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Stasilandia - Anna Funder, Notas de estudo de Engenharia de Produção

stasilandia

Tipologia: Notas de estudo

2017

Compartilhado em 18/10/2017

daniel-carvalho-x5j
daniel-carvalho-x5j 🇧🇷

4.8

(18)

54 documentos

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Stasilandia - Anna Funder e outras Notas de estudo em PDF para Engenharia de Produção, somente na Docsity! STASI Anna Funder FP como funcionava Roo or = id alema q EE q Ny RP DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós: O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.site ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link. "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível." STASILÂNDIA Coleção Jornalismo Literário — Coordenação de Matinas Suzuki Jr. A sangue frio, Truman Capote Berlim, Joseph Roth Chico Mendes: Crime e castigo, Zuenir Ventura Fama e anonimato, Gay Talese A feijoada que derrubou o governo, Joel Silveira Filme, Lillian Ross Hiroshima, John Hersey O imperador, Ryszard Kapuscinski O livro das vidas, org. Matinas Suzuki Jr. A milésima segunda noite da avenida Paulista, Joel Silveira Na pior em Paris e Londres, George Orwell Radical Chique e o Novo Jornalismo, Tom Wolfe O segredo de Joe Gould, Joseph Mitchell O super-homem vai ao supermercado, Norman Mailer A vida como performance, Kenneth Tynan 04532-002 — São Paulo — sp Telefone (11) 3707-3500 Fax (11) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.br Para Craig Allchin … uma selva silenciosa e louca sob o vidro. Carson McCullers, A sócia do casamento Vocês dois, violador e vítima (colaborador! violino!), estão ligados, talvez para sempre, pela obscenidade daquilo que se revelou a vocês, pelo triste conhecimento do que as pessoas são capazes de fazer. Somos todos culpados. Breyten Breytenbach, Confissões verídicas de um terrorista albino “Que o júri chegue a seu veredicto” disse o rei, mais ou menos pela vigésima vez naquele dia. “Não! Não!” disse a rainha. “Primeiro a sentença — depois o veredicto.” Lewis Carroll, As aventuras de Alice no País das Maravilhas STASILÂNDIA 9 ALEMANHA 4 TNT ALEMANHA ORIENTAL 4, j | OCIDENTAL “4 . é É Lei , ÉS Colônia pf * Daléiea SA u Bonn E BéLgica HE Na Su aa > a ã ÁrcuicosLováguia E Nurembergue 9; SO (REPOBLICA Men . TCHECA) Ausria suíça E A fret ia CS trama eme 9 de novembro de 1989. Berlim Oriental, 1989. mascarar os cheiros dos corpos humanos com coisa pior. “Como está o tempo lá em cima?”, a mulher pergunta, sinalizando com a cabeça para o topo da escada. “Bem frio.” Ajeito minha pouca bagagem. “Mas não está tão ruim, a camada de gelo fino na rua ainda não está tão grande.” “Isso ainda não é nada”, ela desdenha. Não sei se é ameaça ou bazófia. É o que chamam por aqui de Berliner Schnauze — aquela tromba berlinense. A postura habitual, estampada na cara. Não quero ficar ali nem tampouco subir a escada rumo ao frio. O cheiro de desinfetante é tão forte que não sei dizer se estou me sentindo melhor ou mais enjoada. “Faz vinte e um anos que estou aqui, desde o inverno de 1975. Vi coisa bem pior do que isso.” “É bastante tempo.” “Com certeza. Tenho meus fregueses habituais, posso dizer a você. Eles me conhecem, eu conheço todos. Uma vez veio um príncipe, um Von Hohenzollern.” Imagino que ela use o truque do príncipe com todo mundo. Mas funciona: estou curiosa. “Ã-hã, e isso foi antes ou depois da queda do muro?” “Antes. Ele veio do lado ocidental para passar o dia aqui. Costumavam aparecer muitos ocidentais, você sabe. Ele me convidou” — ela dá uns tapinhas com a mão espalmada nos seios enormes — “para visitar seu palácio. Mas é claro que não pude ir.” Claro que ela não pôde ir: o Muro de Berlim estendia-se por alguns quilômetros a partir dali, e não havia como passar para o outro lado. Junto com a Grande Muralha da China, era uma das estruturas mais extensas jamais construídas para separar as pessoas. Ela está perdendo credibilidade com rapidez cada vez maior, e sua história vai melhorando na mesma proporção. De repente, já não consigo sentir cheiro nenhum. “Você já foi viajar depois que o muro caiu?”, pergunto. Ela joga a cabeça para trás. Noto que está usando um delineador roxo que, visto daquele ângulo, tem um brilho fosforescente. “Ainda não. Mas gostaria de ir. Para Bali, ou coisa do tipo. Ou para a China. É, para a China, talvez.” Ela tamborila as unhas pintadas no balcão de vidro e sonha, contemplando a meia distância por sobre meu ombro esquerdo. “Você sabe o que eu gostaria mesmo de fazer? Adoraria dar uma olhada naquela muralha deles.” O trem parte da Ostbahnhof e atinge sua velocidade de cruzeiro. O ritmo me embala como um berço, silenciando meus dedos tamborilantes. A voz do condutor surge dos alto-falantes, recitando nossas paradas: Wannsee, Bitterfeld, Lutherstadt Wittenberg. No norte da Alemanha frequento a extremidade cinza do espectro: prédios cinza, terra cinza, pássaros cinza, árvores cinza. Lá fora, a cidade e, depois, o campo passam em preto e branco. A noite anterior é uma mancha enevoada — outra sessão no bar com Klaus e seus amigos. Mas minha ressaca não é daquelas que condenam o dia às trevas. É do outro tipo, mais interessante, em que sinapses destruídas se reconstroem, às vezes errando o antigo caminho e formando novas e estranhas conexões. Lembro-me de coisas de que não me lembrava antes — coisas que não provêm do arquivo ordenado de memórias a que chamo meu passado. Lembro-me do buço da minha mãe ao sol, do sentimento agudo de fome e perda da adolescência, do odor de asfalto queimado pela freada dos bondes no verão. A gente acha que tem o passado todo catalogado e arquivado por assunto, mas, em algum lugar, ele aguarda para voltar à tona. Lembro-me de quando aprendia alemão — uma língua tão bela e tão estranha — na escola, na Austrália, do outro lado do mundo. Minha família ficou perplexa com o fato de eu estar aprendendo aquela língua tão esquisita e feia, além de — claro, eram todos sofisticados demais para dizê-lo — ser a língua do inimigo. Mas eu gostava daquela estrutura de ir juntando pedaços, de construir palavras longas e maleáveis a partir da junção de palavras menores. Podiam-se criar coisas que não tinham nome em inglês —Weltanschauung, Schadenfreude, Sippenhaft, Sonderweg, Scheissfreundlichkeit, Vergangenheitsbewältigung. Gostava de toda aquela ampla gama de palavras que ia de “heartfelt” [sincero] até “heartsick” [deprimido]. E me agradava a ordem, a franqueza direta que imaginava características das pessoas. Então, na década de 1980, fui morar em Berlim Ocidental por um tempo, e ficava pensando muito no que acontecia por trás daquele muro. Sentada diante de mim, uma mulher com uma barriga que mais parece um barril desembrulha sanduíches de pão preto. Até o momento, ela teve êxito em fingir que não estou ali, embora baste um pequeno descuido para que nossos joelhos se toquem. Delineou o arco das sobrancelhas com uma expressão de surpresa ou ameaça. Penso no sentimento que acabei desenvolvendo pela ex-República Democrática da Alemanha. É um país que não existe mais, e no entanto aqui estou eu, num trem, a desembestar por ele — por suas casas em ruínas e por seu povo atônito. É um sentimento que demanda uma daquelas palavras juntadas: só posso descrevê-lo como de “horrormantismo”. É um sentimento bobo, mas não quero me livrar dele. O romantismo provém do sonho de um mundo melhor que os comunistas alemães queriam construir das cinzas de seu passado nazista: de cada um, de acordo com sua capacidade, a cada um, de acordo com sua necessidade. O horror vem do que fizeram em nome desse sonho. A Alemanha Oriental desapareceu, mas seus restos ainda estão lá. Minha companheira de viagem puxa um maço de cigarros ocidentais, daquela que parece ser a marca preferida por aqui desde a queda do muro. Acende um e expele a fumaça por cima da minha cabeça. Quando termina de fumar, apaga o cigarro na lata com tampa fixa, de erguer, cruza as mãos sobre a barriga e adormece. Sua expressão, desenhada a lápis, não muda. Estive em Leipzig pela primeira vez em 1994, quase cinco anos depois da queda do muro, em novembro de 1989. A Alemanha Oriental ainda parecia um jardim secreto e emparedado, um lugar perdido no tempo. Não ficaria surpresa se as coisas tivessem ali um gosto diferente — se as maçãs tivessem gosto de peras, digamos, ou o vinho o gosto do sangue. Leipzig foi o centro do que hoje é chamado de die Wende: a virada. A Wende foi a revolução pacífica contra a ditadura comunista na Alemanha Oriental, a única revolução bem-sucedida da história alemã. Leipzig foi seu coração e ponto de partida. Agora, dois anos mais tarde, estou voltando para lá. Em 1994 encontrei uma cidade construída por justaposição. As ruas serpenteavam tortuosas, passagens em ruínas atravessavam os prédios, conduzindo inesperadamente ao quarteirão seguinte, e baixas arcadas afunilavam as pessoas rumo a bares subterrâneos. Meu mapa pouco ou nada tinha a ver com a maneira como se vivia a vida ali. Quem conhecia o lugar era capaz de cortar caminho por atalhos ocultos através dos edifícios ou ao longo de vielas não mapeadas que ligavam um quarteirão a outro, permitindo que as pessoas se movessem por cima e por baixo da terra. Fiquei completamente perdida. Procurava pelo museu da Stasi na Runden Ecke, o edifício na “esquina redonda” que antes abrigava os escritórios da polícia secreta. Precisava ver com meus próprios olhos uma parte daquele vasto aparato que havia sido o Ministério para a Segurança do Estado da 6. AGENTE À ESPREITA DESEJA FALAR COM CHEFE DE EQUIPE OU COM OUTROS AGENTES — RETIRAR PASTA OU EQUIVALENTE E EXAMINAR CONTEÚDO Pus-me a imaginar esse balé de rua dos surdos-mudos. Agentes sinalizando uns para os outros, tocando o nariz, a barriga, as costas e os cabelos; amarrando e desamarrando os sapatos; erguendo o chapéu para estranhos e remexendo papéis — toda uma coreografia para escoteiros muito malvados. Mais para o fundo do prédio, três salas abrigavam os artefatos da Stasi em mostruários de vidro. Havia uma caixa com perucas e bigodes falsos, acompanhados de pequenos tubos de cola para fixá-los. Havia também bolsas femininas de vinil com microfones embutidos, disfarçados como apliques de pétalas de flores; escutas implantadas nas paredes dos apartamentos e uma pilha de cartas que jamais chegaram ao lado ocidental — um dos envelopes ostentava uma caligrafia de criança, escrito com lápis de cor: uma cor diferente para cada letra do endereço. Uma caixa de vidro continha apenas frascos vazios. Eu a observava quando uma mulher se aproximou. Ela parecia uma versão feminina de Lutero, a não ser pelo fato de que era bonita. Estava na casa dos cinquenta, tinha as maçãs do rosto saltadas e um olhar direto. O aspecto era simpático, mas ela parecia saber que, em minha mente, eu ridicularizava um regime que exigia de seus cidadãos que assinassem um compromisso de lealdade mais parecido com uma certidão de casamento, um regime que confiscava cartões de aniversário enviados por crianças a seus avós e datilografava informações sem sentido junto a mesas encimadas por calendários de mulheres peitudas. A mulher era Frau Hollitzer, a administradora do museu. Frau Hollitzer explicou-me que os frascos diante de nós eram “amostras de cheiro”. A Stasi havia desenvolvido um método quase científico para encontrar criminosos: a tal “amostragem de cheiro”. A teoria era a de que todos nós temos nosso próprio odor, que nos identifica e que deixamos em tudo que tocamos. Esses cheiros podem ser capturados e, com o auxílio de cães farejadores treinados, comparados na busca por alguém. A Stasi levava seus cachorros e frascos para onde suspeitava que tinha havido alguma reunião ilegal; lá, observava para ver se os cachorros apanhavam os odores daquelas pessoas cujas essências estavam contidas nos frascos. Na maior parte das vezes, as amostras eram colhidas por meios ilícitos. A Stasi invadia o apartamento de alguém e pegava um pedacinho de alguma roupa usada o mais próximo possível da pele — com frequência, escolhiam um pedaço de roupa de baixo. Uma alternativa era, a partir de um pretexto qualquer, levar o “suspeito” para interrogatório; o assento de vinil por ele utilizado era, então, limpado com um pedaço de tecido. Os pedacinhos de roupa roubados ou o tecido eram, depois, guardados em frascos lacrados. Os frascos pareciam-se com potes de geleia. Uma etiqueta anunciava: “Nome: Herr [nome]. Hora: 1 hora. Objeto: cueca”. Quando os cidadãos de Leipzig entraram no edifício encontraram uma vasta coleção de amostras de cheiro. Depois, os frascos desapareceram. Só foram reaparecer em junho de 1990 — na “despensa de cheiros” da polícia de Leipzig. Mas estavam vazios. Ao que tudo indica, a polícia os confiscara para uso próprio, mesmo no período posterior à queda do muro, quando a democracia dava ali seus primeiros passos. Os frascos ainda carregavam as meticulosas etiquetas. A partir delas, ficou claro que a Stasi de Leipzig tinha coletado amostras de cheiro de toda a oposição política daquela região da Saxônia. Hoje, ninguém mais sabe quem está de posse dos retalhos de pano e das meias velhas, nem por que razão estaria guardando tudo isso. Mais tarde, Frau Hollitzer me contou sobre Miriam, uma jovem mulher cujo marido morrera numa cela da Stasi ali perto. Disseram que a Stasi orquestrou o funeral, a ponto de substituir o caixão cheio por outro, vazio, e de cremar o corpo, com o intuito de destruir qualquer indício da causa da morte. Fiquei imaginando carregadores de caixão pagos, fingindo suportar o peso da urna vazia, ou talvez suportando de verdade os oitenta quilos de um caixão cheio de jornais velhos e pedras. Pus-me a pensar no que é não saber se o seu marido se enforcou ou se foi morto por alguém que você, hoje, encontra na rua. Pensei comigo que gostaria de falar com Miriam antes que o produto da minha imaginação se fixasse à maneira das lembranças falsas. Fui para casa, na Austrália, mas agora estou de volta a Berlim. Não consegui tirar da cabeça a história de Miriam, aquela história de segunda mão sobre uma mulher que não conheci. Consegui um emprego de meio período na televisão e saí em busca de algumas das histórias de um país que deu errado. 