou um tom mais moderado. Em 1912, quando os democratas conseguiram ocupar a Presidência e dominar o Congresso, a primeira medida foi uma redução dramática nas tarifas norte-americanas. Nos Estados Unidos, assim como em outros lugares, o rápido crescimento do comércio enfraqueceu os protecionistas e fortaleceu os que defendiam as trocas comerciais livres de barreiras. Um círculo vicioso também operava no padrão-ouro. Quanto mais sólido ele se tornava, mais razões para salvaguardá-lo tinham seus defensores. À medida que o sistema internacional financeiro crescia, um número maior de investidores internacionais se arriscava, e eles forneciam uma base mais sólida às políticas governamentais. Sobretudo aqueles que eram contra o sistema do ouro tinham motivos para crer em uma conspiração internacional do metal. Os que acreditavam na ordem monetária dominante tinham muitos interesses em comum e se esforçavam para protegê-los. Já que os opositores ao ouro lutavam, prioritariamente, pela autonomia nacional, e não pela harmonização monetária internacional, o estabelecimento de qualquer tipo de coordenação global nessa direção tornava-se impossível. A integração econômica global se autorreforçava. Quanto mais países adotassem o padrão-ouro, maiores seriam os níveis de comércio, investimentos, empréstimos e migração no plano internacional. Quanto mais atividade econômica fosse gerada entre as fronteiras, mais forte era o apoio ao padrão-ouro como o guardião de um equilíbrio econômico previsível e de um sistema confiável de créditos. Quanto mais amplo e profundo fosse o compromisso com o ouro, melhor se posicionariam aqueles cujo sustento dependia do padrão- ouro e seus desdobramentos. E, dessa forma, os pilares da Era de Ouro aumentavam tanto sua extensão quanto sua força. Sua rede de defensores tornava-se mais densa; e sua resolução mais elevada, na medida em que cada vez mais países adotavam o ouro, e o comércio e os investimentos se expandiam. Migração internacional de indivíduos e capital Embora o livre-comércio e o padrão-ouro fossem as características mais óbvias do capitalismo global do período pré-Primeira Guerra Mundial, a movimentação de indivíduos também influenciava a ordem econômica. Não havia, contudo, um sistema ou uma política global que se aplicasse a todos os países, como ocorria em relação ao comércio e ao capital. Em vez disso, pressupunha-se que tais movimentações deveriam ser essencialmente livres, pressuposto este que raramente era questionado e, de forma ainda mais rara, se provava errado. Tanto os países que enviavam imigrantes quanto aqueles que os recebiam tinham pouco interesse em restringir essa movimentação. Os que investiam fora do país ou imigravam certamente o faziam com grandes expectativas. Geralmente estavam certos. A taxa média de lucros gerados pelos investimentos britânicos no exterior era de 70 a 75% maior do que a produzida internamente. Essa diferença era ainda mais acentuada no todo-poderoso setor ferroviário, para o qual se destinava metade de todo o investimento externo da Grã-Bretanha. As ferrovias britânicas no exterior arrecadavam cerca de duas vezes mais que as do Reino Unido.21 Os ganhos com os empreendimentos internacionais eram imensos para os países dos grandes investidores. Na virada do século, a supremacia dos britânicos nos investimentos internacionais dependia substancialmente dos lucros que obtinham no exterior. Com efeito, uma década antes de 1914, a Grã-Bretanha enfrentou um déficit comercial equivalente a 6% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, uma quantia considerável que era compensada com alguma folga pelos ganhos líquidos dos investimentos externos de 7% do PIB.22 Esse fato levou os defensores do sistema, como Winston Churchill, em um discurso proferido durante a campanha eleitoral de 1910, a falar com entusiasmo eloquente sobre os investimentos internacionais britânicos: Os investimentos internacionais e o retorno que proporcionam estimulam o sistema industrial britânico de forma vigorosa ... eles remuneram o capital do país com uma parcela da nova riqueza de todo o mundo, a qual está gradualmente se tornando controlada pela desenvolvimento científico.23 Os salários nos países de destino eram drasticamente mais altos do que aqueles pagos nos lugares de onde os imigrantes vinham. Em 1910, por exemplo, os salários nos Estados Unidos e no Canadá eram cerca de três vezes mais altos do que na Itália ou na Espanha, ao passo que na Argentina eles eram o dobro. Os salários norte-americanos e canadenses eram cerca de duas vezes mais altos do que os pagos na Irlanda e na Suécia e quase o dobro dos pagos na Grã-Bretanha.24 Apesar de a vida dos imigrantes não ser fácil, ela seria mesmo assim ainda mais difícil se eles tivessem ficado em seus países. As nações de origem desses imigrantes tinham poucos motivos para se opor à partida deles, já que isso aliviava as pressões econômicas e sociais em lugares superpovoados. A imigração também suscitava a esperança pelas remessas de dinheiro que os imigrantes mandavam para os que haviam sido deixados para trás. Investidores internacionais, imigrantes e seus países de origem certamente apoiavam a liberdade de movimentação para si e seu dinheiro. Os países nos quais investiam ou se estabeleciam tinham razões para dar-lhes as boas-vindas. Na época, assim como agora, os países recém-desenvolvidos estavam ávidos por dinheiro. Como mostra a comparação entre os salários, estas também eram regiões típicas de escassez de mão de obra, onde receber novos trabalhadores motivados seria uma contribuição vital para o desenvolvimento nacional. A avidez por trabalhadores em muitos dos locais de destino dos imigrantes era tão grande que governos subsidiavam esse deslocamento. No Brasil, após a abolição da escravatura, em 1888, os cafeicultores estavam tão desesperados por trabalhadores que convenceram os governos local e nacional a oferecer passagens de graça a europeus que quisessem vir trabalhar no país. Nos 20 anos que se seguiram, cerca de três milhões de europeus foram para o sul do Brasil, remodelando a economia e a estrutura social desses lugares. O entusiasmo com a imigração e os investimentos internacionais não era, contudo, universal. Nos países de onde o dinheiro escoava havia uma certa preocupação de que isso estaria restringindo o fornecimento de fundos para empreendimentos domésticos rentáveis. Mesmo que as análises econômicas feitas posteriormente tendam a ser céticas nessa conta,25 certamente muitas empresas na Europa se ressentiam dos enormes empréstimos concedidos por financiadores europeus ao czar ou à província de Buenos Aires, enquanto eles não podiam tomar emprestado. Joseph Chamberlain, um dos principais críticos dos investimentos britânicos, bradava contra o que considerava ser o descaso da comunidade londrina partidária do livre-comércio e dos investimentos externos para com a indústria: A atividade bancária não é a causa de nossa prosperidade, e sim a criação dela; não é a causa de nossa riqueza, e sim a consequência dela; e se a força industrial e o desenvolvimento, os quais têm estado em curso neste país por tantos anos, forem deixados para trás ou atenuados, então as finanças e tudo aquilo que elas significam irão seguir o comércio, rumando para os países mais bem-sucedidos que o nosso.26 Em algumas partes dos países que solicitavam empréstimos também pairava a preocupação de que a confiança no capital externo fosse malconduzida. Tal sentimento nacionalista era, evidentemente, mais popular quando se tratava do pagamento de empréstimos. As preocupações não eram de todo infundadas. Poucos eram os argumentos que serviam como justificativas aos cidadãos brasileiros ou chineses forçados a reduzir o consumo para pagar dívidas que aumentariam a fortuna de imperadores, empresários favorecidos ou políticos corruptos. atrativas, as quais por sua vez aumentavam o poder de atração do padrão-ouro. A abertura econômica global levou a meios de transporte mais rápidos, a um melhor sistema de comunicações, a moedas mais confiáveis, a políticas comerciais mais livres e a uma maior estabilidade política. E todos esses fatores estimulavam uma maior abertura econômica. O circulo virtuoso ou o espiral de abertura econômica crescente resultante se expandiu a níveis jamais vistos durante o fim do século XIX e início do XX. O clube de cavalheiros que era o capitalismo global da Era de Ouro foi fundado tendo a Grã-Bretanha e a Europa ocidental como núcleo. Mas o clube também estava aberto ao Novo Mundo e a outras regiões, e na virada do século, os Estados Unidos, a Austrália e a Argentina obtiveram a afiliação. Outras nações que cresciam rápido e se integravam globalmente, como o Brasil e o Japão, também eram membros do clube, apesar de não gozarem do mesmo status que os franceses, britânicos e alemães. Os governos dos países que pertenciam ao clube, fossem eles membros seniores ou juniores, eram altamente conscientes de que precisavam manter um padrão de conduta de acordo com suas obrigações: abertura econômica completa, compromisso com o padrão-ouro e uma interferência mínima nos mecanismos de funcionamento dos mercados globais e nacionais. O clube crescia e prosperava, e seus membros tinham poucos motivos para reclamar. a Clubes formados pela classe alta londrina, em que seus membros se reuniam para jogar ou discutir temas como política ou literatura. (N.T.) b No original: governor. O governor do Banco da Inglaterra – o Banco Central inglês – é a posição mais alta na instituição. (N.E.) c Antiga denominação da Tailândia. O nome mudou em 24 de junho de 1939 (N.E.) 3 Histórias de sucesso da Era de Ouro A Exposição Internacional de Paris de 1900 foi a maior que o mundo já viu. Essa foi a última de uma série de sete feiras internacionais na França e na Grã-Bretanha que teve início com a exposição de 1851 no Palácio de Cristal. As feiras anteriores mostraram os avanços industriais do passado; a de Paris apontava em direção ao século XX. Os visitantes da feira de 1900 podiam caminhar do Trocadero à Torre Eiffel, que havia sido erguida para a exposição de 1899. Os portões da feira se abriram para um mix internacional: Carrilhões flamengos de sinos medievais, cânticos muezins com o tinido de cincerros; as cidades de Nuremberg e Louvain, moradias húngaras, monastérios romenos, palácios javaneses, bangalôs senegaleses e castelos dos Cárpatos formavam uma maravilhosa miscelânea internacional sob o céu cinzento da quaresma.1 Os avanços industriais e científicos tomaram conta da exposição. Para um francês, parecia que “o mundo mudava tão depressa que nos deixava tontos ... confusos em meio ao turbilhão do progresso”.2 Os visitantes podiam ver as últimas tecnologias: um telégrafo sem fio; o telescópio mais poderoso do mundo; uma torre de eletricidade. “Eletricidade!”, escreveu um entusiasmado visitante: Nascidos no paraíso como verdadeiros reis! A eletricidade triunfou na exposição, como a morfina triunfara nos boudoirs de 1900. O público ria das palavras – “perigo de morte” – escritas nas torres, pois eles que pensavam que a eletricidade poderia curar todas as doenças, até mesmo a neurose, tão na moda; isso era o progresso, a poesia tanto dos ricos quanto dos pobres, a fonte de luz, o grande sinal; esmagou o acetileno assim que surgiu ... A eletricidade é acumulada, condensada, transformada, engarrafada, armazenada em filamentos, enrolada em bobinas, depois descarregada na água, em fontes, disposta livremente no topo das casas ou deixada perdida entre as árvores; é o flagelo e a religião de 1900.3 Os visitantes podiam chegar ao novo metrô de Paris, circular pelos pavilhões de esteira rolante e andar na primeira escada rolante (apenas para cima) em direção aos surpreendentes novos aparatos. No pavilhão de ótica, podia-se ver – visão repugnante – uma gota das águas do Sena aumentada 10 mil vezes, e um pouco mais adiante, a apenas um metro de distância, avistava-se a lua. O dr. Doyen, um cirurgião dado à autopromoção, utilizou até mesmo uma invenção nova, um cinematógrafo que o mostrava realizando uma operação ... Em outro ponto, a voz de um fonógrafo estava sincronizada com imagens em movimento.4 Um escocês maravilhado com as novas tecnologias e com aqueles que as desenvolveram afirmou: Os engenheiros e eletricistas em meio a patentes da Siemens ou do Lord Kelvin, os mestres do ferro se aglomerando para comprar a colossal máquina a gás que reutiliza a energia gasta pelos altos-fornos e literalmente acumula a força de milhares de cavalos contra o que tem sido até o momento um poluidor inútil do ar ... a mostra de automóveis, as últimas lentes telefotográficas, as rivais das máquinas de escrever, as