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Contos - populares - do - Brasil - Silvio - Romero - Cadernos - do - Mundo, Notas de estudo de Astronomia

Contos populares de origem indígena e afro-brasileira

Tipologia: Notas de estudo

2018
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Compartilhado em 11/06/2018

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Baixe Contos - populares - do - Brasil - Silvio - Romero - Cadernos - do - Mundo e outras Notas de estudo em PDF para Astronomia, somente na Docsity! CONTOS POPULARES DO BRASIL Sílvio Romero coleção acervo brasileiro cadernos do mundo inteiro Coleção acervo brasileiro Volume 3 CONTOS POPULARES DO BRASIL SÍLVIO ROMERO Projeto editorial integral Eduardo Rodrigues Vianna Imagem da capa Xilogravura de Yolanda Carvalho, Piauí. Licença: Creative Commons BY-SA 3.0 Brasil. CADERNOS DO MUNDO INTEIRO www.cadernosdomundointeiro.com.br 2017 Jundiaí, SP Sílvio Romero – Contos populares do Brasil v 38 O careca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130 39 A cumbuca de ouro e os marimbondos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137 40 A Mãe d’Água . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 138 41 O preguiçoso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 140 42 A mulher dengosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 142 43 A lebre encantada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 144 44 O pescador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147 45 O cágado e a festa no céu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149 46 Os três moços . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 150 47 A raposa e o tucano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152 48 O padre sem cuidado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153 49 Os três conselhos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155 50 O príncipe cornudo, 2ª versão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 158 51 O rei caçador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163 II Contos de origem indígena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 166 52 O cágado e a fruta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167 53 O cágado e o teiú . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169 54 O cágado e o jacaré . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 171 55 O jabuti e a raposa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173 56 O cágado e a fonte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175 57 A onça e o bode . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 176 58 O veado e a onça . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 178 vi Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 59 A onça, o veado e o macaco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 180 60 O macaco e a cotia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183 61 O urubu e o sapo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 184 62 Amiga raposa e amigo corvo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 186 63 Amiga folhagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 188 64 A raposa e a onça . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 190 65 O jabuti e a raposa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 192 66 O jabuti e o homem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 194 67 O jabuti e o caipora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 196 68 A raposa e o homem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 198 69 O jabuti e a onça . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200 70 O sapo e o veado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201 71 O jabuti e o veado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203 72 A onça e o coelho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205 III Contos de origem africana e mestiça . . . . . . . . . . . . . 208 73 O macaco e o moleque de cera . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209 74 O macaco e o rabo (Sergipe) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211 75 O macaco e o rabo (Pernambuco) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213 76 A onça e o boi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215 77 A onça e o gato . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217 78 O macaco e a cabaça . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 218 79 O macaco e o coelho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219 Sílvio Romero – Contos populares do Brasil vii 80 O Doutor Botelho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 220 81 Melancia e Coco Mole . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 223 82 O caboclo namorado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 225 83 O macaco e o aluá . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 227 84 O velho e o tesouro do rei . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 230 85 O homem que quis laçar Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 232 86 O homem tolo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 235 87 A mulher gaiteira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 236 88 O negro pachola . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239 RECURSOS EDUCACIONAIS ABERTOS, REA . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241 x Sílvio Romero – Contos populares do Brasil INTRODUÇÃO ORIGENS DA NOSSA POESIA E DE NOSSOS CONTOS POPULARES PORTUGUESES, ÍNDIOS, AFRICANOS E MESTIÇOS I ndicar no corpo das tradições, contos, cantigas, costumes e lingua-gem do atual povo brasileiro, formado do concurso de três raças,que, há quatro séculos, se relacionam; indicar o que pertence a cada um dos fatores quando muitos fenômenos já se acham baralha- dos, confundidos, amalgamados; quando a assimilação de uns por ou- tros é completa aqui e incompleta ali, não é coisa tão insignificante, como à primeira vista pode parecer. Comecemos pelo poesia. Quais são aqui os agentes criadores e quais são os transformadores? O agente transformador por excelência tem sido entre nós o mestiço. Mas será verdade que os selvagens e os africanos possuíssem uma po- esia, que tenha passado às nossas gerações atuais? Nós o cremos: mas eis aí a grande dificuldade. Fala-se muito de uma decantada poesia dos índios dos três primeiros séculos da conquista; poucos são os fragmen- tos coligidos. Ainda pior é o que se tem dado com os africanos. Demais, hinos líricos, cantados pelo povo brasileiro, são vazados nos moldes da língua portuguesa pura e estreme. Como marcar o veio negro e verme- lho em canções que afetam uma só forma? As dificuldades abundam. Incontestavelmente o português é o agente mais absoluto da nossa vida espiritual. Devemos-lhe a crença religiosa, as instituições civis e políticas, a língua e o contato com a civilização europeia. Na poesia po- pular a sua superioridade é, portanto, incontestável. Pertencem-lhe, entre nós, todos os romances cavalheirescos, como D. Infanta, Noiva roubada, Bernal Francês, D. Duarte e Donzilha, D. Maria e D. Arico, e Sílvio Romero – Contos populares do Brasil xi outros que se encontram em nosso Cantos populares do Brasil, e que têm seus correspondentes nas coleções europeias. É ainda obra sua a maior parte das canções soltas em quadrinhas, que em Sergipe têm o significativo nome de versos gerais. As relações da raça superior com as duas inferiores tiveram dois aspectos principais: a) relações meramente externas, em que os portu- gueses não poderiam, como civilizados, modificar sua via intelectual, que tendia a prevalecer, e só poderiam contrair um ou outro hábito e empregar um ou outro utensílio na vida ordinária; b) relações de sangue, tendentes a modificar as três raças e formar o mestiço.1 No primeiro caso, compreende-se de pronto que a ação dos índios e dos negros sobre o europeu não era muito profunda e radical; no segundo, a transformação fisiológica produzia um tipo novo; se não eclipsava o europeu, ofuscava as duas raças inferiores. Na poesia popular, portanto, depois do português, é o mestiço o principal fator. Aos selvagens e africanos, que não são autores dire- tos, coube aí mesmo, porém, uma ação mais ou menos eficaz. Nos romances de vaqueiros há influxo indígena, e nos versos de reinados ou reizados, cheganças, congos, taieiras, influência africana. Os autores diretos, repitamos, que cantavam na língua como sua, foram os portugueses e os mestiços. Quanto aos índios e negros, ver- dadeiramente estrangeiros, e forçados ao uso de uma língua imposta, a sua ação foi indireta, ainda que real. Na formação da psicologia do 1Como veremos, o texto de Sílvio Romero está repleto daquela noção segundo a qual uma raça superior, associada de modo forçoso às duas inferiores, seria a condutora da civilização brasileira. O autor foi sempre um representante do Brasil oficial, portanto do Brasil branco de sua época, em- bora detestasse com sinceridade a imensa mediocridade que caracteriza o Brasil oficial até hoje. Sabemos que se interessou pelas classes sociais em nível nacional, sua formação e seus antagonis- mos — deixou sem terminar um livro com o título O Brasil social —, mas morreu convicto de suas teses racialistas e supremacistas quanto ao fazimento na nação, ainda quando defendesse a cor- reta linha abolicionista em favor de uma reforma agrária em benefício dos ex-escravos. Era mais um racialista que um racista: foi dos primeiros a compreender a necessidade que os brasileiros têm de conhecer a história e a atualidade da África, por exemplo, e apontava o negro como o verda- deiro civilizador do Brasil. Mas nutria a crença de que a miscigenação embranqueceria, e apenas embranqueceria, o povo brasileiro, e que somente a partir do embranquecimento nos tornaríamos uma grande nação, porque o branco seria a vertente mais forte, a melhor, na formação mestiça do país. [Nota do Editor.] xii Sílvio Romero – Contos populares do Brasil mestiço, a que iam transmitindo as suas tendências intelectuais com todas as suas crenças, abusões, lendas e fantasias, é que se nota o seu influxo. A ação fisiológica dos sangues negro e indígena no genuíno brasileiro explica-lhe a força da imaginação e o ardor do sentimento. Não há aqui, pois, em rigor, vencidos e vencedores; o mestiço consa- grou as raças e a vitória é assim de todas três. Pela lei da adaptação elas tendem a modificar-se nele, que, por sua vez, pela lei da concor- rência vital, tendeu e tende ainda a integrar-se à parte, formando um tipo novo em que prevalecerá a ação do branco. Pertencem-lhe dire- tamente em nossa poesia popular todas as cantigas que não encon- tram correspondentes nas coleções portuguesas, como todos os roman- ces sertanejos, muitas xácaras e versos gerais de um sabor especial. Nestas criações, que chamamos mistas, dá-se cumulativamente a ação das rês raças, e ao mestiço pertencem, como próprios, o langor lascivo e os cálidos anhelitos da paixão. Quase todos os versos desta espécie coligimos da boca de ariscas e faceiras mulatas. Encontram-se ainda entre nós certa tendência de ridicularizarem- se mutuamente as diversas raças. O caboclo foi, desde os tempos colo- niais, objeto de muitos motejos e lendas debicativas; era considerado o tipo da tolice e da fatuidade, a encarnação do parvo e do basbaque. O negro era, por sua vez, bem escarnecido, e o português alcunhado de maroto, galego, marinheiro etc. Ao mestiço deu-se o nome de cabra, bode, e outros títulos malsinantes. Este estado de luta latente ainda se nos depara no folclore brasileiro. Passemos aos contos e lendas. Aí é direta a ação das três raças e a influência do mestiço ainda muito insignificante, a não ser como agente transformador. Temos contos de origem portuguesa (ariana), americana (pretendida turana), africana (raças inferiores) e mestiça (formação recente). Entre os primeiros destacam-se todos aqueles contos que têm aná- logos nas coleções europeias e especialmente portuguesas. Citaremos, como espécimens, O Bicho Manjaléu, Os três coroados, O sargento verde, Príncipe cornudo, Maria Borralheira, João e Maria etc. Sílvio Romero – Contos populares do Brasil xv quanto prematuros. Só depois de uma vasta coleção que abranja todas as províncias se poderá tentar semelhante empresa. Carlos Frederico Hartt4 pondera que a nossa lenda túpica do jabuti que vence o veado (em Sergipe é o sapo que vence o veado) tem análogas em África e no Sião. Couto de Magalhães colheu-a e a publicou à pág. 185 de O sel- vagem. Nós encontramo-la também na tradição oral do Norte com a modificação indicada. Não negamos o fato alegado pelo falecido pro- fessor americano; parece, no entanto, que não era mister ir tão longe para encontrar as lendas paralelas àquela. Eis o que diz o Dr. Gustavo Dodt5 numa carta ao autor de O selva- gem: “Queria dar duas notícias relativas às lendas tupis que publicou em sua obra. A primeira à nota do Dr. Hartt de ter-se encontrado a lenda do jabuti, que excede o veado em velocidade, não só no Brasil, mas na África e no Sião. A isto devo juntar que a mesma fábula se acha na Alemanha, e só que os animais que nela figuram são natural- mente outros, fazendo uma espécie pequena de porco espinho o papel de jabuti e a lebre o do veado. A outra é que o desfecho da fábula entre a onça e a raposa (pág. 237 do Selvagem) e que, como indica, é dife- rente da fábula grega, se acha tal qual numa antiga fábula alemã, com a única diferença de que a onça é substituída por