2. Miriam Trabalho no serviço internacional de televisão daquela que já foi chamada de Berlim Ocidental. O serviço foi montado pelo governo depois da guerra, para irradiar um espírito germânico benigno por todo o globo. Meu trabalho é responder as cartas de telespectadores que tenham perguntas a fazer. Como correspondente dos telespectadores, sou um cruzamento entre conselheira espiritual, assistente autônoma de pesquisa e receptáculo para mensagens postadas em garrafas. “Caro Serviço ao Telespectador, procuro o endereço da clínica do dr. Manfred von Ardenne a fim de tentar seu tratamento a temperaturas ultra altas para o câncer em estágio avançado, conforme apresentado no programa…”; “Caro Serviço ao Telespectador, muito obrigado pelo interessante programa sobre as pessoas que buscam asilo em seu país. Tenho dezesseis anos e moro em Akra. Vocês poderiam, por favor, me enviar mais informações sobre como pedir asilo?” O neonazista ocasional, seja do Missouri ou de Liverpool, escreve em busca de informação sobre “grupos mãe” na Alemanha Oriental. Um homem de Birmingham, no estado do Alabama, enviou-me uma foto sua, de pé, trajando uniforme, atrás de uma série de cadáveres, quando da libertação do campo de concentração de Bergen Belsen, em 1945. Escreveu: “Obrigado pelo programa sobre o 50° aniversário da paz. Gostaria que vocês soubessem que me lembro com grande carinho da recepção que nós, americanos, tivemos por parte da população civil alemã. Nas aldeias, as pessoas não tinham nada, mas quando chegamos compartilharam conosco o que tinham como se fôssemos uma família […]”. Escrevo respostas contidas e apropriadas. Às vezes, penso como seria ser alemã. Meu chefe se chama Alexander Scheller. É um homem alto, recém- entrado na casa dos quarenta e que possui uma mesa imensa mas vazia, à exceção de uma foto da esposa loira e de cara fechada, um cinzeiro de vidro e uma eterna xícara de café. Está sempre batucando alguma coisa com as mãos, inquietude resultante da cafeína e da nicotina. Em seu benefício, posso dizer que me dá a honra de comportar-se como se meu trabalho (responder às cartas dos telespectadores) fosse tão importante quanto o dos jornalistas e profissionais da casa. Há um mês, eu estava sentada defronte à Ele me acompanha de volta à minha mesa, solícito como um médico com uma paciente que acabou de receber notícia ruim. Essa sua atitude me fez perceber que eu tinha me excedido. “Olha, ele simplesmente não está interessado”, diz Uwe. “Ninguém está interessado nessa gente.” “Escute…” Ele toca meu antebraço com gentileza, girando-me na direção dele como um parceiro de dança. Seus olhos são verdes e voltados para cima, os dentes são pequenos e certinhos, parecem pérolas. “É provável que você esteja com a razão. Ninguém aqui está interessado. Eles eram atrasados, uns duros, e toda essa coisa da Stasi…” Uwe se detém. Seu hálito cheira a menta. “É meio… embaraçoso.” Respondi ao argentino agradecendo pela sugestão, mas disse-lhe que, “infelizmente, o propósito da emissora é tratar de assuntos e notícias da atualidade, não havendo portanto possibilidade de investigarmos histórias individuais de um ‘ponto de vista’ mais pessoal”. Há uma semana ele respondeu. Irado, disse-me que a história é feita de histórias pessoais. Disse ainda que questões importantes estavam sendo varridas para debaixo do tapete na Alemanha Oriental e que, com isso, estavam varrendo gente para debaixo do tapete. Depois da guerra, afirmou ele, vinte anos haviam sido necessários para que o regime nazista ao menos começasse a ser discutido na Alemanha, e esse processo estava se repetindo agora. “Vamos ter de esperar até 2010 ou 2020 para que o que aconteceu lá seja lembrado?” perguntou. E, por fim: “Por que algumas coisas vão se tornando mais fáceis de lembrar quanto mais tempo se passa desde que elas ocorreram?” A mulher diante de mim acorda quando o trem entra em Leipzig. Como há uma componente de intimidade no ato de observar o sono de alguém, ela agora reconhece minha existência. “Wiedersehen”, diz, ao sair do nosso compartimento. De pé, no fim da plataforma, está Miriam Weber, uma mulher pequena e quieta em meio ao fluxo de passageiros desembarcando. Segura uma única rosa diante do corpo, para que eu possa identificá-la. Cumprimentamo-nos com um aperto de mãos, sem nos olharmos mais detidamente de início, conversando sobre trens, viagens e sobre a chuva. É como um encontro no escuro: havíamos descrito uma à outra nossa aparência. Sei que ela nunca contou sua história a nenhum estranho. Atravessamos Leipzig de carro. A cidade se transformou em um canteiro de obras, uma obra em construção visando a algum novo objetivo. Guindastes remexem buracos abertos como feridas. As pessoas os ignoram, serpenteando de cabeça baixa por passagens e desvios para pedestres. No alto de uma das torres de concreto, o emblema da Mercedes gira, dançando a nova valsa do presente. O apartamento de Miriam fica logo abaixo do telhado de seu edifício. São cinco lances de escada, uma vasta escadaria ladeada por uma graciosa balaustrada escura. Tento não bufar muito alto. Tento não pensar em minha cabeça lesada pela ressaca. E tento me lembrar quando foi que inventaram o elevador. Ao chegarmos, o apartamento é um vasto espaço iluminado sob os beirais, cheio de plantas e luminárias, com vista para toda a cidade de Leipzig. Dali se poderia ver qualquer um que chegasse. Sentamo-nos em grandes cadeiras de vime. Ao olhar diretamente para Miriam, percebo tratar-se de uma mulher de seus 45 anos, os cabelos cortados curtos e com graça, espetados no topo da cabeça como os de um garoto numa história em quadrinhos, óculos redondos e pequenos. Veste um comprido suéter preto, calça comprida e dobra as pernas sob o corpo. Para minha surpresa, tem uma voz possante, marcada pela nicotina. É tão miudinha que a voz parece vir do nada e de toda parte ao mesmo tempo: não fica claro de imediato que é dela — enche a sala e nos envolve. “Oficialmente, tornei-me inimiga do Estado aos dezesseis anos. De-zes- seis.” Ela me olha através das lentes, e seus olhos são grandes e azuis. Na voz há uma mistura de orgulho, pelo modo como ela se tornou um tal demônio, e descrença, no fato de que seu país pudesse criar inimigos entre suas próprias crianças. “Você sabe, aos dezesseis temos uma espécie de comichão.” Em 1968, a velha igreja da Universidade de Leipzig foi demolida de repente, sem nenhuma consulta à população. A 250 quilômetros dali a Primavera de Praga estava a toda, e os russos ainda não haviam enviado os tanques para esmagar os que pediam democracia. A demolição da igreja forneceu um foco que permitiu à população de Leipzig dar expressão ao mal-estar generalizado que lhes fora transmitido pelos primos tchecos. Vinte e três anos depois do final da guerra, a nova geração fazia perguntas sobre o modo como os pais tinham implementado os ideais comunistas. Os protestos em Leipzig foram interpretados pelo regime alemão oriental como sinal dos tempos: cinza prestes a se inflamar. A polícia afogou-os com mangueiras de apagar incêndio e fez muitas prisões. Miriam e sua amiga Ursula acharam que aquilo não era certo. “Aos dezesseis temos uma certa ideia de justiça, e simplesmente pensamos que aquilo estava errado. Não estávamos de fato contra o Estado, nem tínhamos refletido tanto assim sobre o assunto. Só achamos que não era justo agredir as pessoas, soltar os cavalos em cima delas e assim por diante.” As duas decidiram fazer alguma coisa. Numa papelaria, compraram um daqueles conjuntos de carimbos para crianças, com tinta, letrinhas de borracha e um trilho onde assentá-las. “Era possível comprar esse tipo de coisa?”, pergunto. Eu sabia que, na RDA, mimeógrafos, máquinas de escrever e, mais tarde, fotocopiadoras estavam sujeitos a controle estrito (ainda que não muito eficaz) por parte do Estado. “Depois do que nós fizemos, não mais”, ela sorri. “A Stasi mandou tirar das prateleiras.” Miriam e Ursula fizeram panfletos (“Consulta, sim. Canhão de água, não!” Ou “Povo da República do Povo: manifeste-se!” ). Uma noite, saíram afixando os panfletos pela cidade. Usavam luvas, para não deixar impressões digitais. “Já tínhamos lido tantos romances quanto qualquer outra pessoa”, ela diz, rindo. Miriam tinha enfiado os folhetos dentro do casaco; Ursula levava um tubo de cola e um pincel escondidos numa caixa de leite. Eram espertas: colaram os panfletos em cabines telefônicas, em cima das instruções de uso, e nos pontos dos bondes, em cima da tabela com os horários. “Queríamos ter certeza de que as pessoas iriam ler.” Primeiro descreveram um círculo em torno da cidade; depois, puseram-se a atravessá-la. Passaram pela sede regional do Partido Comunista. Tudo ia bem. “Olhamos uma para a outra, e não resistimos à tentação.” Entraram e disseram ao guarda de plantão que estavam ali para falar com Herr Schmidt, correndo o risco de que houvesse de fato alguém com aquele nome no edifício. Não pararam para pensar no que fariam se algum Herr Schmidt aparecesse. O guarda deu um telefonema. Depois, desligou o telefone. “Bem, o camarada Schmidt não está no momento.” As garotas disseram que voltariam no dia seguinte. “A caminho da saída, havia aquelas colunas lindas, lisinhas…” 3. A ponte da Bornholmer Strasse A viagem de Leipzig a Berlim leva menos de duas horas, mas Miriam nunca havia estado lá. Sozinha na cidade grande, ela comprou um mapa na estação. “Queria dar uma olhada em alguns pontos da fronteira. Pensava comigo: não pode ser verdade; em algum lugar deve haver um jeito de passar para o outro lado.” No portão de Brandemburgo ficou espantada de poder caminhar até o muro. Não podia acreditar que os guardas a deixavam chegar tão perto. Mas o muro era liso e alto demais para ser escalado. Mais tarde, descobriu que toda a parafernália da fronteira entre Leste e Oeste naquele ponto só começava atrás do muro. “Mesmo que eu tivesse conseguido subir até lá em cima, só poderia ter esticado a cabeça acima do muro para dar um tchauzinho aos guardas orientais.” Ela acena com as duas mãos e encolhe os ombros. Já à noitinha, as chances não pareciam nada boas. “Não tinha encontrado nenhum buraco no muro”, Miriam diz. Estava com muito frio e sentia-se infeliz. Sentada no trem de subúrbio a caminho da estação Alexanderplatz, ia pegar o trem regional para casa.Estava escuro e ela ia voltar para a prisão. Avançando sobre estacas, lá no alto, o trem espremia-se entre edifícios. Edifícios de ambos os lados, com suas fachadas lisas de concreto e janelas retangulares, todos de cinco andares. Alguns com as luzes acesas, outros, no escuro; alguns tinham plantas, outros, sem nada. Então, o panorama mudou. Miriam levou alguns instantes para percebê-lo no escuro, mas de repente ela estava passando por uma cerca de tela de arame. “Eu pensei: se o trem passa por aqui, e tem essa enorme cerca de arame do meu lado, então Berlim Ocidental só pode ser ali do outro lado.” Miriam desceu do trem, atravessou a plataforma e pegou outro trem, que ia em sentido contrário. Era como ela havia pensado: uma cerca alta de arame. Então, desembarcou de novo e tornou a pegar o trem no sentido oposto, mas dessa vez desceu na ponte da Bornholmer