macieiras mais bem-podadas, os filtros e antissépticos mais recentes.5 Em meio a tantos indícios do progresso tecnológico, os 50 milhões de visitantes da feira devem ter percebido outra realidade: a liderança industrial parecia se afastar da Grã-Bretanha e de outros países que também se industrializaram cedo, como a França e a Bélgica. Para um inglês, a exposição fora um presságio da “norte-americanização do mundo”. No entanto, de forma geral, a feira foi dominada pela Alemanha, “como se a nação tivesse se tornado a responsável por todo o maquinário da Terra. Insistia na beleza do aço, e a poltrona de Luís XV foi banida. Ela irá esmagar e pulverizar o mundo.”6 “Ouvi os mais velhos dizendo”, escreveu um menino francês: “‘Viram os alemães? São incríveis! Eles engarrafam o ar! Fabricam o frio!’” A Alemanha, um país que havia 30 anos era considerado um local atrasado, apenas de agricultores, chocava os visitantes com seu pavilhão: Sob seu aspecto rústico, suas torres de madeira verdes e amarelas, o palácio do Reich escondia uma verdadeira explosão de método, ciência e trabalho que resultava em um imenso sistema de medidas práticas. A maior instância de envolvimento comercial que o mundo já viu.7 O visitante francês foi ainda mais longe: Nenhuma outra raça, até agora, havia sido bem-sucedida em extrair resultados tão estupendos da terra sem suar a camisa. Veja, me lembro bem da grande impressão que me causaram o enorme dínamo de Hélios de 2 mil cavalos de força, produzido em Colônia e acelerado por turbinas a vapor, os outros tipos de geradores de Berlim e Magdeburgo, e o guindaste que levanta 25 toneladas, dominando a galeria; diante dessas máquinas, as dos outros países parecem brinquedos.8 Veteranos de guerra da derrota francesa de 30 anos antes baixaram a cabeça com tristeza, relembrando a decisiva Guerra Franco-Prussiana: “A exposição é um sedã comercial.”9 Houve rumores de que os alemães se ofereceram para fornecer toda a energia da feira, mas os franceses, humilhados pelo simbolismo da subordinação industrial da França, recusaram. Ainda mais surpreendente foi a ascensão econômica de um Estado insular asiático conhecido por seu exotismo e não por sua indústria. “Esse jovem vitorioso começou bem o século”, disse um observador.10 Outro visitante estava apreensivo, percebendo uma sombra da Alemanha, e de seu poderio militar, surgindo da Ásia: O Japão parece ser o eco oriental da grande voz do Reno, celebrando o trabalho, a pátria e enobrecendo a guerra ... Qual o significado de toda essa armadura prateada, dessas caldeiras tubulares, dessas políticas aventureiras, dessa arrogância comercial? Sobre Nagasaki e suas luzes nós sabemos, mas e sobre Kobe e seus altos-fornos?11 Para muitos cidadãos das nações mais industrializadas, os avanços econômicos de outros lugares revelados na exposição eram perturbadores. “Esses países que estão criando uma vida nova para si”, escreveu um francês, “nada sabem sobre política e sobre a atitude neurótica e degenerada do fin-de-siècle. Contra quem eles estão propondo usar sua força?”12 Da Europa central à Austrália, da Argentina ao Japão, o ex-centro industrial do mundo estava sendo superado por uma série de países fora desse núcleo. Os visitantes da feira de Paris de 1900 devem ter se perguntado como o noroeste da Europa perdeu a sua posição inquestionável de líder da economia mundial. Mudanças nas bases manufatureiras promoveram a rápida propagação da industrialização. A difusão do uso de energia elétrica e de formas mais baratas de produção de aço, além do desenvolvimento da indústria química moderna e de outras tecnologias, transformaram a produção industrial. Uma enxurrada de invenções também introduziu novos produtos no mercado, como a máquina de escrever, a bicicleta, o fonógrafo, as câmeras portáteis e a “seda artificial”, chamada raiom. O mecanismo de combustão interna levou à invenção do veículo motorizado e ao lançamento da indústria mais importante do século XX. Em meados de 1800, os manufaturados eram basicamente produtos têxteis, vestimentas e calçados, mas no fim do século o foco passou para o aço, químicos, máquinas elétricas e automóveis. A produção e o consumo em massa cresciam juntos. No início, os produtos industriais atendiam principalmente às necessidades básicas. Uma vez que a renda per capita na Europa, na América do Norte e nas áreas de colonização recente cresceu duas vezes entre 1870 e 1913, a demanda por bens de consumo além de comida, roupa e moradia mais do que duplicou. Ao mesmo tempo, as invenções recentes possibilitaram a criação de uma série de eletrodomésticos. Agora, muitas famílias tinham luz elétrica, máquinas de costura, telefones e, algumas delas, automóveis e rádios. A tendência de produzir máquinas para o consumo de massa, especialmente os novos aparatos domésticos, era liderada pelos Estados Unidos. A América do Norte sofria com a falta crônica de trabalhadores, o que significava que empregados domésticos eram caros demais para as classes médias, e que as mulheres norte- americanas eram mais inclinadas a trabalhar fora do que as europeias. Isso criou uma avidez por aparatos que aliviassem o peso do trabalho doméstico e liberassem os indivíduos para outras atividades. O automóvel era um produto industrial exemplar que levou a novos padrões de produção e consumo. A “carruagem sem cavalo” a supria a demanda por um meio de transporte individual, que crescia junto com a renda e a disponibilidade de tempo para o lazer. As linhas de montagem levaram o carro a motor, originalmente um artigo de luxo feito artesanalmente, ao alcance da classe média. O boom inicial da indústria automobilística ocorreu dez anos antes da Primeira Guerra Mundial. O fenômeno foi essencialmente norte-americano. A Europa não aderiu seriamente à era automotiva até a década de 1920. Em 1905, havia cerca de 160 mil veículos motorizados no mundo, sendo que a metade estava nos Estados Unidos. Em 1913, cerca de 1,7 milhão de carros rodavam nas estradas, dos quais 3/4 nos Estados Unidos. As inovações de Henry Ford reduziram o preço do Ford modelo T de US$700 para US$350 entre 1910 e 1916 – quando os preços dos outros produtos aumentaram em média 70%. Com o aumento dos salários durante esse período, um trabalhador médio norte-americano, em 1910, conseguia ganhar o suficiente para comprar um Ford T em um ano. Em 1916, esse tempo foi reduzido para seis meses. Com a produtividade disparando, os preços caíram e a demanda aumentou. A produção de carros Ford cresceu de 34 mil unidades em 1910 para 73 mil. O país tinha cerca de 1,5 milhão de carros – três ou quatro vezes mais do que a quantidade existente no resto do mundo. Com o surgimento do automóvel, a indústria moderna jamais seria a mesma.19 O automóvel fora o mais impressionante dos novos bens de consumo duráveis, como eram chamados para que fosse estabelecida uma diferenciação entre esses e os outros produtos menos permanentes, como sapatos ou carne enlatada. A produção de bens duráveis utilizava uma quantidade maior de recursos intermediários – produtos em estágio médio de acabamento, como aço, fios de cobre e vidro – que os bens de consumo não duráveis, que eram quase matérias-primas. Os duráveis também necessitavam de um maquinário mais sofisticado. As novas indústrias tendiam a gerar fábricas e empresas muito maiores. Antes da década de 1890, a maior parte dos produtos manufaturados poderia ser feita em pequenas lojas. Fábricas com 40 ou 50 empregados podiam facilmente pôr em prática as vantagens da especialização, das máquinas modernas e da energia a vapor. Mas as novas tecnologias geralmente exigiam um número maior de pessoas e equipamentos. As usinas siderúrgicas foram os primeiros exemplos: em 1907, 3/4 dos empregados do setor de ferro e aço da Alemanha trabalhavam em fábricas com até mil trabalhadores; em 1914, uma usina siderúrgica média nos Estados Unidos contava com 642 trabalhadores.20 O tamanho médio das fábricas de produtos como químicos, metais, máquinas e aparatos de engenharia – e até mesmo de pequenos negócios de outrora, como o têxtil – cresceu de maneira substancial. A típica fábrica se transformou de uma pequena oficina em uma indústria imensa. As economias de escala eram muito mais importantes para essas fábricas complexas do que para os setores típicos da primeira Revolução Industrial. As fábricas de automóveis e químicos eram – como continuam sendo – bem maiores que as de artigos de vestuário. Os novos bens de consumo duráveis eram produtos caros que as pessoas compravam para usar durante anos, de modo que a reputação de serviços e a confiabilidade tinham importância. Dessa forma, uma identificação com a marca fazia a diferença, e não é por coincidência que a propaganda moderna existe desde os primeiros bens de consumo. Quando o atendimento, a identificação e outros fatores que contribuem para a reputação de uma marca tornam-se importantes, o mercado tende a ser dominado por poucas grandes empresas. E foi isso o que aconteceu. A Singer, a Ford, a General Electric e a Siemens entraram em cena com o crescimento da indústria de bens de consumo duráveis. As nações de rápida industrialização se beneficiaram por terem iniciado o processo tardiamente. A Alemanha e os Estados Unidos, por exemplo, estavam bem-posicionados, o que facilitou a adoção dos novos padrões de produção e consumo que tornavam as fábricas maiores e as empresas mais abundantes. Os alemães, os norte-americanos e outros que se desenvolveram tarde puderam começar o processo com instalações e equipamentos mais modernos, produzindo o que havia de mais novo em fábricas imensas, utilizando tecnologia de ponta. No entanto, o peso da História foi sentido pelo setor manufatureiro britânico com suas indústrias mais antigas, fábricas menores e empresas lentas demais para alcançar a produção em escala das imensas empresas dos Estados Unidos e do resto da Europa continental. A segunda leva de países industrializados utilizou-se do frescor para vencer os britânicos no seu próprio jogo industrial.21 Os recém-industrializados dependiam de uma economia mundial aberta. A difusão internacional de novas tecnologias necessitava da integração global; a maior parte das novas indústrias também precisava mais das proporções de um mercado global do que dos restritos mercados nacionais. Londres e outras capitais europeias estavam prontas para emprestar capital a qualquer projeto viável. A Suécia, uma grande história de sucesso do período, ilustra o papel central que a integração econômica desempenhou nessa segunda onda de desenvolvimento industrial.22 Em 1870, o país era um dos mais pobres da Europa ocidental, mas o crescimento de outras regiões aumentou a demanda pelas exportações suecas, especialmente de madeira serrada e de produtos feitos desse material, como fósforos de segurança. O boom dessa matéria-prima permitiu à Suécia construir novas indústrias voltadas para os mercados externos de aço de alta qualidade, máquinas e outros bens. A industrialização na Suécia também foi alimentada pelo capital estrangeiro, que financiou cerca de 90% dos empréstimos feitos pelo governo. Grande parte do capital estrangeiro fora destinada, direta ou indiretamente, para a construção de ferrovias, instalações e infraestrutura para portos. Para a Suécia, assim como para os outros países recém-industrializados, as fábricas modernas vieram de mãos dadas com o acesso aos mercados externos e com a tecnologia e capital estrangeiros. Protegendo as indústrias nascentes Apesar de os países que desafiavam a supremacia industrial britânica contarem com acesso a mercados, tecnologia, capital e fornecedores do exterior, eles também tendiam a utilizar barreiras comerciais para proteger suas indústrias. Geralmente, suas empresas e líderes políticos favoreciam o investimento externo, as finanças internacionais e a imigração livre. Eles viam o comércio como uma peça importante para o crescimento, mas muitos industrialistas, que se consideravam internacionalistas econômicos, também apoiavam firmemente a proteção comercial para suas próprias indústrias. Os graus de proteção defendidos variavam – os fabricantes norte-americanos eram bem mais protecionistas que seus colegas alemães ou japoneses –, mas quase todos os países em vias de industrialização, de alguma forma, protegeram suas indústrias. As fábricas protegidas da concorrência estrangeira podiam ajustar os preços domésticos acima dos níveis mundiais e obter lucros altos que podiam ser reinvestidos na indústria. Essa industrialização artificialmente rápida era exatamente o que esperavam, e desejavam, aqueles que acreditavam no protecionismo como um meio justificável para fins industriais. O mais conhecido dos