uma serpente, que por descuido foi apanhada por um laço, e a raposa substituída por um homem. O juiz é no princípio um lobo, que dá a sentença em favor da serpente, na esperança de obter uma parte da presa; o homem, porém, apela, e o juiz da segunda instância é o corvo, que, pelo mesmo motivo, confirma a sentença; finalmente, em terceira instância é o juiz a ra- posa, que manda repor tudo no seu estado primitivo, dando ao homem a faculdade de libertar de novo a serpente ou não”. Comparações destas poder-se-iam multiplicar, trabalho aliás inútil quan-to aos contos de origem portuguesa entre nós, que se prendem 4Carlos Frederico Hartt, ou Charles Frederick Hartt (1840-1878), geólogo estadunidense, pro- fessor da Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Estudioso do Brasil, em especial dos sertões nor- destinos. [N. do E.] 5Gustavo Adolfo Luiz Guilherme Dodt da Cunha Barroso (1888-1959), folclorista brasileiro [N. do E.] xvi Sílvio Romero – Contos populares do Brasil ao corpo de tradições indo-germânicas, que têm sido objeto dos mais acurados estudos. Qualquer curioso, compulsando, por exemplo, a co- leção alemã dos irmãos Grimm e a italiana de Comparetti e d’Ancona, irá descobrir inúmeras lendas e fábulas análogas às nossas de origem portuguesa. As de origem indígena e africana têm aqui e ali os seus congêneres. Iniciamos em tempo este trabalho, que abandonamos, por nos parecer mais enfadonho que valoroso. Dos encontros e paralelismos que então descobrimos, damos apenas aqui um caso. O mito cósmico dos nossos índios, com que explicam a separação do dia e da noite, tem bastante analogia com a lenda da Nova Zelândia, que dá conta da separação do céu e da terra. O mito neozelandês é mais épico e formoso; em ambos, porém, procura-se explicar de dois fenômenos capitais; em ambos fala- se de esposos que estavam ou vieram ficar separados, e trata-se de uma revolta ou desobediência. Citemo-los para estudo comparativo, segundo as lições de Couto de Magalhães e de Tylor6. O mito cósmico neozelandês intitula-se Filhos do céu e da terra, e é como segue: “De Ranci (o Céu) e de Papa (a Terra) saíram todos os homens e todas as coisas. Mas o Céu e a Terra se uniram e a noite se esten- deu sobre eles e sobre tudo que deles tinha saído, até que um dia seus filhos reuniram-se em conselho para saber se era preferível separar seus pais e matá-los. Então Tane-Mahuta, pai das florestas, disse aos cinco grandes irmãos: ‘É melhor colocar o Céu sobre nossas cabeças e a Terra sob nossos pés. Deixemos o Céu tornar-se para nós estra- nho; mas a Terra deverá ficar perto de nós como a mãe que nos ama- mentou.’ Então Rugo-Ma-Tane se levanta e procura separar o Céu da Terra; insiste, mas debalde; vãos foram também os esforços de Tanga- roa, pai dos peixes e dos répteis, e de Haumia-Tikitiki, pai das plantas selvagens, e de Tu-Matuenga, deus e pai dos homens intrépidos. Tane- Mahuta, deus e pai das florestas, se levanta e por sua vez, com toda a calma de sua força, luta corpo a corpo com seus pais, procurando 6Edward Burnett Tylor (1832-1917), antropólogo britânico, segundo quem as culturas humanas são como vertentes ou secções de uma cultura única, com um valor universal. [N. do E.] Sílvio Romero – Contos populares do Brasil xvii separá-los com suas mãos e braços. Enfim, para; sua cabeça fica forte- mente presa a sua mãe, a Terra; levanta os pés para repelir seu pai, o Céu, e estende o seu dorso e braços com supremo esforço. Ranci e Papa foram finalmente separados, e fizeram ouvir gritos entrecorta- dos de prantos e ameaças. Tane-Mahuta não para, aperta em torno de si a Terra com todas as suas forças e levanta o Céu com a mesma energia. Mas Tawir-Che-Matea, pai dos ventos e tempestades, nunca lhe tinha consentido que sua mãe fosse arrancada de seu esposo; e levantou-se então em seu seio um terrível desejo de lutar contra seus irmãos. “O deus das tempestades se levantou portanto e acompanhou seu pai para o reino superior, a fim de achar um abrigo profundo nos céus sem limites e ocultar-se aí para sempre. Acompanhou-o toda a sua li- nhagem: os ventos furiosos, as poderosas rajadas, as nuvens espessas, sombrias, ardentes, turbilhonando com raiva, estourando com furor. Quando se acharam todos reunidos, o pai no meio deles precipitava-se sobre o inimigo, Tane-Mahuta, e suas florestas gigantescas, que esta- vam tranquilas, nada desconfiando, quando de repente o formidável furação se desencadeou sobre elas. Árvores enormes se quebraram como vidro; por todas as partes ficaram ramos e troncos despedaçados, presa futura dos vermes e dos insetos. Então, o pai das tempestades arroja-se às ondas e chicoteia as águas até que elas se levantem em vagas escumosas à altura das montanhas; Tangaroa, deus do oceano e pai de tudo que nele habita, foge atemorizado para os confins de seu Império. Seus filhos, Ika-Tere, pai dos peixes, e Tu-Te-Wei-Wehi, pai dos répteis, procuram onde abrigar-se com segurança. ‘Eia depressa, salvemo-nos todos no mar!’, brada o pai dos peixes. ‘Não, não; fujamos antes para a terra!’, grita de seu lado o pai dos répteis. Estes entes separaram-se, portanto: ao passo que os peixes se refugiaram no mar, os répteis procuravam um brigo nas florestas e nos ervaçais. Mas o deus do mar, Tangaroa, furioso porque os répteis, seus filhos, o tinham abandonado, depois fez sempre a guerra a seu irmão Tane, que os aco- lhera em seus bosques. Tane responde seus ataques, fornecendo a seu xx Sílvio Romero – Contos populares do Brasil roço de tucumã muito fechado, e disse-lhes: ‘Aqui está; levai-o. Eia! Não o abris, senão todas as coisas se perderão.’ Os fâmulos foram- se, e estavam ouvindo barulho dentro do coco de tucumã, assim: ten, ten, len. . . xi. . . era o barulho dos grilhos e dos sapinhos que cantam de noite. Quando já estavam longe, um dos fâmulos disse aos seus companheiros: ‘Vamos ver que brulho é este.’ O piloto disse: ‘Não, do contrários nos perdemos. Vamos embora, eia, rema!’ Eles foram-se e continuaram a ouvir aquele barulho dentro do coco de tucumã, e não sabiam que barulho era. Quando já estavam muito longe, ajuntaram- se no meio da canoa, acenderam fogo, derreteram o breu que fechava o coco, e o abriram. De repente tudo escureceu. O piloto então disse: ‘Nós estamos perdidos; e a moça, em sua casa, já sabe que nós abrimos o coco de tucumã!’ Eles seguiram viagem. A moça, em sua casa, disse então a seu marido: ‘Eles soltaram a noite; vamos esperar a manhã’. “Então todas as coisas que estavam espalhadas pelo bosque se trans- formaram em animais e em pássaros. As coisas que estavam espalha- das pelo rio se transformaram em patos e peixes. Do paneiro gerou-se a onça; o pescador e a sua canoa se transformaram em pato; de sua cabeça nasceram a cabeça e o bico de pato. A filha da Cobra Grande, quando viu a estrela d’alva, disse a seu marido: ‘A madrugada vem rompendo. Vou dividir o dia da noite.’ Então ela enrolou um fio, e disse-lhe: ‘Tu serás cujubi.’ Assim, ela fez o cujubi, pintou a cabeça do cujubi de branco, com tabatinga; pintou-lhe as pernas de vermelho com urucum, e então disse-lhe: ‘Cantarás para todo sempre quando a manhã vier raiando.’ Ela enrolou o fio, sacudiu cinza em riba dele, e disse: ‘Tu serás inhambu para cantares nos diversos tempos da noite, e de madrugada’. “De então para cá todos os pássaros cantaram em seus tempos, e de madrugada para alegrar o princípio do dia. “Quando os três fâmulos chegaram, o moço disse-lhes: ‘Não fostes fieis; abristes o caroço de tucumã, soltastes a noite e todas as coisas se perderam, e vós também que vos metamorfoseastes em macacos, andareis pra todo sempre pelos galhos dos paus.’ A boca preta, e a Sílvio Romero – Contos populares do Brasil xxi risca amarela que eles têm no braço, dizem que é ainda o sinal do breu que fechava o caroço de tucumã, que escorreu sobre eles quando o derreteram”. É esta a lenda; comparem-na com a neozelandesa. Dentre os contos indígenas, alguns passaram às populações cristãs do país, e outras não. Daquele transcrito não encontramos vestígios na tradição que consultamos. O mesmo deve ter acontecido a muitos africanos por certo e alguns portugueses: não passaram às nossas po- pulações atuais. Mas não é somente nas canções e contos populares que se encerra tudo o que devemos às três raças que habitam o país. Aos portugueses devemos as dádivas principais de nossa civilização nascente; somos-lhes obrigados pelas ideias políticas e sociais que nos regem; ainda hoje sua velha legislação civil é a nossa. A ordem religiosa, política, jurídica e social são entre nós obra eu- ropeia. É inútil comentar a influência e ação combinada destas insti- tuições sobre o desenvolvimento de um povo.8 Os índios não são credores somente do influxo de seus yreytos ou yeroquis e de suas lendas. O uso de muitas plantas medicinais, o em- prego de muitas indústrias rudimentares de jiquis, gererês, tapitis, urus; a manipulação de algumas substâncias comestíveis, como a ca- rimã e a tapioca etc, devemos aos selvagens. Muitos outros usos e costumes, e até crenças fantásticas, como a do Caipora, passaram às nossas populações atuais; é verdade, porém, que as lendas de Sumé, Jeropari e Tamandaré perderam-se e o nosso povo as ignora. 8Somos obrigados a mencionar o historiador brasileiro Moniz Bandeira, em seu amplíssimo ensaio Presença dos Estados Unidos no Brasil: dois séculos de história, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973. pp. 5-11. Bandeira aí demonstra haver sido o colonizador português um elemento nada progressista, e julgamos necessário fazer sempre referência a isto: decidido a não criar na colônia nenhuma condição para as artes, a imprensa, a instrução pública, a indústria, e nem mesmo para um sistema político e jurídico minimamente satisfatório, ainda que já existissem as classes dominantes do Brasil, e havendo impedido os brasileiros de estabelecer qualquer contato com outros países durante cem anos, o colonizador português empenhou-se em auferir lucros da extração de matérias primas, enquanto impedia com todo o zelo que o Brasil chegasse a funcionar como um país. Apontamento semelhante é feito pelo baiano Manoel Querino em O colono preto como fator da civilização brasileira, publicado nesta coleção. [N. do E.] xxii Sílvio Romero – Contos populares do Brasil A raça africana tem tido no Brasil uma influência enorme, somente inferior à influência da portuguesa; penetrou em nossa vida íntima e por ela moldou-se em grande parde a nossa psicologia popular. É fácil compreendê-lo. A raça africana entre nós conta-se também como raça invasora e este fato merece atenção. O europeu julgou-se fraco para repelir o selvagem e para o amanho das terras, e recorreu a um auxiliar poderoso: o negro d’África. Ao passo que o índio, em diminuto número aliás, não excedente talvez a um milhão, tornava-se improdutivo, fugia, esfacelava-se e morria, durante mais de três séculos chegavam as levas de africanos, robustos, ágeis e domáveis, que vinham desbravar terras, fundar as fazendas e engenhos, construir as cidades e viver no seio das famílias coloniais. A diferença é enormíssima. Só um caboclista inconsciente poderá negá-la. O índio foi um componente que se viu desequilibrado e feneceu; o negro um aliado do branco que prosperou. Acresce que o número de africanos transportados ao Brasil, durante mais de trezentos anos, foi muito superior à população cabocla primi- tiva. Compu-tam-se aqueles em milhões e toda esse gente válida e fecunda prosperou na América. O próprio fato da escravidão serviu para ainda mais vinculá-la ao branco. As escravas, e raro era o colono que não as tinha, viviam no seio das famílias no serviço doméstico: daí o cruzamento natural; apareciam os mestiços, e novos laços se criavam. Os negros trabalhavam nas roças, produzindo o açúcar, o café, e todos estes gêneros chamados coloniais, que a Europa consumia. Só por estes três fatos, a escravidão, o cruzamento e conchego do- méstico, e o trabalho, é fácil aquilatar a imensa influência que os afri- canos tiveram na formação do povo brasileiro. A escravidão operou como fator social, modificando nossa psicolo- gia, nossos hábitos e nossos costumes. Habilitou-nos por outro lado a arrotear as terras e suportar em des- Sílvio Romero – Contos populares do Brasil xxv nós foi do branco com o preto. “Este, depois do europeu, é o principal fator da nossa vida intelec- tual, política, econômica e social. Temos para com ele uma grande dívida: restabelecer na história o quinhão que lhe pertence, por si, e por seus descendentes mestiços, máxime por estes últimos. Uma coisa é para notar: desafiamos a que nos mostrem em toda a história bra- sileira de quatro séculos um só tipo nacional, mais ou menos notável, que haja sido negro ou caboclo puro. Camarão11 e Henrique Dias,12 de valor mais que muito contestável, não está bem determinado que ha- jam sido um negro e o outro caboclo da mais pura e estreme linhagem. “É provável que já tivessem sido o resultado do cruzamento das três raças, ainda que em diminuta escala. Todos os nossos primeiros tipos têm sangue branco: são brancos puros, ou desfigurados pelo sangue das outras raças. É força convir, porém, que o futuro desde país per- tencerá definitivamente ao branco só depois de haver este assimilado os elementos estranhos indispensáveis para o habilitarem a resistir plenamente às agruras de nossa natureza. Se houvera necessidade de aplicar no Brasil a teoria das raças, levada ao exagero por alguns au- tores, como Teófilo Braga em Portugal, melhor que este país o nosso ofereceria ampla possibilidade para a empresa; porquanto não fora preciso levantar à altura de raça uma simples classe da população, como fez aquele compilador, com os moçárabes. Entre nós o concurso de três raças inteiramente distintas, em todo o rigor da expressão, deu-nos uma sub-raça propriamente brasileira, o mestiço. O elemento fecundador é o branco que vai assimilando o que de necessário à vida lhe podem fornecer os outros dois fatores. A história o prova; ela nos mostra a inteligência e a atividade no branco puro ou no mestiço quase 11Felipe Camarão (c.1600-1648), índio potiguar cearense, de educação jesuíta. Comandante das forças potiguares na luta de guerrilhas contra os holandeses, até a Insurreição Pernambucana. [N. do E.] 12Henrique Dias (?