Strasse. Depois, fui procurar aquela ponte num mapa da cidade. Tinha ouvido falar dela e imaginei que pudesse ser um daqueles lugares onde as Alemanhas Oriental e Ocidental costumavam trocar espiões. Agora, toda vez que abro o mapa, só vejo essa ponte. É como quando a gente nota que alguém tem um olho vesgo e, a partir daí, não consegue enxergar mais nada no rosto dessa pessoa. Encontros entre as linhas de trem orientais e ocidentais eram raros na Alemanha dividida. Na estação da ponte da Bornholmer Strasse, a linha proveniente do lado ocidental ainda mergulha de noroeste a sudoeste, ao passo que a linha que vem do lado oriental sobe de sudeste a nordeste. As formas que elas compõem no mapa parecem perfis de duas figuras dando um beijo de nariz à maneira dos maori. Na ponte da Bornholmer Strasse, em teoria, a fronteira passava entre os trilhos. Em outras partes de Berlim, ela — e portanto o muro — abre uma estranha ferida que corta a cidade. O muro atravessava casas, ruas, canais e fatiava linhas do metrô. Ali, porém, em vez de cortar a linha do trem, os alemães orientais construíram a maior parte das fortificações defronte à linha, do lado oriental, permitindo que os trens do leste avançassem até o muro mais distante, ao final da faixa mortal de segurança. “Dei uma olhada na situação e decidi: nada mau.” Miriam podia ver as instalações fronteiriças, toda a cacofonia de arame, cimento, asfalto e areia. Defronte ao local onde tudo isso começava havia mais ou menos um hectare de jardinzinhos cercados, cada um deles com sua própria casinha. Esses jardins minúsculos são uma solução tradicional alemã para aqueles que vivem em apartamentos mas anseiam por um galpão de ferramentas e uma horta. Compõem uma colcha verde de retalhos nos recantos mais improváveis de solo urbano, ao longo de vias férreas, canais ou, nesse caso, à beira do muro. Miriam pulou as cercas que separavam os jardins, na tentativa de se aproximar do muro. “Estava escuro e eu tive sorte. Mais tarde, fiquei sabendo que eles normalmente patrulham os jardins também.” Foi até onde podia, mas não chegou ao muro em si, porque havia “uma sebe larga e imensa” antes dele. Então, resolveu remexer um pouco no galpãozinho de ferramentas de alguém, à procura de uma escada, e encontrou o que queria. Apoiou a escada na sebe e subiu. Lá em cima, deu uma boa e longa olhada ao redor. Toda a faixa era iluminada por uma fileira de postes com enormes lâmpadas de rua, todas dobradas num único e mesmo ângulo, em submissão. No céu, os fogos de artificio do ano-novo tinham começado a silvar e espocar. A ponte da Bornholmer Strasse estava a cerca de 150 metros de distância. Entre a ponte e o Ocidente havia uma cerca de tela de arame, uma faixa de patrulhamento, uma cerca de arame farpado, uma rua asfaltada de vinte metros de largura, utilizada para o transporte de pessoal, e um caminho estreito. Depois, as guaritas das sentinelas orientais, apartadas uma da outra por cerca de cem metros, e, atrás delas, mais arame farpado. Miriam pega um pedaço de papel e desenha nele uma confusão de linhas, para que também eu possa ver e entender. “Para além disso tudo, eu podia ver o muro que tinha visto de dentro do trem, o muro que corre ao longo da ferrovia. Supus que ali, atrás daquele muro, era o Ocidente, e estava certa. Podia ter me enganado, mas estava certa.” Se possuía algum futuro ele estava lá do outro lado, e ela precisava alcançá-lo. Sentada em minha cadeira, ponho-me a explorar o significado da palavra “abobalhada”, que vou girando em minha mente. Rio com Miriam quando ela ri de si própria e da ousadia dos dezesseis anos. Aos dezesseis, somos invulneráveis. Rio com ela da história de remexer no galpão de ferramentas dos outros em busca de uma escada, e rio mais ainda por ela ter encontrado o que procurava. Rio da improbabilidade de algo assim acontecer, de alguém que é pouco mais do que uma criança ir xeretar no jardim de Beatrix Potter junto do muro, de olho no sr. McGregor e em seu bacamarte, ao mesmo tempo que procura uma escada de mão para escalar uma das fronteiras mais fortificadas da Terra. Nós duas gostamos da menina que ela foi, e eu gosto da mulher que ela se tornou. De repente, ela diz: “Ainda tenho as cicatrizes nas mãos, de subir pelo arame farpado, mas agora já não dá para ver tão bem”. Miriam exibe as palmas das mãos. As partes mais macias apresentam um emaranhado de marcas brancas, bem definidas, cada uma delas com cerca de um centímetro. A primeira cerca era de tela de arame, com um rolo de arame farpado em cima. “O estranho é que, bem, sabe aquela espécie de tubo de arame farpado que eles punham em cima da cerca? Minha calça estava toda rasgada e enganchou ali, ficou presa naquele rolo de arame! E eu fiquei pendurada! Não posso acreditar que ninguém tenha me visto.” Uma marionete, pendurada em exposição. O fato é que ela conseguiu se soltar, porque, a seguir, pôs-se de quatro e começou a travessia, avançando pela rua larga e pela faixa que vinha logo depois. A área toda estava tão iluminada que parecia dia. <£Eu interrogatórios”, ela conta, sorrindo, “pelo menos era alguma coisa para fazer. Mas era aí...” ela se detém: “Era aí que a desgraça começava para valer”. Em Leipzig, a Stasi pegou pesado. Durante a guerra da Coreia, na década de 1950, circularam mitos acerca de métodos obscenos de tortura praticados contra prisioneiros de guerra norte-americanos. Depois de capturados, os homens eram levados para um campo e reapareciam nem bem uma semana depois, repetindo absortos para as câmeras que tinham se convertido ao comunismo. Terminada a guerra, ficou-se sabendo que, ao contrário do que diziam os boatos, o segredo militar dos coreanos não era nem tradicional nem de alta tecnologia: estava na privação do sono. Um homem faminto ainda é capaz de vociferar, mas um zumbi é extraordinariamente dócil. Os interrogatórios a que Miriam Weber, de dezesseis anos, foi submetida tinham lugar toda noite (foram dez noites seguidas) e duravam seis horas: das 22 às quatro da manhã. As luzes na cela se apagavam às oito da noite, e ela dormia por duas horas antes de ser levada para a sala do interrogatório. Depois, era conduzida de volta para a cela duas horas antes de as luzes se acenderem, às seis da manhã. Não deixavam que ela dormisse durante o dia. Um guarda espiava pela vigia e esmurrava a porta, caso ela cochilasse. “Às vezes, eu olhava para aquele olho que me espiava da vigia, enquanto esmurrava a porta, e pensava comigo: £Por que você não vai à merda, só para variar?’, e continuava cochilando. Aí, ele entrava, me sacudia e me tirava o colchão, para que eu não tivesse nem onde me sentar. Faziam mesmo de tudo para que eu não dormisse. É impossível explicar como isso arrebenta com a gente.” Posteriormente, fui dar uma pesquisada no assunto. A privação do sono pode produzir sintomas semelhantes aos da inanição, sobretudo em crianças. As vítimas ficam desorientadas e sentem muito frio. Perdem a noção do tempo, presas a um presente interminável. Ficar sem dormir também causa uma série de disfunções neurológicas, que vão se tornando mais extremas à medida que a privação avança. Por fim, as horas de vigília assumem a lógica de um sonho, produzindo associações entre coisas estranhas entre si e fazendo com que a vítima sinta muita, muita raiva do mundo que não a deixa repousar. Para a Stasi, era incompreensível que uma garota de dezesseis anos, sem nenhuma ferramenta, nenhum treino e nenhuma ajuda pudesse atravessar de gatinhas, com as mãos e os joelhos, a “Medida de Proteção Antifascista”. Revelando involuntariamente sua admiração, o primeiro guarda que a conduziu à sala dó interrogatório quis saber a que clube desportivo Miriam pertencia. A nenhum. Mas o propósito principal das perguntas, noite após noite, era obter o nome da organização clandestina de fuga que a havia ajudado. Queriam os nomes dos membros e descrições físicas. De quem havia sido o plano de fazer aquilo na véspera do ano-novo, em noite de tanto barulho? Como ela sabia dos lotes de jardinzinhos da Bornholmer Strasse, se nunca tinha estado em Berlim? Quem a havia ensinado a escalar arame farpado? E, com a máxima insistência, queriam saber também quem a ensinara a passar pelos cães. “Não podiam compreender como eu tinha conseguido passar por aquele cachorro”, ela diz. “Pobrezinho.” A Stasi não estava acima do despeito. Disseram a Miriam que mesmo que ela tivesse atravessado para o outro lado seria mandada de volta, porque era menor de idade. Ela protestou. “Os ocidentais não teriam me mandado de volta para cá de jeito nenhum”, replicou aos interrogadores, “porque sou uma refugiada da perseguição política de gente como vocês, que se assustou toda com meus panfletos.” Miriam ergue o queixo, como uma menina insolente que ainda acha que uma rede de proteção poderá ampará-la. Havia um interrogador principal, o major Fleischer, mas às vezes eram dois. Ambos tinham bigode, cabelos curtinhos e eriçados e trajavam uniformes cinza impecáveis. O mais jovem era tão rijo que parecia ter uma assadeira retangular enfiada por dentro do casaco. O major Fleischer tinha pelos nas orelhas. De vez em quando fingia ser um amigo, “como um tio bondoso”. Outras vezes, era ameaçador. “Existem outras formas de fazermos isso, você sabe.” As respostas dela permaneciam as mesmas. “Peguei um trem em Leipzig, comprei um mapa na estação, usei uma escada, me arrastei de barriga no chão e corri.” Dez vezes vinte e quatro horas em que mal se dormiu. Dez vezes vinte e quatro horas em que nem bem acordado se está. Dez dias é tempo suficiente para morrer, nascer, se apaixonar e enlouquecer. Dez dias é muito tempo. Pergunta: o que o espírito humano faz, depois de dez dias sem dormir, dez dias de isolamento amenizado apenas por sessões noturnas de ameaças? Resposta: ele sonha e inventa uma solução. Na décima primeira noite, Miriam deu aos interrogadores o que eles queriam. “Eu pensei: ‘Vocês querem uma organização clandestina de fuga? Pois então vou dar uma a vocês’.” Fleischer vencera. “Pronto”, ele disse, “não foi tão difícil assim, foi? Por que não contou logo e se poupou de toda essa encrenca?” Deixaram-na dormir duas semanas e deram a ela um livro por semana. Ela os leu em um único dia; depois, começou a memorizar cada página, andando de um lado para outro da cela com o livro junto do peito. “Agora, quando me lembro daquilo, é engraçado”, Miriam diz. “Mas naquele momento era frustração pura e simples. Bolei uma história para eles na qual nem eu teria acreditado, mesmo àquela época. Era totalmente absurda. Mas estavam tão doidos atrás de uma organização promotora de fugas para o Ocidente que engoliram tudinho. Eu só queria dormir.” O Auerbachs Keller, a cave de Auerbach, é uma célebre instituição em Leipzig. Trata-se de um bar e restaurante com mesas de carvalho dispostas em compridas alcovas sob um teto abobadado, como uma adega. Paredes e tetos estão recobertos de cenas escuras do Fausto de Goethe: o encontro de Fausto com Mefistófeles, Fausto traindo Margarida, Fausto em desespero. Goethe costumava beber ali. É um bom lugar para se encontrar o demônio. Eis a história que Miriam contou à Stasi. Tudo começou quando ela estava indo encontrar um amigo no Auerbachs Keller, para comer uns enroladinhos de gordura de ganso. O amigo não apareceu, e ela resolveu se sentar sozinha a uma das mesas compridas e começar a comer. O lugar estava cheio, era quase Natal. Quatro homens surgiram e perguntaram se podiam dividir a mesa com ela. Sentaram-se para comer. Miriam ficou escutando a conversa deles. Um dos homens tinha um sotaque berlinense, que transforma gut em “yut” e ich em “ick”. A essa altura, Miriam estava se divertindo. Ela olha para mim, e seu rosto brilha. Está se imaginando de volta aos dezesseis anos, e isso a deixa feliz. “Aí eu perguntei ao homem, ao que parecia ser o líder: ‘Você é de Berlim?’. E ele respondeu que era.‘E como estão as coisas por lá?’, continuei”, os olhos de Miriam se abrem bem, e ela parece de novo o moleque de história em quadrinhos. “Bem, obrigado.” “Onde você mora em Berlim?” “Pankow.” si próprio. Se perguntassem a ela no tribunal por que ela havia inventado aquela história, ela diria apenas: “Porque não me deixavam dormir”. Ao que parece, mesmo na RDA, privação de sono significava tortura, e tortura — pelo menos de menores — não era política oficial. No fim, o juiz sentenciou-a a um ano e meio em Stauberg, a prisão feminina em Hoheneck. Ao término do julgamento de três dias, ele disse a ela: “Acusada juvenil número 725, a senhorita tem consciência de que suas atividades poderiam ter dado início à Terceira Guerra Mundial?” Estavam todos loucos, e, no entanto, era a ela que estavam trancafiando. 