primeiros teóricos da industrialização por meio do protecionismo foi Friederich List, um economista político e ativista alemão do século XIX. List considerava o livre-comércio o objetivo final, mas argumentava que o protecionismo comercial temporário era necessário para equalizar as relações entre as grandes potências: “Para permitir que a liberdade de comércio opere naturalmente, as nações menos avançadas precisam antes se erguer por meios artificiais até atigirem o mesmo estágio de desenvolvimento que a nação inglesa alcançou artificialmente.”23 List e os outros defensores da proteção focaram nos argumentos da indústria nascente e nas necessidades genuínas da indústria moderna de produção em larga escala: “O único, e exclusivo, motivo que justifica o sistema de proteção é o desenvolvimento industrial da nação.”24 De acordo com eles, não é possível construir uma indústria moderna de aço aos poucos. É necessário começar com uma grande quantidade de enormes usinas integradas. Eles argumentavam que em um estágio inicial as usinas talvez fossem ineficientes, mas, com o passar do tempo, logo se tornariam competitivas e a proteção poderia ser retirada. Os protecionistas diziam que nenhum país havia se industrializado sem barreiras protecionistas; o Reino Unido se livrara do controle mercantilista sobre o comércio apenas após ter atingido um bom desempenho industrial. E, com frequência, eles argumentavam que a segurança custos superaram os benefícios extraídos pelas sociedades. Os Estados Unidos e a Alemanha certamente se industrializariam sem tarifas e talvez tivessem sofrido menos sem tantas indústrias pesadas, mas essa não teria sido uma opção popular para os industriais do país, tampouco para a sua política externa ou elites militares. De maneira geral, ao mesmo tempo em que a proteção à indústria nascente era comum nas décadas que precederam a Primeira Guerra Mundial, isso não interferia na abertura da economia mundial. As barreiras à importação proliferavam, mas eram direcionadas, em vez de amplamente aplicadas. As nações que se industrializavam com velocidade, e protegiam suas indústrias, em geral permitiam a entrada livre, ou quase livre, de matérias-primas e bens agrícolas, que não competissem com a produção doméstica, e de recursos intermediários indisponíveis no local. A atividade comercial crescia muito rápido, inclusive nos países mais protecionistas. Em 1913, todas as grandes potências exportavam uma quantidade maior da produção e importavam bem mais para o consumo interno que em 1870.31 Aqueles que rapidamente se industrializavam na virada do século XX participavam com entusiasmo do comércio e dos investimentos mundiais, mas estavam dispostos a burlar as regras do livre- comércio em nome da industrialização e de lucros imediatos. Áreas de colonização recente Na década de 1890, os europeus, além de outros povos, já haviam se estabelecido em grandes áreas de colonização recente e praticavam a agricultura, a mineração e outros tipos de atividades. Essas regiões, que antes mal participavam da economia global, cresciam em uma velocidade extraordinária. Elas possuíam recursos naturais, mas a extração só se tornou economicamente viável com as recentes transformações tecnológicas, migrações e exploração. É evidente que os pampas, as Grandes Planícies e as pradarias sempre existiram, assim como o outbackb australiano e os depósitos de minerais sul-africanos. Em alguns dos casos, os europeus não sabiam da existência dessas áreas. Em outros, eles não podiam explorá-las até que fossem desenvolvidas novas tecnologias, como navios refrigerados capazes de trazer carne de vaca ou de carneiro dos confins do mundo para a Europa. Uma vez que as possibilidades se concretizaram, indivíduos corriam para transformar o potencial dessas áreas em dinheiro vivo. Toda a extensão, ou parte, de Austrália, Nova Zelândia, Canadá, Estados Unidos, África do Sul e do Cone Sul da América Latina (Argentina, Uruguai, Chile e o sul do Brasil) foi invadida por essa nova atividade. Esses países se tornaram ricos por seus recursos naturais: a agricultura e a mineração alimentaram um crescimento econômico mais amplo. A criação de gado gerou abatedouros, instalações para o empacotamento da carne, curtumes e fábricas de sapatos. O cultivo do trigo fez emergir celeiros, estaleiros e estradas de ferro. Os que trabalhavam em armazéns, ferrovias e portos precisavam de um lugar para morar; a indústria da construção civil cresceu e, em seguida, as olarias, usinas de aço e outros locais de fabricação de materiais se desenvolveram. Portos e entroncamentos ferroviários demandavam energia elétrica, instalações e estações de tratamento de água. A população crescente necessitava de vestimenta, telefones, lâmpadas e livros, e logo as manufaturas locais se expandiram vertiginosamente. Onde as bases manufatureiras já existiam, como era o caso da América do Norte, o boom dos recursos acelerou o processo de crescimento industrial. Onde existiam poucas fábricas – ou nenhuma –, mas havia know-how, capital e espírito empreendedor, a indústria moderna proliferou rapidamente. As regiões de colonização recente se distinguiam do resto do mundo. Elas eram pouco povoadas e, em muitos dos casos, a população que vivia nelas foi expulsa ou exterminada. Seus habitantes estavam criando economias modernas prósperas – fazendas e minas, rodovias e ferrovias, municípios e cidades, fábricas e portos –, onde antes existia pouca atividade econômica.32 Não foram muitos os interesses ali arraigados que permaneceram no caminho do desenvolvimento comercial ou da exploração dos recursos primários (agrícolas e minerais) da região. As instituições locais também ajudaram no desenvolvimento econômico dessas áreas. Algumas eram ramos diretos da sociedade britânica e importavam – além de milhões de britânicos – algumas variantes dos sistemas legal e político da Grã-Bretanha. Isso significava principalmente uma tradição de respeito pelos direitos de propriedade privada, tanto na esfera política quanto na legal. Tais direitos eram restritos, evidentemente, aos europeus, e não se aplicavam às populações indígenas, cujas propriedades eram tomadas com impunidade. Diferentemente de muitas outras áreas em desenvolvimento, estas eram, em geral, estáveis na esfera política e previsíveis no campo legal. Os produtores agrícolas que trabalhavam para a melhoria de suas terras podiam estar certos de que outros, ou o governo, não as tomariam de forma arbitrária. As instituições políticas, que incorporavam novos grupos sociais, faziam com que as elites econômicas acreditassem que seus interesses seriam levados a sério pelos governos. O ceticismo quanto a essa questão era comum em outras nações do mundo em desenvolvimento, o que tendia a atrapalhar o processo de crescimento. Mas nas áreas de colonização recente, a riqueza era uma obsessão nacional, e a propriedade, algo quase sagrado. O Cone Sul da América Latina ainda apresentava resquícios das instituições coloniais ibéricas, que de certa forma eram menos adequadas a fins desenvolvimentistas, mas, em relação a regiões que nunca conheceram uma ideia estável de direito de propriedade, essa área era também bastante avançada.33 As áreas de colonização recente também gozavam da vantagem de um clima temperado, adequado à criação de gado e à produção de culturas delicadas. As tecnologias desenvolvidas para a agricultura de climas temperados, que durante séculos foi responsável pelo extremo desenvolvimento da Europa ocidental, podiam ser diretamente aplicadas a essas terras. A produção de grãos por acre nas regiões de clima temperado era de duas a três vezes maior do que em outras áreas agrícolas, e com a mecanização a produção por pessoa se tornara ainda mais alta.34 Índices de produtividade agrícola, semelhantes aos da Europa, permitiam que as áreas de colonização recente pagassem salários nos moldes europeus e, portanto, atraíam imigrantes vindos do continente. Nas regiões tropicais e subtropicais, os níveis de produtividade e de tecnologia agrícola, assim como o padrão de vida, eram bem mais baixos. Sendo assim, os europeus não se mudariam para essas áreas como meros trabalhadores ou agricultores. O que tornava essas áreas mais produtivas que as outras eram as condições da produção agrícola, e não algo inato dos europeus; os poucos lugares (como em algumas partes da América Latina) onde produtores agrícolas japoneses ou chineses se estabeleceram também prosperavam. Mas os europeus se aglomeravam em áreas extremamente produtivas, cujo padrão de vida era mais alto que o de seus países de origem. Ondas de imigração europeia afluíam para as regiões temperadas pouco povoadas a fim de construir novas sociedades de base agrícola, pecuária ou mineradora. Nessas regiões recém- colonizadas, eles atingiam níveis de produção e de renda per capita que geralmente superavam os da Europa. Em contrapartida, a renda alta gerava um mercado doméstico grande para os produtos locais. No início, fazia mais sentido produzir internamente o que era de difícil importação – energia elétrica, materiais pesados, serviços como a construção civil – e foi assim que a indústria local começou. Com o passar do tempo, como Buenos Aires e Rio de Janeiro se transformaram em cidades de mais de um milhão de pessoas, alguns de seus habitantes se beneficiaram da prosperidade dessas regiões para estabelecer fábricas, especialmente para o processamento de produtos primários locais. As extensas planícies uruguaias eram ideais para a criação de animais e o cultivo de grãos, e em 1870 o país começou a crescer muito rápido com base nas exportações de produtos agrícolas e pecuários para a Europa. Centenas de milhares de espanhóis, italianos e outros europeus rumaram para o Uruguai (país que, apesar de pequeno para os padrões latino- americanos, é bem maior que a Inglaterra). Logo, o porto de Montevidéu florescia, e os padrões de vida do país passaram a ser tão altos quanto os da França ou Alemanha. Nos anos do início do século XX, a ordem política do Uruguai foi reestruturada de acordo com a sua recente prosperidade. José Battle y Ordóñez serviu à Presidência uruguaia por dois mandatos, entre 1903 e 1915, e conduziu as reformas. Battle introduziu educação gratuita para todos; um sistema de saúde abrangente; amplos direitos para as mulheres; legalizou o divórcio; e implantou leis trabalhistas progressivas que incluíam uma jornada de oito horas, aposentadoria garantida pelo governo e compensações para os trabalhadores; além de outras medidas que passaram a caracterizar as sociedades desenvolvidas do fim do século XX. Isso pode ser comprovado nas vezes em que o Uruguai é considerado o primeiro Estado de bem- estar social moderno. Tudo isso foi possível graças ao padrão de vida gerado pela lucrativa economia de base nas exportações agrícolas e pecuárias. Assim como o Uruguai, as outras áreas de assentamento recente cresceram porque tinham acesso aos mercados globais, e suas economias eram organizadas de forma a exportar para a Europa. Essas regiões foram povoadas por milhões de imigrantes europeus, e o capital vindo do continente foi responsável por grande parte de seu crescimento econômico, financiando de ferrovias e usinas de geração de eletricidade a abatedouros e fábricas. A Era de Ouro da economia mundial foi uma das principais fontes para a prosperidade alcançada por argentinos, canadenses, australianos e uruguaios. As áreas de colonização recente possuíam as características perfeitas para extraírem vantagens das oportunidades geradas pelos avanços nas comunicações e nos meios de transporte, e tiveram um desempenho extraordinário nos anos que precederam a Primeira Guerra Mundial. Em 1896, Austrália, Canadá e Argentina produziam cerca de 80 milhões de bushels de trigo, aproximadamente 1/6 do que a Europa ocidental produzia. Porém, em 1913, esses três países juntos passaram a gerar 438 milhões de bushels de trigo, mais do que a toda a produção da Europa ocidental.35 Esse crescimento não dependia apenas do cultivo agrícola. Em 1913, Canadá, Austrália e Nova Zelândia já fabricavam mais manufaturados per capita do que qualquer outro país europeu, exceto a Grã-Bretanha. A Argentina produzia mais do que a Itália ou a Espanha. E isso nem incluía os Estados Unidos, onde muitas regiões tinham as mesmas características de rapidamente – as exportações da região quadruplicaram entre 1897 e 1913.41 O boom se concentrou nas quatro colônias mais prósperas, as britânicas Nigéria e Costa do Ourod e as francesas Senegal e Costa do Marfim. Essas regiões já produziam sementes (amendoim), óleo de palma e outros cultivos semelhantes, produtos que tinham grande demanda devido ao rápido desenvolvimento