-1662), negro liberto, provavelmente pernambucano, companheiro de armas de Felipe Camarão nas lutas contra os holandeses. Capitão-do-mato, tomou parte na destruição de quilombos e na captura de escravos fugidos, na Bahia. Um dos fundadores das Forças Armadas do Brasil. Em 2002, o Estado brasileiro fez registrar o seu nome no Livro dos Heróis da Pátria. [N. do E.] xxvi Sílvio Romero – Contos populares do Brasil branco; porém nunca no índio ou no negro estremes de mistura.13 Mas como o branco genuinamente puro, coisa que se vai tornando rara no país, bem como se distingue do europeu, é força convir que o tipo, a en- carnação perfeita do genuíno brasileiro, está, por enquanto, na vasta classe de mestiços, pardos, mulatos, cabras, mamelucos, caborés, e é por isso que não temos ainda um espírito, um caráter original. Este virá com o tempo. Nós dissemos que não temos um só homem notável em nossa história de quatro séculos que tenha sido negro ou caboclo puro. Camarão e Henrique Dias, repetimos, ainda quando ficasse pro- vado que o foram, o que temos por duvidoso, o gênero de atividade em que se desenvolveram é daqueles que não requerem grande dis- tinção. Os nossos homens mais notáveis, nas letras e na política, ou são brancos, como um José Bonifácio, um Gonçalves de Magalhães, um Marquez de Olinda, ou mais ou menos mesclados, como um Gon- çalves Dias, um Tobias Barreto, um visconde de Inhomirim. Ninguém dirá que Gonçalves Dias, por exemplo, tenha possuído mais talento e ilustração do que Gonçalves de Magalhães; mas quem contestará que ele foi mais brasileiro, isto é, tinha maior soma de qualidade que o separavam do genuíno espírito português e o aproximava de um tipo, ainda não bem definido, que nós chamaremos no futuro o verdadeiro 13Curiosamente, Romero apontou o catarinense João da Cruz e Sousa (1861-1898), mais desta- cada figura da poesia simbolista brasileira e preto retinto, como um grande nome da literatura nacional para o séc. XX, segundo aquilo que enxergava em perspectiva. Mais curiosamente ainda, esqueceu-se nesta passagem do jornalista e escritor abolicionista José do Patrocínio (1853-1905), um de seus inumeráveis desafetos, cuja presença em termos sociais e políticos no Rio de Janeiro foi sempre muitas vezes superior à do próprio Romero. Também esqueceu-se do jornalista, po- eta, advogado e ex-escravo Luiz Gama (1830-1882), que obteve a liberdade a mais de quinhentas pessoas em sua batalha jurídica contra o cativeiro — além de atender negros escravos ou libertos pobres, atendia imigrantes brancos em penúria, quando o patrão brasileiro não pagava o salário, em todos estes casos sem cobrar os honorários. Romero esqueceu-se igualmente de André Rebou- ças (1838-1898), abolicionista, engenheiro civil e militar, dos primeiros a compreenderem o imenso desafio dos recursos hídricos numa cidade como o Rio, e toda a problemática urbana diante do fenômeno da imigração. Esqueceu-se ainda do baiano Manuel Querino (1851-1923), desenhista, decorador e escritor, militante do abolicionismo e do movimento operário, fundador da Escola de Belas Artes e do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, empenhado na elaboração de uma antropologia afro-brasileira. Mas nenhum dos citados era negro “puro”, na opinião de Romero, embora Cruz e Sousa e Querino não tivessem quaisquer parentes brancos. Quanto a Luiz Gama, conheceu ele próprio a escravidão. [N. do E.] Sílvio Romero – Contos populares do Brasil xxvii nacional. “A nossa tese, pois, é que a vitória definitiva na luta pela vida e pela civilização, entre nós, pertencerá no futuro ao branco; mas que este, para esta mesma vitória, atentas as agruras do clima, tem neces- sidade de aproveitar-se do que de útil as outras duas raças lhe podem fornecer, máxime a preta, com que tem mais cruzado. “Pela seleção natural, todavia, depois de apoderado do auxílio de que necessita, o tipo branco irá tomando a preponderância, até mostra- se puro e belo como no velho mundo. Será quando já estiver de todo aclimatado no continente. Dois fatos contribuirão largamente para tal resultado: de um lado a extinção do tráfico africano e o desapareci- mento constante dos índios, e de outro lado a imigração europeia”.14 A raça primitiva e selvagem está condenada a um irremediável de- saparecimento.15 Dos dois povos invasores, o negro resistirá ainda por muito tempo; ir-se-á modificando no mestiço e ajudando, destarte, a formação do branco brasileiro, que acabará por triunfar de todo, não devendo, porém, nunca esquecer que foi ajudado pelas sofredoras e robustas raças americanas a conquistar este solo e a fundar uma na- cionalidade, que pode um dia ser ainda original e forte. A condenação à morte dos aborígenes é fato confirmado pela histó- ria de todas as invasões nos países habitados por povos selvagens, e não podemos melhor concluir estas páginas do que citando as seguin- tes palavras de Quatrefages sobre a Polinésia: “Ainsi, quelle qu’en soit la cause, le blanc a rendu le milieu polynésien meurtrier pour les in- digènes, tandis que lui même y prospère. Le resultant de cette double action est facile à prevoir. Encore un siècle et le blanc, pur ou métis, 14Escrito em 1870. Ver Literatura brasileira e crítica moderna, pág. 48 a 53. [N. do A.] 15De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, entre os censos de 1991 e 2010, o número de brasileiros que se apresentam como índios aumentou 205%, dentro e fora das terras demarcadas. Segundo relatório apresentado à ONU pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, Cepal, em 2014, o Brasil possui 900 mil indígenas, com 305 comunidades. 70 povos correm o risco do desaparecimento físico ou cultural. [N. do E.] 2 Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 1 O BICHO MANJALÉU (Sergipe) UMA VEZ EXISTIA UM VELHO casado que tinha três filhas muito bo- nitas; o velho era muito pobre e vivia de fazer gamelas para vender. Quando foi um dia chegou à sua porta um moço muito formoso, mon- tado num belo cavalo, e lhe falou para comprar uma de suas filhas. O velho ficou muito magoado, e disse que, por ser pobre, não havia de vender sua filha. O moço disse-lhe que se não lha vendesse o mata- ria; o velho intimidado vendeu-lhe a moça e recebeu muito dinheiro. Retirando-se o cavaleiro, o pai da família não quis mais trabalhar nas gamelas, por julgar não o precisava mais de então em diante; mas a mulher instou com ele para que não largasse o seu trabalho de cos- tume, e ele obedecia. Quando foi na tarde seguinte, apresentou-se um outro moço, ainda mais bonito, montado num cavalo ainda mais bem aparelhado, e disse ao velho que queria comprar-lhe uma de suas filhas. O pai ficou muito incomodado; contou-lhe o que lhe tinha acontecido no dia antecedente, e recusou-se ao negócio. O moço o ameaçou também de morte, e o velho cedeu. Se o primeiro deu muito dinheiro, este ainda deu mais e foi-se em- bora. O velho de novo não quis continuar a fazer as gamelas e a mulher o aconselhou até ele continuar. Pela tarde seguinte, apareceu outro cavaleiro ainda mais bonito, e melhor montado, e, pela mesma forma, carregou-lhe a filha mais moça, deixando ainda mais dinheiro. Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 3 A família cá ficou muito rica; depois apareceu a velha pejada18 e deu à luz um filho que foi criado com muito luxo e mimo. Quando chegou o tempo do menino ir para a escola, num dia brigou com um companheiro, e este lhe disse: “Ah! Tu cuidas que teu pai foi sempre rico!. . . Ele hoje está assim porque vendeu tuas irmãs!” O rapazinho ficou muito pensativo e não disse nada em casa; mas quando foi moço lá num dia se armou de um alfange e foi ao pai e à mãe e lhes disse que lhe contassem a história de suas três irmãs, senão os matava. O pai lhe teve mão,19 e contou o que se tinha passado antes dele nascer. O moço então pediu que queria sair pelo mundo para encontrar suas irmãs, e partiu. Chegando em um caminho, viu numa casa três irmãos brigando por causa de uma bota, uma carapuça e uma chave. Ele chegou e perguntou o que era aquilo, e para que prestavam aquelas coisas. Os três irmãos responderam que àquela bota se dizia: “Bota, me bota em tal parte!”, e a bota botava; à carapuça se dizia: “Esconde-me, carapuça!”, e ela escondia a pessoa que ninguém a via; e a chave abria qualquer porta. O moço ofereceu bastante dinheiro pelos objetos, os irmãos aceita- ram, e ele partiu. Quando se encobriu da casa, disse: “Bota, me bota na casa de minha irmã primeira.” Quando abriu os olhos estava lá. A casa era um palácio muito ornado e rico, e o moço mandou pedir licença para entrar e falar com a irmã, que estava feita rainha. Ela não queria aparecer, porque dizia que nunca tinha tido irmão. Afinal, depois de muita instância, deixou o estrangeiro entrar; ele contou toda a sua história, a irmã o acreditou, e o tratou muito bem. Perguntou-lhe como podia ter chegado ali àquelas brenhas, e o ir- mão disse-lhe o poder da bota. Pela tarde, a rainha se pôs a chorar e o irmão lhe indagou da razão, ao que ela respondeu que seu marido era o rei dos peixes, e, quando vinha jantar, era muito zangado, em termos de acabar com tudo e não queria que ninguém fosse ter ao seu palá- 18Grávida. [N. do E.] 19Ter mão; ter mão em: impedir que alguém cometa um desatino; tomar cautela. [N. do E.] 4 Sílvio Romero – Contos populares do Brasil cio. . . O moço disse-lhe que por isso não se incomodasse, que tinha com que se esconder e não ser visto, e era a carapuça. Pela tarde, veio o rei dos peixes, acompanhado de uma porção de outros, que o deixaram na porta do palácio e se retiraram. Chegou o rei muito aborrecido, dando pulos e pancadas, dizendo: “Aqui me fede a sangue real, aqui me fede a sangue real!. . . ”, do que a rainha o dissuadia; até que ele tomou o banho e se desencantou num belo moço. Seguia-se o jantar, no qual a rainha perguntou-lhe: “Se aqui viesse um irmão meu, cunhado seu, você o que fazia?” — “Tratava e venerava como a você mesma; e se está aí, apareça”. Foi a resposta do rei. O moço apareceu, e foi muito considerado. Depois de muita conversação, em que contou sua viagem, foi instado para ficar ali, morando com a irmã, ao que disse que não, porque ainda lhe restavam duas irmãs a visitar. O rei lhe indagou que préstimo tinha aquela bota, e quando soube do que valia disse: “Se eu a apanhasse ia ver a rainha de Castela.” O moço, não querendo ficar, despediu-se, e, no ato da saída, o cunhado lhe deu uma escama, e disse-lhe: “Quando você estiver em algum pe- rigo, pegue nesta escama, e diga: ‘Valha-me o rei dos peixes!”’ O moço saiu, e, quando se encobriu do palácio, disse: “Bota, me bota em casa de minha irmã segunda”; e, quando abriu os olhos, lá estava. Era um palácio ainda mais bonito e rico do que o outro. Com alguma dificul- dade da parte da irmã, entrou e foi recebido muito bem. Depois de muita conversa, a sua irmã do meio se pôs a chorar, dizendo que era “por estar ele ali, e, sendo seu marido rei dos carneiros, quando vinha jantar, era dando muitas marradas, em termos de matar tudo”. O irmão apaziguou-a, dizendo que tinha onde se esconder. Dali a pouco chegou uma porção de carneiros com um carneirão muito alvo e belo na frente; este entrou e os outros voltaram. (Segue-se uma cena em tudo semelhante à que se passou na casa do rei dos peixes.) Na despedida, o rei dos carneiros deu ao cunhado uma lãzinha, di- zendo: “Quando estiver em perigo, diga: ‘Valha-me o rei dos carnei- ros!”’ Também disse, depois de saber a virtude da bota: “Se eu pegasse Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 7 garam muitos pombos e correram atrás da pomba até que a pegaram. O príncipe abriu-a e achou o ovo. Quando estava nisto, lá o Manja- léu estava muito desfalecido, pegou no alfange e ia dando um golpe na princesa. Foi quando cá o príncipe quebrou o ovo, e apagou a vela; aí o bicho caiu sem ferir a moça. O príncipe foi ter com ela, e levou-a para palácio, onde houve muitas festas. 