4. Charlie “Quando saí da prisão, no fundo, eu já não era mais um ser humano”, diz Miriam. No primeiro dia em Hoheneck Miriam foi solicitada a se despir, deixar a roupa que vestia e a carregar consigo o uniforme listrado de azul e amarelo. Ainda nua, foi conduzida por um corredor para uma sala contendo uma banheira azulejada e funda. Duas guardas femininas esperavam por ela. Era seu batismo de boas-vindas. Foi a única vez em que pensou que iria morrer. Encheram a banheira de água gelada. Uma das guardas segurou Miriam pelos pés; a outra, pelos cabelos. Mergulharam sua cabeça na água por um bom tempo, puxando-a depois pelos cabelos e gritando com ela. Em seguida, novo mergulho. Ela não podia fazer nada, não podia respirar. Puxaram-na de novo: “Seu monte de merda! Sua metida! Traidora imbecil! Sua putinha!” Outro mergulho. Quando tornou a emergir, respirou apenas insultos. Achou que iriam matá- la. Miriam está triste. Sua voz soa tensa, não consigo olhar para ela. Talvez a violência lhe tenha arrancado alguma coisa que ela nunca mais recuperou. Ela conta que as próprias prisioneiras eram brutais umas com as outras. Que aquelas condenadas por crimes comuns recebiam privilégios por abusar das prisioneiras políticas. E que por dezoito meses foi chamada pelo número, nunca pelo nome. Diz ainda que havia um verdadeiro sistema de entesouramento e permuta de absorventes — toda uma economia, na verdade. Não consigo me manter concentrada no horror que ela descreve; desobediente, minha mente vaga por seriados de tv. Lembro-me do velho seriado australiano Prisoner, que se passa numa prisão feminina: o retinir das grades de metal antes de cada intervalo comercial, e a lésbica simpática na lavanderia, no comando da passadeira a vapor. Mas Miriam logo se recompõe. Conta que em Hoheneck as prisioneiras se arrebentavam de trabalhar, confeccionando lençóis. Seu cotidiano começava às quatro e meia da madrugada, ao som do alarme. Quando a chave da carcereira tinia na grade, todas as prisioneiras enfileiravam-se em posição de sentido junto da parede. Era a chamada por número. Elas eram contadas também. Seguiam então para o café da manhã e, depois, para o trabalho, onde eram contadas de novo. “Para ter certeza de que nenhuma tinha fugido no caminho da cela para o refeitório.” Se Miriam precisasse ir ao banheiro, punha-se em posição de sentido e chamava: “Prisioneira juvenil número 725 pede permissão para ir ao toalete”. Quando voltava, retomava a posição de sentido e dizia: “Prisioneira juvenil número 725 pede permissão para retomar sua posição”. Antes do almoço, nova contagem. Depois, faziam exercício, marchando ao redor de um pátio, e eram recontadas. Eram contadas e recontadas desde o momento em que acordavam até irem dormir, e Miriam diz, rindo: “Sabe de uma coisa? Os números sempre batiam. Todas estavam sempre lá”. “A prisão me deu uns tiques estranhos.” Em todos os apartamentos nos quais morou desde então, Miriam sempre arrancou todas as portas das dobradiças. Não é que espaços pequenos provoquem nela ataques de ansiedade, ela diz, mas começa a suar e a ficar gelada. “Este apartamento aqui é perfeito para mim”, afirma, olhando o espaço aberto em torno de si. “E quanto aos elevadores?”, pergunto, lembrando-me do suador ao subir as escadas. “Pois é”, ela responde. “Também não gosto muito deles.” Um dia, anos depois, o marido dela, Charlie, estava à toa em casa, tocando violão. Miriam o provocou com algum comentário, ele se levantou de repente e ergueu o braço para livrar-se da alça do instrumento. Provavelmente, pretendia apenas protestar: “Isto é uma afronta!” Ou talvez fosse fazer cócegas nela ou agarrá-la. Mas Miriam sumiu. Num instante, já estava lá embaixo, no pátio do edifício. Ela não se lembra de ter descido as escadas — havia sido uma reação automática de fuga. Charlie desceu, com o intuito de acalmá-la e convencê-la a subir de novo. Ficou perturbado. Nos primeiros anos que passaram juntos, ela surpreendia os dois com seus tiques. De súbito, sinto-me muito cansada, como se meus ossos tivessem amolecido. Ergo os olhos e vejo que já escureceu lá fora. Quero que alguém faça um carinho nela. Quero que alguém faça um carinho em mim. Queria que a benevolente diretora da prisão na tv tivesse existido, queria que a lésbica com seu coração de ouro tivesse protegido a menininha, e penso no que ainda está por vir. Quando Miriam foi solta, em 1970, estava com dezessete anos e meio. condicional. Em setembro de 1980, o primeiro-ministro da Alemanha Ocidental, Helmut Schmidt, tinha visita marcada à RDA. Àquela época, o Solidariedade — o movimento polonês — era fonte de tensão para os governos do bloco comunista, porque era foco da esperança de boa parte da população. Assim sendo, a visita de Schmidt foi cancelada, porque o governo da Alemanha Oriental temia que ela conduzisse a manifestações por democracia diante das câmeras ocidentais de televisão. Não obstante, as autoridades orientais tinham se preparado para a visita. Haviam arrebanhado e trancafiado todos aqueles que podiam protestar ou, de algum modo, causar embaraço ao governo. Por essa época, pesava sobre Charlie a suspeita formal de ter cometido um crime: “tentativa de fuga da República”. Ele e Miriam haviam requerido permissão para deixar a RDA. À s vezes tais requerimentos eram atendidos, porque, ao contrário dos demais países do Leste Europeu, a RDA podia livrar-se dos descontentes jogando-os na Alemanha Ocidental, que lhes concedia cidadania automática. A Stasi investigava com extremo rigor os requerentes. As pessoas que solicitavam permissão para ir embora eram obviamente suspeitas de querer deixar o país, o que — a não ser mediante esse processo tortuoso e arbitrário — era crime. O “requerimento de emigração” era legal, mas as autoridades podiam, por um capricho, optar por entendê-lo como uma declaração de desafeto ao país. Nesse caso, o documento tornava-se um Hetzschrift (panfleto difamatório) ou um Schmäschrift (libelo) e, portanto, um crime. Em 26 de agosto de 1980, Charlie Weber foi submetido à prisão preventiva. De início, Miriam só tinha contato com ele por carta. Visitas não eram permitidas e ele não podia telefonar. Por fim, uma visita de meia hora foi marcada para o dia 14 de outubro, uma terça-feira. Na véspera, a última carta que ela havia escrito voltara, com uma anotação escrita a mão: “Permissão para correspondência encerrada”. Além disso, havia ainda um cartão da Stasi na caixa do correio: “Retirada autorização para visita em 14/10/1980”. Na quarta-feira, 15 de outubro, um policial comum, em seu uniforme verde, bateu na porta do apartamento. “É aqui que mora Herr Weber?” “Sim.” “E a senhora é a senhora Weber?” “Sou.” “Bem, a senhora precisa se apresentar no gabinete do promotor público para apanhar os pertences do seu marido, porque ele morreu.” O policial já tinha ido embora antes mesmo que Miriam encontrasse o que dizer. A República Democrática da Alemanha defendia da boca para fora as instituições democráticas. Havia promotores públicos, cujo trabalho era fazer justiça; advogados, cujo trabalho era defender seus clientes; e juizes, cujo trabalho era julgar. Ao menos no papel, existiam outros partidos políticos além do Partido Socialista Unitário, no governo. Mas a verdade é que só existia mesmo o Partido e seu instrumento, a Stasi. Com frequência os juizes recebiam ordens da Stasi, a qual, por sua vez, apenas repassava o que o Partido determinava — e isso incluía até mesmo o resultado de um julgamento e a extensão da sentença. O vínculo entre o Partido, a Stasi e a lei estabelecia-se já a partir da base: a Stasi, em consulta aos diretores das escolas, recrutava estudantes obedientes para o estudo do direito, ou seja, aqueles que revelassem atitude apropriada de lealdade. Uma vez vi uma lista de teses de doutorado da Escola de Direito da Stasi, em Potsdam, e ela incluía contribuições memoráveis à soma do conhecimento humano, tais como “Sobre as prováveis causas da patologia psicológica do desejo de cometer infrações fronteiriças”. Não havia como uma pessoa se defender do Estado, porque todos os advogados de defesa e todos os juizes eram parte dele. Miriam foi falar com o major Trost, o promotor público responsável por investigar a morte de Charlie. Trost disse a ela que Charlie havia se enforcado. Disse também que sentia muito, muitíssimo, e que, na verdade, estavam todos muito chocados. E informou que tinha sido chamado à cela de imediato. Miriam perguntou o que Charlie tinha usado para se enforcar. Onde se pendurara? “Conheço aquelas celas”, ela me diz, “não existem canos expostos. As paredes são lisas. Não há nem mesmo barras nas janelas, que são bem pequenas.” Trost respondeu que não sabia. “Mas chamaram o senhor para ir até a cela. Como pode não saber? O senhor deve ter visto onde o corpo estava pendurado.” “Não.” Miriam balança a cabeça, imitando a pouca vontade dele de tocar no assunto. “Bom, se enforcou com o quê, então?” Ela se recusava a desistir. Naquele dia, Trost disse a Miriam que Charlie tinha se enforcado com o elástico da cintura da calça. Ela não acreditou. Voltou diversas vezes ao gabinete do promotor e seguiu fazendo a mesma pergunta. A gentileza que demonstravam para com ela era surpreendente. O promotor substituto, vinculado a Trost, disse-lhe que Charlie se enforcara com sua própria roupa de baixo. Em outra ocasião ainda, Trost disse a ela que ele havia usado um pedaço rasgado de lençol. Miriam rebateu: “Afinal, foi com a roupa de baixo ou com o lençol? Com qual dos dois? O mínimo que vocês podem fazer é contar a mesma história”. O major Trost perdeu a calma. Disse que se ela não deixasse o gabinete, ele mandaria prendê-la. Miriam descobriu que o corpo de Charlie estava sendo retido no necrotério para exames criminalísticos. Foi até lá, mas ninguém a deixou entrar. Sentia que estava sendo seguida. Foi, então, até Herr X, o advogado de Charlie, representante em Leipzig do dr. Wolgang Vogel, de Berlim. Vogel era o advogado do governo responsável pelas trocas de pessoas entre as Alemanhas Oriental e Ocidental. Administrava uma lista de nomes e negociava com o governo alemão ocidental os preços a partir dos quais a liberdade daquelas pessoas poderia ser comprada — a que preços elas poderiam ser freigekauft, como se dizia. A tabela de preços variava, aparentemente de acordo com o grau de educação da pessoa a ser comprada. Um comerciante ou escriturário era mais barato do que alguém com um doutorado. A exceção eram os membros do clero: um pastor não custava coisa alguma, porque os pastores tinham com frequência uma postura independente, antirregime, e valia a pena livrar-se deles. Para a Alemanha Oriental, a troca de seres humanos era fonte de dinheiro vivo e, ao mesmo tempo, um meio de se livrar dos que se recusavam a se conformar. Um modo de entrar para a lista de Vogel — e, portanto, de ter uma chance de sair da RDA — era tornar-se cliente de um de seus representantes regionais. Havia sido por essa razão que Charlie Weber contratara X. À época em que Miriam foi visitá-lo, o caso Weber (agora, a investigação de uma morte em prisão preventiva) já estava nas mãos de Herr X fazia dois meses. Miriam sentou-se no escritório dele e quis saber o que ele tinha descoberto. Quando o advogado abriu o arquivo de Charlie sobre a mesa, a pasta “Havia muita gente no funeral”, ela conta, “mas acho que havia ainda mais gente da própria Stasi por ali.” Diante dos portões do cemitério estava estacionada uma perua com antenas de longo alcance, daquelas utilizadas para equipamentos de gravação. Nos arbustos, viam-se homens com teleobjetivas. Para onde fosse que se olhasse, agentes circulavam com walkie- talkies. Nos escritórios do cemitério, algum tipo de reforma estava em curso: aos pares, agentes da Stasi distribuíam-se pelos andaimes. “Cada um de nós, sem exceção, foi fotografado. E era possível antever o caminho que o cortejo tomaria, desde a capela até a cova: homens da Stasi marcavam todo o trajeto, postados a intervalos regulares, sem fazer nada.” Quando o cortejo alcançou o túmulo, dois deles já estavam sentados num cavalete, prontos a observar tudo que se passava. “Assim que a última pessoa jogou suas flores”, diz Miriam, “o pessoal do cemitério começou a despejar a terra, tudo muito rápido. Rápido demais, simplesmente.” Miriam atravessa a sala descalça e vai até uma mesa, onde apanha alguns papéis de uma pasta de plástico. “Fiz uma cópia disto para você”, diz, já de volta. É parte do arquivo da Stasi sobre Charlie Weber: um relatório escrito a mão e assinado por um tal major Maler. Nele estão detalhados todos os planos da Stasi de Leipzig para a organização e a vigilância do funeral de Weber: o telefone de Miriam deveria ser