industrial e ao aumento do consumo da classe trabalhadora na Europa e nos Estados Unidos. O óleo de palma era utilizado para lubrificar máquinas e fabricar latas. A noz de palma era usada para produzir sabão, velas e margarina, que acabara de ser inventada. O óleo de amendoim servia como um substituto barato para o de oliva. Quando a demanda europeia por esses produtos cresceu, os africanos expandiram o cultivo do amendoim e passaram a plantar palma, em vez de apenas coletá-la. As exportações aumentaram imensamente, em especial com a melhora dos meios de transporte. Em 1911, a construção de uma estrada de ferro ligando Kano, no norte da Nigéria, à costa foi concluída. Quando os fazendeiros e comerciantes se deram conta do quanto os produtores de amendoim poderiam lucrar no mercado europeu, em dois anos, o preço local do produto quintuplicou. Em menos de dez anos, a quantidade de amendoim exportada pela Nigéria passou de alguns milhões de toneladas para 58 milhões.42 Diante da expansão da produção de bens tradicionais, as exportações dos produtos novos (ou daqueles que passaram a receber atenção) cresceram de forma ainda mais rápida. O cacau da Costa do Ouro, que era insignificante, passou a dominar o mercado mundial. As exportações de madeira da Costa do Marfim aumentaram seis vezes em 20 anos, e o café e alguns minerais também dispararam. Os produtos eram cultivados principalmente por pequenos agricultores e inseriram uma proporção sem precedentes da população na economia moderna. No entanto, o desenvolvimento da indústria moderna na África ocidental foi relativamente pequeno. Os mercados locais para manufaturados eram menos receptivos que os da América Latina, onde a renda per capita era duas ou três vezes mais alta e as cidades, assim como a infraestrutura, se desenvolveram mais e melhor. Sobretudo, o sistema colonial restringia as possibilidades de proteção comercial das manufaturas locais, diferentemente do que ocorria na América Latina. No entanto, as bases para um crescimento econômico sustentável estavam lá. As áreas bem-sucedidas do sul e sudeste da Ásia também expandiram a produção agrícola já existente ou iniciaram o cultivo de novas terras para lucrarem com o mercado crescente das exportações. Burma e Tailândia cultivavam arroz havia muito tempo, mas a produção se destinava exclusivamente ao consumo local. Novas políticas e condições econômicas permitiram que os dois países se tornassem um dínamo exportador, que passou a abastecer os mercados do resto da Ásia e de outras regiões. A monarquia independente da Tailândia era favorável ao comércio – apesar de não se entusiasmar com a indústria –, e, sob sua administração, as exportações de arroz do país cresceram dez vezes em 40 anos, de aproximadamente 100 mil para um milhão de toneladas. No início do século XX, metade da produção se destinava à exportação.43 Os agricultores do delta do Irrawaddy também já cultivavam arroz havia tempos, mas não de forma intensiva, já que o governo proibia as exportações. Quando a Grã-Bretanha tomou a região e a forçou a se abrir ao comércio, a zona costeira foi invadida por plantadores de arroz. Logo, o produto começou a inundar o exterior. Nas palavras de um historiador, Burma deixou de ser um lugar “subdesenvolvido, atrasado e pouco povoado do Império Konbaung para se transformar no maior exportador de arroz do mundo”.44 Com o regime francês voltado para o comércio na Indochina, as terras vietnamitas dedicadas ao cultivo do arroz quintuplicaram e a colônia se tornou a terceira principal produtora do mundo. O Ceilão, que acabou tornando-se colônia britânica, levou coco e chá para os mercados mundiais. A Malásia produzia mais da metade do estanho do planeta. Após 1900, os dois países aumentaram a produção de borracha – que até então era inexpressiva – e se tornaram importantes no mercado. As Índias Orientais Holandesas também se juntaram à corrida para superar a borracha amazônica, complementando as exportações de café, tabaco e açúcar. As Filipinas, agora uma colônia norte-americana, aumentaram a produção de açúcar para penetrar no imenso mercado dos Estados Unidos. Taiwan, na época uma colônia japonesa, fora desenvolvido pelas autoridades coloniais, de forma mais ou menos explícita, para abastecer a metrópole com arroz e açúcar. O impacto do boom exportador foi fortemente sentido em muitos desses casos. O arroz era em geral cultivado por pequenos produtores, e a prosperidade gerada pelas exportações do início do século aumentou a renda de grandes camadas da população da Tailândia e de Burma. O chá do Ceilão também era cultivado principalmente por pequenos produtores. O estanho malaio era altamente controlado por proprietários chineses e minerado por trabalhadores do mesmo país, os quais rumaram em hordas para o Sudeste Asiático. Mesmo onde os europeus controlavam as fazendas e plantações mais prósperas – como na Indochina, nas Índias Holandesas Orientais e nas áreas de borracha da Malásia –, a ampla demanda por trabalhadores gerou um aumento na renda local. Assim como na África ocidental, a indústria não cresceu de forma significativa. Devido ao padrão de vida baixo da região, os mercados locais para os manufaturados modernos eram pequenos, e as potências coloniais desestimulavam o desenvolvimento industrial, de forma explícita ou implícita. Essas regiões pobres e densamente povoadas se atiraram – ou foram atiradas pelos novos governantes coloniais – nos mercados mundiais e emergiram como grandes promessas de prosperidade. Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, grande parte da população do amplo grupo de países e colônias das regiões tropicais e semitropicais em crescimento – do México e Brasil a Costa do Marfim e Nigéria, passando por Burma e Indochina – produzia matérias- primas para exportação. Café, amendoim, cacau, borracha, óleo de palma, estanho, cobre, prata e açúcar fluíam dessas regiões de rápido crescimento para a Europa e a América do Norte. Dinheiro e produtos manufaturados faziam o caminho inverso. A modernidade chegava aos trópicos. As elites que dominavam o governo e a sociedade em todas as regiões de rápido crescimento, tanto nas áreas temperadas de colonização recente quanto nas zonas semitropicais densamente povoadas, consideravam que a chave da prosperidade e do sucesso estava na economia mundial. Por que ir aos pampas e pradarias se não fosse com o objetivo de cultivar essas áreas para os mercados mundiais? Muitos imperialistas europeus, norte- americanos e japoneses argumentavam que as colônias eram valiosas, principalmente como fontes de matérias-primas e produtos agrícolas. Os regimes coloniais pressionavam as novas possessões com entusiasmo, apesar de muitas vezes com uma visão estreita, a exportar produtos primários. Proprietários de terra, mineradores e comerciantes locais perceberam que os lucros poderiam ser imensos. Os governos locais vislumbraram outras oportunidades, o que incluía vender novas e valiosas terras ou cobrar impostos dos novos e lucrativos exportadores. Ambas as medidas fortaleceriam o poder dos governantes. O processo era facilitado pelo capital que escoava da Europa ocidental, que parecia não ter fim. Esse capital era extremamente necessário para o estabelecimento de novas terras, para levar os produtos agrícolas e os minérios aos mercados e para que os governos pudessem satisfazer as demandas de suas populações. O estereótipo da América Latina da virada do século era hostil, uma sociedade oligárquica dominada por uma aliança entre os investidores europeus e interesses exportadores: a oligarquia rural, os agroexportadores, os setores de produtos primários para exportação e os vendepatrias (vendedores de países), os quais mais tarde se tornariam inimigos demonizados dos líderes nacionalistas. Esses países tinham características comuns, uma identificação nos canais de poder e influência que os uniam e os levavam na direção da economia mundial. Dependiam das exportações de produtos primários, exigiam acesso a capital e mercados europeus, possuíam uma visão europeizada do futuro e, certamente, tinham pouco interesse em dividir sua riqueza com as massas empobrecidas. Faltavam novas oportunidades econômicas geradas por esse crescimento de viés exportador – até mesmo se examinarmos os 35 anos do ditatorial porfiriato no México – que estivessem disponíveis de forma ampla e profunda para as sociedades locais, incluindo parcelas da classe média, do campesinato e da crescente classe operária urbana. Os grupos dominantes de muitas das regiões em desenvolvimento estavam bastante comprometidos em levar seus países ao mainstream da economia internacional. Eles permitiam, estimulavam e até mesmo forçavam os produtores agrícolas, e outros, a venderem para o exterior; convidavam os investidores estrangeiros, banqueiros e comerciantes; tomavam empréstimos grandes em Londres, Paris e Berlim; construíam ferrovias, portos e aproveitavam os rios; criavam sistemas de energia e telefonia utilizando, dessa forma, os ganhos obtidos com o comércio mundial para enriquecer. Em geral, onde os grupos dominantes obtinham sucesso, grande parte da sociedade também prosperava – embora não tanto quanto as elites. Nas áreas de colonização recente, na América Latina e em partes da Ásia e da África, a expansão liderada pelas exportações determinou as bases para o crescimento econômico moderno. Heckscher e Ohlin interpretam a Era de Ouro Em 1919, após esse capitalismo global ter sido banido pela Primeira Guerra Mundial, o economista sueco Eli Heckscher tentou dar um sentido à extraordinária experiência econômica pré-1914. Junto com seu aluno Bertil Ohlin, Heckscher formulou uma explicação para o envolvimento das diferentes nações no comércio mundial, o que revolucionou o pensamento econômico e também serviu para entender essa complexa realidade. Heckscher e Ohlin acreditavam na teoria das vantagens comparativas – tanto como uma prescrição do que os países deveriam fazer quanto uma descrição do que geralmente faziam. De fato, os países tendiam a exportar o que produziam melhor e a importar aquilo em que não eram tão eficientes. O problema é que essa fórmula era quase tautológica: como se poderia saber com antecedência o que um país produzia melhor senão observando o sucesso ou o fracasso das exportações? 4 Desenvolvimentos fracassados O cônsul britânico da colônia conhecida como Estado Livre do Congo não tinha mais esperança quanto ao destino dos oprimidos habitantes do local, quando escreveu, em 1908: Nos perguntamos em vão quais os benefícios que essa gente extraiu da elogiada civilização do Estado Livre. Olhamos em vão para qualquer tentativa de benefício ou recompensa pela enorme riqueza que eles têm ajudado a despejar no Tesouro do Estado. As indústrias nativas estão sendo destruídas, sua liberdade lhes tem sido tomada e eles têm diminuído em número.1 Apesar da revolução econômica da Era de Ouro, a maior parte do mundo permaneceu opressivamente pobre. Enquanto as regiões em rápido desenvolvimento subiam a escada do sucesso industrial, grande parte da da Ásia, África, do Oriente Médio e até mesmo áreas da Rússia, da América Latina e do sul e leste da Europa caíam para degraus ainda mais baixos. De fato, quase todas as partes do mundo cresceram, mas as disparidades nos índices eram grandes. As diferenças – um ponto percentual aqui ou ali – podem parecer pequenas, mas o impacto de um crescimento mais lento tornou-se pior ao longo das décadas. Por exemplo, em 1870, China e Índia eram cerca de 20% mais pobres que o México, utilizando uma base per capita – diferença que se aproximava da que existia entre a Europa ocidental e os Estados Unidos em 2000. Nos 40 anos que se seguiram, os índices de crescimento dos gigantes asiáticos eram, em média, cerca de 1,5% menor que os do México. Em 1913, esse país era três vezes mais rico que as duas nações asiáticas (quase a mesma diferença que existia entre os Estados Unidos e o México em 2000).2 Em linhas gerais, a Europa ocidental, as áreas de colonização recente e a América Latina cresceram cerca de quatro vezes mais rápido do que a Ásia e duas vezes mais devagar do que o sul e o leste da Europa. As classes dominantes eram as principais responsáveis pela incapacidade dessas sociedades em tirar proveito das novas oportunidades econômicas. Muitos dos dominantes não podiam, ou não queriam, criar condições para um crescimento econômico sustentado. Alguns deles eram colonizadores estrangeiros, que se utilizavam de meios mercenários e parasitários para explorar as populações locais. O Congo talvez tenha sido o exemplo mais gritante de uma sociedade que sofrera abusos chocantes por parte dos colonizadores. O rei Leopoldo e o