8 Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 2 OS TRÊS COROADOS (Sergipe) FOI UM DIA, HAVIA TRÊS MOÇAS já órfãs de pai e mãe. Uma vez, elas estavam todas três na sacada de seu sobrado, quando viram passar o rei. A mais velha disse: “Se eu me casasse com aquele rei, fazia-lhe uma camisa como ele nunca viu.” A do meio disse: “Se eu me casasse com ele lhe fazia uma ceroula como ele nunca teve.” A caçula disse: “E eu, se me casasse com ele, paria três coroados”. O rei ouviu perfeitamente a conversa, e, quando foi no dia seguinte, foi ter à casa das moças e lhes disse: “Apareça a moça que disse que, se se casasse comigo, paria três coroados.” A moça apareceu, e o rei levou-a, e casou-se com ela. As irmãs ficaram com muita inveja e fin- giram não tê-la. Quando a moça apareceu grávida, as irmãs meteram- se dentro do palácio, com aparências de ajudá-la em seus trabalhos. Aproximando-se o tempo de dar a rainha à luz, as suas irmãs se ofe- receram para servi-la e a dispensar a parteira. Chegado o dia, elas muniram-se de um sapo, uma cobra e um gato. Quando nasceram os três coroados, elas os esconderam dentro de uma boceta; e mandaram largar no mar. Apresentaram então ao rei os três bichos, dizendo: “Aí estão os coroados que aquela impostora pariu!” O rei ficou muito des- gostoso e mandou enterrar a mulher até aos peitos, perto da escada do palácio, dando ordem a quem por ali passasse para cuspir-lhe no rosto. Assim se fez. Mas um velho pescador encontrou no mar a bo- ceta, apanhou-a, e abriu e encontrou os três meninos ainda vivos e muito lindinhos. Ficou muito alegre, e levou-os para casa para criar. A velha, sua mulher, se desvelou muito no trato das crianças. Quando Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 9 estas cresceram a ponto de poderem ir para a escola, foram e passa- vam sempre pelo palácio do rei. As cunhadas dele viram, por vezes, passar os meninos e os conheceram. Um dia os chamaram, e se puseram com muitos agrados com eles, e lhes deram de presente três frutas envenenadas, a cada um a sua. Os meninos comeram as frutas, e viraram todos três em pedra. Os velhos ficaram muito aflitos com aquilo, e toda a cidade falou no caso. Mas a velha, que era adivinha, disse ao marido: “Não tem nada; eu vou à casa do Sol buscar um remédio para as três pedras virarem outra vez em gente.” Partiu montada a cavalo. Depois de andar muito tempo, encontrou um rio muito grande e bonito. O rio lhe disse: “Ó minha avó, aonde vai?” A velha respondeu: “Vou à casa do Sol para ele me ensinar que remédio se deve dar a quem virou para pedra para tornar a virar para gente.” O rio lhe disse: “Pois então pergunte também a ele a razão por quê, sendo eu um rio tão bonito, grande e fundo, nunca criei peixe.” A velha seguiu. Adiante encontrou um pé de fruta muito copado e bonito; mas sem uma só fruta. Ao avistar a velha, a árvore disse: “Onde vai, minha velhinha?” — “Vou à casa do Sol buscar uma mezinha para gente que virou pedra.” — “Pois pergunte a ele a razão por quê, sendo eu tão grande, tão verde e tão copada, nunca dei um só fruto. . . ” A caminheira seguiu. Depois de andar muito, passou pela casa de três moças, todas três solteiras e já passando da idade de casar. As moças lhe disseram: “Onde vai, minha avó?” A velha contou onde ia. Elas lhe pediram para indagar do Sol o motivo por quê, sendo elas tão formosas, ainda se não tinham casado. A velha partiu e continuou a caminhar. Ainda depois de muito tempo é que chegou à casa da mãe do Sol. A dona da casa recebeu- a muito bem; ouviu toda a sua história e encomendas que levava, e escondeu-a em razão de seu filho não querer estranhos em sua casa, e quando vinha era muito zangado e queimando tudo. Quando o Sol chegou vinha desesperado e estragando tudo o que achava: “Fum. . . aqui me fede a sangue real!. . . aqui me fede a sangue real!. . . ” — “Não é nada não, meu filho, é uma galinha que eu matei 12 Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 3 O REI ANDRADA (Sergipe) HAVIA UM REI DE NOME ANDRADA, que tinha três filhas, e lhes disse que o que sonhassem lhe contassem todos os dias pela manhã. Uma delas, logo no dia seguinte, contou ao rei um sonho que foi o seguinte: “Sonhei que havia de mudar de estado nestes poucos dias, e cinco reis haviam de me beijar a mão, e entre eles el-rei meu pai.” O rei ficou muito zangado com a filha e lhe ordenou que, se de novo sonhasse aquilo, não lhe contasse mais, senão a mandaria matar. A moça tornou a sonhar coisa semelhante, e pela manhã, apesar de lhe rogarem as irmãs, ela contou o sonho ao pai. Ele mandou matá-la, e cortar-lhe o dedo mendinho que os matadores lhe deviam trazer. Os criados do rei levaram a princesa para um ermo, e tiveram pena de a matar; cortaram-lhe somente o dedo, que levaram ao rei, dei- xando a moça nas brenhas. Ela começou a caminhar, e, muito longe, encontrou um buraco, e entrou por ele dentro, e, quanto mais entrava, mais o buraco se alargava até que ela foi dar num rico palácio. Aí ela tinha o almoço, a janta, e a ceia, sem ver ninguém, porque o palácio era encantado. Apenas ela ouvia, de um quarto que estava fechado, fa- lar um papagaio. Depois de alguns dias, apareceu-lhe um lindo moço que lhe deu a chave do quarto, e disse que o abrisse e respondesse ao papagaio coisa que fizesse sentido ao que ele dissesse. O moço desa- pareceu. A princesa abriu a camarinha, e o papagaio, que era muito grande e bonito, e das asas douradas, ficou muito alegre, sacudindo-se todo, e disse: Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 13 “Como vem a filha Do rei Andrada Tão bonita, Tão formosa, E tão ornada!” — Ó meu papagaio dourado, Eu das tuas ricas penas Pretendo fazer um toucado. Aí o papagaio desencantou-se no lindo moço que dantes lhe tinha aparecido, o qual moço mandou logo vir um padre e se casou com a princesa, mandando convidar cinco reis, que no cortejo beijaram a mão de sua noiva. No meio deles veio o rei Andrada. Todos os outros beija- ram a mão da princesa, e, quando chegou a vez do rei Andrada, a nova rainha não lhe quis dar a mão; pelo que ele ficou muito injuriado, e foi queixar-se ao rei seu amigo, e dono da casa. O noivo, indo perguntar a razão daquilo, a moça lhe contou a sua história, o que sabendo o rei Andrada foi pedir perdão à sua filha. 14 Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 4 O PINTO PELADO (Sergipe) FOI UM DIA UM PINTO PELADO estava pinicando num terreiro, achou um papelzinho e disse: “Bravo!, vou levar esta carta ao rei, meu se- nhor.” E partiu. Chegando adiante, encontrou uma raposa, que lhe disse: “Aonde vai, pinto pelado?” — “Quirrichi; vou levar esta carta a rei, meu senhor.” — “Apois eu também quero ir.” — “Apois entre aqui no meu oveiro”, respondeu o pinto. A raposa entrou e o pinto seguiu. Chegando mais adiante encontrou um rio, que lhe perguntou: “Aonde vai, pinto pelado?” — “Quirrichi; vou levar esta carta a rei, meu se- nhor.” — “Eu também quero ir.” — “Apois entre aqui no meu oveiro.” Seguiu. Chegando adiante encontrou um espinheiro, que lhe pergun- tou: “Aonde vai, pinto pelado?” — “Quirrichi; vou levar esta carta a rei, meu senhor.” — “Eu também quero ir.” — “Apois entre aqui no meu oveiro.” Seguiu, e, depois de muito andar, foi ter no palácio do rei. Entrou e entregou a carta. O rei se zangou por aquele atrevimento do pinto lhe ir levar um papel sujo, e o mandou jogar entre as galinhas e galos do poleiro, que muito o espancaram. Aí o pinto largou a raposa que caiu em cima dos galos e galinhas e acabou com tudo. O pinto largou-se para trás a toda a pressa. O rei, quando deu por falta de suas galinhas, mandou pegar o pinto. Saiu gente atrás dele. Mas o pinto quando avistou a gente largou o rio. Foi água por cima do tempo,21 e a gente não pôde 21“Por cima do tempo”: por demais; em quantidade ou intensidade mais que suficiente, ou mais que esperada. [N. do E.] Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 17 queiro das ovelhas, porque bicho com bicho se acomodavam bem. O homem assim fez. Tarde da noite, Pedro foi ao logar onde estavam os perus, e matou-os a todos labreando de sangue as ovelhas. Pela ma- nhã levantou-se bem cedo e pediu ao dono da casa os seus perus. O homem indo-os buscar achou-os mortos, e voltou muito aflito, dizendo: “Pedro, não sabe? As ovelhas mataram os seus perus.” Ouvindo isto, Malasartes fez um grande espalhafato, gritando que o homem tinha morto os perus do rei e recebeu seis ovelhas pelos perus. Largou-se, indo dormir na casa de um homem que tinha um curral de bois. Aí ele fez as mesmas artimanhas, até pegar seis bois pelas seis ovelhas. Mais adiante, ele encontrou uns vendilhões de ouro e trocou os bois por ouro. Mais adiante encontrou uns homens que iam carregando uma rede com um defunto. Pedro perguntou quem era, disseram-lhe que era uma moça. Ele pediu para ir enterrá-la e eles deram. Logo que os homens se ausentaram, ele tirou a moça da rede, encheu-a de bastante ouro e enfeites, e foi ter com ela nas costas à casa de um ho- mem rico que havia ali perto. Pediu rancho, e disse às filhas do tal homem que aquela era a filha do rei que estava doente, e ele andava passeando com ela, e pediu que a fossem deitar. Foram levar a moça para uma camarinha indo Malasartes com ela, dizendo que só com ele ela se acomodava. Deitou a moça defunta na cama e retirou-se, di- zendo às donas da casa: “Ela custa muito a dormir, ainda chora como se fosse uma criança, quando chorar metam-lhe a correia.” Alta noite, Pedro foi e se escondeu debaixo da cama onde estava a morta e pôs-se a chorar como menino. As moças da casa, supondo ser a filha do rei, deram-lhe muito até ela se calar, que foi quando Pedro se calou. De- pois ele escapuliu e foi para seu quarto. De manhã ele pediu a moça, que queria ir-se embora. Foram ver a filha do rei, e nada de a poderem acordar. Afinal conheceram que estava morta, e vieram dar parte a Malasartes. Ele pôs as mãos na cabeça, dizendo: “Estou perdido; vou para a forca; me mataram a filha do rei!. . . ” Os donos da casa ficaram muito aflitos, e começaram a oferecer coisas pela moça, e Pedro sem querer aceitar nada, até que ele mesmo exigiu três mulatas das mais 18 Sílvio Romero – Contos populares do Brasil moças e bonitas. O homem rico as deu, e Pedro disse que dava uma desculpa ao rei sobre a morte de sua filha, e lhe dava de presente as três mulatas, para o rei não se agastar muito. Malasartes largou-se e foi logo para palácio, onde entregou ao rei as três mulatas com este dito: “Eu não disse a Vossa Majestade que lhe dava três mulatas pelas três botijas de azeite? Aí estão elas.” O rei ficou muito admirado. Entrou por uma porta, Saiu por outra; Manda o rei, meu senhor, Que me conte outra. Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 19 6 O SARGENTO VERDE (Sergipe) HAVIA UM HOMEM RICO que tinha uma filha muito formosa; apare- ceu uma vez um moço também muito bonito que quis casar com ela. Contrataram o casamento. Mas Nossa Senhora, que era madrinha da noiva, lhe apareceu e disse: “Minha filha, tu vais te casar com o cão.23 Quando for no dia do casamento, depois da festa acabada, teu marido há de querer te levar para casa dele; tu, então, deves dizer a teu pai que só queres ir no cavalo mais magro e feio de todos, e quando che- gares a um logar da estrada onde faz cruz, teu marido há de tomar pela esquerda, tu deves tomar pela direita e mostrar-lhe o teu rosário para ele estourar e sumir-se para o inferno.” 24 Passou-se. Quando foi no dia do casamento houve muito pagode e divertimento; mas a moça sempre triste. Quando chegou a hora da partida veio um cavalo muito bonito e muito bem arreado para a moça se montar. Ela disse ao pai que não queria aquele, e só o mais feio e magro. O pai se espantou muito e não quis concordar; afinal foi obrigado a fazer os gostos da filha. Parti- ram os noivos; quando chegaram longe da casa havia no caminho uma encruzilhada; aí o cão quis botar a moça adiante pelo lado esquerdo. Então a moça disse: “Vá o senhor adiante que sabe do caminho de sua casa e não eu que nunca lá fui.” O cão aí se zangou; mas a moça to- mou pela estrada da direita, mostrando-lhe o rosário. O cão estourou, 23Denominação popular do Diabo. [N. do A.] 24É crença popular que o Diabo, quando se vira em alguma pessoa ou animal, e depois se desen- canta, dá um estouro que fede a enxofre. [N. do A.] 22 Sílvio Romero – Contos populares do Brasil Olhando para trás, lá vinha o bicho outra vez; largou a carta de alfine- tes e gerou-se uma mata serrada de espinhos e a fera não pôde passar. Já perto de palácio a moça disse: “Tudo!”, ele de novo tomou sentido, e chegaram ao fim da viagem, havendo muita alegria e muitas festas, e a rainha ainda mais perdida ficou pelo Sargento Verde. No entanto a princesa encantada não falava; estava muda. Com pouco a rainha levantou um quinto aleive ao Sargento, e foi dizer ao rei que ele se atrevia, segundo dissera, a dar fala à muda. O Sargento foi, como sempre, ter com o seu cavalo, que lhe disse: “Não tenha medo; na hora do almoço dê com uma corda na moça, até ela dizer qual foi a primeira palavra que disse ao sair do mar, e o que ela quer dizer; no jantar faça o mesmo, e indague pela segunda; na ceia o mesmo e indague pela terceira, e a princesa ficará falando”. Assim fez ele. No almoço do dia seguinte meteu a corda na princesa com as palavras: “Fale, moça! Qual a palavra que disse ao sair do mar?” A moça calada, e ele a dar-lhe, até que ela disse: “Já!” — “O que quer dizer?” A muito custo ela disse: “Já quer dizer ‘já estou livre de tantos trabalhos.’” No jantar houve o mesmo, e a princesa disse: “Bela! quer dizer ‘são duas donzelas, ela e o Sargento Verde que se chama Lucinda.’” Na ceia o mesmo, e ela disse a última palavra, que quer dizer: “Tudo!; se Lucinda fosse homem, há muito el-rei, meu irmão, seria cornudo.” Houve muito espanto de tudo aquilo; o Sargento Verde voltou aos trajos de moça; a princesa ainda ficou no palácio e falando, e o cavalo do Sargento desencantou-se num lindo moço. Este se casou com a princesa desencantada; o rei se casou com Lucinda, porque a rainha morreu amarrada em dois burros bravos, por ordem de seu marido. Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 23 7 A PRINCESA ROUBADEIRA (Sergipe) HAVIA UM PAI QUE TINHA três filhos; um deles plantou um pé de la- ranjeira, outro um pé de limeira, e o terceiro um pé de limoeiro. Lá num dia, o filho mais velho foi ao pai e lhe disse: “Meu pai, eu já estou moço feito, quero sair pelo mundo para ganhar a minha vida.” O pai o aconselhou para não fazer aquilo; mas o moço instou e afinal o velho lhe disse: “Pois bem, meu filho, vai, mas tu que queres — a minha benção com pouco dinheiro, ou a minha maldição com muito?” O moço respondeu que queria a maldição com muito dinheiro, e assim o pai fez. O moço disse aos irmãos que quando a sua laranjeira começasse a murchar, era ele que estava em trabalhos, e lhe acudissem. Par- tiu. Chegando adiante, já muito cansado e com muita fome, avistou uma fumacinha ao longe e para lá se encaminhou. Era a casa de uma senhora muito rica. Pediu um agasalho e o que comer28; a senhora mandou dar-lhe de jantar. Acabada a janta, o convidou para dar um passeio em sua horta; antes de chegar a ela tinha de passar um riachi- nho. Aí a moça, que era a Princesa Roubadeira, suspendeu bastante o vestido a ponto de deixar ver um tanto das pernas. Passeavam na tal horta, que só tinha couves e mais nada. De volta, a princesa per- guntou ao hóspede: “Então, o que achou mais bonito na minha horta?” Ele respondeu: “Couves.” A moça convidou-o ao depois para o jogo, no qual lhe ganhou todo o dinheiro que levava. Acabado o jogo, mandou-o prender e sustentar de couves. Lá em casa do moço a sua laranjeira começou a murchar. O irmão do meio, vendo isto, foi ao pai e disse: 28Pediu para ser hospedado, e também o que comer. [N. do E.] 24 Sílvio Romero – Contos populares do Brasil “Meu pai, meu irmão está em trabalhos; eu quero ir atrás dele.” O pai custou muito a consentir e a final perguntou: “Tu o que queres — a minha benção com pouco dinheiro, ou a minha maldição com muito dinheiro?” Ele quis a maldição com muito dinheiro. O pai assim fez. O moço partiu. Depois de andar muito, já cansado e com fome, avistou ao longe uma fumacinha, e caminhou para ela. Apareceu-lhe, num pa- lácio, uma linda moça, a quem ele pediu de comer e um agasalho. Ela mandou-o entrar, e servir-lhe de jantar. Depois convidou-o para dar um passeio na horta, e ele aceitou. No passar o riachinho a princesa suspendeu os vestidos, deixando ver as pernas. De volta, ela pergun- tou ao hóspede: “Então, o que viu de mais bonito em minha horta?” Ele respondeu: “Couves.” Lá consigo a moça disse: “Este é como o ou- tro.” Convidou-o para jogar; ganhou-lhe todo o dinheiro, e mandou-o prender e cevar de couves. Lá em casa dele a limeira começou a mur- char, e o irmão mais moço, vendo isto, foi ao pai e disse-lhe: “Meus irmãos, que foram ganhar a vida, estão em perigo, e eu quero ir ao seu encontro.” O pai observou: “Meu filho, eu já estou velho, e sendo tu meu filho único não te vás também embora.” O moço insistiu, e o pai lhe falou: “Então o que queres — minha maldição com muito dinheiro, ou minha benção com pouco?” O filho respondeu: “A benção com pouco dinheiro.” Partiu. Chegando bem longe, encontrou uma velhinha, que era Nossa Senhora, que lhe disse: “Aonde vai, meu netinho?” Ao que respondeu: “Vou ganhar a minha vida.” A velha lhe deu uma toalha, dizendo: “Quando tiveres fome, pega nela e diz: ‘põe a mesa, toalha!’, e a mesa aparecerá.” Deu-lhe mais uma bolsa, dizendo: “Esta bolsa tem o mesmo préstimo.” Deu também uma violinha, dizendo: “Quando se acabar a toalha e a bolsa, põe-te a tocar nela e não hás de ter fome.” O moço seguiu o seu caminho; ao longe avistou uma fumacinha e dirigiu- se para lá. Foi ter a uma casa onde estavam presos os seus dois irmãos. Aí descansou e jantou. A Princesa Roubadeira o convidou para dar um passeio na sua horta; o moço aceitou e foram. Ao passar o riachinho, a linda moça levantou os vestidos e mostrou as pernas quase todas. O moço botou os olhos com cuidado. De volta, a princesa perguntou- Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 27 8 O PÁSSARO PRETO (Pernambuco) UMA VEZ UM HOMEM POBRE tinha um pássaro preto que estimava muito, e, tendo um filho muito travesso, foi um dia o menino levar a comida ao pássaro e o soltou. O pássaro voou e levou o menino preso pelo bico. Depois de uma grande viagem, largou-o num rico palácio. Mandou pôr a mesa para o almoço, a qual apareceu bem preparada, e, tendo ele de sair logo depois, deu ao pequeno uma chave, dizendo que só abrisse o primeiro dos quartos que havia na frente da sala, e que eram sete. O menino, logo que o padrinho (assim chamava ao pássaro) saiu, foi e abriu o primeiro quarto, e lá encontrou grande porção de ca- valos; ele se divertiu a ponto de se esquecer de comer. No dia seguinte o pássaro, antes de sair, deu-lhe a chave do segundo quarto, e ele o abriu e encontrou uma porção de selins e arreios. Assim o pássaro foi- lhe dando as diferentes chaves dos quartos até o quinto. O terceiro era cheio de moças brancas, o quarto de mulatinhas, e o quinto de espa- das. Passaram-se tempos e o menino ficou moço feito, e pedia tudo ao padrinho, que lhe respondia que, se ele lhe fizesse sempre a vontade, seria dono de tudo o que ali havia. Depois de vistos os cinco quartos, o padrinho deu-lhe a sexta chave; mas lhe dizendo que não abrisse aquele quarto, do contrário perderia tudo que ele lhe havia prometido. O moço, não se podendo conter, foi infiel, e abrindo o quarto, achou um belo rio de prata, e nele meteu o dedo, que ficou prateado. Pensando que o padrinho não viesse a descobrir, enrolou o dedo numa tirinha de pano; mas o pássaro que adivinhava tudo, quando chegou, viu o dedo atado, e lhe disse: “Já sei que abriste o quarto!”, ao que ele respon- 28 Sílvio Romero – Contos populares do Brasil deu com medo: “Abri, meu padrinho, mas vosmecê não me castigue.” Disse-lhe o padrinho: “O castigo será amanhã quando de novo me de- sobedeceres.” Deu-lhe a chave do sétimo quarto, e saiu. O moço não se conteve, e abriu o quarto, onde havia um rio de ouro. Quando o pássaro voltou deu-lhe o castigo prometido: tirou-lhe a roupa e mergulhou-o no rio de prata, e, ao depois, no rio de ouro, e, quando acabou, deitou- o fora de casa, dando-lhe uma varinha de condão. O moço começou a andar e foi ter a um reino. Aí encontrou um negro velho, a quem chamou Pai Gaforino, e lhe pediu que lhe cedesse a sua roupa velha e suja para encobrir a sua cor e poder entrar na cidade. O negro cedeu; mas uma princesa, que estava na janela do palácio, chegou a ver ele vestir a roupa velha do preto, e, conhecendo que ele se encaminhava para o palácio, disse ao rei que queria se casar com o pior negro que ali chegasse. O pai, ficando admirado pelo mau gosto da filha, não teve outro remédio senão mandar chamar o negro e contratar o casamento, com o que o moço disfarçado em negro ficou espantadíssimo, porque não pensava que tivesse sido visto por ninguém. Aceitou a princesa por mulher, e, sempre muito desconfiado, não se deitava na cama com ela, e sim numa tábua ao pé do fogo. O rei teve tão grande desgosto, que pôs-se de cama em estado de morrer. A família então fez uma pro- messa à Padroeira que, se o rei escapasse, mandava fazer uma festa na igreja que durasse três dias. O médico receitou ao rei que comesse três pássaros de plumas; e tendo sabido o negro que os dois genros, que o rei tinha, haviam saído a procurar os pássaros, cada qual mon- tado em seu cavalo, pediu à sua varinha de condão uma carruagem e um rico vestuário e três pássaros de plumas. Meteu-se na carrua- gem com os pássaros, e saiu; mais adiante encontrou os genros do rei. Eles perguntaram se aqueles pássaros eram de pluma e se os queria vender. Respondeu que eram de pluma, mas que só os cedia se deixas- sem ele os ferrar a cada um num quarto com o seu ferro.29 Os moços consentiram, e voltaram para o palácio com os três pássaros, que o rei 29Ferrar os quartos: passar o ferro em torno ao quadris, para prender o escravo a uma corrente. [N. do E.] Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 29 comeu e ficou bom. Seguiu-se a festa dos três dias. O negro mandou que sua mulher fosse à igreja ver a festa, e, ocultamente, pediu à sua varinha de condão que lhe desse uma linda carruagem e um vestido da cor do campo com todas as suas flores. Assim foi, e a mulher se- guiu. Depois ele pediu a mesma coisa para si e lá se apresentou com tanta rapidez que a mesma mulher não podia pensar que fosse ele. As duas irmãs casadas que a princesa tinha, com inveja, e desconfiadas, estando na igreja, diziam escarnecendo: “Com um moço assim é que tu devias ter casado e não com um negro.” Ela recebeu tudo com tristeza. No segundo dia de festa, o negro pediu à varinha de condão que fizesse aparecer uma carruagem inda mais rica e um vestido cor do mar, com todos os seus peixinhos, e para ele a mesma coisa, tudo isto sem a mu- lher saber; e quando voltaram todos da festa, já ele estava no palácio aquentando fogo com sua roupa de negro. No terceiro dia pediu uma carruagem ainda mais rica e um vestido da cor do céu com todas as suas estrelas, e o mesmo para ele. Neste mesmo dia houve festa em palácio e foram convidados todos os genros do rei e mais mulheres, que se apresentaram muito ricamente vestidas. Então o preto apresentou- se na sua cor verdadeira, e nos mesmos trajos com que estava no dia em que ferrou os cunhados, por seus cativos. Eles ficaram muito es- pantados, e ainda mais quando o moço foi chamado para a mesa, e disse que não se assentava na mesma mesa com os seus cativos. En- tão o rei lhe perguntou quais eram ali os seus escravos, e ele apontou para os seus dois concunhados que estavam ferrados nos quartos, como el-rei podia examinar. O sogro os chamou para uma camarinha, e lá ficou convencido da realidade, sendo que as mulheres dos dois moços se atiraram da varanda do palácio abaixo, e eles as acompanharam, ficando o rei tão desgostoso que em pouco tempo morreu, ficando o Pai Gaforino senhor de todo o reino. 32 Sílvio Romero – Contos populares do Brasil galinhas.” — “Não digas isto, meu filho; aquela pobre tinha roupa tão fina e rica? Vai ver como ela está lá embaixo porca e esmolambada.” O príncipe foi onde estava a criada e lhe disse: “Ó criadeira de galinhas, eu hoje vi na festa uma moça que só se parecia contigo. . . ” — “Oxente, príncipe, meu senhor, quer mangar comigo. . . Quem sou eu?” No ou- tro dia, nova festa, e a criadeira de galinhas foi às escondidas com o seu vestido de cor de mar com todos os seus peixes, e numa carruagem ainda mais rica. Ainda mais apaixonado ficou o príncipe sem saber de quem. No terceiro dia a mesma coisa, e a criadeira de galinhas levou o vestido cor de céu com todas as suas estrelas. O príncipe ficou tão en- tusiasmado que foi se pôr ao pé dela e lhe atirou no colo uma joia que ela guardou. Chegando a palácio, o príncipe caiu doente de paixão e foi para cama. Não queria tomar nem um caldo; a rainha rogava a todas as pessoas para lhe levarem algum caldo, para ver se ele aceitava, e era mesmo que nada. Afinal só faltava a criadeira de galinhas, e a rai- nha mandou-a chamar para levar o caldo ao príncipe. Ela respondeu: “Ora dá-se! Rainha, minha senhora, quer caçoar comigo? Quem sou eu para o príncipe, meu senhor, aceitar um caldo da minha mão? O que eu posso fazer é preparar um caldo para mandar a ele.” A rainha concordou, e a criada preparou o caldo, e botou dentro da xícara a joia que o príncipe lhe tinha dado na igreja. Quando ele meteu a colher e viu a joia, pulou da cama contente e dizendo que estava bom, e queria se casar com aquela moça que servia de criadeira de galinhas. Mandaram-na chamar, e, quando ela veio, já foi pronta, como quando ia à festa. Houve muita alegria e muito banquete, e a princesa Maria se casou com o príncipe; mas se esqueceu de chamar pelo nome de Labismina, que não se desencantou, e, por isso, ainda hoje o mar dá urros e se enfurece às vezes. Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 33 10 A RAPOSINHA (Sergipe) FOI UM DIA, SAIU UM PRÍNCIPE a correr terras atrás de arranjar um remédio para seu pai que estava cego. Depois de muito andar, o prín- cipe passou por uma cidade e viu uns homens estarem dando de ca- cete num defunto. Chegou perto e perguntou por que faziam aquilo. Responderam-lhe que aquele homem tinha-lhes ficado a dever, e que por isso estava apanhando, depois de morto, segundo o costume da terra. O príncipe, que ouvia isto, pegou e pagou todas as dívidas do defunto e o mandou enterrar. Seguiu sua viagem. Adiante encontrou uma raposinha, que lhe disse: “Aonde vai, meu príncipe honrado?” O moço respondeu: “Ando caçando uma mezinha para meu pai que ficou cego.” A raposinha então lhe disse: “Para isto só há agora um remédio, que é botar nos olhos do rei um pouquinho de sujidade de um papagaio do reino dos papagaios. Meu príncipe, vá ao reino dos papagaios, entre, à meia-noite, no lugar onde eles estão, deixe os papagaios bonitos e fa- ladores que estão em gaiolas muito ricas, e pegue num papagaio triste e velho que está lá num canto, numa gaiola de pau, velha e feia.” O príncipe seguiu. Quando chegou no reino dos papagaios, ficou esbaba- cado de ver tantas e tão ricas gaiolas de diamantes, de ouro e de prata; nem procurou o papagaio velho e sujo que estava lá num canto; agar- rou na gaiola mais bonita que viu, e partiu para trás. Quando ia saindo o papagaio deu um grito, acordaram os guardas, e o perseguiram, até pegá-lo. “O que queres com este papagaio? Hás de morrer”, disseram os guardas. O príncipe, com muito medo, lhes contou a história de seu pai; então eles disseram: “Pois bem; só te damos o papagaio se tu fores 34 Sílvio Romero – Contos populares do Brasil ao reino das espadas, e trouxeres de lá uma espada.” O moço, muito triste, aceitou e partiu. Chegando adiante lhe apareceu a mesma ra- posinha, e lhe disse: “Então, meu príncipe honrado, o que tem, que vai tão triste?” O moço lhe contou o que lhe tinha acontecido; e a raposa respondeu: “Eu não lhe disse!? Você para que foi pegar num papagaio bonito, deixando o velho e feio? Apois bem; vá ao reino das espadas; entre à meia-noite. Você lá há de ver muitas espadas de todas as qua- lidades, de ouro, de brilhante e de prata, não pegue em nenhuma. Lá num canto tem uma espada velha e enferrujada; pegue nessa.” O moço seguiu. Quando chegou ao reino das espadas, ficou esbabacado, vendo tantas espadas e tão ricas. De teimoso, disse: “Ora tanta espada rica, e eu hei de pegar numa ferrugenta!” Pegou logo na mais bonita que viu. Quando ia saindo, a espada deu um trinco tão forte que os guar- das acordaram, pegaram o moço e o quiseram levar ao rei. O príncipe contou então a sua história, e os guardas, com pena, disseram: “Nós só lhe damos uma espada se você for ao reino dos cavalos e trouxer de lá um cavalo.” O moço seguiu muito desapontado. Adiante numa encru- zilhada encontrou a raposinha: “Aonde vai, meu príncipe honrado?” O moço contou tudo. “Ah! Eu não lhe disse!? Para que não seguiu o meu conselho? Vá no reino dos cavalos, e entre à meia-noite. Você lá há de encontrar muitos cavalos gordos e de todas as cores, todos apare- lhados, não pegue em nenhum. Lá num canto está um cavalo velho e feio, pegue nesse.” O moço seguiu. Quando entrou no reino dos cavalos caiu-lhe o queixo no chão: “Ora tantos cavalos bonitos, e eu hei de ficar com um diabo velho e magro!” E pegou num dos mais gordos e lindos. O cavalo deu um rincho tão grande que os guardas acordaram e pren- deram o príncipe. Ele, com muito susto, contou toda a sua história. Os guardas responderam: “Apois sim; nós lhe damos um cavalo se você for furtar a filha do rei.” Aí o moço disse: “Então me deem um cavalo para ir montado.” Eles concederam. O moço seguiu; quando ia adiante, lhe apareceu outra vez a raposinha: “Onde vai, meu príncipe honrado?” Ele contou tudo. A raposa disse: “Pois veja: eu sou a alma daquele homem que estava apanhando de cacete depois de morto e de que você Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 37 alguns dias, o gigante, que andava com vontade de matar o homem pe- queno, lhe alevantou outro aleive: “Oh, homem pequeno! Tu disseste que te atrevias a fazer da ilha dos bichos bravos um jardim cheio de flores de todas as qualidades, e com um cano a deitar, a despejar água, tudo numa noite?” — “Senhor, eu não disse isto, mas como vossemecê ordena eu irei fazer.” Saiu dali mais morto do que vivo, e foi ter com Guimara, que lhe disse: “Não tem nada; eu hoje hei de fazer tudo de noite.” Assim foi. De noite ela fugiu de seu quarto, e, com o homem pe- queno, trabalhou toda a noite, de maneira que no outro dia lá estava o jardim cheio de flores, e com um cano a jorrar água; era uma obra que dar-se podia. O gigante, dono da casa, foi ver a obra e ficou muito espantado, e, então, formou o plano de ir à noite ao quarto de Guimara e ao do homem pequeno para os matar. A moça, que era adivinha, co- municou isto a D. João, e convidou-o para fugir, deixando nas camas em seu lugar duas bananeiras cobertas com os lençóis para enganar ao pai. Alta noite fugiram montados no melhor cavalo da estrebaria, o qual caminhava cem léguas de cada passada. O pai quando os foi matar os não encontrou, e disse o caso à mulher, que lhe aconselhou que partisse atrás montado no outro cavalo que caminhava cem léguas de cada passada, e seguisse a toda a brida. O gigante partiu, e, quando ia chegando perto dos fugitivos, Guimara se virou riacho e D. João um negro velho, o cavalo num pé de árvore, a sela numa leira de cebo- las, e a espingarda, que levavam, num beija-flor. O gigante, quando chegou ao riacho, se dirigiu ao negro velho, que estava tomando ba- nho: “Oh, meu negro velho! Você viu passar aqui um moço com uma moça?” O negro não prestava atenção, margulhava n’água, e quando alevantava a cabeça, dizia: “Plantei estas cebolas, não sei se me darão boas!. . . ” Assim muitas vezes, até que o gigante se massou e se dirigiu ao beija-flor, que voou-lhe em cima, querendo furar-lhe os olhos. O gi- gante desesperou e voltou para casa. Chegando lá contou a história à velha sua mulher, que lhe disse: “Como você é tolo, marido! O riacho é Guimara, o negro velho o homem pequeno, a leira de cebola a sela, o 38 Sílvio Romero – Contos populares do Brasil pé de árvore o cavalo, e o beija-flor a espingarda. Corra para trás e vá pegá-los.” O gigante tornou a partir como um danado até chegar perto deles, que se haviam desencantado e seguido a toda a pressa. Quando eles avistaram o gigante, a moça se transformou numa igreja, D. João num padre, a sela num altar, a espingarda no missal, e o cavalo num sino. O gigante entrou pela igreja adentro, dizendo: “Oh seu padre, o senhor viu passar por aqui um moço com uma moça?” O padre, que fingia estar dizendo missa, respondeu: “Sou um padre ermitão, Devoto da Conceição, Não ouço o que me diz, não... Dominus vobiscum.” Assim muitas vezes, até que o gigante se aborrece e volta para trás desesperado. Chegando em casa contou a história à mulher, que lhe disse: “Oh, marido! Você é muito tolo! Corra já, volte, que a igreja é Guimara, o padre é o homem pequeno, o missal a espingarda, o altar a sela, o sino o cavalo.” Eles lá se desencantaram e seguiram a toda a pressa; mas o gigante de cá partiu como um feroz; ia botando serras abaixo, e, quando estava, de novo, quase a pegá-los, Guimara largou no ar um punhado de cinza e gerou-se no mundo uma neblina tal que o gigante não pôde seguir e voltou. Depois disto os fugitivos chegaram ao reino de D. João. Guimara, então, lhe pediu que, quando entrasse em casa, para não se esquecer dela por uma vez, não beijasse a mão de sua tia. O príncipe prometeu; mas quando entrou em palácio a primeira pessoa que lhe apareceu foi sua tia, a quem ele beijou a mão, e se esqueceu, por uma vez, de Guimara, que o tinha salvado da morte. A moça lá perdeu na terra estranha o encanto, e ficou pequena como as outras, mas sempre triste. Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 39 12 DONA PINTA (Sergipe) UMA VEZ HAVIA UM REI que tinha seu palácio defronte de uma casa onde morava um velho que tinha três filhas bonitas. A mais bonita de todas chamava-se Dona Pinta e o rei se apaixonou por ela. Uma vez estando ele na varanda a querer namorá-la, ela, que es- tava brincando com um gatinho, arribou-lhe o rabinho, e mostrou-lhe o boeiro... O rei ficou muito zangado e quis arranjar um meio de entender-se com a moça livremente para vingar-se. Mandou chamar o pobre do velho e lhe disse que precisava que ele fosse vencer umas guerras. O velho se desculpou muito, e disse que ia falar com suas filhas para ver o que elas diziam. D. Pinta lhe disse que prometesse ao rei ir, mas pedisse uma espera de alguns dias. Esta espera era para dar tempo a ela para fazer um alçapão na casa. Passados os dias, o velho seguiu para as guerras, deixando a cada uma das filhas uma rosa, dizendo: “Quando eu voltar, cada uma há de me apresentar a sua rosa aberta e fresca, que é o sinal de sua virgin- dade; aquela cuja rosa estiver murcha terá o meu castigo”. Depois que o velho saiu, o rei apareceu na sua casa, e D. Pinta o recebeu. Deixou-o na sala conversando com as irmãs, e foi para a sala de trás, e escondeu-se no seu subterrâneo. O rei cansou de esperar, e, ficando tarde, foi-se embora muito zangado. No dia seguinte tornou a vir, e D. Pinta fez o mesmo; no terceiro dia a mesma coisa. Aí fez mal às duas suas irmãs, que apareceram pejadas, e cujas rosas ficaram murchas. O rei cada vez foi tomando mais raiva de D. Pinta, ao passo que mais se acendia o seu desejo, quanto mais ela o enganava. 42 Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 13 O PRÍNCIPE CORNUDO (Sergipe) UMA VEZ UM REI TEVE UM FILHO e mandou ver que sina o menino tinha trazido. A cigana leu a sorte e disse que o príncipe tinha trazido a sina de ser cornudo. O rei ficou muito desgostoso, e mandou fazer uma torre onde o menino foi encerrado, e ali foi criado, com ordem de nunca sair dali, nem entrar lá mulher nenhuma. O príncipe cresceu, e, quando se pôs moço feito, uma vez perguntou ao pai por que razão ele vivia ali preso. O rei lhe respondeu: “Por nada, meu filho.” Quando foi uma vez o príncipe pediu ao pai para ir ouvir missa. O rei respondeu: “Pois bem; tu irás comigo ouvir missa, mas há de ser com a condição de nunca olhares para trás por causa de umas diabinhas.” O moço prometeu e foram. Na volta o rei lhe perguntou: “Então, meu filho, o que viste de mais bonito na missa?” — “Foi o altar, meu pai.” Passou- se. Outra vez o príncipe pediu ao rei para ir ouvir missa. O rei consen- tiu; mas o moço não pôde se conter, e olhou para trás e ficou embebido todo o tempo, olhando para as diabinhas que eram as moças. Che- gando em casa, o rei lhe perguntou: “Então, o que viste de mais bonito na missa?” O moço respondeu: “Foram as diabinhas.” O rei ficou pen- sativo, e mandou preparar um navio para o filho ir viajar; mas com a condição de nunca saltar em terra senão num reino onde não houvesse notícias de seu reino nem de sua família. O moço seguiu. Chegando muito longe, num reino onde não havia mais notícias da terra dele, mandou dois criados à terra comprar mantimentos. Os dois criados partiram; mas quando lá chegaram, ficaram-se esbabacados, Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 43 vendo um leilão em que se tinha de arrematar um papagaio muito falador, e que privava os homens de serem cornudos. O lanço já estava muito alto, e nada de se entregar o papagaio. O príncipe pôs-se a esperar e nada dos criados voltarem. Mandou um outro atrás deles, que também lá se ficou. Mandou segundo, e nada! Afinal foi ele mesmo, e, conhecendo o motivo da demora, arre- matou o papagaio e foi para bordo. Seguiu viagem. Depois foi ter a um reino onde se casou. Desde então o papagaio nunca mais falou; metia a cabeça debaixo de uma asa, e vivia ali triste na gaiola. O príncipe lhe queria muito bem. Uma vez teve de ir vencer umas guerras e reco- mendou muito à princesa o seu papagaio, e ao papagaio a sua mulher. Partiu. A princesa tratava muito bem do papagaio e sempre ele triste. Ela nunca chegava à sacada; mas uma vez chegou por acaso e ia passando um moço que a viu e ficou logo muito apaixonado por ela, e voltou para casa muito triste. Uma velha, que costumava ir pedir esmola ao moço, o achando muito triste, lhe perguntou o que era. Ele respondeu que era por ter visto a mulher do príncipe, que o tinha deixado doente. A velha disse: “Oxente, meu netinho! Tudo fora isso!. . . Eu vou ter com ela e arranjo um modo dela lhe falar.” Largou-se para palácio e foi convidar a princesa para ser madrinha de um batizado. A moça se desculpou muito, dizendo que não podia ir, porque o príncipe não estava em casa. Mas a velha tanto importunou que a princesa prometeu: “Pois sim; vou amanhã de tarde.” Quando foi no dia seguinte pela tarde, a velha chegou; a princesa se aprontou, e já ia saindo. Quando passou por baixo da gaiola do papa- gaio, ele tirou a cabeça de baixo da asa, deu uma gargalhada e disse: “Onde vai, princesa minha senhora, tão bandarranona? Princesa mi- nha senhora, quer ouvir uma história de seu papagaio?” — “Pois não, meu papagaio!” Então ele disse: “Oh, criadas! Vão buscar a cadeira e os travesseiros para princesa minha senhora se assentar e se recostar para ouvir uma história de seu papagaio.” A velha ficou fumando de raiva, e o papagaio começou: 44 Sílvio Romero – Contos populares do Brasil “Uma vez havia um rei que tinha só uma filha, a quem deu ordem que, quando lhe fosse tomar a bênção, fosse sempre muito bem pronta, e com as suas joias. Assim fazia a princesa: todas as manhãs, para tomar a benção ao rei, se preparava como se fosse a uma festa. O pai tinha-lhe dito que, no dia em que ela se apresentasse sem os seus ador- nos, a mandaria prender numa torre. Aconteceu que um príncipe, que estava para casar lá no seu reino, andava viajando, e, passando pelo reino da princesa, a viu na sacada do palácio, e ficou muito apaixonado por ela. “O príncipe não achou nunca um meio de falar com a princesa; mas sabendo do costume que ela tinha de se apresentar para cumprimen- tar ao pai, virou-se num pássaro, e, num dia em que ela estava botando as suas joias, entrou pela janela e agarrou uma delas pelo bico e fugiu. A moça lhe disse: ‘Me dê a minha joia.’ — ‘Só se casar comigo’, respon- deu o pássaro, e voou. No outro dia a mesma coisa; no outro o mesmo e assim todos os dias, até que só restava uma joia à princesa para tomar a benção ao pai. O pássaro veio e arrancou também aquela. A moça seguiu atrás dele pedindo o adereço, e o pássaro voando e dizendo: ‘Só se casar comigo.’ A moça respondia sempre que não, até que entraram por uma igreja a dentro, isto já muito longe da casa de seu pai. Aí ainda ela pediu a joia, e o pássaro respondeu: ‘Só se casar comigo.’ A princesa disse: ‘Só se aquele Santo Cristo abaixar o braço e nos ca- sar ele mesmo.’ Mal ela acabara de falar, a imagem abria os olhos, e abençoava o casamento. Aí o pássaro se desencantou num belo prín- cipe. Seguiram dali todos dois. Adiante foram descansar em casa de uma velha, onde a moça pegou no sono. O príncipe entrou a maginar e a ficar triste, porque já tinha dado a sua palavra de casar com uma outra princesa de outro reino. Deu muito dinheiro à velha, dizendo que quando a moça acordasse, procurando por ele, ela não contasse para que banda ele tinha ido e largou-se numa carruagem. A moça, quando acordou e não achou o marido, ficou muito desgostosa e entrou a chorar. A velha alcoviteira a enganou por muito tempo, passeando com ela pelo jardim; mas não havia nada que a consolasse, até que a Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 47 bem preto, que, saindo de um sinalzinho na coxa, lhe rodeava toda ela e vinha morrer no mesmo sinalzinho. No outro dia largou-se a velha, e contou tudo ao ourives da prata: ‘Olhe, é uma moça assim, assim. . . tem um sinal em tal parte, assim, assim . . . ’ “Quando o ourives do ouro chegou, o da prata lhe contou como era a sua mulher e até lhe revelou o segredo do cabelo da coxa; ganhou a aposta.” Acabada esta segunda história, disse o papagaio: “Agora, princesa minha senhora, já é tarde, e deixemos de batizados de velha.” A alcoviteira saiu desesperada, desconjurando do papagaio, e mandou- o pôr no lugar mais porco do palácio. No dia seguinte a mesma imper- tinência da velha, querendo levar a moça para batizado. O papagaio, quando a princesa ia saindo, tornou a dar uma gargalhada, e convidou a sua senhora para ouvir outra história. A história era: “Uma vez havia um rei e uma rainha; estavam um dia numa janela do palácio e viram ao longe um bichinho. O rei disse que era um coelho, e a rainha que era uma lebre: e é, não é, pegaram uma aposta que quem ganhasse matava um ao outro. Mandaram depressa ver por um criado que bicho era, e o criado voltou dizendo que era um coelho. O rei foi quem ganhou a aposta; mas teve pena de matar a rainha, e mandou fazer um caixão, botou-a dentro dele e mandou largar no mar. “A rainha, que estava grávida, deu à luz um menino, que por ter nascido no mar e se ter alimentado dos goivinhos das pedras, se cha- mou o Príncipe Lodo. A rainha e o princepezinho foram dar numa tarde, onde um pescador os encontrou e levou para sua casa. Por lá eles contavam a sua história. O rei pensando que a rainha já tinha morrido, já se havia casado outra vez; mas ouvindo falar daquele prín- cipe, meio desconfiado, mandou-o chamar para ouvi-lo. O pescador deu duas folhinhas ao príncipe, e lhe disse: ‘Quando lá chegar conte a sua história direitinha ao rei, e quando ele se for zangando diga: ‘Esta história era meu bisavô que contava a meu avô, meu avô a meu pai, meu pai a mim e eu agora a conto a Vossa Majestade’; e cheire esta folhinha que você ficará bem velhinho, e, quando ele for melhorando, cheire esta que tornará a ficar mocinho.’ O Príncipe Lodo, chegando 48 Sílvio Romero – Contos populares do Brasil a palácio, o rei lhe pediu para contar a sua história. O príncipe lhe contou e fez tudo o que o pescador lhe ensinou; cheirou a folha e ficou velhinho com a cabeça branca como uma pasta de algodão”.31 *** Acabada esta terceira história, a velha foi-se embora porque já era tarde, e acabou-se a função do batizado; porque o príncipe no dia se- guinte voltou das guerras, que se tinham acabado. Aí o papagaio, que era um anjo, voou para os céus. 31Não nos foi possível conseguir o final deste último e belo conto do papagaio, que por vezes ouvimos integralmente em Sergipe narrado no seio de nossa família. Pedimos desculpa por seme- lhantes lacunas, prometendo um dia, talvez, supri-las. [Nota do Autor às edições brasileiras de 1897 e 1907, pela Livraria Francisco Alves.] Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 49 14 A MOURA TORTA (Pernambuco) UMA VEZ HAVIA UM PAI que tinha três filhos, e, não tendo outra coisa que lhes dar, deu a cada um uma melancia, quando eles quiseram sair de casa para ganhar a sua vida. O pai lhes tinha recomendado que não abrissem as frutas senão em lugar onde houvesse água. O mais velho dos moços quando foi ver o que dava a sua sina, estando ainda perto da casa, não se conteve e abriu a sua melancia. Pulou de dentro uma moça muito bonita dizendo: “Dai-me água, ou dai-me leite.” O rapaz não achava nem uma coisa nem outra, a moça caiu para trás e morreu. O irmão do meio, quando chegou a sua vez, se achando não muito longe de casa, abriu também a sua melancia, e saiu de dentro uma moça ainda mais bonita do que a outra; pediu água ou leite, e o rapaz não achando nem uma coisa nem outra, ela caiu para traz e morreu. Quando o caçula partiu para ganhar a sua vida foi mais esperto e só abriu a sua melancia perto de uma fonte. No abri-la pulou de dentro uma moça ainda mais bonita do que as duas primeiras, e foi dizendo: “Quero água ou leite.” O moço foi à fonte, trouxe água e ela bebeu a se fartar. Mas a moça estava nua, e então o rapaz disse a ela que subisse num pé de árvore que havia ali perto da fonte, enquanto ele ia buscar a roupa para ela. A moça subiu e se escondeu nas ramagens. Veio uma moura torta buscar água, e, vendo na água o retrato de uma moça tão bonita, pensou que fosse o seu e pôs-se a dizer: “Que desaforo! Pois eu, sendo uma moça tão bonita, andar carregando água!. . . ” Atirou com o pote no chão e arrebentou-o. Chegando em casa sem água e nem pote levou um repelão muito forte, e a senhora mandou-a 52 Sílvio Romero – Contos populares do Brasil para casa. A madrasta ficou muito admirada, e no dia seguinte lhe deu uma tarefa ainda maior. Maria foi ter com a sua vaquinha, e ela fez o mesmo que da outra vez. No outro dia a madrasta deu à mocinha uma grande tarefa de renda para fazer; a vaquinha, como sempre, foi que a salvou, engolindo as linhas e botando para fora a renda pronta e muito alva e bonita. A madrasta ainda mais admirada ficou. Doutra vez mandou ela buscar um cesto cheio d’água. Maria Borra- lheira saiu muito triste para a fonte, e foi ter com a vaquinha que lhe encheu o cesto, que ela levou para casa. Daí por diante a madrasta de Maria começou a desconfiar, e mandou as suas duas filhas espiarem a moça. Elas descobriram que era a vaquinha que fazia tudo para a Borralheira. Daí a tempos a mulher se fingiu pejada e com antojos e desejou comer a vaquinha de Maria. O marido não quis consentir; mas por fim teve de ceder à vontade da mulher que era uma tarasca desesperada. Maria Borralheira foi e contou à vaca o que ia acontecer; ela disse que não tivesse medo, que, quando fosse o dia de a matarem, Maria se oferecesse para ir lavar o fato;32 que dentro dele havia de encon- trar uma varinha, que lhe havia de dar tudo o que ela pedisse; e que depois de lavado o fato, largasse a gamela pela corrente abaixo e a fosse acompanhando; que mais adiante havia de encontrar um velhi- nho muito chagado e com fome; lavasse-lhe as feridas e a roupa, e lhe desse de comer, que mais adiante havia de encontrar uma casinha com uns gatos e cachorrinhos muito magros e com fome, e a casinha muito suja, varresse o cisco e desse de comer aos bichos, e depois de tudo isso voltasse para casa. Assim mesmo foi. No dia que a madrasta de Maria quis que se matasse a vaquinha, a moça se ofereceu para ir lavar o fato no rio. A madrasta lhe disse com desprezo: “Oxente! Quem havia de ir se não tu, porca?” Morta a vaca, a Borralheira seguiu com o fato para o rio; lá achou nas tripas a varinha de condão, e guardou-a. Depois de lavado o fato botou-o na gamela e largou-a pela correnteza abaixo, e a foi acompanhando. 32As vísceras. [N. do E.] Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 53 Adiante encontrou um velhinho muito chagado e morto de fome e sujo. Lavou-lhe as feridas, e a roupa, e deu-lhe de comer. Este velhinho era Nosso Senhor. Seguiu com a gamela. Mais adiante encontrou uma casinha muito suja e desarrumada, e com os cachorros e gatos e galinhas muito magros e mortos de fome. Maria Borralheira deu de comer aos bichos, varreu a casa, arrumou todos os trastes e escondeu- se atrás da porta. Daí a pouco chegaram as donas da casa, que eram três velhas tatas.33 Quando viram aquele benefício, a mais moça disse: “Manas, faie- mos; faiemos, manas: permita a Deus que quem tanto bem nos fez lhe apareçam uns chapins de ouro nos pés.” A do meio disse: “Manas, fai- emos, manas; permita a Deus que quem tanto bem nos fez lhe nasça uma estrela de ouro na testa.” A mais velha disse: “Faiemos, manas: permita a Deus que quem tanto bem nos fez, quando falar lhe saiam faíscas de ouro da boca.” Maria, que estava atrás da porta, apareceu já toda formosa com os chapins de ouro nos pés, e estrela de ouro na testa, e quando falava saíam-lhe da boca faíscas de ouro. Amarrou um lenço na cabeça, fingindo doença, para esconder a estrela, e tirou os chapins dos pés, e foi-se embora para casa. Quando lá chegou, entre- gou o fato e foi para o seu borralho. Passados alguns dias, as filhas da madrasta lhe viram a estrela e perceberam as faíscas de ouro que lhe saíam da boca, e foram contar à mãe. Ela ficou com muita inveja, e disse às filhas que indagassem da Borralheira o que é que se devia fazer para se ficar assim. Elas perguntaram e Maria disse: “É muito fácil; vocês peçam para irem também uma vez lavar o fato de uma vaca no rio; depois de lavado botem a gamela com ele pela correnteza abaixo e vão acompanhando; quando encontrarem um velhinho muito feridento, metam-lhe o pau, e deem muito; mais adiante, quando encontrarem uma casa com uns cachorros e gatos muito magros, emporcalhem a casa, desarrumem tudo, deem nos bichos todos, e escondam-se atrás da porta, e deixem estar que, quando vocês saírem, hão de vir com chapins e estrelas de 33Gagas, tartamudas. [N. do A.] 54 Sílvio Romero – Contos populares do Brasil ouro.” Assim foi. As moças contaram à mãe, e ela lhes deu um fato para irem la- var no rio. As moças fizeram tudo como Maria Borralheira lhes ti- nha ensinado. Deram muito no velhinho, emporcalharam a casa e deram muito nos bichos das velhas, e se esconderam atrás da porta. Quando as donas da casa chegaram e viram aquele destroço, a mais moça disse: “Manas, faiemos, manas: permita a Deus que quem tanto mal nos fez lhe apareçam cascos de cavalo nos pés.” A do meio disse: “Permita Deus que quem tanto mal nos fez lhe nasça um rabo de ca- valo na testa.” A terceira disse: “Permita Deus que quem tanto mal nos fez, quando falar lhe saia porqueira de cavalo pela boca.” As duas moças, quando saíram de detrás da porta já vinham preparadas com seus enfeites. Quando falaram ainda mais sujaram a casa das ve- lhinhas. Largaram-se para casa, e quando a mãe as viu ficou muito triste. Passou-se. Quando foi depois, houve três dias de festa na ci- dade, e todos de casa iam à igreja, menos a Borralheira que ficava na cinza. Mas, depois de todos saírem, ela logo no primeiro dia pegou na sua varinha de condão e disse: “Minha varinha de condão, pelo condão que Deus vos deu, dai-me um vestido da cor do campo com todas as suas flores.” De repente apareceu o vestido. Maria pediu também uma linda carruagem. Aprontou-se e seguiu. Quando entrou na igreja, to- dos ficaram pasmados, e sem saber quem seria aquela moça tão bonita e tão rica. Aí uma das filhas da madrasta disse à mãe: “Olhe, minha mãe, parecia Maria.” A mãe botou-lhe o lenço na boca por causa da sujidade que estava saindo, mandando que ela se calasse, que as vizi- nhas já estavam percebendo. Acabada a festa, quando chegaram em casa, Maria já estava lá valha,34 metida no borralho. A mãe lhes disse: “Olhem, minhas filhas, aquela porca ali está, não era ela, não; onde ia ela achar uma roupa tão rica?” No outro dia foram todas para a festa e Maria ficou; mas quando todas se ausentaram, ela pegou na varinha de condão e disse: “Minha varinha de condão, pelo condão que Deus vos deu, dai-me um vestido de cor do mar com todos os seus peixes, 34Já estava havia muito. [N. do A.] Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 57 “Xô, xô, passarinho, Aí não toques teu biquinho, Vai-te embora pra teu ninho. . . ” Andando o capinheiro da casa a cortar capim para os cavalos, deu com aquele capinzal muito bonito, mas teve medo de o cortar, por ouvir aquelas palavras. Correndo foi contar ao senhor. O senhor não o quis acreditar, e mandou-o cortar aquele mesmo capim, porque estava muito grande e verde. O negro foi cortar o ca- pim, e quando meteu a foice ouviu aquela voz sair de baixo da terra e cantando: “Capinheiro de meu pai, Não me cortes os cabelos; Minha mãe me penteava, Minha madrasta me enterrou Pelo figo da figueira Que o passarinho picou.” O negro, que ouviu isto, correu para casa assombrado, e foi contar ao senhor que o não quis acreditar, até que o negro instou tanto que ele mesmo veio, e, mandando o negro meter a foice, também ouviu a can- tiga do fundo da terra. Então mandou cavar naquele logar e encontrou as suas duas filhas ainda vivas por milagre de Nossa Senhora, que era madrinha delas. Quando chegaram em casa acharam a mulher morta por castigo. 