grampeado; ela deveria ser chamada na véspera, para “esclarecimento das circunstâncias”; aparatos de gravação de som deveriam ser empregados no local; deveria se proceder a uma “documentação fotográfica” do evento; cidadãos da República Federal da Alemanha que comparecessem ao funeral deveriam ser supervisionados, a fim de garantir que deixariam a RDA antes do toque de recolher, ao final do dia. “Lamentavelmente, o nome do pastor que oficiará a cerimônia não pôde ser confirmado por este agente. Na ocorrência de comportamento negativo ou hostil durante o funeral, será dada aos homens a ordem de usar a força para reprimi-lo, com base no fato de que atitudes de tal natureza atentam contra a dignidade das dependências do cemitério.” O major Maler acrescentava ainda que o chefe do Südfriedhof, um certo Herr Mohre, havia garantido à Stasi total liberdade de movimentos no tocante à “operação Weber”, e que se algum agente da Stasi fosse questionado pelos trabalhadores no cemitério, o funcionário em questão deveria ser encaminhado ao colega Mohre. Mohre sabe que Maler é agente da Stasi, conhece seu verdadeiro nome, e não apenas sua identidade clandestina. Tudo isso Miriam poderia ter adivinhado com base no que viu naquele dia. Ela aponta para a linha seguinte e a lê em voz alta: “Ainda não há informação definitiva acerca da data da cremação. Essa data poderá ser fixada pelo colega Mohre em ou após 31 de outubro de 1980”. Ela me passa a cópia do arquivo. “Em 30 de outubro enterramos um caixão. Enterramos um caixão, e a data da cremação está sendo marcada para o dia seguinte. Ou não tinha ninguém dentro daquela coisa ou era outra pessoa que estava ali.” Miriam foi até o Ministério do Interior e acrescentou a solicitação de “transporte do caixão” em seu requerimento para deixar a RDA. Queria ir embora, e queria enterrar Charlie na Alemanha Ocidental. Quase todo mês ela era chamada à Stasi para uma conversa. Assim foi durante anos. “Que história é essa de transportar o caixão”, perguntaram-lhe. “O que você quer com o caixão?” “O que o senhor acha que eu quero? Levar o caixão para um passeio dominical? Quero fazer com ele o que todo mundo faz com caixões: quero enterrá-lo.” Em 1985, disseram a ela: “A senhora provavelmente quer mandar examinar o cadáver, não é isso?” “E se eu quiser? O que posso descobrir, além do fato de que ele se enforcou, como os senhores dizem?” “A senhora sabe que já não vai haver nada no caixão. Não vai poder provar nada.” “Bom, e por que o senhor está tão preocupado?”, ela retrucou, tomando aquilo como uma confissão de culpa. Passado algum tempo, Miriam parou de obedecer aos cartões que apareciam em sua caixa de correio, convocando-a a esclarecer certas circunstâncias. A única coisa que se tornou cada vez mais clara era que, naquelas circunstâncias, eles tinham o poder. “Era besteira. Parei de pensar que algum dia eu conseguiria ir embora. Estavam brincando comigo, como se eu fosse um rato.” Numa manhã de maio de 1989, às oito horas, o telefone de Miriam tocou. Era a Stasi. Não podiam dizer por quê, mas solicitavam que ela se apresentasse sem demora, naquele mesmo dia, e que levasse seus documentos. Miriam pensou consigo que, quando não deixavam cartões na sua caixa de correio convocando-a a esclarecer circunstâncias, ligavam para acordá- la. Ela tinha ido dormir tarde. Dormiu mais um pouco e, então, levantou-se, tomou um banho e fez uma primeira xícara de chá. Ao meio-dia, a campainha da porta tocou. Era um agente da Stasi ligado ao Ministério do Interior. “Por que a senhora ainda está aqui?”, ele perguntou. “É minha casa” “A senhora deve se apresentar imediatamente ao Ministério, com seus documentos de identificação.” “Ainda tem tempo. Temos um longo dia pela frente, meu amigo.” Ele montou guarda defronte à porta. Miriam foi até os escritórios da Stasi. Um funcionário recolheu os documentos de identidade, disse a ela que fosse a um fotógrafo e que, depois disso, teria um compromisso com um tabelião. Cumpridas aquelas etapas, ela deveria voltar para apanhar sua autorização para viajar. “A senhora pegará um trem esta noite”, ele disse. “Foi aí que entendi”, Miriam conta. “Estava chocada, e disse a eles: 'Faz onze anos que entramos com o requerimento para emigrar, e agora não posso nem me despedir dos amigos?’” “Senhora Weber, a autorização para viajar expedida é válida até a meia- noite de hoje. Se, depois disso, a senhora for descoberta ainda em território da RDA, estará no país ilegalmente e será presa. Gostaria de lembrar à senhora”, ele completou, erguendo os documentos que tinha na mão, “que a senhora não mais possui documentos de identificação neste país.” O trem daquela noite estava lotado de pessoas expulsas da RDA. Era como se qualquer um que pudesse pegar o vírus da glasnost precisasse ser levado para além do muro. Miriam carregava uma sacola com duas mudas de roupa e estava deixando toda sua vida para trás. Os amigos iriam desmontar o apartamento para ela. Até onde sabia, nunca mais ia voltar. Ninguém tinha a menor ideia de que o muro cairia em novembro. “No fundo, a deportação chegou com doze anos de atraso”, diz ela, “e seis meses adiantada.” • • • “Ah, eu pensei que a senhora tinha alguma coisa para me contar.” Ele queria saber quanto ela sabia? Se seria desmascarado ou chantageado? “É impressionante”, ela diz, “o que uma revolução é capaz de fazer com a memória das pessoas.” Uma nuvem de fumaça recobre a cabeça de Miriam e o espaldar alto da cadeira. “Mas estar aqui me oferece certas compensações. Este apartamento, por exemplo”, Miriam diz, e tem razão. O som de uma sirene passa e desaparece. Miriam é uma donzela em segurança na sua torre. “Fico pensando naqueles homens da Stasi. Eles nunca na vida teriam imaginado que deixariam de existir e que seus escritórios se transformariam num museu. Um museu!” Ela balança a cabeça e apaga a guimba do cigarro. “Tem uma coisa que adoro fazer. Adoro pegar o carro, ir até a Runden Ecke e estacionar bem defronte ao edifício. Fico sentada dentro do carro e sinto uma sensação de... triunfo!” Ela faz um gesto que principia como uma onda e termina em guilhotina. “Pois bem, sua corja: vocês já eram.” 5. O palácio de linóleo Já passa da meia-noite quando volto a Berlim. Tomei um bonde, um trem regional, o trem local e, por fim, atravessei a pé o parque, onde as coisas são apenas formas, sombra sobre sombra. A história de Miriam me tirou o fôlego. Minha cabeça, não mais concentrada em ouvir, começou a pulsar de novo, tão logo deixei o apartamento dela. Não gosto de ser obrigada a reconhecer que meu coração não passa de uma bombinha, fazendo o sangue circular. Estou mais do que cansada. Quando chego em casa, estou em câmara lenta, cruzando uma linha de chegada. Meu prédio é revestido de cimento cinza borrifado, mas a entrada ainda ostenta portas grandiosas em arco. No fim do saguão, uma porta dupla conduz ao pátio, com seu castanheiro e o calçamento de pedras entremeadas de ervas daninhas. Moro no primeiro andar, depois das caixas de correio, subindo a escada à direita. Não olho a correspondência; em vez disso, acendo a luz do saguão e vou logo subindo. As paredes da caixa de escada estão cobertas de grafites coloridos, mas indecifráveis, podendo significar expressões de alegria ou de dor, dependendo de como se olha para eles. Não olho. Apresso-me a enfiar a chave na fechadura, antes que a lâmpada do corredor se apague automaticamente. Estou em casa, livre e a salvo. Lá dentro, as luzes estão acesas. Uma voz guincha: “Não se assuste! Não se assuste!” Gelo de medo. “Me desculpe, puxa, me desculpe”, diz a voz. A bomba no meu peito bomba forte, sem parar. Deixo cair a bagagem. Uma mulher em cima de uma escada de armar segura uma grande chave de fenda. Ê Julia, que me aluga o apartamento. “Eu sinto muito”, ela diz, voltando-se para mim e baixando a chave de fenda. “Tudo bem”, respondo devagar e ofegante. “Sei bem como é”, ela continua. “Às vezes, a gente só quer ir para casa, ficar sozinha.” Imagino que ela esteja dizendo isso porque moro sozinha. Não digo nada. “Eu só estou desparafusando isto aqui”, explica. “Vou levar estas estantes de livros, espero que você não se importe.” “Não me importo, não.” “Preciso delas lá em casa, porque não tenho nenhuma.” Moro no apartamento há seis meses e ainda não me acostumei com aquilo. Penso comigo que, uma hora, essa história precisa acabar, e espero que acabe enquanto ainda me restam umas poucas peças de mobília. Julia trabalhava na imobiliária que visitei quando procurava apartamento. Ofereceu-me sublocar o apartamento onde ela estava morando, até o final do contrato. Ela o dividia com outras pessoas, mas todos estavam se mudando. O imóvel era grande demais para mim, mas ficava na velha Berlim Oriental, onde eu queria estar, e eu podia pagá-lo. E estava mobiliado, ainda que os móveis fossem — Julia me avisou — “escassos”. Era bem mais o caso agora. Sei que Julia está preocupada com o tempo que está levando para se mudar de vez, com o desnudamento constante e progressivo da velha casa. Já a consolei outras vezes, dizendo que tudo de que eu precisava era de uma cama, de uma mesa, de uma cadeira e de uma cafeteira. Estava dizendo a verdade, mas, dois dias atrás, ao encontrar uma pilha de papéis amassados, lenços de papel usados e embalagens de fitas cassete embaixo da mesa, onde eu os tinha jogado porque costumava haver ali um cesto de lixo, pensei comigo que precisava falar com ela. O problema é que, neste momento, estou muito cansada. “Onde você esteve?”, ela pergunta. “Leipzig.” “Ah”, ela diz, “onde tudo começou.” “Julia, me desculpe, mas estou exausta. Preciso ir para a cama. Que tal a gente tomar um café uma hora dessas? Por que você não dá um pulo até aqui?” Durante o dia, penso comigo. Ela diz que virá, mas não combinamos hora, porque Julia considera compromissos com hora marcada um cerceamento intolerável de sua liberdade. O que pode explicar como lhe ocorreu tratar da reforma da nova casa àquela hora da noite. Caio na cama, e ela prossegue tão quieta com sua desmontagem noturna que nem ouço quando vai embora, equilibrando tábuas, suportes em L e parafusos no cesto da bicicleta, que ela deve ter carregado escada abaixo. De manhã, a primeira coisa que noto é que posso ver minha respiração. que pensavam do regime ou se, ao contrário, para protegê-las do Palast, para o bem da saúde pública. A estrutura consiste num comprido retângulo de metal, composto de retângulos menores de vidro espelhado marrom. Quando se olha para o prédio, não se vê o que há lá dentro. Em vez disso, é o mundo exterior, com tudo que há nele, que se reflete nos vidros, curvado e marrom. Naquele edifício, sonhos foram transformados em palavras, decisões foram tomadas, anúncios receberam aplausos e costas, tapinhas. Ali dentro, o mundo podia ser outro, bem diferente, o tempo podia curvar-se e pessoas podiam desaparecer. Como acontece com tanta coisa por aqui, ninguém consegue decidir-se seja pela transformação do Palast der Republik num monumento de advertência a lembrar o passado ou por sumir com ele, pura e simplesmente, e caminhar rumo ao futuro livre de todo e qualquer fardo, a não ser daquele representado pelo perigo de fazer tudo de novo. Num canteiro de obras nas proximidades, desencravaram o bunker de Hitler. Tampouco nesse caso uma decisão pôde ser tomada: um monumento poderia transformar-se num santuário para os neonazistas, mas apagá-lo da face da Terra poderia sinalizar esquecimento ou negação do passado. No fim, tornaram a enterrar o bunker. Mais cinquenta anos, disse o prefeito, e talvez as pessoas sejam capazes de decidir o que fazer. Lembrar ou esquecer — o que é mais saudável? Demolir ou cercar e apartar? Escavar ou deixar debaixo da terra? Entre o Palast der Republik e meu apartamento estende-se o bairro que é chamado de Mitte, o centro velho de Berlim, com seus edifícios cinza, o céu branco e as árvores nuas. As ruas estão sendo renomeadas nas redondezas — de Marx-Engels-Platz para Schlossplatz, de Leninallee para Landsberger Allee, de Wilhelm- Pieck-Strasse para Torstrasse —, num ato maciço de redecoração ideológica. Mas a maior parte dos prédios ainda não foi reformada. Em grande parte, os edifícios já perderam o reboco e tornam a exibir trechos de tijolos por baixo, como rostos remendados depois de uma cirurgia plástica. Estão agora como eram antes de o muro cair, a não ser pelas antenas parabólicas que brotam das janelas, um súbito fungo branco sintonizado com o espaço sideral. Os bondes passaram a ser os ocidentais: foram dos primeiros a cruzar para o lado de cá depois da queda do muro. São um lampejo de amarelo vivo suspenso por cordas, movendo-se através da paisagem cinza. Um bonde para bem diante do