Congo William Sheppard, um missionário afro-americano, foi à África central a fim de converter a população ao presbiterianismo. Quase por acaso, ele se viu no centro de um escândalo global que expôs um dos mais sangrentos regimes coloniais dos tempos modernos.3 Sheppard nasceu na Virgínia, nas últimas semanas da Guerra Civil norte-americana. Veio de uma família de negros livres. Foi ordenado pastor presbiteriano aos 23 anos e logo foi voluntário para trabalhar na África como missionário. Em 1890, Sheppard e Samuel Lapsley, um pastor norte-americano branco, formaram uma missão em Luebo, na remota região de Kasai, no centro da Bacia do Congo. A presença dos dois jovens norte-americanos nessa região isolada deve-se aos planos e à persistência da monarquia europeia obcecada pelas riquezas da África. No momento em que Sheppard chegara à África, havia 20 anos que o rei Leopoldo atuava para a consolidação de seu império pessoal no continente. Leopoldo sabia que a sua Bélgica natal nunca daria a ele uma colônia – o país não tinha uma Marinha nem navios mercantes, e o próprio Leopoldo era praticamente o único belga proeminente com aspirações imperialistas. Por essa razão, ele se apresentava como um benfeitor que desejava trazer o cristianismo para a população africana. Opunha-se, principalmente, ao tráfico de escravos do continente, o que havia se tornado uma questão interna envolvendo traficantes nativos e árabes desde a década de 1840, quando as potências europeias proibiram o comércio transatlântico de escravos. Leopoldo pregava que a exploração de “seres inocentes reduzidos brutalmente a prisioneiros e condenados em massa ao trabalho forçado ... envergonha a nossa época”.4 O rei começou sua carreira na África como patrono de exploradores, financiando a expedição de Henry Stanley, o primeiro a ir da nascente do rio Congo ao Atlântico. Quando conquistou credibilidade, Leopoldo convenceu as potências europeias a conceder a ele o comando pessoal de toda a Bacia do Congo, uma área do mesmo tamanho da Europa ocidental, onde se suspeitava haver enormes riquezas naturais. O sucesso dele em obter o controle do Congo não fora resultado de suas habilidades, tampouco da influência geopolítica da Bélgica, já que ambos eram ignorados. Para as potências europeias que estavam dividindo toda a África, o novo Estado Livre do Congo era uma nação-tampão útil por separar as colônias francesas, britânicas, alemãs e portuguesas da região. Leopoldo concordou em permitir que todos os estrangeiros tivessem igual acesso às riquezas da área, e, assim, os europeus não precisavam se preocupar com a possibilidade de não poderem entrar no local. Sheppard, Lapsley e outros missionários protestantes norte-americanos serviram aos interesses de Leopoldo. Eles contiveram a influência dos missionários católicos franceses e portugueses, que eram acusados pelo rei de favorecer suas respectivas terras natais. Como norte-americanos, eles podiam construir uma base de apoio nos Estados Unidos para as ambições belgas. Além disso, os protestantes também poderiam ajudar no desbravamento de áreas do interior congolês para o Estado Livre de Leopoldo, cuja influência era limitada devido à extensão do país. Leopoldo conheceu Lapsley quando os dois missionários foram para a África, e o ingênuo rapaz de 24 anos se comoveu com a aparente simpatia do rei pela missão: A expressão dele era muito gentil, e sua voz fazia jus a ela ... Me pergunto como Deus mudou os tempos para que um rei católico sucessor de Felipe II conversasse sobre as missões estrangeiras com um rapaz norte-americano e presbiteriano.5 Leopoldo estimulou Lapsley a ir com Sheppard para a região de Kasai. O rei disse que as tropas do Estado Livre poderiam protegê-los melhor lá do que em qualquer outro lugar. Na verdade, Leopoldo queria que os jovens norte-americanos fossem para Kasai porque esta era uma área que as autoridades do Estado Livre não conheciam, ou não controlavam bem, e as missões poderiam ajudar a garantir a influência e a autoridade da administração do rei. Sheppard se envolveu com a África e seus habitantes desde o início. Aprendeu as línguas locais e construiu uma rede de amigos e aliados. Quando Lapsley morreu, menos de dois anos depois de ambos terem se mudado para Kasai, Sheppard administrou sozinho a nova missão presbiteriana por cinco anos. O pastor estudou as sociedades nativas com grande interesse e sucesso, e passou a ter livre acesso à corte do rei da poderosa, e quase desconhecida, Kuba. Ele impressionava o público europeu e norte-americano com seus relatórios e coleções de artefatos. Em 1893, Sheppard tornou-se o primeiro afro-americano e um dos mais jovens a ser eleito para a Real Sociedade Geográfica Britânica, provavelmente o título de maior prestígio concedido a um explorador. A sociedade também nomeou um lago na região de Kasai em homenagem a Sheppard, quem o havia “descoberto”. Mas outra descoberta, de natureza mais mundana, como registros comerciais, causou um impacto maior no Congo. No fim da década de 1890, Edmund Dene Morel trabalhava para a companhia britânica de navegação que tinha o monopólio do frete comercial do Congo e frequentemente ia à Antuérpia em viagens de negócios. Morel, um adepto fervoroso do livre- comércio e um defensor entusiasmado da empreitada de Leopoldo, notou um fato suspeito. Quase tudo o que a companhia de navegação enviava da Antuérpia para o Congo eram armamentos e munição para as tropas do Estado Livre. A transação não poderia vir de outro lugar, pois a companhia detinha um monopólio. Aos africanos do Congo não era permitido usar dinheiro, então se estes não estavam sendo pagos em bens, eles também não estavam recebendo nada pelo fornecimento de marfim e borracha. Mais tarde, chegando a uma conclusão inevitável, Morel escreveu: Somente o trabalho forçado, do tipo mais terrível e contínuo, poderia explicar tais lucros obscuros ... trabalho forçado do qual o governo do Congo era o beneficiário imediato; trabalho forçado coordenado pelos súditos mais próximos do próprio rei.6 Morel havia descoberto a lógica econômica do reino de Leopoldo. O rei esperava obter enormes lucros no Congo. Mas, primeiro, a região precisava ser conquistada e governada, o que era imensamente caro. Tão caro que Leopoldo precisou de empréstimos pesados para manter seu Estado Livre. Durante uma década, o marfim da região forneceu parte do dinheiro que Leopoldo necessitava, mas em meados da década de 1890 a borracha superou o marfim como o produto mais importante da colônia. A demanda mundial por borracha disparou, uma vez que inovações técnicas tornaram o material mais versátil, e novos produtos, tais como bicicletas e automóveis, deram um novo sentido para a utilização das rodas de borracha. A borracha selvagem do Congo era um recurso muito conveniente para o rei ávido por dinheiro vivo, uma vez que ela brotava naturalmente e não gerava custos de plantação. O problema era que atingir os campos selvagens tornou-se difícil e doloroso: eles estavam espalhados pela densa floresta tropical e, muitas vezes, a única forma prática de transformar a seiva em borracha era o coletor espalhá-la em seu corpo, esperar secar e tirá-la, com pelos e tudo. A coleta era tão difícil que os administradores de Leopoldo não conseguiam voluntários congoleses para realizar a tarefa em troca de bens. Assim, o Estado Livre optou pela força, impondo “taxas” aos congoleses a serem pagas em borracha. Os soldados do Estado Livre utilizavam uma série de métodos para obrigar a população a coletar o produto. Às vezes, faziam reféns mulheres e crianças do vilarejo e apenas as libertavam quando os homens entregavam uma determinada quantidade de borracha. Outras Vachel Lindsay em seu poema épico The Congo: Listen to the yell of Leopold’s ghost Burning in Hell for his hand-maimed host Hear how the demons chuckle and yell Cutting his hands off, down in Hell.b Os 25 anos da má administração de Leopoldo saquearam o país, e a violência causou a morte não natural de milhões de congoleses. Mas tal má gestão causou danos bem maiores, como a destruição de boa parte da estrutura social da região. Os mestres coloniais dilaceraram ou devastaram as sociedades locais, exacerbaram os conflitos entre os habitantes da área e não deram nenhuma oportunidade para que os congoleses aderissem ou se adaptassem ao que o exterior oferecia de útil. A administração colonial fez com que os habitantes de uma região com recursos naturais extraordinários não conseguissem utilizá-los para o desenvolvimento da economia. Leopoldo nunca visitou o Congo; os interesses dele eram econômicos e políticos, não pessoais. Mas o senhorio ausente e seu Estado Livre fizeram estragos enormes na região. Eles são os principais culpados pelo triste desempenho econômico da colônia centro-africana durante esse período e, em grande parte, são responsáveis pela estagnação econômica do país nas décadas subsequentes. Colonialismo e subdesenvolvimento Mark Twain chamou o rei Leopoldo e todos os de sua laia de “as bênçãos da civilização do truste”. Escreveu Twain sobre o truste: “Há mais dinheiro, mais território, maior soberania e outros tipos de ganhos do que existe em qualquer outro jogo.”12 Assim como Leopoldo, muitos dos membros do truste eram obcecados pela extração de riquezas de suas possessões. Eles extraíam todos os recursos que podiam de enclaves autossuficientes em minas de cobre e ouro ou em plantações de banana e cana-de-açúcar. Os donos, clientes e algumas vezes até mesmo a mão de obra desses enclaves não tinham qualquer interesse de longo prazo na região, e o impacto causado na economia local era mínimo. Com frequência, quando a estrutura requeria trabalhadores, como no caso do Congo, as autoridades coloniais impunham o trabalho forçado aos que ali residiam. Tais enclaves eram praticamente um roubo organizado. Retiravam-se recursos valiosos sem que qualquer riqueza, tecnologia ou treinamento fosse deixado para trás. Os colonizadores algumas vezes submetiam os habitantes nativos a condições quase escravagistas, dilacerando a forma como viviam e destruindo a economia local. O rei Leopoldo no Congo e os portugueses em suas colônias foram os exploradores locais de maior proeminência. Tais regimes foram predatórios de uma forma tão gritante que até mesmo na época causavam comoção generalizada, como ocorrera no Congo. As concessões comerciais eram levemente menos nocivas do que os enclaves extrativistas. Eram uma volta ao mercantilismo europeu dos séculos XVII e XVIII, quando os monopólios da Coroa, como a Companhia Holandesa das Índias Orientais e a Companhia da Baía de Hudson, controlavam colônias inteiras. Nos casos mais modernos, a metrópole designava o controle de regiões promissoras a concessionárias comerciais. Nas palavras de um dos gerentes da Companhia Britânica da África do Sul, que administrava a Rodésia do Norte (hoje Zâmbia), “o problema da Rodésia do Norte não é de colonização ... o problema é saber como desenvolver melhor de forma científica um grande Estado para que ele gere a maior quantidade possível de lucros para o seu proprietário”.13 Se sucesso comercial e desenvolvimento econômico caminhassem juntos estaria tudo bem, mas onde eles entram em conflito, a principal responsabilidade das concessionárias seria com seus acionistas. Quando pequenos grupos de europeus colonizavam áreas com grandes populações nativas, o potencial para abusos era o mesmo dos casos de puro saqueio colonial. Essas colonizações de povoamento foram fundamentalmente diferentes das migrações europeias em massa para áreas pouco habitadas, como os pampas argentinos e as pradarias canadenses, onde os imigrantes e seus descendentes eram praticamente toda a população local. As colônias de povoamento, em contrapartida, eram governadas por uma classe estrangeira que dominava e controlava numerosas populações nativas. Algumas autoridades coloniais estimulavam esse tipo de colonização para que fossem desenvolvidas fontes de produção agrícola; alguns enxergavam os colonos como escudos contra a população nativa e outras potências concorrentes, mas desenvolvimento econômico por meio da colonização de povoamento era quase sempre um fracasso. Esse tipo de colonização em geral envolvia a concessão de terras a europeus para que fossem cultivados produtos rentáveis que normalmente não eram produzidos pelos nativos. Com frequência, as colônias de povoamento revelavam a sabedoria dos habitantes locais em não cultivarem esses produtos, uma vez que as fazendas fracassavam de forma miserável. De fato, os colonos destruíam as atividades econômicas tradicionais para forçar os “nativos” a trabalhar para eles nas novas fazendas. Muitos colonos apenas foram