58 Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 17 O PAPAGAIO DO LIMO VERDE (Sergipe) UMA VEZ HAVIA, NUM LUGAR retirado duma cidade, uma velha que tinha três filhas: uma de um só olho, outra de dois, e outra de três. Perto da casa da velha havia uma outra casa, onde morava uma moça muito bonita. Por esta moça namorou-se o príncipe real do reino do Limo Verde, que a visitava todas as noites, e lhe estava dando muitas riquezas. A velha vizinha entrou a desconfiar daquelas riquezas, e, uma vez por outra, ia à casa da moça para ver se pilhava alguma coisa, e nada... Uma vez sua filha mais velha, que tinha três olhos, lhe disse: “Mi- nha mãe, me deixe ir passar a noite na casa da vizinha que eu descubro o segredo.” A velha concordou, e a moça dos três olhos foi. Chegando lá disfarçou: “Ó vizinha, há muito tempo que não lhe vejo; vim hoje passar a noite com você.” — “Pois não, vizinha, a casa está às ordens!”, respondeu a bela namorada. Quando foi na hora de irem dormir, a dona da casa deu à sua companheira, em lugar de chá, uma dormi- deira. A moça dos três olhos ferrou no sono como uma pedra; roncou toda a noite e não viu nada. O príncipe real do Limo Verde veio, como de costume, encantado num grande e lindo papagaio; foi chegando e batendo com as asas na janela do quarto; a namorada abriu-a, e ele foi dizendo: “Dai-me san- gue, dai-me leite, ou dai-me água!” A moça apresentou-lhe um banho numa grande bacia; o papagaio caiu dentro da água a se arrufar e bater com as asas; cada pingo d’água que lhe caía das penas era um diamante, e assim é que a moça ia ficando cada vez mais rica. O papa- Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 59 gaio, no banho, desencantou-se num lindo príncipe, que passou a noite com a sua namorada. De madrugadinha tornou a virar em papagaio, bateu asas e foi-se embora. A mulher dos três olhos não viu nada; vol- tou para casa e disse à mãe que tudo eram boatos falsos, e que na casa da vizinha não havia novidade. Daí a tempos a irmã de dois olhos se ofereceu para ir passar tam- bém uma noite na casa da vizinha; foi e chupou da dormideira, pegou no sono, e veio o papagaio, e ela nada viu. Voltou para casa sem desco- brir o segredo. Passados dias, a moça de um só olho se ofereceu à mãe, dizendo: “Agora, minha mãe, minhas irmãs já foram, e eu quero tam- bém ir descobrir o segredo.” As irmãs caçoaram muito dela: “Quando nós, que temos mais olhos do que tu, não vimos nada, quanto mais tu, que tens um só!. . . ” Enfim a velha consentiu, e a sua filha de um só olho foi. Chegando lá, fez muita festa à rica vizinha, e, quando foi a hora da ceia, fingiu que bebia a dormideira, e derramou-a no seio. Deitou-se e fingiu que estava dormindo. Lá para alta noite chegou o grande e bonito papagaio, batendo com as asas na janela; a dona da casa abriu, e ele se desencantou num moço muito formoso, e, como das outras vezes, dentro da bacia do banho ficou muito ouro e muitos bri- lhantes que a namorada guardou. A sujeitinha de um olho só via tudo caladinha. No outro dia bem cedinho largou-se para casa e contou tudo à mãe. No dia seguinte a velha foi quem veio passar a noite na casa da moça. Quando entrou para o quarto de dormir disfarçou e colocou umas navalhas bem afiadas na janela por onde tinha de entrar o pa- pagaio. Ele, quando veio se cortou todo nas navalhas e disse para a namorada: “Ah, Maria ingrata! Nunca mais me verás; só se mandares fazer uma roupa toda de bronze e andares até ela se acabar...” Bateu asas, e voou. A moça, que não esperava por aquilo, ficou muito des- gostosa, e logo compreendeu a razão das visitas daquela gente a sua casa. Mandou fazer uma roupa toda de bronze, e com chapéu, sapatos e bastão também de bronze, e largou-se pelo mundo a procurar o reino do Limo Verde. Depois de muito andar, sem ninguém lhe dar notícia, foi ter à casa do pai da Lua. 62 Sílvio Romero – Contos populares do Brasil Não achando um meio de entrar no palácio, a peregrina tirou para fora a almofada de ouro, e se pôs a fazer renda. Veio passando uma criada do palácio, viu e foi dizer à rainha, mãe do príncipe: “Não sabe, rainha minha senhora, ali fora está uma peregrina com uma almo- fada de ouro, com birros 35 36 de ouro, fazendo renda também de ouro, coisa mais linda que dar-se pode. Só vosmecê possuindo...” A rainha mandou perguntar à peregrina quanto queria pela almofada. A moça respondeu: “Para ela não é nada; basta me deixar dormir uma noite no quarto do príncipe que está doente.” A criada foi dar a resposta; mas a rainha ficou muito insultada e não quis. Mas a criada lhe disse: “O que tem, rainha minha senhora? O príncipe meu senhor está tão mal que nem conhece mais ninguém; que mal faz que aquela tola durma lá no quarto no chão?” A rainha concordou; foi a almofada de ouro para pa- lácio, e a peregrina dormiu no quarto do doente. Logo nesta primeira noite ela lavou bem as feridas que o príncipe tinha no peito, e botou nelas o pó dos corações das rolinhas; mas o príncipe ainda não deu por de si, e não a conheceu. No dia seguinte a moça foi outra vez para debaixo da árvore, e puxou para fora a galinha de ouro com os pinti- nhos, que se puseram a andar. A criada veio passando e viu. Correu logo para palácio e disse: “Ó rainha minha senhora, a peregrina está com uma galinha de ouro com uma ninhada de pintos, tudo vivinho e andando... Que coisa bonita! Só rainha, minha senhora, possuindo...” A rainha mandou propor negócio. A moça disse que não era nada; bastava deixar ela dormir mais duas noites no quarto do príncipe. A rainha não queria; mas a criada arranjou tudo e a moça foi dormir no quarto do príncipe, e deu a galinha e os pintos de ouro. Na segunda noite que ela dormiu em palácio, a moça continuou o tratamento, e aí o príncipe foi melhorando e já a ia conhecendo. Na terceira noite aca- 35Não é o chapéu dos cardeais, nem o byrrho coleoptero; é uma transformação de bilro, o bilro conhecidíssimo. [N. do A.] 36“Peça de madeira, metal etc., similar a um fuso, us. para fazer rendas em almofada própria. [No Nordeste do Brasil, é feito com um coquinho de macaúba preso a um pequeno cabo cilíndrico de madeira, no qual se enrola o fio.]” Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2001, p. 453. [N. do E.] Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 63 bou o curativo e o príncipe ficou bom. Depois que ficou de todo com saúde, saiu do quarto e apresentou à rainha e ao rei a peregrina como sua noiva, e assim se desmanchou o casamento que já lhe tinham ar- ranjado com uma princesa vizinha. Houve muita festa na cidade e no palácio... E eu (isto diz por sua conta o narrador popular) trouxe de lá uma panelinha de doce para lhe dar (referindo-se à pessoa a quem con- tou a história), mas a lama era tanta que ali na ladeira dos Quiabos escorreguei e caí e lá foi-se o doce. Entrou por uma porta, Saiu por um pé de pato; Manda o rei, meu senhor, Que me conte quatro. 64 Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 18 JOÃO GURUMETE (Pernambuco) HAVIA UM SAPATEIRO MUITO TOLO que tinha um discípulo, que o aconselhava. Uma vez o sapateiro, botando um caco com goma para esfriar, caíram nele sete moscas, que ficaram presas e morreram. O discípulo, vendo aquilo, aconselhou ao mestre que escrevesse em le- tras grandes na copa de seu chapéu: João Gurumete que de um golpe matou sete. Assim ele fez. O povo quando viu aquilo ficou pensando que o sapateiro era um homem muito valente. Aconteceu que apare- ceu um bicho bravo, que andava acabando tudo, comendo a gente. Era um bicho de sete cabeças e sete línguas; todos os dias ele vinha buscar sua porção de gente, e, de sete em sete, já tinha acabado os meninos da cidade e estava devorando as donzelas. O rei mandou suas tropas acabar com o bicho, mas nada puderam fazer. Foram dizer ao rei que havia na cidade um homem muito destemido que só dum golpe tinha matado sete, e que só ele é que podia dar cabo do bicho. O rei man- dou chamar o João Gurumete e o mandou acabar com aquela fera. O sapateiro ficou muito assustado mas não deu a entender ao rei, e disse que ia matar o monstro. Saindo da presença do rei, foi ter com o discípulo, quase chorando, que o valesse, que desta feita ele morre- ria. O discípulo lhe disse: “Não tem nada; lá onde se encontra o bicho há uma igreja velha; você corra, quando o avistar, e entre pela igreja adentro, e saia por um buraco que tem no fundo, e deixe estar que o bicho há de entrar também, e então você feche a porta, e ele fica preso lá dentro e morre de fome, e está acabada a história.” João Gurumete ficou muito contente e partiu; muita gente o acompanhou para ver a Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 67 ficando Gurumete por vencedor, e casou-se com a filha do rei. Na noite do casamento houve uma grande festa, e o antigo sapa- teiro bebeu demais, e quando foi se deitar, caiu na cama como um porco roncando e pôs-se a sonhar alto: “Puxa mais este ponto, bate esta sola, encera a linha, olha a tripeça!” A princesa ficou muito espantada e desgostosa e queixou-se ao pai no outro dia que estava casada com um sapateiro, tanto que ele tinha sonhado toda a noite com os objetos de sua tenda. O rei mandou ficar tropa à espreita e disse à filha: “Se ele esta noite sonhar como ontem, me avisa que ele será preso e morto”. O discípulo de Gurumete soube disto e o avisou: “Olhe que você está pra levar a carepa, se esta noite sonhar com coisas da tenda, como na noite passada; não beba hoje nada; e quando for pra cama finja que está dormindo e sonhando com uma guerra, grite aos soldados, pegue na espada, risque pelas paredes, e deixe estar.” Assim fez. Na cama fingiu que dormia, pôs-se a gritar, comandando as tropas, pegou na espada e quase feriu a princesa que teve um grande susto. O rei, que ouviu isto, ficou muito satisfeito e repreendeu a filha, dizendo: “Estás casada com um grande homem, um valente guerreiro, e me an- das com histórias de sapateiro! Não me repitas outra.” Daí por diante Gurumete dormiu em paz, sonhando sempre com suas solas e sapatos. 68 Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 19 MANOEL DA BENGALA (Sergipe) UMA VEZ UM REI TEVE UM FILHO que nasceu logo muito grande e robusto. No fim de oito dias já o menino comia um boi inteiro. O rei ficou muito assustado e mandou chamar os conselheiros para lhe dizerem o que se havia de fazer, pois aquele filho lhe acabava com toda a fortuna. Os conselheiros foram da opinião que o rei mandasse o filho procurar a sua vida. O príncipe pediu que lhe mandasse fazer uma bengala de ferro muito grossa e pesada, um machado e uma foice também grandes e pesados, e partiu. Chegando à casa de um senhor de engenho, pediu serviço, e o dono da casa o aceitou. Foi o moço derrubar uma roça e deitou com três ou quatro foiçadas quase todas as matas do engenho embaixo. O dono ficou muito assustado, e não o quis mais o seu serviço. Além disto, na hora de jantar, o príncipe não quis o comer que lhe deram por não che- gar nem para o buraco de um dente, e pediu um boi e um alqueire de farinha. O senhor do engenho, pensando que ele não pudesse comer tudo, mandou dar-lhe para o experimentar, e ainda mais espantado ficou quando o viu devorar tudo, e o despediu. Voltou o príncipe para o palácio de seu pai. Aí esteve alguns dias, até que o rei mandou de novo reunir os conselheiros, que foram de opinião que o rei mandasse o príncipe pegar seis leões bravos nas matas. Isto era para ver se os leões davam cabo dele. O moço pediu um carro e uma junta de bois. Chegando nas matas dos leões passou lá seis dias. Em cada dia ma- tava um boi do carro e pegava um leão, botava no logar, e o amansava. Depois cortou umas árvores muito grandes e botou no carro e largou-se Sílvio Romero – Contos populares do Brasil 69 para trás. Quando o rei o viu foi aquele zoadão que parecia que queria vir tudo abaixo. Era o barulho das árvores e dos leões que vinham com Manoel da Bengala. Assim se ficou chamando o príncipe, por causa da bengala de ferro. Afinal o rei ordenou-lhe que ganhasse o mundo e não lhe voltasse mais em casa. O príncipe partiu. Chegando adiante viu um homem passando um rio cheio, mas sem se molhar, e disse: “Adeus, Passa-Vau.” 38 — “Adeus, Manoel da Ben- gala.” — “Passa-Vau, você quer andar na minha companhia?” — “Que- ro.” — “Apois então me passe para banda de lá.” Passa-Vau o pas- sou e seguiram juntos. Mais adiante encontraram um homem cor- tando muito cipó e emendando para fazer um laço, e Manoel da Ben- gala disse: “Adeus, Arranca-Serra.” — “Adeus, Manoel da Bengala.” — “Arranca-Serra, você quer andar comigo?. . . ” — “Apois não, Manoel da Bengala!” — “Entonce vamos.” E partiram. Cada dia um dos três ia buscar comida para todos. Quando foi uma vez, Passa-Vau foi buscar mantimento e encontrou no caminho um mo- leque muito preto, de carapuça de latão, que lhe pediu fogo para o ca- chimbo. Passa-Vau não quis dar, e o moleque trepou-lhe o cachimbo na cabeça e o derrubou no chão, como morto. Daí a muito tempo é que ele veio a si, voltou e contou aos companheiros o que lhe tinha acontecido. Arranca-Serra disse: “Ora, Passa-Vau, você é muito mofino; amanhã quem vai sou eu.” Assim foi. Quando andava por longe, apareceu-lhe aquele moleque da cabeça de latão, que lhe pediu fogo para o cachimbo. Ele não quis dar, e travaram luta; o moleque arrumou-lhe com o ca- chimbo na cabeça e o deitou por terra. Daí a muito tempo é que ele deu acordo de si e voltou para os outros. Manoel da Bengala o debi- cou muito, chamando-o de mofino, e no dia seguinte quando foi buscar mantimento foi ele. Lá bem longe encontrou o moleque da cabeça de latão, que lhe disse: “Como vai, Manoel da Bengala?” “Vou bem; você como está?” — “Bom, muito obrigado; Manoel da Bengala, você me dá fogo para o meu cachimbo?” — “Não te dou, moleque; sai-te daqui.” 38Vau: a parte rasa de um rio, de um riacho, ou do mar, que se pode atravessar a pé ou a cavalo. [N. do E.]
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