meu apartamento. Obedece a um semáforo logo abaixo da minha janela, embora não haja semáforo correspondente do outro lado da rua. Noto que o motorneiro abriu seu tabloide — que grita manchetes em vermelho e preto — sobre o painel de controle. Atrás dele, as pessoas sentadas têm um aspecto cansado, como se o dia tivesse amanhecido cedo demais para elas. Não entendo por que aquelas luzes fazem o bonde parar sob a minha janela. O ponto em si fica meio quarteirão adiante, na esquina. Aqui embaixo, a porta nunca se abre para o embarque ou desembarque dos passageiros, que ficam apenas sentados ali, detidos e concordes. É estranha essa visão do bonde com uma fila de carros atrás de si, parados não por causa dos pedestres ou dos passageiros, mas por motivo nenhum, enquanto, do outro lado, os veículos sobem desimpedidos a colina rumo a Prenzlauer Berg. O farol muda, e o motorneiro, ainda lendo o jornal, aciona uma alavanca, pondo o bonde em movimento. Saio para comprar jornal e pão e atravesso o parque. No verão, ele é adornado por grupos variegados de bêbados e punks. No inverno, para se aquecer, os punks ocupam as estações do metrô, ao passo que os bêbados se instalam nos abrigos dos pontos de bonde. Hoje, o ponto da esquina foi ocupado por um velho com uma verdadeira juba de cachos entrelaçados, enorme barba desgrenhada e um manto preto esvoaçante. Os pertences, em sacos plásticos ao seu redor, servem-lhe também de travesseiros. É uma criatura atemporal e grandiosa, como alguém surgido de outro século — um Rei do Inverno. Quando os passageiros desembarcam, ele os saúda como se fossem suplicantes em visitação a seu trono: cumprimenta-os com um leve movimento da cabeça e acena conforme tomam seu caminho. Atravesso em direção à padaria, passando pelo cartaz que diz: “Anunciar torna você mais conhecido”. Em certa medida, minha padaria mantém a tradição. O dono faz pão integral, pão de centeio e pães caseiros, empilhados na parede dos fundos feito tijolos alongados. Agora, porém, livre de constrangimentos impostos pelo Estado à sua engenhosidade, ele parece estar conduzindo seu próprio experimento no ramo de vendas. Do lado esquerdo, sob o vidro do balcão, ficam os confeitos: donuts gelados, cheesecakes e tortas crocantes de uvas-do-monte. Na outra lateral, dispostos sob o vidro com semelhante capricho, vê-se toda uma variedade de livros de bolso com títulos em relevo. Sou atendida por uma mulher com uma permanente malfeita. Ela veste uma camiseta que exibe o rosto de um leão — lantejoulas piscam em lugar dos olhos, bem onde os mamilos dela devem estar. Compro um pão de centeio e não pergunto nada sobre os livros. Quando chego de volta a meu prédio, vejo que o Rei do Inverno veio se postar no local onde o bonde faz sua parada inútil. Ele espera, mas não há passageiros a receber. Em vez disso, conforme me aproximo, ele se volta para mim e faz uma mesura, longa e perigosamente baixa. Durante toda a semana seguinte, penso em Miriam e nos homens da Stasi. Tenho curiosidade de saber como há de ter sido frequentar o interior da Firma e, depois, assistir ao desaparecimento daquele mundo e do lugar que se tinha nele. Esboço um anúncio de jornal e o passo por fax para os classificados pessoais do jornal de Potsdam: Procuro: ex-oficiais e colaboradores informais da Stasi para entrevista. Publicação em inglês, anonimato e discrição garantidos. segredos das pessoas não sejam revelados (que o tio Frank traía a esposa, por exemplo, ou que determinado vizinho era um beberrão). Mas o cidadão tem o direito de saber os nomes verdadeiros dos oficiais da Stasi e dos informantes que o espionaram. Ao menos durante o tempo que permaneço ali, em pé, não vejo ninguém chorando ou esmurrando a parede. Sigo meu caminho rumo ao edifício principal como um rato num labirinto. Quero ter uma ideia do homem que comandava esse lugar, antes de me encontrar cara a cara com alguns de seus subordinados. Hoje, o nome Mielke transformou-se em sinônimo de Stasi. As vítimas sentem honra duvidosa ao encontrar a assinatura dele em seus arquivos, nos planos para que alguém seja observado “com todos os métodos disponíveis”, nas ordens de prisão ou sequestro, nas instruções aos juízes relativas à extensão de uma sentença de prisão ou mesmo nas ordens de “liquidação”. A honra é duvidosa porque se trata de moeda comum: foram inúmeras as ordens que ele assinou. Esse aparato de Mielke, dirigido em grande parte contra seus próprios compatriotas, era uma vez e meia maior do que todo o Exército regular da RDA. Depois da queda do muro, a mídia alemã chamou a Alemanha Oriental de “o mais perfeito sistema de vigilância de todos os tempos”. No fim, a Stasi tinha mais de 97 mil funcionários, mais do que o suficiente para vigiar um país de 17 milhões de habitantes. Mas ela dispunha também de mais de 173 mil informantes entre a população. No Terceiro Reich de Hitler, estima-se que havia um agente da Gestapo para cada 2 mil cidadãos; na União Soviética de Stálin, um agente da KGB para cada 5830 pessoas. Na RDA havia um oficial da Stasi ou um informante para cada 63 pessoas. Se incluirmos aí os informantes de meio período, algumas estimativas chegam a situar essa proporção na casa de um informante para cada 6,5 cidadãos. Onde quer que encontrasse oposição, Mielke enxergava inimigos, e quanto mais inimigos encontrava, mais gente e mais informantes contratava para sufocá-los. Ali, na Normannenstrasse, trabalhavam todo dia 15 mil burocratas, administrando as atividades da Stasi no exterior e supervisionando a vigilância doméstica por meio de catorze escritórios regionais espalhados pela RDA. As fotos de Mielke mostram um homem baixinho e sem pescoço, bochechudo e de olhos bem juntos. Tem o rosto e os lábios de um pugilista. Adorava caçar. Filmes o exibem inspecionando uma fila de carcaças de veado como se inspecionasse um desfile militar. Amava suas medalhas e as carregava espetadas no peito em fileiras de brilho gritante. Gostava de cantar também, sobretudo marchas instigantes e, claro, a Internacional. Dizem que os psicopatas, pessoas imperturbadas por suas consciências, dão generais e políticos de suprema eficiência, e talvez ele fosse um deles. Era, com certeza, o homem mais temido da Alemanha Oriental: temido pelos colegas, pelos membros do Partido, pelos trabalhadores e pela população em geral. “Não somos imunes à presença de vilões entre nós”, disse ele a um conjunto de oficiais de alta patente da Stasi, em 1982. “Se soubesse de algum neste momento, ele não sobreviveria ao dia de amanhã. Execução sumária. Penso assim porque sou um humanista.” E: “Toda essa conversa fiada sobre executar ou não executar, contra e a favor da pena de morte — besteira, camaradas. Executem! E, se necessário, sem julgamento”. Mielke nasceu em 1907, filho de um fabricante berlinense de carroças. Aos catorze, entrou para a organização dos jovens comunistas, aos dezoito, para o Partido. Ao longo das décadas de 1920 e 1930, a situação política na Alemanha permaneceu instável — comunistas e nazistas brigavam nas ruas, assim como os comunistas e a polícia. A morte de um comunista numa escaramuça em Berlim, em 1931, fez com que o Partido ordenasse vingança. Em 8 de agosto, num protesto na Bülowplatz, Mielke e outro homem mataram o chefe de polícia da região e seu assistente com tiros nas costas disparados à queima-roupa. Mielke fugiu para Moscou. Lá, frequentou a Escola Internacional Lênin, base de treinamento de elite para líderes comunistas, e trabalhou com a polícia secreta de Stálin, a NKVD. Em janeiro de 1933, o Partido Nazista chegou ao poder na Alemanha. Alguns dos comunistas responsáveis pelos assassinatos na Bülowplatz foram condenados à morte, outros, a longas sentenças de prisão. Um mandado de prisão foi expedido para Mielke. Mas ele permaneceu longe da Alemanha. No final da década de 1930, participou ativamente da Guerra Civil Espanhola. Segundo ele próprio conta, esteve preso na França durante a Segunda Guerra. Depois, porém, Stálin condecorou-o com medalhas por serviços prestados. Parece claro que, a partir de meados da década de 1930, onde quer que tenha estado, Mielke cuidou do trabalho sujo para o serviço secreto de Stálin. Quando a guerra acabou, ele retornou para o setor soviético de Berlim, onde estava a salvo da justiça. Trabalhou então na divisão de assuntos internos da força policial comandada pelos soviéticos. Em 1957 arquitetou um golpe contra seu comandante, e a partir daí assumiu o Ministério para a Segurança do Estado. Depois, foi adiante na consolidação de seu poder dentro do Partido e no país como um todo. Em 1971, Mielke ajudou a organizar o golpe que levou Erich Honecker ao poder, alçando-o à condição de secretário-geral. Honecker o recompensou com uma candidatura ao politburo e uma casa na luxuosa propriedade do Partido, em Wandlitz. A partir de então, os dois Erich passaram a governar o país. Mielke era invisível, mas a foto de Honecker estava por toda parte. Nas escolas, nas instalações da Juventude Alemã Livre, nos teatros e nas piscinas públicas. Estava também nas universidades, nas delegacias de polícia, nas colônias de férias e nas guaritas dos guardas de fronteira. Vestia sempre terno e gravata, usava grandes óculos de aros pretos e penteava os cabelos — escuros no início, depois grisalhos — para trás da testa alta. Além de ser baixinho, Honecker não chamava a atenção por nenhuma outra característica física, a não ser pela boca estranha, de lábios cheios, que parecia se abrir apenas parcialmente num sorriso. Seu histórico não era muito diferente do de Mielke. O pai era mineiro, e Honecker entrou para a Jung-Spartakus-Bund aos onze anos, ingressando na Juventude Comunista aos catorze. Concluiu o aprendizado de telhador, antes de passar os anos de 1930-1 na Escola Lênin, em Moscou, trabalhando à época na clandestinidade para os comunistas, contra o regime de Hitler. Em 1937 foi preso pela Gestapo e condenado a dez anos de prisão, por “tramar alta traição”. Escapou pouco antes do fim da guerra, quando começou, decidido, a fazer carreira no Partido que governava a Alemanha Oriental. Em essência, a Stasi deveria ser “escudo e espada” do Partido Comunista, o chamado Partido Socialista Unitário da Alemanha, ou SED (Sozialistische Einheitspartei Deutschlands). Mas sua função mais ampla era proteger do povo o Partido. A Stasi detinha, encarcerava e interrogava quem bem entendesse.Inspecionava toda a correspondência do país em salas secretas, logo acima das agências do correio, e interceptava diariamente dezenas de milhares de telefonemas. Plantava escutas em quartos de hotel e espionava diplomatas. Tinha suas próprias universidades, seus hospitais, centros esportivos de elite e programas de treinamento de terroristas para os líbios e os alemães ocidentais da Facção do Exército Vermelho. Além disso, ela salpicou o campo de bunkers secretos para seus membros, para a eventualidade da eclosão de uma Terceira Guerra de 1989, foi parte de um desses últimos expurgos. O fato, porém, era que não podiam expulsar todo mundo. Isso não seria prático e, pior, corresponderia a dar às pessoas a liberdade pela qual ansiavam. “Assim”, diz a guia, “os velhos tinham outro plano: conter os dissidentes internos.” Documentos encontrados após a queda do muro revelam planos meticulosos, correntes ao longo da década de 1980, prevendo vigilância, detenção e encarceramento de 85.939 alemães orientais, listados por nome. No “Dia X” (em que se declararia uma crise, qualquer crise), oficiais das 211 filiais da Stasi deveriam abrir envelopes lacrados contendo as listas de pessoas a serem presas em sua região. As detenções deveriam ser efetuadas com rapidez — 840 pessoas a cada duas horas. Os planos continham disposições precisas acerca do uso de todas as prisões e campos de prisioneiros disponíveis, e, tão logo lotassem, para a conversão em prisão de outras edificações: antigos centros de detenção nazistas, escolas, hospitais e colônias de férias das fábricas. Cada detalhe havia sido previsto, desde a localização da campainha da casa de cada pessoa a ser detida até o suprimento adequado de arame farpado e as regras de vestuário e etiqueta nos campos: faixas para os braços, “verdes, de dois centímetros de largura” para o mais velho no cômodo; “verdes, com três listras de dois centímetros de largura” para o mais velho no campo; amarelas, com a insígnia LT em preto, para o Líder de Turno, a serem usadas no antebraço esquerdo. Havia também instruções escritas sobre o que o prisioneiro, no ato de sua detenção, deveria levar na mala: 2 pares de meias 2 toalhas 2 lenços 2 roupas de baixo 1 malha de lã 1 escova de dentes mais pasta Acessórios para engraxar sapatos Mulheres: Adicional: absorvente