bem-sucedidos na agricultura comercial devido a subsídios concedidos pelas autoridades: créditos e isenção de impostos, infraestrutura barata, acesso privilegiado a mercados, expropriações locais. Para conseguir que seis mil europeus se estabelecessem no Quênia por volta de 1913, os britânicos precisaram vender a eles terras próximas a novas ferrovias a preços irrisórios, expulsar milhares de habitantes das tribos Masai e Kikuyu de suas terras, rever a captação e a cobrança de impostos de moradia, a fim de estimular os africanos a trabalhar para os colonos, e – como era alegado – coagir os trabalhadores por meio de líderes locais aliados. Mas, mesmo assim, a agricultura da colonização de povoamento no Quênia continuava a ser um grande fracasso.14 Houve alguns casos bem-sucedidos em que os colonos conseguiram desenvolver fazendas produtivas. Na Argélia, centenas de milhares de europeus estabelecidos ao longo da costa do Mediterrâneo após o domínio francês haviam se consolidado em meados do século XVIII. A topografia e o clima da região eram semelhantes aos do sul da França, e o solo era adequado para o plantio de produtos já conhecidos dos franceses. Logo, os colonos estavam exportando grãos e vinho, e a competitividade deles era fortalecida por políticas favoráveis da metrópole e pela mão de obra local barata. Na outra extremidade do continente, algumas áreas do sul da África, como a Rodésia e a Província do Cabo, também eram bem-sucedidas economicamente. Nessas regiões, as colônias de povoamento tornaram-se lucrativas, em grande parte devido a produtos agrícolas rentáveis. No entanto, até mesmo as colônias de povoamento mais prósperas eram governadas pelas políticas coloniais que beneficiavam os assentados – colonos argelinos, rodesianos brancos – e excluía os habitantes locais. Os colonos, cercados por sociedades nativas populosas, dependiam do tratamento desigual e segregado. Se fossem concedidos direitos iguais ao resto da população, a posição privilegiada dos colonos sofreria com a concorrência dos árabes ou africanos dispostos a trabalhar mais por menos. O que muitos dos colonos desejavam não era o desenvolvimento geral da agricultura nativa, mas uma força de trabalho cativa e barata. Os esforços em prol da melhora nas condições dos “nativos” se dissipavam diante da necessidade de mão de obra barata dos colonos. Portanto, a maioria dos colonizadores era contra a incorporação de outros sujeitos coloniais nos sistemas político, social e econômico. A recusa dos assentados em inserir as populações locais na sociedade às vezes gerava conflitos com as próprias potências coloniais.15 No princípio, os governos europeus escolhiam uma certa quantidade de homens franceses ou britânicos para supervisionar suas possessões. No entanto, a população local não podia ser eternamente subjugada à força, e os impérios coloniais, ocasionalmente, queriam estimular o envolvimento dos habitantes nativos na sociedade – a fim de atraí-los para a Nova Ordem. Os assentados eram contra essa incorporação porque isso implicava a redução de seus privilégios especiais. Caso fossem ourtorgados aos árabes argelinos ou aos negros rodesianos e quenianos o pleno acesso à terra, aos serviços públicos e ao voto, logo haveria fortes pressões para eliminar os favores concedidos aos europeus. A oposição dos assentados à inclusão dos habitantes locais no sistema colonial muitas vezes boicotava as bases para uma integração econômica internacional ampla e para o desenvolvimento econômico em geral. Os colonos impediam que os habitantes locais, e seus aliados mais próximos, prosperassem; com a maioria dos habitantes locais excluída, havia poucas chances para um crescimento econômico amplo. Se a Rodésia ou a Argélia fossem mais includentes, do ponto de vista econômico, social e político, essas regiões poderiam ter expandido as oportunidades financeiras de suas metrópoles, razão que, juntamente com a busca por mais governabilidade, motivava a França e a Grã-Bretanha a considerar a inclusão. Ao boicotarem a democratização, os colonos também boicotavam o desenvolvimento social e econômico da região e, assim, obtinham – como aconteceu – a fatia maior de um bolo menor. Mesmo onde a ordem estrangeira não era tão perniciosa quanto as colonizações de povoamento ou de extração, ela também poderia estancar o crescimento local. Algumas potências imperialistas restringiram o comércio a formas que se assemelhavam ao mercantilismo europeu, contra o qual lutaram os movimentos de independência do Novo Mundo e os liberais europeus. Os mercantilistas forçavam as colônias a vender para os mercados das metrópoles e delas comprar, exagerando nos preços das vendas e pagando abaixo do valor nas compras. Além de utilizar os preços contra as colônias, algumas vezes os mercantilistas desestimulavam ou proibiam o desenvolvimento das manufaturas locais. Algumas potências imperialistas modernas utilizavam políticas ao estilo mercantilista a fim de impor seu comércio e seus investimentos por meio das vias coloniais. Essas práticas negavam às colônias o pleno acesso a bens, capitais e tecnologias da vibrante economia mundial. Algumas das grandes potências também forçavam países em desenvolvimento independentes a assinarem acordos desiguais que concediam tratamento preferencial às nações industriais. O neomercantilismo global e os tratados neocoloniais significavam alguns impedimentos ao desenvolvimento, mas não de forma substancial. Os Impérios britânico e alemão praticavam o livre-comércio, assim como toda a África central. Onde impostas, as tarifas comerciais eram baixas, e o desvio que o comércio informal representava não era muito Quatro quintos da economia das sociedades pobres da virada do século XX correspondiam à agricultura, que era extremamente atrasada. Em comparação, em 1700 a Grã- Bretanha era menos rural do que isso e as suas fazendas apresentavam uma produtividade maior.17 Para se modernizarem, os produtores agrícolas precisavam aperfeiçoar suas terras, aprender novos métodos e cultivar outros produtos. As áreas que cresceram rápido – as planícies de arroz da Tailândia e Burma, as regiões de cacau da África oriental, as zonas de café do Brasil e da Colômbia – contavam com uma grande quantidade de produtores agrícolas independentes trabalhando para o desenvolvimento de suas terras. E os governos dessas áreas facilitavam o acesso de seus cidadãos às vantagens das oportunidades econômicas. Infraestrutura e serviços que facilitassem a atividade econômica eram pré-requisitos para o crescimento. Os agricultores necessitavam de créditos, informação sobre técnicas e mercados, e meios de transporte para trazer o maquinário e levar a produção. Os governantes que se interessavam pelo crescimento econômico garantiam confiáveis sistemas de transportes, comunicação e finanças. O desenvolvimento também exigia condições políticas e legais sofisticadas, em especial a garantia de direitos de propriedade. O comprometimento com a proteção da propriedade privada não era necessariamente uma concessão de privilégio; nas sociedades pobres os principais donos de terras eram os agricultores. Para que pudessem se beneficiar das oportunidades da nova economia eles precisavam gastar dinheiro, energia e tempo para melhorar o solo. O produtor agrícola arriscava seu sustento para plantar árvores de café, transformar florestas em campos de cultivo ou irrigar. Como eles optariam por um investimento tão arriscado se não tivessem a garantia de que veriam os frutos de seu trabalho? Se bandidos pudessem roubar seus animais e incendiar seus campos? Se funcionários dos governos locais pudessem extorquir qualquer riqueza que vissem sendo ganha? Se os governos nacionais taxassem todos os lucros? Educação, para aprimorar as habilidades dos trabalhadores, e alfabetização também causavam um impacto direto na produtividade. De fato, o sucesso econômico e a escolaridade caminhavam quase de mãos dadas. Nos Estados Unidos e na Alemanha, 3/4 ou mais das crianças em idade escolar frequentavam instituições de ensino; no Japão, metade; e na Argentina e no Chile, 1/4 das crianças tinha acesso à educação. Além disso, saneamento e saúde pública também eram importantes, tanto devido a razões sociais óbvias quanto por permitirem às pessoas se tornarem membros produtivos da sociedade. A má gestão era a principal barreira ao desenvolvimento econômico. Ela impedia que produtores agrícolas e mineradores levassem seus produtos aos mercados mundiais e também que a África ocidental ou a América Central aprimorassem suas cidades e terras. De fato, fosse das autoridades coloniais ou dos governos independentes, a má gestão impedia o desenvolvimento, e vários governantes, independentes ou coloniais, eram indiferentes ou hostis à necessidade de desenvolvimento econômico. Alguns sinais claros de má administração eram a ausência de sistemas adequados de comunicação e transporte, a escassez de bancos e a falta de confiança da população na moeda nacional. A primeira linha ferroviária da China fora construída 25 anos após a da Índia por mercadores estrangeiros e, um ano depois, o governo chinês a destruiu e jogou os pedaços no oceano.18 Em 1913, o sistema de trens da China era menor do que o do pequeno Japão, o qual correspondia a apenas 1/5 da quilometragem ferroviária da Índia. Outro sinal de má gestão era a falta de um comprometimento claro por parte do governo em relação a um ambiente econômico confiável. Assim, a população não podia aproveitar as oportunidades que a economia mundial em crescimento oferecia. Os governantes tradicionais em geral relutavam em garantir os direitos dos investidores. Respeitar o direito de propriedade privada, sobretudo, significava a restrição de regalias do governo. Foi apenas nos primeiros anos do século XX que a China tomou a medida básica de adotar um código de leis para as corporações, permitindo as empresas a operar normalmente. Até então, com frequência as autoridades ignoravam os direitos dos cidadãos. Uma má administração também incluía o desinteresse do governo em melhorar a qualidade de vida e trabalho dos indivíduos. Na Índia, apenas uma em cada 20 crianças frequentava a escola.19 Em 1907, 92% da população adulta do Egito era analfabeta, e o governo não demonstrava qualquer interesse em reduzir esses números.20 Muitos governantes – independentes, neocoloniais e coloniais – falharam, de forma vil, em fornecer educação básica, saneamento ou saúde pública. Por que as classes dominantes condenavam suas sociedades à estagnação? Nas colônias, a resposta talvez fosse que os governantes imperialistas não tinham interesse nas condições econômicas locais. Mas muitos dos fracassos desenvolvimentistas eram politicamente independentes e podemos presumir, com segurança, que a maior parte dos governantes preferia o crescimento da economia de suas sociedades ao retrocesso – mesmo que fosse apenas para gerar mais impostos. Não era uma simples falta de democracia; os governantes de quase todos os lugares eram oligárquicos, tanto nos países pobres quanto nos ricos. Alguns soberanos simplesmente tinham menos interesse, ou capacidade, que outros de permitir um crescimento econômico amplo. Estagnação na Ásia Os fracassos desenvolvimentistas mais notáveis foram a China, o Império Otomano e a Índia. As três civilizações mais antigas do mundo possuíam, evidentemente, uma longa experiência de complexa organização social. Assim como na Europa pré-moderna, essas economias eram constituídas quase exclusivamente por agricultura e artesanato locais, e havia tempos não estavam bem-equilibradas – eram suficientes para alimentar e vestir a população, mas não para criar um superávit substancial que gerasse investimentos e crescimento. Os governos eram especialistas em administrar suas sociedades longínquas, promovendo estabilidade social e segurança militar. Os poucos segmentos avançados da economia – finanças e comércio internacionais e uma indústria incipiente – estavam nas mãos de diferentes grupos, algumas vezes de etnias distintas. Essas ilhas de atividade econômica eram cuidadosamente monitoradas para que não emergissem centros de poder alternativos. As classes dominantes dos três países temiam que o crescimento econômico provocasse mudanças sociais que os tornassem ingovernáveis, ou ao menos ingovernáveis pela administração vigente. A principal preocupação dos governantes otomanos, chineses e indianos era com a estabilidade da ordem social e, de fato, o crescimento econômico poderia desequilibrá-la. O estímulo ao surgimento de um setor privado próspero exigia que os governos respeitassem os direitos de seus cidadãos de uma forma que eles não estavam acostumados. A criação de uma base