higiênico Ficariam todos presos por tempo indefinido sem motivo algum, mas teriam sapatos, dentes e roupa de baixo limpos. Em meados de 1989, os protestos que se seguiam às orações pela paz, que aconteciam às segundas-feiras na Nikolaikirche de Leipzig, esparramavam- se por todo o país, chegando a Erfurt, Halle, Dresden e Rostock. As pessoas protestavam contra as restrições às viagens, contra a falta de produtos essenciais e contra a falsificação de resultados eleitorais. Nos protestos, dirigiam-se aos escritórios dos representantes mais óbvios do regime: não aos do Partido, mas aos da Stasi. Gritavam: “Democracia, agora ou nunca!”, “Fora Stasi!” e “SED, você me faz mal!” Em agosto, os húngaros cortaram o arame farpado de sua fronteira com a Áustria, dando origem ao primeiro buraco no bloco oriental. Milhares de alemães orientais foram para lá e, aos gritos de alívio e raiva, fugiram, atravessando a fronteira. Outros milhares de pessoas viajaram até as embaixadas da Alemanha Ocidental em Praga e Varsóvia, onde montaram acampamento, dando origem a um pesadelo diplomático nas relações entre as duas Alemanhas. Por fim, o regime alemão oriental permitiu que partissem, sob a condição de que os trens que levariam aquelas pessoas à Alemanha Ocidental atravessassem a RDA. Honecker esperava humilhar os “expulsos” confiscando-lhes as carteiras de identidade. E queria também que temessem (e temeram) que ele fosse parar os trens e deter os passageiros. O tiro de Honecker saiu pela culatra. Os passageiros dos trens rasgaram suas identidades chorando lágrimas de alegria. Milhares de pessoas dirigiram-se às estações, na esperança de poder subir a bordo ou de aplaudir os compatriotas. No começo de outubro, Leipzig estava a ponto de explodir. Os frentistas dos postos de gasolina se recusavam a abastecer carros da polícia; os filhos de soldados estavam sendo barrados nas creches. As pessoas que trabalhavam no centro da cidade, perto da Nikolaikirche, eram dispensadas mais cedo. Os hospitais pediam mais sangue. Antes de ir às manifestações, as pessoas faziam seus testamentos e diziam aos filhos coisas de que queriam que se lembrassem. Rumores sobre tanques, helicópteros e canhões de água chegavam de toda parte, assim como os cartões-postais dos amigos que já estavam no Ocidente. O povo saiu às ruas. Honecker ordenou que os “contrarrevolucionários” em Leipzig fossem “podados na raiz”. “Nada”, disse ele, “pode impedir o progresso do socialismo.” Em 8 de outubro, Mielke começou a pôr em marcha os planos para o “Dia X”, enviando ordens aos escritórios regionais da Stasi para que abrissem seus envelopes. Mas era tarde demais. Em vez de encarcerar as pessoas, a Stasi se escondeu, trancando-se em seus próprios edifícios. Nos escritórios regionais, havia 60 mil revólveres, mais de 30 mil metralhadoras, granadas de mão, fuzis de precisão, canhões antitanque e bombas de gás lacrimogêneo. O medo de linchamento era grande. Aos policiais de Leipzig, foram exibidas fotografias de um policial chinês imolado pela multidão na praça da Paz Celestial. Disseram- lhes: “São vocês ou eles”. Mas deram-lhes ordens também para que não atirassem ou fizessem uso de violência, a não ser que usassem de violência contra eles. No dia 7 de outubro de 1989, a RDA comemorou seu quadragésimo aniversário de existência com portentosas paradas em Berlim. Havia um mar de bandeiras vermelhas, uma procissão de pessoas carregando tochas e muitos tanques. No palanque, os velhos vestiam seus ternos de um cinza claro, adornados de medalhas. Mikhail Gorbatchev estava ao lado de Honecker, mas parecia pouco à vontade em meio aos alemães, bem mais velhos. Tinha vindo para dizer a eles que era o fim, para convencer a liderança da RDA a adotar sua política reformista. Falara abertamente sobre os perigos de não “responder à realidade”. Disse com todas as letras ao politburo que “a vida pune os que tardam”. Honecker e Mielke o ignoraram, assim como ignoraram o clamor da multidão que cantava: “Gorby, nos ajude!” Em Leipzig, a coragem extraordinária das pessoas não vacilava, nem tampouco degenerava em qualquer outra coisa. No dia 9 de outubro, 70 mil pessoas saíram às ruas escuras vestindo pesados casacos e carregando velas. Postaram-se à porta da Runden Ecke com suas exigências: “Revelem os informantes da Stasi!” E: “Não somos arruaceiros — somos o povo!” Tudo isso aos gritos constantes de “Violência, não!”. Daquela noite em diante, o número de manifestantes cresceu, e imagens filmadas das manifestações foram contrabandeadas para o Ocidente. Leipzig passou a ser conhecida como “a cidade dos heróis”. Agora, os protestos ocorriam diante dos escritórios da Stasi pelo país todo. Mas mesmo nas cidades menores os agentes deram continuidade a seu trabalho meticuloso e fiel, enviando a Berlim relatórios contendo as demandas da multidão lá fora: “Mandem os agentes para trabalhar nas fábricas!” (ouviu-se em Zeulenroda), “Nós pagamos vocês!” (diziam em Schmalkalden), além do premonitório “Seus dias estão contados!” (Bad Salzungen). Em Leipzig, os manifestantes haviam começado a gritar: “Ocupem a Stasi já!” e “Daqui não saímos!” 7. O cheiro dos velhos Aqui, no quartel-general da Normannenstrasse, houve pânico. Os oficiais da Stasi foram instruídos a destruir os arquivos, a começar dos mais comprometedores — aqueles que nomeavam ocidentais a serviço da organização e aqueles relativos a mortes. Rasgaram em tiras todos os documentos, até que as fragmentadoras pifaram. À escassez habitual de produtos no Leste, veio se juntar a escassez de fragmentadoras, de tal modo que agentes foram enviados a Berlim Ocidental para comprar mais desses equipamentos. Somente no edifício de número 8, integrantes do movimento popular encontraram mais de uma centena de máquinas quebradas. Quando a Stasi já não conseguia encontrar mais fragmentadoras, seus funcionários começaram a destruir os arquivos com as mãos, rasgando-os e enfiando-os em sacos. Mas fizeram isso de forma tão organizada — gavetas inteiras de documentos enfiados num único e mesmo saco — que agora, em Nuremberg, as mulheres dos quebra-cabeças podem juntar os pedacinhos. No dia 13 de novembro, Mielke, aos 81 anos, desesperou-se com o desaparecimento daquele seu mundo. Fez seu primeiro e único discurso ao Parlamento. A fala foi transmitida ao vivo. “Prezados camaradas”, começou ele, e começaram também as vaias. Gritos de “Não somos seus camaradas!” ecoaram dos partidos minoritários, recém-independentes. Então, como se simplesmente não pudesse compreender por que não gostavam dele, Mielke gaguejou ao microfone. “Eu amo...”, disse ele, “eu amo todos vocês. Me empenhei por vocês todos...” Quando se lembram de Mielke, é disso que os alemães orientais gostam de se lembrar. Talvez haja algo de redentor no ridículo. É, de todo modo, um alívio do terror e da raiva. Em 3 de dezembro, além de Mielke, Krenz foi expulso do Partido. Hans Modrow, um político de Dresden, tornou-se o líder. Modrow decidiu trocar o nome do “Ministério para a Segurança do Estado” para “Serviço de Segurança Estatal” (Amt für Nationale Sicherheit), uma reforma puramente cosmética, que ainda por cima resultou no infeliz acrônimo “Nasi”. Não enganou ninguém. O grupo de alemães ocidentais em visita ao edifício está mais tenso. Pararam as piadinhas trocadas em silêncio pelos homens, as esposas já não se entreolham. A guia pergunta se querem visitar o piso de cima, mas eles desconversam, fazem que não com a cabeça, alegando provável falta de tempo hoje. “Bom, então”, ela diz, “vamos ao final da nossa história.” Com seu jeito mandão e retorcendo o nariz, não vai deixar que os ocidentais saiam até contar a eles como o povo tomou o prédio. O que ela conta é que, em janeiro de 1990, quando os berlinenses viram a fumaça saindo das chaminés, vieram protestar. Trouxeram tijolos, pedras e construíram um muro simbólico ao redor do edifício, pretendendo fazer com que a Stasi parasse de queimar os arquivos. É extraordinário, diz ela, que, com todas aquelas pedras, nenhuma tenha sido atirada contra o prédio e que, por outro lado, nenhum tiro tenha sido disparado de dentro do edifício. “Havia um bocado de agentes da Stasi misturados aos manifestantes”, ela desdenha, “e talvez não tenham atirado por isso: medo de acertar um colega.” Por fim, depois de ter feito tudo que podia para sumir com os arquivos ou destruí-los, a Stasi abriu as portas para os manifestantes. As denúncias contra Mielke tiveram início tão logo ele perdeu o poder — e como podia ser diferente, se seu povo tinha recebido treinamento de alto nível em se tratando de denunciar as pessoas? O escritório do promotor público de Berlim recebeu uma nota, na qual Mielke era acusado de utilizar dinheiro público na construção de propriedade privada para a prática da caça. Em janeiro de 1990, novos itens foram acrescentados ao indiciamento: suspeita de alta traição, participação na tentativa de burlar a Constituição, na medida em que Mielke, juntamente com Erich Honecker, instituiu um “sistema nacional de vigilância dos correios e das telecomunicações” e, além disso, “ao arrepio da lei”, privou pessoas da liberdade, trancafiando-as em regime de “prisão preventiva” por ocasião do quadragésimo aniversário da RDA. Mielke foi submetido à prisão preventiva. Ao longo de 1990 e 1991, entrou e saiu de diversas prisões berlinenses, incluindo-se aí Hohenschönhausen, para onde ele tinha mandado a maioria de seus prisioneiros políticos. Mais acusações surgiram, dentre elas a do assassinato dos policiais em 1931.O julgamento teve início em 1992, mas quando terminou as únicas acusações ainda restantes diziam respeito aos assassinatos da Bülowplatz. Por sua participação neles, Mielke foi condenado a seis anos de prisão. A guia turística diz a seu rebanho: “Foi ridículo pegá-lo por aqueles crimes antigos”. Mas muitas pessoas acharam que, pelo menos, era alguma coisa. Por motivo de saúde, Mielke foi posto em liberdade em 1995 e hoje mora não muito longe do prédio da Stasi. Honecker se saiu pior. No começo de 1990 foi preso por suspeita de corrupção e alta traição, mas acabou libertado. Em novembro do mesmo ano foi acusado de ter responsabilidade nas matanças ocorridas no muro, mas fugiu para Moscou, de onde declarou à imprensa que não se arrependia de nada e protestou contra a prisão de ex-colegas. Em julho de 1992 foi extraditado para Berlim para ser julgado, mas o julgamento foi suspenso em janeiro de 1993, em razão de um câncer terminal no fígado. Honecker e a esposa partiram para o Chile, onde ele morreu em maio de 1994. Quando o Partido começou a perder o controle do país, passou a negociar com a Runden Tisch, a associação formada por ativistas alemães orientais dos direitos civis e por grupos da Igreja. Também ela, porém, estava coalhada de informantes da Stasi. Ainda assim, quando a Runden Tisch aprovou resolução em sua primeira reunião, em 7 de dezembro de 1989 — que exigia eleições livres e controle civil sobre a dissolução da Stasi —, a maioria dos informantes votou a favor. Ao que parece, com o intuito de se manter no anonimato, os informantes se sentiram compelidos a votar medidas que destruíam o próprio regime que os empregara. De 1989 a outubro de 1990, um acaloradíssimo debate teve lugar na Alemanha acerca do que fazer com os arquivos da Stasi. Deveriam ser abertos ou queimados? Deveriam permanecer trancados por cinquenta anos e, somente então, abertos, quando as pessoas de que falavam estariam mortas ou, talvez, perdoadas. Quais eram os perigos de se saber a verdade? Ou os de ignorar o passado e, com isso, acabar fazendo tudo de novo, sob bandeiras, lenços e capacetes de outra cor? Por fim, parte dos arquivos foi destruída, parte trancafiada e parte aberta. A Runden Tisch decidiu que o Hauptverwaltung Aufklärung (o braço internacional da Stasi) podia se dissolver por conta própria. No cofre, guardavam documentos demais relativos a muitos outros países, inclusive sobre o governo da Alemanha Ocidental, que abrigava, infiltrados, espiões da Stasi. Eram documentos muito perigosos. Restaram, assim, os arquivos relativos aos cidadãos da própria RDA. Muitos alemães orientais, em particular os que haviam estado no poder ou atuado como informantes, foram contrários à sua abertura. O governo alemão ocidental foi da mesma opinião. Temeria ele constrangimentos perto. Meus sapatos produzem um ruído de plástico no linóleo, até eu alcançar o escritório dele, onde o chão é de parquete. É uma sala espaçosa, com um quê de pobreza bem conservada. Dá a mesma sensação de quando a gente visita um casal que comprou sua mobília quando noivos, na década de 1950, e nunca mais teve condições de renová-la. Na verdade, tudo parece exibir aquele verde-amarelado, aquela tonalidade mostarda peculiar aos anos 1950. A principal característica é a mesa de tamanho médio, com folha de madeira compensada. Ao me aproximar, passo por um retrato de Lênin. Os olhos dele me seguem pela sala. Sobre a mesa, apenas dois telefones e uma máscara mortuária de Lênin em gesso. Em tamanho real, sua cabeça parece pequena, se comparada aos exageros em lã, tinta e mármore da sala dos tesouros lá embaixo. Parece também definitivamente morta — um memento mori de um sistema de crenças, tanto quanto o crucifixo o é de outro. Contudo, a não ser por sua presença, aquela sala bem poderia ser o gabinete do prefeito na combalida câmara municipal de uma pequena mas orgulhosa cidadezinha rural, cuja população se recorda com carinho dos dias em que iam altos os preços da lã. A luz agora é tão fraca que os contornos se misturam. Vou adiante, caminho pelos aposentos particulares de Mielke (um sofá- cama e uma cadeira) e pelo banheiro privativo (ladrilhos e nada mais), até uma antecâmara mais ampla, que hoje abriga mesinhas de cafeteria para turistas. Também ela está vazia. Vejo duas ou três poltronas velhas a um canto, e um vídeo que passa num aparelho de TV. Avanço em direção ao televisor, uma fonte de luz, e me sento para assistir ao vídeo. O filme mostra cenas captadas por amadores de manifestantes tomando de assalto o prédio na gélida noite de 15 de janeiro de 1990. Eles avançaram pelos escritórios, pelo supermercado, pelos cabeleireiros, abrindo portas trancadas e fitando sacos e mais sacos de papel. Não pareciam alegres e tampouco exibiam grande ousadia. Em vez disso, seus rostos mostravam uma calma mistura de asco e tristeza. Trata-se de um sentimento que já foi descrito como não saber ao certo se se quer rir ou vomitar. Está gelado aqui dentro e o ar parece reciclado. Ergo o colarinho do casaco até as orelhas. Acho que não há paralelo na história para essa transformação, da noite para o dia, da sede de um serviço secreto, tão temido que quase não se podia mencioná-lo, em um museu, onde a gente pode se sentar numa espreguiçadeira ao lado do mictório particular do chefão e assistir a um vídeo que mostra como o prédio foi tomado. Passos atrás de mim me assustam. Uma loira baixinha, de jeans e luvas de borracha, segura um spray de algum produto de limpeza. “Vocês estão fechando?”, pergunto. “Preciso ir?” Ela sorri e afaga o ar com uma mão de plástico cor-de-rosa. “Tudo bem”, diz. “Sobramos só nós duas aqui. Podemos sair juntas quando eu terminar.” Ela começa a borrifar uma amônia perfumada nas mesas. Eu volto a assistir ao vídeo. Surgem imagens do necrotério da Stasi em Leipzig — corpos sobre pranchas, entre eles o de um homem jovem sem nenhum ferimento aparente. Depois, uma entrevista com um trabalhador do Südfriedhof, que explica que, “umas vinte ou trinta vezes”, recebeu um telefonema solicitando que deixasse aberto determinado forno, “para que a Stasi pudesse cuidar de seus assuntos”. O homem parece pouco à vontade, mas, por outro lado, dá de ombros, como se dissesse: “É só o meu trabalho”. O locutor comenta que cerca de trinta urnas foram encontradas nos escritórios da Stasi em Leipzig, sem etiquetas e sem que ninguém as tenha procurado. Fico imaginando se Miriam sabe disso. Acho que deveria ligar para ela. A imagem seguinte é de uma entrevista com um homem de cabelos bem penteados e um bigode ruivo, que foi psicólogo da Stasi. Ele explica a disposição das pessoas de informar sobre as atividades de seus compatriotas, o que chama de “um impulso de se certificar de que os vizinhos estão agindo bem”. Nem pestaneja. “No fundo, é um traço da mentalidade alemã”, diz, “um certo anseio pela ordem, pela meticulosidade e coisas assim.” Coisas assim. Ouço um tossido às minhas costas. “É claro que eu vivia normalmente”, a faxineira diz. Eu me volto na direção dela. O rosto tem aquelas rugas de quem fuma, o peito parece oco de tão magro. “Eu me submeti, como todo mundo. Mas não é certo dizer que a RDA era uma nação de 17 milhões de informantes. Eram só dois por cento.” “É”, eu digo, e me vejo perplexa. Mesmo com um informante para cada cinquenta pessoas, a Stasi cobria a população inteira. Ela desiste da conversa comigo. “Não consigo deixar estas mesas limpas”, diz, e volta ao trabalho. Quando ela termina, atravessamos de volta os aposentos privados de Mielke, banheiro e escritório. Ela vai trancando as portas à medida que passamos. “Sabe, não existe unidade de fato neste país”, ela diz, “nem mesmo depois de sete anos. Não sinto que este é o meu lugar. Você sabia que lá em Kreuzberg, em Berlim Ocidental, eles queriam o muro de volta? Para se protegerem da gente!” Ela acende um cigarro. “Dá para entender esse pensamento alemão?” Espero que não seja uma pergunta retórica. Tudo que sei é que levou apenas quarenta anos para que se criassem dois tipos muito diferentes de alemães, e que vai levar algum tempo até que essas diferenças desapareçam. Passamos por um banheiro com um “H”, de Herren, na porta. “Eles só precisavam de banheiro masculino”, ela comenta. “As mulheres não iam além da patente de coronel, e eram só três, de todo modo. Isto aqui era um Männerklub” Ela enfia a cabeça na saleta de uma sentinela. “Venha ver isto aqui”, diz. Sobre a mesa, o calendário ainda marca janeiro de 1996. “Não, ali.” Ela aponta para a outra parede, atrás da mesa. Há uma mancha na pintura da parede. “Era onde o sujeito se apoiava, quando tombava a cadeira para trás e encostava a cabeça gorda e oleosa na parede.” Ela sente nojo. “Não sai de jeito nenhum.” Vamos em frente, descendo a escadaria em ziguezague, passando por Marx e por seu cabelo ondulado. O único som que se ouve é o de nossos passos, e a única luz provém da entrada, lá embaixo. “Você não tem medo de fantasma por aqui, à noite, quando está sozinha?” pergunto. “Às vezes”, ela responde, “mas era muito pior na época em que o prédio tinha acabado de abrir. Naquele tempo, o prédio inteiro fedia — a gente limpava, limpava e o cheiro não saía.” Ela se detém, volta o rosto na minha direção e ergue os olhos para mim. Mesmo na penumbra, os olhos são de um belo azul. Dá um sorrisinho doído. “Você conhece?” Mas não espera pela resposta: “Era o cheiro dos velhos”. um voo sem corpo por cidadezinhas, por sua rua principal e, de novo, rumo ao campo aberto. Veem-se lojas fechadas ou abertas, mulheres de avental varrendo caminhos onde pessoas, sentadas, tomam café e trabalhadores da manutenção das ruas encostados aqui e ali, de macacão. É o mundo não congelado. Em preto-e-branco, e há chuviscos na minha tela, mas sei que o que de fato ladeia as ruas é o amarelo vivo da colza, o verde enevoado do trigo e o verde mais escuro dos carvalhos no verão. De vez em quando, paramos no farol, à mesma altura dos olhos. Depois, seguimos sempre em frente, atravessando como num passe de mágica cidadezinhas descongeladas, uma após a outra, lugares em que nunca estive e aonde talvez nunca vá. Em meu sono, sigo atravessando os campos em silêncio, extasiada com o vento na minha pele. De repente, outra mulher se junta a mim, voando à mesma altura. No lugar do rosto, vejo um borrão, mas isso não me incomoda nem um pouco. Ela está nua, a não ser pelas luvas de borracha cor-de-rosa. Os mamilos arrepiados são de um rosa mais escuro, e os pelos pubianos possuem dourado exuberante. Assusto-me ao notar que não estou sozinha no ar e que ela está nua. “As luvas são para dirigir, claro”, ela diz. Concordo com um gesto de cabeça e olho para minhas mãos. Estou sem luvas. Depois, olho para meu corpo e vejo que estou nua também. Minha sensação de bem-estar evapora. Dou uma olhada para baixo, por sobre a rua principal de uma cidadezinha, e vejo pessoas abaixo de nós. O sino da igreja começa a tocar, toca e toca sem parar, e sei que logo vou cair — estou sem luvas para dirigir! — e que vão me ver, caída, nua e sem sentido. Acordo para atender o telefone. O relógio marca 2h30 da madrugada, hora propícia aos ataques cardíacos, às más notícias vindas de casa. Ou será algum outro sujeito da Stasi? Ameaças por telefone são comuns, mas não é possível que eu esteja no topo da lista deles. Quando finalmente encontro o telefone preto, ele já deve estar lá pelo décimo quinto toque. Estou embrulhada no acolchoado da cama. “Alô?” “Alô, minha amiga.” Uma voz lubrificada, proveniente do bar que frequento, chega até mim mediante uma boca que na certa segura um cachimbo, produz um sotaque saxônico forte e está envolta em barba. É Klaus. A julgar pelo som da voz, é o receptor que está amparando o queixo. “E aí, como você se saiu da última vez?”, ele pergunta. “Está a fim de tomar umas?” “Klaus, são duas e meia da madrugada.” “Vamos lá”, diz ele, “da outra vez, você ainda estava começando a essa hora.” Não é meu desejo ser lembrada de noites anteriores. Na minha opinião, uma das convenções entre parceiros decentes de copo é que, na ausência de amnésia real, ela deve ser simulada. Da outra vez, enchemos o ar de palavras e fumaça, mas isso agora é passado. Minha única lembrança é a da ressaca que levei comigo para Leipzig. “Tive um dia longo.” “Está legal aqui”, ele diz. “Estão tocando a nossa música.” Não é bem uma cantada. Ele quer dizer que estão tocando a música dele. Klaus Renft é o lendário “Mik Jegger” do bloco oriental. Ele mora bem perto de mim, dobrando a esquina, num apartamento de um cômodo, cheio de vídeos e pôsteres da sua banda, a Klaus Renft Combo. Por lá tem sempre uma sacola cheia de cerveja e de todo tipo de equipamento que o homem já utilizou para fumar. Nós dois somos fregueses do bar aqui perto, que utilizamos, na verdade, como uma sala de estar. O sistema de som do estabelecimento está amplificando o belo lamento chamado “Hilflos”, música regravada no recente álbum de retorno da banda. “Você ainda está aí?”, ele pergunta. “Estou. E vou ficar por aqui mesmo.” “Então durma bem, menina”, ele balbucia. Quando vai desligar, erra o gancho, e o fone fica pendurado de cabeça para baixo. Levo meu telefone de volta para a cama e, deitada, fico ouvindo “Hilflos”. Depois, desligo. Acordo com novo toque do telefone. É de manhã. “Guten Tag. A senhora pôs um anúncio no Märkische Allgemeine?” “Sim. Obrigado por ligar. Estou tentando falar com gente que trabalhou para o Ministério, para poder dar uma ideia de como era. Estou escrevendo um livro sobre a vida na RDA.” Segue-se uma pausa. “A nota diz que a senhora é australiana.” “Sou.” “A senhora é australiana?” “Sim.” “Então vem da Austrália?” “Isso mesmo.” Na RDA, boa parte da geografia permaneceu coisa teórica, porque as pessoas não podiam viajar para fora do bloco oriental. Se é que os orientais pensavam na Austrália, era na condição de um lugar imaginário para onde ir em caso de catástrofe nuclear. “E está escrevendo em inglês ou em alemão?” “Inglês.” “Marco um encontro com a senhora”, ele diz. “Para pôr os pingos nos is. Quem sabe na Austrália a mídia não tenha envenenado as pessoas contra nós, e pelo menos lá possamos dar a nossa visão das coisas. Com informação e análise objetivas. A senhora pode amanhã?” “Posso.” “Em Potsdam, à tarde?” “Sim.” “Então nos encontramos da seguinte maneira: vou estar diante da igreja na praça do mercado às quinze horas. Levo comigo a edição de amanhã do Märkische Allgemeine enrolada debaixo do braço esquerdo. Entendido?” “Sim”, respondo com obediência, embora mal possa crer que aquele homem queira brincar de espião sete anos depois da queda do muro. Em seguida, pergunto: “Qual o seu nome?” Outra pausa. “Winz.” “Então, até amanhã, Herr Winz.” Chego cedo à igreja e estou sozinha diante dela. O céu fechado exibe um cinza-cobertor. Calço botas pretas e estou vestindo um casaco preto com um remate de pele falsa, roupa comum, mas visível a um quilômetro de distância. É óbvio que não estou fazendo nada, e sim à espera de alguém. No mercado ao lado da igreja, mulheres com cachecóis brilhantes e luvas de lã empurram seus carrinhos ao longo das barracas montadas em trailers, xeretando sob os toldos listrados de vermelho e branco. Compram batatas e picles nos tonéis, bem como pedaços de linguiça rosada de fígado. Na banca de petiscos, um homem de antebraços musculosos serve uma salsicha e um pedaço de pão num prato de papel a um funcionário municipal. Os sinos tocam três vezes. Salto de uma perna para outra, ambas congeladas. Passados dez minutos, um homem se aproxima com um jornal enrolado debaixo do braço esquerdo. Tem cerca de sessenta anos, com pança e papada de cão de caça. Veste paletó de tweed que parece importado. Quando tira o jornal de debaixo do braço para me cumprimentar, vejo que o paletó tem até os retalhos de couro nos cotovelos: ele está disfarçado de ocidental.
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