para o crescimento da economia moderna significava participar da economia mundial, cobrar impostos dos ricos, educar os pobres, melhorar os transportes no campo e desenvolver mercados de crédito locais. A maior parte desses fatores implicava mudanças sociais, as quais não eram bem-vindas pelas classes dominantes. Nenhum dos três governos se empenhou de verdade para superar a inércia social até o fim do século XIX, quando já era tarde demais. O tradicionalismo impediu a modernização.21 Defensores dos três governos argumentavam que a necessidade geopolítica os forçava a subordinar o desenvolvimento a objetivos de política externa. Acredita-se que o Império Chinês e o Otomano enfrentavam ameaças à soberania que os obrigaram a sacrificar o desenvolvimento econômico. Por exemplo, uma explicação para a hostilidade do governo chinês às estradas de ferro seria que militares estrangeiros, mercadores ou missionários as utilizavam, comprometendo a segurança do país. A escolha por si só já é reveladora. Por um lado, isso simplesmente admitia que os próprios chineses não eram capazes de adotar as novas tecnologias, o que incluía a utilização das ferrovias para usos militares, como fazia o Japão. Por outro, negar à nação uma revolução nos transportes apenas para impedir o acesso de estrangeiros significava que as ameaças ao poder de influência do governo se sobrepunham às oportunidades para o crescimento econômico. O poder imperial e a estabilidade eram mais importantes do que o desenvolvimento. No fim, o governo voltou atrás e utilizou as ferrovias para que as tropas pudessem se movimentar de forma rápida durante a Guerra dos Boxers, de 1899 a 1900. Também embarcou num programa para a construção de estradas de ferro, mas, naquele momento, eles já estavam 40 anos atrasados. O argumento da necessidade militar é precisamente retrógrado: as crescentes infrações conta a soberania dos chineses e otomanos no decorrer do século XIX e início do XX eram um resultado da inadequação econômica deles, e não a causa. No caso da Índia, algumas vezes alega-se que o status do país como uma preciosidade militar essencial para a Coroa britânica retardou o crescimento devido à negligência colonial em relação às necessidades econômicas. É verdade que o principal gasto da Grã-Bretanha na Índia, a construção de um sistema ferroviário extenso, fora motivado por razões militares. Mas, longe de retardar o desenvolvimento, as ferrovias provavelmente foram a maior fonte de qualquer sucesso econômico registrado na Índia. No entanto, tal fato sozinho era insuficiente. Da mesma forma como os governantes da China e do Império Otomano, tanto os britânicos quanto seus aliados indianos preocupavam-se prioritariamente em manter o controle político, e viam com suspeita as medidas desenvolvimentistas agressivas.22 Nas últimas décadas do século XIX, o desastroso abismo desenvolvimentista já se fazia claro, e nos três países cresciam movimentos por reformas. Muitos dos que desejavam as mudanças eram lúcidos e bem-intencionados, até mesmo dentro do governo. Mas, na maioria dos casos, os esforços deles eram suprimidos pela resistência imperial ainda presente. Alguns governantes chineses, por exemplo, abraçaram as reformas econômicas e políticas. Mas as credenciais reformistas do governo eram suspeitas, como mostrara a viúva do imperador ao apoiar a Guerra dos Boxers, uma batalha antiocidente. Até mesmo as reformas implementadas pelo governo chinês foram distorcidas pela influência das classes dominantes tradicionais. Um dos fatores de maior pressão era o desenvolvimento de uma indústria moderna, quase inexistente na China. Até então, os poucos governantes que estimularam a indústria o fizeram que o produto continuasse a ser cultivado nas grandes plantações com mão de obra barata. Quando podiam optar, os ex-escravos fugiam das plantações como o diabo da cruz. Os donos das grandes fazendas então se empenhavam para que o abastecimento de trabalhadores aumentasse e os salários permanecessem baixos. Índios e chineses foram trazidos para trabalhar nas ilhas do Caribe produtoras de açúcar e na costa do Peru. Com frequência, a servidão se dava por meio de contratos em que os trabalhadores eram pagos por um número definido de anos de trabalho.d No Nordeste brasileiro, os donos de terras faziam o que estivesse ao seu alcance para manter “seus” empregados presos às plantações: restringiam a mobilidade, os mantinham como peões das fazendas por causa de dívidas, tomavam medidas coercitivas. O problema se agravou quando os europeus começaram a produzir açúcar de beterraba e a subsidiar as exportações do produto, gerando uma queda no seu preço.26 O açúcar deixou um gosto amargo na boca: uma desigualdade assustadora. Diante das massas de trabalhadores empobrecidos reinava uma elite rica, que tinha poucos incentivos para estimular o desenvolvimento econômico, social ou humano, uma vez que assim afastaria os trabalhadores das plantações. Nas regiões de cultivo de algodão, grandes áreas repletas de mão de obra, as condições eram semelhantes. O Nordeste do Brasil cultivava tanto algodão quanto açúcar, promovendo um duplo estrago em sua estrutura social. A ordem econômica e política reforçava a posição dos proprietários de terra ricos e dos comerciantes, oferecendo poucos motivos para melhoras na qualidade do governo, infraestrutura ou escolas. Muitas vezes, os resultados eram perversos. Na Venezuela, por exemplo, terras férteis das imensas haciendas foram cercadas pelas moradias simples de camponeses sem-terra. Os grandes proprietários de terras – hacendados – utilizavam menos de 1/3 da extensão de sua propriedade e se recusavam a alugar o resto para os sem-terra. Se os hacendados tivessem alugado as porções improdutivas de suas terras, os agricultores não concordariam em trabalhar nas plantações por salários baixos. Isso teria privado as haciendas do trabalho que necessitavam para que as regiões agrícolas fossem economicamente viáveis. Assim, a maior parte das terras férteis das zonas rurais permanecia improdutiva. A longo prazo, tal fato não era interessante para os proprietários, uma vez que a miséria dos sem-terra se perpetuava impondo severas restrições aos mercados internos, além de fomentar o descontentamento social, mas as oligarquias rurais estavam mais interessadas no próprio poder e riqueza, aqui e agora, do que no desenvolvimento a longo prazo.27 Esse modelo era repetido em várias regiões e em diversos produtos. O açúcar causou um atraso social nas Índias Orientais Holandesas, Filipinas, em Fiji e Maurício. O impacto do algodão na Índia e no Egito foi semelhante ao que aconteceu no Nordeste brasileiro, ao reforçar a posição das classes dominantes rurais e comerciais. Outros cultivos, como a banana na América Central e a borracha na região da Malaia criaram novas economias de agricultura intensiva. Em ambos os casos, as plantações se estabeleceram em amplas extensões de terras vazias dominadas por grandes corporações, as quais empregavam trabalhadores sem-terra ou os importavam de outras regiões pobres exclusivamente para esse fim. Por outro lado, nas décadas que precederam a Primeira Guerra Mundial, as terras de café da América Latina estavam entre as áreas mais bem-sucedidas em termos de desenvolvimento. Certamente não é por coincidência que o café, assim como o arroz ou o trigo, era fácil de ser cultivado a custos muito competitivos em pequenas propriedades. As árvores de café levavam alguns anos para crescer. Assim, os produtores agrícolas necessitavam de créditos, ou de dinheiro economizado. Mas diferentemente do que ocorria com as plantações de açúcar ou algodão, as pequenas propriedades cafeeiras podiam ser extremamente lucrativas. Mais de 1/4 da produção do oeste colombiano no período vinha de pequenas fazendas de menos de três hectares. O café certamente poderia ser cultivado também em grandes plantações, e a produção de São Paulo era totalmente desproporcional em relação a outros grandes estados; mas a região também era repleta de pequenas fazendas bastante prósperas.28 De fato, uma das vantagens do café era permitir que os pequenos proprietários plantassem outras culturas por entre as árvores, obtendo ao mesmo tempo alimentos básicos para suas famílias e um produto rentável. E onde os agricultores conseguiam estabelecer seus próprios negócios, até mesmo os grandes fazendeiros eram obrigados a pagar salários decentes aos trabalhadores. O café era associado à prosperidade, não importava se o lucro do produto vinha das pequenas propriedades familiares ou das grandes, com trabalhadores bem-pagos. O motivo dessa prosperidade não podia ser explicado apenas pelos preços altos – o valor do algodão superava consideravelmente o do café, o do açúcar e o do cacau entre 1899 e 191329 –, mas porque a natureza da produção cafeeira conduzia a um crescimento econômico de base ampla, e os benefícios gerados não ficavam restritos aos domínios de uma pequena elite. Havia outros cultivos “progressistas” além do café. O arroz era o mais importante. Burma, Tailândia e Indochina, responsáveis por 3/4 das exportações do produto, experimentaram um crescimento extremamente rápido, quase tão includente quanto o das regiões de café.30 O mesmo ocorreu com o cacau da África ocidental, um cultivo de pequenas propriedades. Sobretudo onde grãos, como o trigo, podiam ser cultivados de forma lucrativa em pequenas propriedades, tal qual no Cone Sul latino-americano e em partes da Índia, as perspectivas para uma prosperidade generalizada eram maiores. O Brasil sofreu o impacto de diferentes cultivos, uma vez que o país continha tanto regiões bem-sucedidas quanto fracassadas. A agricultura do Nordeste era baseada em grandes plantações de algodão e cana-de-açúcar. Os proprietários de terra dependiam dos escravos – na época em que a escravidão era permitida – e do trabalho informal para o funcionamento de seus estados. Os donos de terra se esforçavam para manter os trabalhadores nas fazendas locais, já que sem funcionários cativos as plantações entrariam em colapso. No outro extremo, na região Sudeste ao redor de São Paulo, desenvolvia-se uma economia próspera com base no café. Havia uma demanda constante por mais fazendeiros e mais trabalhadores para o cultivo de novas terras. Muitas das fazendas eram pequenas e vários agricultores trabalhavam para si mesmos – se trabalhassem para outros, recebiam salários decentes e podiam passar livremente de um empregador a outro. Aqui, os mais ricos se posicionavam nos setores de exportação, finanças e comércio. Essa elite paulista, tão preocupada quanto a nordestina com seus próprios interesses, estimulou o cultivo de novas terras e o desenvolvimento de fazendas ainda mais lucrativas. O Nordeste se estagnou, enquanto o Sudeste prosperou. Teria sido melhor para o país se os nordestinos tivessem migrado para as fazendas de café da região Sul, mas isso arruinaria a base econômica dos donos das plantações do Nordeste. Dessa forma, os governantes do Nordeste faziam de tudo para manter seus trabalhadores nas plantações: controles burocráticos de movimentação populacional; poucos investimentos para a construção de ferrovias; obstáculos aos anúncios de trabalho e aos empregadores. Desesperadas por mão de obra, as classes dominantes do Sudeste trouxeram milhões de trabalhadores do sul da Europa. A necessidade de mão de obra era tão grande que os governadores dos estados subsidiavam as passagens. A experiência brasileira chama a atenção para diferenças regionais semelhantes nos Estados Unidos. Os cultivos reacionários norte-americanos eram o algodão, o tabaco e a cana- de-açúcar do sul; ao passo que os produtos progressistas incluíam os grãos e o gado do norte e do oeste norte-americano. Assim como ocorreu no Brasil, as áreas de cultivo intensivo permaneceram atrasadas e estagnadas por décadas, enquanto as pequenas propriedades familiares e as regiões de criação de gado cresceram vertiginosamente. O sistema legal de apartheid reinava no sul dos Estados Unidos – havia exclusão social e política dos descendentes de escravos, um sistema educacional miserável, hostilidade por parte dos que recrutavam os trabalhadores e poucos investimentos em transportes e comunicação. Esse era um entre os muitos mecanismos para manter os trabalhadores cativos pobres no sul, região oligárquica que dependia do fornecimento direto de mão de obra barata e pouco qualificada. O processo não era puramente econômico. Por isso, não havia qualquer motivo inerente que explicasse por que a agricultura intensiva não poderia ser eficiente e dinâmica. Houve algumas sociedades açucareiras de rápido crescimento, como em Cuba. O que importa é o impacto mais amplo da agricultura intensiva: a criação de uma pequena elite dependente de uma massa de mão de obra barata. Em tal cenário, o desejo de mobilidade social e o envolvimento político eram fáceis de serem barrados, e a tentação das classes dominantes de barrá-los era grande. Por outro lado, nas regiões onde muitos tinham acesso a pequenas propriedades lucrativas, os governantes encontravam mais dificuldade – e menos necessidade – de limitar as oportunidades econômicas da população.31 Sociedades de agricultura intensiva, e outras semelhantes, tendiam a ser, ou se tornaram, altamente desiguais, polarizadas e subjugadas ao autoritarismo. Os enraizados governos oligárquicos raramente queriam, ou podiam, estimular o desenvolvimento socioeconômico – infraestrutura, finanças e educação – necessário para permitir que as forças produtivas da sociedade como um todo fossem ouvidas. Processos similares, pelos quais a economia gerava uma concentração de interesses que manipulavam o governo e impediam o crescimento econômico, eram associados a uma série de matérias-primas. Alguns tipos de mineração eram semelhantes à agricultura em termos de criação de enclaves. O impacto econômico gerado se restringia às áreas onde os minerais eram encontrados. E muitos minerais – como cobre, petróleo e ouro –, de fato, criavam uma divisão entre aqueles que os produziam e o restante da sociedade. A importância da questão dependia da influência política e econômica das minas. Uma verdadeira diferença entre a mineração e a produção agrícola era que, devido ao caráter predominantemente rural dos países pobres, as exportações de bens agrícolas tendiam a incluir uma parcela grande da população, enquanto a mineração em geral era feita por pequenos grupos isolados. A mineração causava forte impacto, semelhante ao da agricultura, nas regiões onde a economia local dominava. Mas isso ocorreu em apenas alguns poucos lugares, como nas áreas de minas de ouro da África do Sul. Onde isso acontecia, como ao longo dos extraordinários corredores minerais do Transvaal, o resultado tendia para a mesma característica dual das sociedades nas regiões de plantação intensiva. A evolução social e política da África do Sul estava intimamente ligada à dominação comercial dos fazendeiros e donos de minas, que dependiam de um grande fornecimento de mão de obra barata. Devido a essas experiências, as riquezas naturais, pelo menos algumas, se tornaram quase 5 Problemas da economia global Os principais desafios da Era de Ouro do capitalismo global vinham de dissidências no centro do sistema, não das massas empobrecidas da Ásia e da África. Industriais britânicos contestavam o envolvimento do país com o livre-comércio e a liderança da nação na economia global. Produtores agrícolas norte-americanos questionavam a vantagem do padrão- ouro. Organizações de trabalhadores e partidos socialistas na Europa se mobilizavam contra problemas domésticos há muito tempo evidentes. Todos eles se afastaram do consenso clássico da época quanto à priorização dos compromissos econômicos internacionais em relação aos assuntos internos. Comércio livre ou comércio justo? Na década de 1880, dissidentes da ortodoxia do livre-comércio britânico exigiam um comércio justo: retaliações contra as barreiras protetoras ao redor do mundo. Os produtores que enfrentavam a competição das nações recém-industrializadas lideravam o movimento. Donos de fábricas têxteis e metalúrgicas na Grã-Bretanha estavam furiosos porque europeus e norte-americanos vendiam livremente nos mercados do país, enquanto o governo deles impunha pesadas tarifas sobre os produtos britânicos. Os novos competidores também superaram as empresas britânicas nos terceiros mercados – os da América Latina, da Ásia e do leste e sul da Europa. As principais indústrias da Grã-Bretanha passaram a depender cada vez mais das vendas dentro do Império, onde as empresas e os laços culturais lhes concediam vantagens. Até a primeira parte do século, metade das exportações de tecidos de algodão do país, junto com 1/3 das de ferro galvanizado, ia apenas para a Índia.1 Por um lado, isso significava o sucesso do Império em obter um mercado cativo. Mas, por outro, também revelava a dura realidade de que as empresas, até então dominantes, agora só conseguiam competir com as estrangeiras devido ao apoio do Império. A demanda por um comércio justo se transformou num pedido mais geral de revisão da política externa britânica. O movimento foi liderado por Joseph Chamberlain, um fabricante da área metalúrgica que havia sido prefeito de Birmingham, líder do Ministério do Comércio e secretário das Colônias. Os fabricantes do norte lutavam por proteção sob o amparo da Liga pela Reforma Tarifária,a criada em 1903. A busca de proteção costumava estar ligada a propostas de preferência imperial, sistema que concederia à Grã-Bretanha, suas colônias e locais de dominação acesso privilegiado aos mercados uns dos outros. Isso teria satisfeito os cada vez mais poderosos interesses protecionistas do resto do Império – em especial de Canadá, Austrália, África do Sul e Índia – e garantido um mercado mais seguro para os fabricantes britânicos revoltosos.2 Os defensores da reforma tarifária nutriam um sentimento protecionista, uma preocupação com a estrutura imperial e uma ansiedade pelas implicações causadas ao Império Britânico pela perda de sua superioridade industrial. Nas palavras de Chamberlain: Embora em um determinado momento a Inglaterra tenha sido o maior país manufatureiro, hoje a população se emprega cada vez mais nas finanças, repartições, serviços domésticos e em outras ocupações desse mesmo tipo. O estado atual das coisas ... pode significar mais dinheiro, mas significa menos bem-estar social; e acredito que valha a pena considerar – sejam quais forem seus efeitos imediatos – até que ponto este estado das coisas não seria, em última análise, a destruição de tudo o que a Inglaterra tem de melhor, de tudo o que nos tornou quem somos, tudo o que nos deu poder e prestígio no mundo.3 As eleições gerais de 1906 foram um grande plebiscito sobre o livre-comércio. Os financistas baseados na cidade de Londres se mobilizaram para defender a abertura comercial da Grã-Bretanha, e encontraram apoio nos mercadores e nas indústrias exportadoras bem- sucedidas. Os protecionistas perderam de forma ressoante.4 Nesse ano, Joseph Chamberlain, principal porta-voz do protecionismo britânico, sofreu um derrame que o debilitou. Tanto o homem quanto o movimento definharam. Chamberlain morreu em 1914, e a exigência britânica por proteção acalmou-se até o fim da Primeira Guerra Mundial. Os industrialistas revoltosos fracassaram e não foram bem-sucedidos em rever a seu favor a política britânica. A suposição de que a Grã-Bretanha aceitaria para sempre os produtos do mundo, no entanto, não era mais certa. O país perdia a sua posição na economia internacional. O declínio era relativo. Entre 1870 e 1913, o tamanho da economia britânica mais do que dobrou. Mesmo considerando o crescimento populacional, o produto por pessoa do país cresceu mais de 50% durante o período. Não obstante, o abismo que existia entre a Grã- Bretanha e o resto do mundo se estreitava continuamente. Os fabricantes britânicos estavam sendo afastados dos mercados exportadores, e até mesmo dos mercados domésticos. Os Estados Unidos e a Alemanha passaram a ser os dínamos manufatureiros do mundo. A Grã- Bretanha mantinha a sua liderança apenas nos serviços, como atividades bancárias, seguros e frete. Não era mais um fato que a próxima usina de energia ou estrada de ferro construídas na África ou Europa oriental seriam britânicas; era igualmente possível que fossem alemãs, francesas ou norte-americanas. Mesmo em relação a investimentos internacionais, os centros financeiros da Europa continental – assim como Nova York – desafiavam a supremacia britânica. Já era de se imaginar que a liderança industrial do país não duraria para sempre, mas a velocidade com que foi superada levou muitos britânicos a se perguntarem como isso acontecera, pergunta que ecoou em gerações de historiadores econômicos. Uma explicação bem-aceita é a de que o entusiasmo dos investidores britânicos por empreendimentos estrangeiros enfraqueceu a economia britânica, ao passo que fortaleceu a dos países destino desse capital. Os investidores britânicos enviavam para o exterior cerca de metade do que economizavam, e os que faziam empréstimos reclamavam que seria mais barato se não precisassem competir com as províncias canadenses e argentinas pelo favorecimento do capital londrino. Mas os investimentos domésticos lucrativos não enfrentavam problemas de financiamento. Além disso, o dinheiro investido no exterior rendia um belo lucro, o qual voltava para casa a fim de aumentar a renda e a riqueza da nação.5 Como se alega algumas vezes, os britânicos fracassaram em adotar novas técnicas de gerenciamento e produção. Países como a Alemanha e os Estados Unidos gozavam da vantagem do atraso; podiam estabelecer novas indústrias com os avanços recentes já desenvolvidos. Uma desvantagem análoga seria ter se industrializado 50 anos antes dos outros, assim a introdução de novas tecnologias poderia significar o descarte das já existentes, o que incluiria equipamentos ainda lucrativos. De fato, a crescente dependência dos produtos tradicionais britânicos dos mercados imperiais adiou a modernização industrial ao facilitar a venda de bens que não exigiam mudanças tecnológicas. Nas palavras do historiador econômica Charles Kindleberger: As exportações do Império permitiram que a economia se esquivasse da exigência de uma mudança dinâmica, que significava afastar-se dos tecidos de algodão, dos trilhos de ferro e aço, das folhas de ferro galvanizado e similares ... para a fabricação de produtos das novas indústrias.6 As práticas britânicas de gerenciamento também foram geradas em uma época anterior à revolução dos transportes e das telecomunicações do fim do século XIX, e antes do aumento da produção e do consumo em massa de bens duráveis. As firmas britânicas tendiam a ser menores do que as alemãs e as norte-americanas, como a Siemens e a AEG ou a General Electric e a U.S. Steel. Eram organizadas não tanto como companhias modernas mas como empresas familiares, o que muitas delas continuavam a ser. Não está claro, contudo, se isso foi uma má ideia. É possível que as empresas norte-americanas fossem grandes porque eram de cartéis monopolistas, e as novas formas administrativas não eram apropriadas para as relações industriais e trabalhistas britânicas. Outro candidato a culpado pelo crescimento relativamente lento da Grã-Bretanha foi o sistema educacional do país. Críticos culpavam as escolas da nação pela atenção inadequada ao treinamento técnico, excessiva rigidez classista e insuficientes princípios meritocráticos de promoção e avanço. Havia certamente uma força preconceituosa na sociedade britânica, cujo possível impacto sufocante para o avanço econômico foi capturado pela romancista norte- americana Margareth Halsey: “Na Inglaterra, ter tido dinheiro ... é tão aceitável quanto tê-lo ... Mas nunca ter tido dinheiro é imperdoável, e a única forma apropriada de reparação é por meio da explicação de nunca ter tentado ganhar algum.”7 Embora a estrutura social da Grã- Bretanha possa não ter recompensado o empreendedorismo e as suas realizações educacionais não refletissem a liderança industrial que a nação tinha em relação aos outros países da Europa, não está claro que esses fracassos tenham causado um impacto econômico significativo. Não importa quais tenham sido as fontes da desaceleração do crescimento britânico após 1870 – e provavelmente havia algo de cada uma das principais explicações. O que importa é que afetou o país e o mundo. Muitos britânicos passaram a questionar as verdades até então intocadas de sua economia política, como o livre-comércio e a liderança financeira global. Não é surpresa que os fabricantes britânicos, diante da pressão da concorrência, quisessem uma política governamental que os apoiassem. Tampouco surpreende – dada a importância dos mercados do Império, assim como os de seus domínios, para a indústria em apuros – que isso tomasse a forma de uma reivindicação por tarifas protetoras em torno do Império Britânico. Em todos esses aspectos, o Reino Unido era bem parecido com qualquer uma das outras principais nações industriais. No entanto, o papel principal desempenhado pelo Reino Unido na economia mundial era centrado, em grande parte, em ser diferente das outras nações industriais, como fora desde a década de 1840. O compromisso britânico com o livre-comércio e a abertura financeira era
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